FACULDADE DE LETRAS
UNIVERSIDADE DO PORTO
Francisco Nazareth
2º Ciclo de Estudos de Mestrado em Português Língua
Segunda/Língua Estrangeira
Monumentalidade Apócrifa: Discurso, Currículo e Poder.
Uma Experiência de Ensino de Cultura Portuguesa a
Estrangeiros
2012
Orientador: Professora Doutora Isabel Margarida Duarte
Versão provisória
1
Agradecimentos
O trabalho aqui apresentado tem como objetivo principal a aquisição de uma
graduação relacionada com o ensino de Língua e Cultura Portuguesas para
estrangeiros, conforme diretivas elaboradas em quadro normativo superior que regula
as funções dos Leitores do Instituto Camões I.P.. Contudo, ele estendeu-se muito para
além disso, conforme se perceberá, e os principais incentivadores de tal processo são
os seguintes “culpados” que passo a nomear: os meus colegas do – assim denominado
– “Bloco de Leste”, Sofia Soares (Zagreb fica, seguramente, uma cidade mais pobre
sem ela), André Cunha (cujo dissidência intelectual se tornou fundamental para que
eu pudesse entender – e cito – certos “vultos” académicos da região), Clara Riso (cujo
sorriso sempre ajuda a aliviar o peso das “monumentalidades”), Patrícia Ferreira
(sabedora, na pele, do verdadeiro significado da palavra “apócrifo” em contexto “pósCeausescu”) e Joaquim Ramos (Praga já não tem Kafka: foi substituído à altura); sem
eles, este esforço não teria tido metade da motivação que teve.
Os meus amigos Tristan Lefilleul (autor de entrevistas tardiamente traduzidas e que,
por isso, não puderam ser integradas nesta tese, vindo a constituir material de trabalho
para o futuro: um grande obrigado segue no vento em direção a Ulan Bator) e Sasho
Nedelkovski (por me ajudar a perceber o sentido que ainda tem, para muita gente, a
proposta de multietnicidade que deveria unir os “eslavos do Sul”). O grande
Francesco Martino, profundo conhecedor da região e capaz de ser, nos tempos que
correm, um jornalista que escreve com honestidade. As minhas ex-alunas Ani
Nikolova e Deya Gavrailova que, com custos pessoais, sempre questionaram modelos
dogmáticos que lhes eram impostos e me facultaram informações preciosas para o
entendimento do “currículo oculto” como estado manifesto de poder, superando, por
isso, “fronteiras”. A Professora Doutora Isabel Duarte pelo carinho e boa vontade
colocados na supervisão deste trabalho: não esquecerei a nossa bem-humorada
viagem a Veliko Târnovo. A minha amiga Lurdinha Paniago: sem as nossas conversas
– curiosamente também em Veliko Târnovo – eu não teria sabido canalizar a
conceptualização foucauldiana nesta perspetiva. A todos aqueles que aqui não
menciono e que me ajudaram; também, a todos aqueles que me dificultaram acesso às
informações de que eu precisava: constituíram um sintoma interessante de muito do
que aqui se diz. Um grande obrigado,
Francisco Nazareth, Sófia, Setembro de 2012.
2
Introdução
Este trabalho tem como tema organizador a noção de “monumentalidade apócrifa”,
aplicada à análise dos discursos culturais nacionalistas enquanto espaços de poder e
saber que são veiculados por currículos escolares. Nesse sentido, usaremos como
ferramentas de trabalho conceitos de cariz foucauldiano para podermos desmontar,
enquanto regimes de verdade, discursos que se apresentam como indiscutíveis, sendo,
no entanto, para nós, apenas convenções. Monumentalidade apócrifa quer dizer, no
contexto deste trabalho, um discurso cultural de autoridade que, sendo discurso, se
apresenta como facto. Existe nele uma suposta adequação entre linguagem e real que
é absoluta e uma noção teleológica e positiva de perenidade - e ancestralidade - que
não é posta em causa. Nesse sentido, o discurso, concebido como a verdade, é solene
e ritual, afirmando-se como o poder de uma verdade maior, essencial e profunda que,
sendo apenas uma versão do tempo e do espaço, é apresentada como algo indiscutível,
ocultando-se o seu convencionalismo e manobrando-se uma enunciação tida como
algo de universal e necessário que, pela ocultação da divergência, exclui em relação a
si mesma qualquer dissidência. Este espaço discursivo monolítico e inabalável,
embora careça de confirmação absoluta, é uma construção convencionada e
performativa, um horizonte de expectativas textuais que é único e idealizado e onde
qualquer assombro epistémico que o questione é visto como carecendo de
fundamento.
A construção do tema da monumentalidade apócrifa, sustenta-se em temáticas
foucauldianas (não só no trabalho de Michel Foucault, mas também no de
comentadores) (1979/2007, 2001, 2003, 2003, 2005, 2005, 2007, 2010),
nomeadamente na questão do binómio poder e saber enquanto discurso normativo de
adestramento que estabelece um regime de verdade tomado como mito de coesão
primordial. Ele cria, em termos coletivos, a hegemonia daquilo que pode ser dito e se
transforma em vigilância interiorizada que faz falar um determinado tipo de regime de
verdade. Veremos em seguida como é que este regime de verdade, na senda de
Foucault, sustenta as análises sobre o nacionalismo como sendo um discurso de
convenção criado em torno dos dispositivos da modernidade que o estabelecem como
registo ritualizado de hegemonia social. Mobilizaremos aqui os estudos em torno do
nacionalismo de Patrick Geary (2008), que demonstram o seu lado apócrifo, de Ernest
Gellner (1983, 1996), que mostra o quanto o nacionalismo é devedor da
3
industrialização capitalista e é seu parceiro, de Eric Hobsbawm (1983/2000,
1990/2008, 1990/2011), que apresenta a propaganda como disseminadora da língua,
da etnicidade e da religião e a tradição como algo inventado e não perene, e de
Benedict Anderson (1983/2008) que nos mostra o quanto a disseminação da imprensa
escrita se transformou em discurso de poder para a imaginação comunitária. Esta
narrativa toma, na nossa perspetiva, a forma de um currículo oculto nos estudos
historiográficos, literários e culturais, no sentido não de estar absolutamente oculto,
mas de não se mostrar como convenção. A sua apresentação como “a” verdade e não
como “uma” verdade é que oculta o seu carácter convencional: remeteremos esta
noção para o trabalho de Tomaz Tadeu da Silva (1999, 2000/2011).
Para sustentar este tema, desenvolveremos uma análise do discurso nacionalista na
Bulgária, conforme ele se apresenta na vulgata histórica e literária, tendo em conta os
seus tropismos, afirmações e lugares comuns, mediante o estabelecimento de um
recorte histórico que refere o tempo da presença otomana. Em seguida,
apresentaremos versões críticas deste monumento, não só feitas por estudiosos
internacionais, mas também búlgaros, que demonstram o seu carácter apócrifo de
convenção que, sendo silenciada enquanto tal, se apresenta como dogma indiscutível.
Mostraremos, depois, como os valores deste tipo de nacionalismo se recapitulam,
enquanto máquinas poderosas de imaginação social, na leitura de uma cultura
estrangeira. Usaremos para isso a teoria da recapitulação, como modelo teórico que
permite ver como a filogenia histórica, cultural e literária dos currículos búlgaros se
recapitula como ontogenia na leitura que é feita sobre Portugal, os portugueses e a
literatura portuguesa. Escolheremos referenciais que são próximos temporalmente da
presença otomana na Bulgária, tais como os Lusíadas e as descobertas. Mostraremos
ainda que a nação não é indiscutível mesmo em Portugal, espaço territorialmente
estável há muitos séculos. Para muitos historiadores, antropólogos, pensadores e
sociólogos portugueses o referencial nação é quando muito gradual e tomar os
portugueses e Portugal como algo tipológico e perene é da ordem do delírio: é preciso
regressar à máquina discursiva do Salazarismo para encontrar tal ideia indiscutível.
Por fim, mostraremos como a nossa experiência docente na Bulgária levou à
necessidade de programas culturais que se apresentassem como espaços de resistência
dialogante e contrastiva em relação ao critério de autoridade indiscutível de uma visão
arcaica e idílica de Portugal. Com o cinema português visto enquanto antropologia
visual, a cultura como resistência que parte do corpo como afirmação política de
4
dissidência, as literaturas africanas como espaços mestiços que desafiam a ordem do
discurso de poder outrora imperial, a poesia como estando dominada por um presente
urbano e internacionalizado a nível da linguagem e dos afetos e o pensamento como
entrando em ordens discursivas que passam por suspeitas quanto a mitologias
racionalistas (discutindo e desconstruindo o carácter convencional dos idealismos
modernos que promoveram utopias de progresso dominadas pela ilusão e pela
promoção da catástrofe ecológica), tentamos apresentar um discurso divergente sobre
Portugal e os portugueses, aliás, convenhamos, significantes em profunda e
quotidiana mutação.
É nossa intenção, por isso, mostrar como a monumentalidade apócrifa não é mais do
que um discurso de poder que se apresenta como indiscutível, muitas vezes pela
invocação do medo e do domínio da escrita sobre o oral, do professor sobre o aluno,
do centro sobre as periferias. O nosso registo, mais do que pós-colonial, é talvez pósimperial: mostra como se pode estabelecer um diálogo entre as periferias da Europa
que seja um convite à serenidade no encontro e no diálogo entre as pessoas. Nem os
búlgaros são vítimas perenes de qualquer tipo de jugo, nem os portugueses são peitos
ilustres que apenas avançaram de forma imaculada o poder da – aliás discutível –
“civilização”. Um convite à abertura, portanto, e ao exorcismo dos vários esqueletos
guardados em armários de ficções históricas com cariz problemático.
5
Capítulo 1 – Discurso de Poder e Nacionalismo: Os contributos da discursividade
foucauldiana para a análise da emergência moderna do nacionalismo em Patrick
Geary, Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson e suas consequências
numa possível conceção de “currículo oculto”
O primeiro capítulo deste trabalho pretende colocar em diálogo a ideia de
nacionalismo, conforme esta dá corpo ao “currículo oculto” (para esta noção,
remeteremos para Tomaz Tadeu da Silva 1) da escolarização na Bulgária a nível das
noções de cultura, civilização, literatura e identidade (mediante um processo de
homogeneização). Mas para chegar à ideia de nacionalismo e de nacionalidade – e à
sua problematização – é preciso ver de que forma olhamos para essa ideia do ponto de
vista da subjetivação e do regime de verdade em que a instituição escolar se encontra.
Para tal, vamos recorrer a uma leitura conceptual herdeira de Michel Foucault – que
constituirá a grelha intelectual de todo o texto – sobre o discurso, nomeadamente
lendo-o em diálogo com as noções relacionais de saber e poder, de subjetividade, de
arquivo e episteme (que serão aqui lidas no que têm de comum), de regime de
verdade, de história, controlo, disciplina (também mediante o estabelecimento de
correlações), dispositivo e estratégia. Ou seja: as noções não serão apresentadas de
modo separado mas por um processo em que elas se vão definindo entre si de modo
relacional. Não nos interessa criar um léxico foucauldiano – isso está feito 2 – mas,
isso sim, construir uma grelha de análise baseada em apropriações do trabalho
foucauldiano3 e não numa análise do seu pensamento “de per si”, pelo que a
periodização do mesmo (nomeadamente a diferença entre arqueologia e genealogia),
embora não seja irrelevante, será apresentada sem uma profundidade grande e tendo
em conta sempre a sua contribuição para este trabalho como ferramenta. Importa
também ver os pressupostos filosóficos de onde parte o pensamento de Foucault, de
modo a que se possa perceber que a maneira como se vão analisar os processos do
currículo assente numa visão nacionalista da cultura (e da civilização, da identidade,
da história e da literatura) não pretende remetê-la para um espaço onde seja vista
como “atrasada” ou “arcaica” ou “antiquada”4, mas apenas vê-la como uma
1
A referência para este autor será colocada mais adiante neste capítulo.
Judith Revel (2005), Michel Foucault: Conceitos Essenciais (São Carlos: Claraluz).
3
Como Gilles Deleuze, em conversa com Michel Foucault, observa bem, uma teoria é uma “caixa de
ferramentas”. Michel Foucault (1979/2007: 71), Microfísica do Poder (São Paulo: Graal).
4
O que seria, aliás, profundamente anti-foucauldiano.
2
6
possibilidade de emergência de um objeto de verdade (e já estamos a usar linguagem
foucaldiana) e não “a” verdade considerada de modo positivista, único e linear.
A) Foucault e a Analítica dos Regimes Discursivos de Verdade: Saber, Poder,
Subjetividade e Normatividade
Importa por isso começar pelos pressupostos reflexivos da crítica de Foucault ao
pensamento tradicional sobre a história da filosofia (ou talvez pelo modo como
Foucault lê a hermenêutica que critica na relação que esta estabelece com a história do
pensamento), para percebermos como ele desmonta três pressupostos fundamentais
cuja desconstrução nos será necessária: 1 – a desmontagem da noção positivista de
verdade; 2 – a desmontagem da noção linear e teleológica da história de cariz
“ilustrado”, hegeliano e marxista; 3 – a desmontagem da noção essencialista de
sujeito herdeira do racionalismo. A dívida fundamental de Foucault nesta leitura é a
sua própria visão de Nietzsche, ao qual ele vai buscar a noção de genealogia para
contrapor (complementando-o) ao esforço inicial em torno da arqueologia, para
alguns ainda demasiado marcado pelos esforços do estruturalismo. É que, para
Foucault, a arqueologia permite uma visão que, diríamos, é mais paradigmática
daquilo que conta como regime discursivo, enquanto que a genealogia permite
perceber melhor os processos de descontinuidade que aconteceram ao longo dos
vários momentos históricos sem qualquer preocupação linear, mas esta diferença
supõe uma explicação mais detalhada5.
5
Para Judith Revel, é a relação com o poder e a subjetividade que auxilia a passagem da arqueologia à
genealogia. Ao procurar saber o que é o arquivo de uma época, como conjunto de discursos possíveis e
pronunciados, Foucault, ao trabalhar o discurso como acontecimento (ao contrário do estruturalismo
que o trata como sistema), vai perguntar pelas condições de emergência dessa descontinuidade, ou seja,
desse regime discursivo que configura uma relação de saber e poder. Assim, ao “beber” em Nietzsche a
noção de genealogia, ele parte para uma crítica da atualidade recusando visões sequenciais (baseadas
em pré-existências essenciais) ou tranquilizadoras e apostando numa dispersão.
Judith Revel (2010: 79/92), Foucault, Une Pensée du Discontinu (Paris: Mille et Une Nuits).
Alfredo Veiga-Neto ajuda-nos a cimentar esta conceptualização quando vê o sujeito moderno em
Foucault como objeto de discursos e produto de saberes que nele circulam e o regulam em termos de
enunciação. Assim, a arqueologia escava camadas nos discursos pronunciados, revelando fragmentos
possuidores de determinados jogos de regras contingentes que mostram como o discurso vem a ser o
que é, definindo um determinado sistema de formação. Desse modo, a análise arqueológica descreve
discursos em busca de regularidades, articuladas com práticas onde se engendram conhecimentos
epistémicos. Por exemplo, um currículo escolar é um exemplo epistémico de uma rede discursiva que
tem como objetivo capturar o indivíduo do ponto de vista institucional, cavando aí saberes pedagógicos
que instauram uma tipologia subjetiva que é simultânea a uma formação histórica.
Alfredo Veiga-Neto (2003: 52/61), Foucault e a Educação (Belo Horizonte: Autêntica).
Por outro lado, a genealogia é um modo de olhar a história porque explica uma génese no tempo. Não
buscando fundações essenciais, o que não interessa a Foucault, lê as regras de formação discursiva
7
Ora, quanto à verdade, para o registo foucauldiano, não existe tal coisa como aquilo a
que o pensamento ocidental se habituou a chamar verdade, isto é, não existe nem uma
adequação absoluta (palavra ou conceito que não tem sentido no léxico foucauldiano)
entre linguagem e real, nem uma recolha ou descoberta do mundo por processos
cumulativos, nem um sentido positivo e unívoco dos conceitos que usamos para dar
sentido à realidade. Para Foucault, cada época funciona de acordo com o seu próprio
regime de verdade e cada contexto cultural, di-lo-íamos, também. Isto é importante
para perceber não só o modo como ele se relaciona com a história do pensamento,
mas, ainda, a maneira como ele interpreta os mecanismos disciplinares que se
ergueram com a construção da modernidade europeia e, ainda, o modo como esses
mecanismos disciplinares deram origem a processos de subjetivação marcados pelo
controlo que, segundo Foucault, são ainda a marca da regulação presente na nossa
época, assumindo que a tecnologia permitiu à modernidade espalhar-se como
narrativa por todo o globo. É preciso insistirmos nisto, para percebermos que Foucault
não o vê de modo fatalista: é que, como a modernidade se espalhou como discurso de
poder, lá onde há relações de poder, há relações de resistência e, por isso, onde um
discurso se insinua como “a” verdade, é sempre possível erguer um outro que mostre
estrategicamente que ele é não “a” verdade mas apenas “uma” verdade6.
Isto será importante na processualidade discursiva que se segue, para podermos
perceber como se ergue, no meio de um espaço discursivo homogéneo, a
possibilidade de um discurso “outro” que se insinue não apenas – ou necessariamente
- como discurso “crítico”, mas como visão paralela ou acompanhante, inaugurando
exatamente uma crítica da postura positivista de verdade que é aquela que se insinua
em qualquer discurso de poder que se pretenda mostrar único. É que, para Foucault,
ao contrário dos pressupostos quer do racionalismo quer do empirismo clássicos (que
perdurariam na fenomenologia), a verdade não está lá à espera de ser descoberta. Na
realidade, mais do que descobrir verdades, os discursos “inventam” objetos. Cada
objeto assume um valor de verdade que é relacional quanto a outros objetos no
momento histórico que ocupa e no espaço contextual em que se situa. Por isso, o valor
imanentes às coisas ditas ou seja, vê-as na ascendência, ou seja ainda, nas condições de possibilidade
do que é dito. Não se fixa o objeto: buscam-se os fragmentos, as omissões do que vem ao registo
interpretável, sem querer conhecer origens absolutas, mas sim processos. De modo resumido: a
genealogia analisa processos e a arqueologia analisa momentos. Veiga-Neto (2003: 65/76).
6
“O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para
dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exactamente onde ele é, ao
mesmo tempo, o objecto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do
discurso”. Foucault (1979/2007: 71).
8
de verdade dos discursos é tanto mais coeso conforme se situam em contextos que
lhes atribuem determinado sentido, quanto perdem essa coesão se confrontados com
sistemas de pensamento – e, por consequência, de verdade – que lhes não dão o
mesmo estatuto. Por isso, a verdade tem que ser situada, isto é, tem que ser pensada
de acordo com os processos de significação que a vão estatuir como tal7.
Por seu lado, a história não pode ser lida, para Foucault, como a longa marcha do
espírito, ou a grande aventura da humanidade, ou, ainda, como o triunfo de uma classe
sobre outras em devir dialético. Para se erguer sobre a história este tipo de apriorismo,
como “espírito” ou “humanidade”, é preciso imaginar tais coisas como essências
primordiais e imutáveis que permaneceriam “acima” (ou pelo menos “fora”) dos
espaços relacionais onde se inauguram os saberes e poderes de cada época e, também,
onde eles se rompem por descontinuidades que não correspondem a uma marcha que
tem um sentido teleológico. É muito importante termos em conta este pressuposto, já
que ele nos ajuda a ver como determinadas conceções primordialistas do passado
pressupõem a manutenção de identidades únicas que estariam às vezes “adormecidas”
em determinados momentos para tão depressa “renascerem” como uma Fénix
mitológica. Esta visão da história – que Foucault desmonta arduamente – é uma visão
metafísica e substancialista configuradora de um sentido para as coisas que não
derivará delas mas de algo que lhes é exterior, ou anterior. Para ele, isto é como se o
raciocínio teleológico visse o passado em função do presente, isto é, as coisas existem
como existem porque caminham para nós, elas são o nosso sentido e atribuem-nos a
bagagem com que nós construímos o sentido do futuro: de certa forma é como se o
que existe “hoje” fosse necessariamente pré-determinado pelo que está “antes”
7
Veiga-Neto mostra-nos que, para Foucault, a linguagem, mais do que descobrir o mundo, inventa-o
pela sua contingência e parcialidade. É ela que constitui o sentido, é ela que sendo não-natural
(arbitrária) não denota mas atribui; é ela que, sendo criada em práticas sociais historicamente
determinadas, condiciona o dizer que se dá por uma subjetividade activa. Nós nascemos num mundo
que já é de linguagem: onde circulam discursos. Não somos origens nem donos dos processos e, por
isso, o discurso é algo de circulatório: construído e problemático e não natural, ou suficiente ou
objetivo. Por outras palavras, o discurso não representa as coisas, mas forma os objetos de que fala.
Uma prática discursiva é um conjunto de enunciados que forma o substrato de ações e molda a maneira
de construir o mundo. O enunciado, assim, não se reduz a uma verbalização proposicional: ele
manifesta um saber repetido, apropriado e aceite como rede convencional de verdades
institucionalizadas. E é esse discurso que revela o arquivo, ou seja, as regras que em determinado
período ou sociedade determinam o que pode ser dito, o que é sancionado como “verdade”. Isso é o
que conta como conhecimento para esse contexto e define as regras autorizadas do dizer. Por isso,
analisar discursos está para além das analíticas formalistas. Analisar o discurso, na senda de Foucault, é
descobrir epistemes, isto é, regras que regem a produção destes, as suas condições de possibilidade
como verdade que não é essencial, remota, fundadora, mas que manifesta uma certa ordem de imersão,
distribuída por um tecido social, por uma época, por um lugar e, portanto, construtora de
subjetividades. O discurso não descobre verdades: cria-as por regimes e é nesse processo que se ativa
uma circulação de poder (e saber) como vontade de verdade. Veiga-Neto (2003: 107/20).
9
exatamente porque há um “fora” do tempo (que o período medieval consignava como
“Deus”, a modernidade como “razão” e – redistribuindo – o positivismo cientista
como “plano da natureza”, Hegel como “devir do espírito”, Marx como “classe”, etc.)
que o constitui. Para Foucault, a história constitui-se por descontinuidades e elas não
têm que ser lidas como sendo marcadas por um “sentido” que lhes é exterior, por uma
“essência” que está fora e que marcha ao longo dela. As épocas respondem por si e as
descontinuidades respondem mais pela incerteza que pelo determinismo, mais pelo
caos que pela ordem que lhes é interna. É por isso que o conceito de resistência é
importante: sabendo o que somos, isto é, sabendo o que nos constitui como
subjetividades, podemos inaugurar lateralidades e descontinuidades. Agora, o formato
dessas descontinuidades, o regime de verdade que elas inauguram, não está prédeterminado por aquilo a que elas podem ou não resistir, por mais que se relacionem
com isso; aliás, se ele é relacional, ele não depende de um “fora de si”, mas de um
espaço de imanência onde irrompem acontecimentos, eventos, que não correspondem
a um sentido constituído fora do discurso a partir do qual se estabelecem e com o qual
dialogam8.
Também o sujeito não pode ser lido como essa “coisa” que Descartes viu, ou como
esse “campo transcendental” que Kant vislumbrou; a subjetividade não é essencial,
ela não é um “eu” estável, permanente, que corresponda às figuras lineares do
humanismo erguidas pelo pensamento metafísico. Pensar um sujeito que seja exterior
8
Para Inês Lacerda Araújo, Foucault critica as filosofias da modernidade (o racionalismo, o
positivismo, a fenomenologia, o marxismo, o hegelianismo) por estas fazerem valer como
transcendente o que constatam empiricamente: fazem-no valer como ciência, como algo dado aí, como
determinação produtiva histórica, etc., para fundar um essencialismo antropológico. Por outro lado, é
uma ilusão ver a história como evolutiva, progressiva ou causal. A Foucault não lhe interessa a origem,
o primevo, o longínquo das coisas. Nós não somos o necessário culminar do passado, não é forçoso que
assim seja. As transformações do passado não estão erradas para que nos possamos confirmar como
certos. Foram a obsessão representativa do século XVII e a obsessão histórica do século XVIII que
levaram a que o homem fosse pensado como unitário. Ora, cada época tem uma articulação
significativa do dizer, vestígios que condicionam o falar e o constituir de objetos.
Inês Lacerda Araújo (2001: 36/7), Foucault e a Crítica do Sujeito (Curitiba: U.F.P.R.).
Esse pendor antropocêntrico da modernidade institui, para Foucault, segundo Veiga-Neto, uma
filosofia da consciência (baseada numa natureza comum, universal, progressiva) na qual o mundo está
numa relação direta com o agente soberano da sua explicação, cujo progresso – ou desenvolvimento –
resulta do uso cumulativo da sua razão, com a qual, supostamente, se vai completando, preenchendo,
desalienando (no caso de Marx) e processualizando. O que Foucault faz é destranscendentalizar este
sujeito (não é substância dada, não é anterior ao mundo, não está acima da história). A sua concepção
autónoma ou singular forma-se em camadas que o constituem em práticas de poder e saber de cada
momento histórico. Veiga-Neto (2003: 131/8). Esta análise é devedora de Nietzsche, segundo Revel: é
ele que ajuda a recusar a ideia de uma consciência contínua, meta-histórica, é ele que ajuda a recusar o
processo histórico como absoluto, é ele que ajuda a recusar o sujeito pré-existente (o solipsismo da
tradição cartesiana como mito da interioridade profunda), é ele que ajuda a recusar uma ideia
tranquilizadora do devir teleológico, fundido e reconhecido em e por nós. Não há teleologias: há
acidentes, desvios, bifurcações, dispersões. Revel (2010: 86/92).
10
aos discursos que o constituem é como pensar um “olho cósmico” que contemplaria o
processo discursivo de organização de enunciados, mas estando fora deles, de modo
estável, impassível e analítico. Grande parte da história do pensamento moderno
pensou assim, ou seja, pensou a partir desta ilusão de que é o sujeito que constrói os
discursos e organiza os enunciados e não – por outro lado – que são os discursos e o
processo enunciativo que dão forma à maneira como ele pensa. Esse sujeito
metafísico seria “a-histórico” e “a-geográfico”, ou seja, constituiria uma “natureza
humana” universal, imutável, um espírito/sombra da história e da geografia que
estaria em todos os lugares e em todos os tempos. Se é verdade que a modernidade
potenciou tecnologicamente a ubiquidade dessa conceção, mediante a disciplina,
primeiro, e posteriormente mediante o controlo das subjetividades de forma a que elas
se ergam como “universal primeiro” - porque a modernidade se instaurou mediante
dispositivos disciplinares que constituíram uma norma, isto é, um padrão que por sua
vez inaugura aquilo que é o desvio (voltaremos a esta questão a propósito da relação
entre poder e saber9) – aquilo para que Foucault chama a atenção (e é isso que é
preciso enfatizar) é que não existe nada de “natural” no sujeito moderno, mas, sim, de
“naturalização”.
Aquilo que nós tomamos como “natural” ao chamarmos “natureza humana” a uma
determinada forma de “ser” é inaugurado por discursos e dispositivos de enunciação
que dizem respeito a épocas e – para usar o conceito deleuziano – a “cartografias” 10.
O sujeito que somos descobre como “natural” o que é produto “inventivo” dos
espaços discursivos da sua época. Dito de outra forma, o sujeito é sempre um sujeito
situado em malhas de enunciação: ele age, pensa, fala, silencia, de acordo com
códigos e enunciados que correspondem ao sistema de convenções que estão
disponíveis no discurso que usa. Não existe sujeito exterior, fora do tempo e do
espaço. Mais: o posicionamento dessa subjetividade como sendo um “fora”
metafísico, corresponde exatamente a uma estratégia de poder que, ao ser invisível
como tal, se mostra relacionalmente como “natural”. É por isso que a própria maneira
como Foucault fala da relação entre poder, saber, verdade e sujeito, no discurso, é
9
“De uma maneira geral os mecanismos do poder nunca foram muito estudados na história.
Estudaram-se as pessoas que detiveram o poder. (...) Ora, o poder em suas estratégias, ao mesmo tempo
gerais e sutis, em seus mecanismos, nunca foi muito estudado. Um assunto que foi ainda menos
estudado é a relação entre o poder e o saber, as incidências de um sobre o outro.” Foucault (1979/2007:
141).
10
Gilles Deleuze chama a Foucault “cartógrafo”:
Gilles Deleuze (2005: 33/53), Foucault (São Paulo: Brasiliense).
11
fundamental como estratégia de resistência, ou seja, o pensamento foucauldiano sobre
o poder não é um pensamento fatalista: é um pensamento que mostra, dá a ver, expõe
dispositivos e, ao fazê-lo, é ele mesmo uma estratégia que nos diz, pela apresentação
do que nos constitui enquanto processos enunciativos, como fazer para inaugurar
lateralidades, intensidades, acontecimentos que sejam discursos “outros” – ou seja,
que sejam alteridades – em relação ao momento da inauguração insidiosa de “uma”
verdade como “a” verdade, de “um” sujeito como “o” sujeito, de “uma” história como
“a” história. É por isso que é preciso vermos como Foucault fala da relação entre
poder, saber e subjetividade que se inaugura na modernidade, para percebermos que é
essa inauguração que permite “inventar” sujeitos, verdades e histórias: e a história
contada pelos nacionalismos, conforme ela se insinua em literaturas, culturas e
identidades – nomeadamente através do esforço curricular como vontade de verdade,
fruto de um lugar, de um espaço, de um território (também eles configurados por
discursos de poder: não esquecer aqui a força da geografia), mas também de uma
relação histórica de poder e saber – é uma delas.
Para Foucault, a subjetividade é produto de discursos e, neles, de organizações
enunciativas que estão disponíveis numa determinada época. Cada época dispõe de
um regime de verdade e é este que convenciona o que pode ou não ser dito, ou seja, os
enunciados que têm valor de verdade e que, por o terem, condicionam também o que
não é dito, na medida em que há exclusão. Esse regime de verdade dispõe-se num
arquivo que se torna visível – é assim que vemos a relação entre estes dois conceitos –
num espaço epistémico de conhecimentos. Nesse sentido, a modernidade inaugura
uma descontinuidade fundamental, já que é nela que se passa de um regime de
soberania – no qual o poder era visível – para o regime da disciplina – no qual o poder
se torna invisível e é essa invisibilidade que o dissemina, precisamente porque ele se
vai naturalizar através da norma.
No espaço – melhor, na configuração – da soberania, o poder central e vertical do
soberano era visível, ou seja, ele era apresentado como tal, nomeadamente (e são
vários os exemplos) mediante a punição e o flagelo públicos de qualquer prevaricador
que ousasse pisar as regras do interdito instituído verticalmente pelo soberano. Ao
tornar-se invisível, o poder vai cumprir o imperativo económico da utilidade, ou seja,
vai tornar os sujeitos produtivos. Dito de uma forma mais fácil – e do ponto de vista
do discurso – o poder soberano silenciava (quem ousava ir contra ele); o poder
disciplinar faz falar (produz sujeitos que enunciam as coisas de determinada maneira e
12
se estabelecem de acordo com certas convenções de verdade correspondentes a
configurações de saber e poder)11.
Na realidade, a disciplina moderna surge como contemporânea do advento do
capitalismo: mais do que flagelar, encarcerar e silenciar indivíduos, o que importa é
sujeitá-los, isto é – e agora – usá-los, torná-los úteis, produzi-los, tornando-os
produtivos, doutriná-los, tornando-os doutrinantes. Não quer dizer que a soberania
acabe do dia para a noite, apenas que ganha novo estatuto estratégico (de certa forma,
é possível dizer que a época contemporânea irá corresponder à manutenção
simultânea da soberania clássica, da disciplina moderna e do controlo atual, mediante
aquilo a que Foucault dá o nome de governamentalização).
Desta forma, a clausura já não serve apenas para punir e flagelar (e, quando o faz, isso
já não constitui espetáculo público, isto é, já não é visível): a clausura passa a servir,
sobretudo, para formar e regulamentar, ou seja, regimentar. De certa forma, para
Foucault, com a invenção das ciências humanas, o carcerário como modelo espalhouse institucionalmente pela sociedade, de forma a cumprir os imperativos coesivos do
estado e produtivos da economia: a escola (que é o que interessa enfatizar mais aqui)
é apenas uma destas instituições “quadriculares” da modernidade que, mediante o
confinamento, produz sujeitos por discursos (os quartéis serão uma outra e importante do ponto de vista do discurso nacionalista –, arriscar-nos-íamos a dizer,
também a imprensa escrita, já que para Foucault, ao fazer falar de determinada
11
Para Márcio Alves da Fonseca é neste contexto que devemos pensar o poder, ou seja, na sua relação
com o sujeito em termos de construção da subjetividade e dos discursos produzidos de modo positivo
pelos sujeitos no mundo. Como o poder é relacional, capilar e disperso, a malha do poder é mais
produtora que repressiva: é nessa malha que se produzem pensamentos, discursos e atitudes, mediante
a circulação de um saber associado. Ora, é isso que surge de diferente no século XIX: uma tecnologia
institucional e disciplinar de docilidade que se apropria do indivíduo, instiga determinadas ações e
incita a um certo tipo de discursos. Trata-se de fabricar ortopedicamente uma impressão de autonomia
por dispositivos que viabilizam práticas e formações dizíveis. Este processo supõe a absoluta
visualização panóptica dos indivíduos e das suas ações para que a intensidade do conhecimento
promova um controlo interiorizado (o indivíduo como guardião de si mesmo). Ao transformar os
indivíduos em objetos de observação, o processo constrói também um sistema de informação e saber
que corrige desvios, mas também mede, classifica e qualifica os comportamentos. Trata-se de um
processo de enquadramento, padronização, normalização e – consequentemente – “naturalização” de
relações de poder interligadas a campos de saber documentados, arquivados e registados. A sujeição
supõe a transformação dos indivíduos em casos treináveis e moldáveis, mediante uma certa gestão
institucional do espaço - (posicionamento e identificação), celular, analítico, quadriculado, articulado –
do tempo - (programação e ritualização), eficiente, progressivo, segmentado – e do corpo (gestualidade e objectivação), fixado, testado e manipulado.
Márcio Alves da Fonseca (2003: 22/71), Michel Foucault e a Constituição do Sujeito (São Paulo:
P.U.C.).
É este processo (celular, porque localizado no espaço e no tempo; orgânico, porque codificado numa
funcionalidade produtiva; genético, porque capitalizável e acumulável; combinatório, porque disposto
num dispositivo de conjunto) que constrói o indivíduo moderno fazendo-o falar mediante o seu
autoconhecimento em função de um saber, de uma “verdade”, de um poder. Fonseca (2003: 73/93).
13
maneira, o poder institui uma verdadeira medicação social da enunciação individual,
uma ortopedia geral dos discursos subjetivos, mediante o processo, primeiro do
disciplinar da verdade e, depois, do controlo sobre a disseminação desta: talvez os
próprios media contemporâneos possam ser vistos desta forma, assim como as
estratégias de construção subjetiva que estão patentes no consumo e na venda, o que
extravasa o domínio deste trabalho).
Ora, como é que são produzidas subjetividades 12? Exatamente mediante o jogo do
poder e do saber, que – muito importante – não são vistos como um monismo isolado
à maneira do discurso racionalista, mas como insinuações relacionais. Em Foucault
não há uma teoria do poder em que o poder seja visto como algo isolável, isto é, uma
espécie de mónada. Também o saber não pode ser visto de tal forma, isto é, como um
bloco fechado. Saber e poder não só estão em relação íntima, como correspondem
eles mesmos a formas de relação, isto é, instituem-se no “entre” e não no “fora”. Dito
ainda de outra maneira: é a relacionalidade que dá a ver os dispositivos de poder e as
configurações de saber e não o contrário, ou seja, eles expõem-se nas relações, nos
interstícios delas e não num “fora”, ou num “antes”, ou num “acima”. Como ocorre
então a disciplinarização social? Mediante o uso de dispositivos de poder e
configurações de saber que são formadores no sentido de estarem destinados a tornar
os sujeitos falantes em sujeitos dóceis e úteis à reprodução dos discursos produtivos
pela sociedade, já que o poder possui uma forma de positividade, isto é, é positivo.
Foucault não vê o poder como algo apenas esmagador; o poder é positivo no sentido
em que encerra em si uma positividade formadora de subjetividades, identidades e
12
A escola é uma das máquinas de produção de subjetividades porque, como menciona Gail McNicol
Jardine, ela supõe a interiorização do discurso pelo aluno de modo a que este seja ensinado a
“monitorizar o seu próprio comportamento, a avaliar a sua própria aprendizagem, e a fazer o que lhe é
dito porque assim querem”. Ele assume (idealmente) aquela verdade como sua, ela é a “sua”
identidade. Escolarizar é, por isso, incluir dentro de um determinado discurso “verdadeiro” que não é
desinteressado ou neutro: é histórico, construído e convencionado por um aparato social. Nesse sentido,
a escola é uma instituição que “vê”, para que o indivíduo se veja como visto e olhe para si mesmo, que
“normaliza”, para que o indivíduo se adeqúe a um padrão e se saiba parte de um todo, e que “diz”, para
que o indivíduo fale o que já é verdade para si. Ela corresponde, por isso, à criação de uma norma que
refere o sujeito a um todo, que diferencia sujeitos por uma média, que hierarquiza por aproximações,
que introduz conformidades e que exclui desvios. É nesse contexto que se ritualiza uma aprendizagem
desenvolvimentista – sequenciadora de um progresso – mediante a qual a aplicação de um currículo
supõe um determinado tempo de gestação de uma identidade e um espaço possível para a sua atuação
futura.
Gail McNicol Jardine (2007: 59/95), Foucault e a Educação (Mangualde: Pedago).
Para Revel, a interiorização dessa norma (homogeneizada, “naturalizada”) que, ao fixar uma regra,
também fixa o desvio, corresponde, em Foucault, a uma medicação social coletiva de condutas,
discursos e desejos. A disciplina individualizada, que normaliza, corresponde depois à construção da
população pela “naturalidade” da vida numa determinada política do controlo. Da ortopedia individual
à medicação coletiva vai todo um processo de normalização. Revel (2010: 202/14).
14
histórias e dos seus discursos, precisamente porque ele dá forma ao que dizemos, ao
que fazemos, ao que somos e é em relação com isso (isto é, com o facto de ele existir
lá onde há relação e, onde há relação, haver poder) que se pode ou não inaugurar a
resistência. Ao contrário das teses marxistas da resistência, que se veem em relação de
exterioridade quanto ao poder, para Foucault a resistência está sempre em relação
com o poder. O discurso resistente é aquele que se institui precisamente numa relação
“outra” com o discurso de poder, mas não está fora dele, ou seja, está em relação
estratégica com os dispositivos dele.
Entre os dispositivos (há vários) de que Foucault fala ao nível da disciplina estão, por
exemplo, o panóptico, o quadriculado e a seriação. O que importa ao poder é tornar os
sujeitos visíveis, exatamente na medida em que ele está invisível (ao contrario do
poder soberano que era imediatamente visível sob a forma espetacular do flagelo).
Para formar ortopedicamente o sujeito moderno, é preciso criar nele a sensação de que
está sempre em situação de visibilidade, mesmo que não esteja: é essa a função do
panopticismo, que Foucault vai buscar a Jeremy Bentham e à sua ideia sobre a
geografia das prisões. É evidente que Foucault usa o panóptico, como imagem, mas
não deixa de ser verdade que Bentham fala dele exatamente no contexto que se
começa a insinuar na modernidade de Foucault, ou seja, uma forma de tornar os
indivíduos úteis ao sistema capitalista. Aliás, é o próprio estatuto da prisão que vai
mudando: o cárcere, ao servir já não apenas para “punir”, mas também para “vigiar”,
vai tornar-se, mais do que um espaço de tortura, um espaço de reforma. Se em Kafka
a metáfora da inscrição da pena no corpo do flagelado surge mediante uma técnica
que é, ao mesmo tempo, punitiva e escritora, aquilo a que Foucault dá atenção é à
forma de inscrição da disciplina. De certa forma, o sujeito fica escrito de determinada
forma, para poder, ele mesmo, escrever dessa forma e falar dessa forma, já que ele é
inventado disciplinarmente pelos discursos que o criam mediante enunciados
configurados de determinada forma relacional. Foucault avançou mesmo que a
criação das ciências humanas, mediante exatamente a compartimentação dos
discursos sobre o convencionar do humano, é que “inventam” essas identidades, ou
seja, é na modernidade, com o discurso da norma, que são criados o “louco”, o
“delinquente”, o “cábula”, ou o “perverso”, uma vez que o desvio é constituído a
partir de um discurso normalizado como verdade (o mesmo serve para as questões
identitárias do ponto de vista epistémico nacionalista). Na realidade, se o
panopticismo tem como objetivo mostrar aos indivíduos que eles estão sempre a ser
15
vistos, mesmo que não estejam, o que acontece é que os sujeitos interiorizam esse
mecanismo na sua identidade e reproduzem-no: quando não o reproduzem são
desviantes (desvio e resistência não são necessariamente a mesma coisa: o desvio
funciona por exclusão, silenciamento e adestramento, a resistência por relação,
alteração e desafio). O panopticismo não é uma forma de punição, ele é uma
insinuação: ele produz e transforma pela docilização. Ele é uma ortopedia da
subjetividade de acordo com um discurso “normal” que corresponde a um arquivo de
verdades e interditos configurados em conhecimento e saber que se constituem num
conjunto de enunciados epistémicos.
Outra das formas de construção subjetiva da modernidade é o quadriculamento. Se
Rosalind Krauss apontou a “grelha” como figura intrínseca de um certo modernismo
artístico13 e se este deriva de uma visão irónica sobre a geografia urbana das cidades 14
contemporâneas que foram fruto do “planeamento”, mas em função de uma noção
estética que deriva do abandono do adorno em prol da frieza funcional, é possível ver
essa imagem como herdeira dos fenómenos que Foucault descreve de acordo com o
quadriculamento. O que este permite é (exatamente em correspondência com a
divisão do homem em secções que é inaugurada no contexto epistémico das ciências
humanas) o isolamento dos sujeitos no espaço: para estarem constantemente a ser
vistos, mas para não se verem mutuamente. Do ponto de vista da racionalidade
moderna, os indivíduos aglomerados de modo fortuito, aleatório, indisciplinado – em
suma, a multidão – são perigosos. O que interessa é seccioná-los, compartimentá-los,
dividi-los, de modo a melhor os formar. Esta estrutura quadriculada vai desde a cela
da prisão, ao espaço da caserna militar, até à sala de aula. Para uma melhor ortopedia
da fala do sujeito (mais eficaz, mais normalizadora) interessa que ele interiorize os
discursos configurados no saber e dispostos pelo poder de forma a que o seu processo
ortopédico se cumpra. Não interessa que ele o discuta antes de o interiorizar como
seu.
Por fim, a seriação é um processo fundamental na formação de indivíduos produtivos.
O indivíduo visível e isolado não pode ser útil se não tiver uma função, isto é, se ele
não tiver um espaço próprio para a reprodução do discurso de poder e para a sua
utilização na disseminação social do poder e do saber. A seriação é fundamental
13
Rosalind Krauss (1985: 9/22), “Grids”, The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist
Myths (Cambridge MA: M.I.T. Press).
14
Jardine fala na cidade moderna, quadriculada, como paradigma geométrico construído a partir do
modelo de observação panóptica. Jardine (2007: 78).
16
porque ela dá ao sujeito uma nova individualidade, ou seja, ela atribui-lhe uma função
na cadeia da reprodução do poder e do saber, que vai desde a linha de montagem até à
hierarquia das escolas, passando pela dos exércitos. A seriação disponibiliza o poder
no tecido social, dando capilaridade ao discurso contido no arquivo e enunciado de
forma epistémica. Ela é fundamental como mecanismo de coesão porque ela
homogeneíza. Homogéneo aqui não quer dizer a mesma coisa que uniforme: nesta
interpretação do pensamento foucauldiano – e estamos em crer que para Foucault ele
mesmo – uma das formas mais fundamentais pelas quais o poder se completa é
exatamente porque ele dá a cada indivíduo e a cada subjetividade nele – e por ele –
instituída a sensação de ser único; e, de facto, é: porque a sua função na disseminação
dos dispositivos de poder e das configurações de saber é diferente da de outros
indivíduos. Homogeneizar aqui significa redistribuir o discurso da norma pelo social
mediante as diversas funcionalidades que a compõem. A norma corresponde, então, à
assunção por parte dos indivíduos, construídos como subjetividades, de um discurso –
que é a extensão enunciativa do arquivo – que os constitui como sendo um discurso
“natural”. O que Foucault mostra é que essa naturalização das convenções do poder
completa o seu trabalho no todo social pela normalização do mesmo. Cada época tem
um discurso que conta como regime de verdade e esse regime de verdade – para ter a
forma de naturalidade e de evidência objetiva – tem que ganhar o valor de norma
modelar, de convenção distribuída pelo todo de forma primeiro coerciva e depois
coesiva.
Para ser assumido como tal, isto é, para que esteja completo o trabalho de
adestramento, é necessário que esse discurso de poder assuma a forma de uma
totalidade explicativa. Essa totalidade explicativa que constitui o arquivo do contexto
e da época é que dá sentido aos objetos que se colocam em relações de verdade e de
autoridade, isto é, de poder e de saber. É essa totalidade que configura o valor do que
é dito, o seu regime, o seu dispositivo discursivo convencional. Cada época explica,
de facto, de forma positiva – isto é, em função de uma positividade – um todo, porque
existe um todo que está em relações interdependentes de sentido que constituem uma
configuração discursiva e não outra. Essa configuração discursiva é o que ajuda a
esculpir a identidade, é o que marca cultural, civilizacional e literariamente, é o que
configura historiograficamente. Ao tentar ler a verdade de uma determinada forma,
assim como a história e o sujeito, a modernidade o que fez foi tentar anular o tempo, o
que é paradoxal, já que tenta anular o tempo em função de uma leitura única do
17
mesmo que implica uma verdade e um sujeito únicos e cumulativos, uma vez que a
história é linear e evolutiva, ou seja, é vista como caminhando para esse tempo. Ora,
uma leitura foucauldiana do saber implica uma descontinuidade em relação a isto que
nada tem de evolutivo. O sentido do saber não é único, ele é produzido de acordo com
noções de verdade, sujeito e história e com estratégias de poder: Foucault abre à
pulverização e à multiplicação plural, no preciso momento e no mesmo passo em que
lê a homogeneização moderna.
Aquilo que Foucault mais ajuda a pôr em causa na sua crítica ao sujeito, à história e à
verdade modernas – e às suas consequências de um ponto de vista ligado ao controlo
contemporâneo que é, digamos assim, uma medicação social – é a pressuposição de
universalidade. O poder dispositivo disciplinar, e o discurso configurado de saber a
ele associado, criaram uma noção de universalidade que, ao fazer-se passar por única,
descarta como “outro” – e este outro assume um valor de discurso elitista, no sentido
em que, ao ser “outro” de uma verdade tida como “a” verdade, ele é tornado
subalterno – todo o saber que não se revê nesse código. Desta forma, o discurso de
coesão é também um discurso de exclusão15.
Isto parece estar em contradição com o que dissemos antes, ou seja, que “desvio” e
“resistência” não são a mesma coisa. Embora seja uma questão problemática, não nos
parece estar: o desvio é o que está fora da norma, o que não entra em relação com ela;
é esse o sentido dessa exclusão. Aqui teremos que falar em algo que é a resistência em
relação à norma (as noções de saber instituído e saber instituinte servem bem este
propósito). O que Foucault ajuda a perceber, e isto esclarece, é que, para ser
verdadeiramente resistente, o discurso que se contrapõe a uma norma não se pode
excluir em relação a ela (por mais que ela o possa tentar silenciar). Ele tem que estar
em diálogo com ela, ou seja, para propor uma alteridade verdadeiramente resistente (e
não desviante), tem que ser um discurso que mostre – como o de Foucault mostra –
que a verdade, o sujeito e a história da modernidade (por exemplo) não são únicos,
mas são “uma” forma de ser que corresponde de modo epistémico a um espaço
discursivo, ou seja, tem que entrar em diálogo com os valores, códigos e ditames (no
fundo, com o dispositivo enunciativo) desse discurso, ao mesmo tempo que não
autoriza que esse discurso o defina como desvio. Dito de outra forma, a resistência
15
Para Jardine, ouvir verdades outras ou saberes subjugados é perceber que o que se toma como
absoluto e positivo não passa de uma convenção entre outras. Ora, o positivismo moderno criou uma
hierarquia de saberes que lhe permitiu desqualificar o valor de verdade do que não lhe interessava do
ponto de vista da dominação política e social. Jardine (2007: 40).
18
não está fora, ela dialoga; ela não se exclui do jogo do poder, ela inclui-se em estado
de relacionamento com ele para não o deixar definir-se como único e para mostrá-lo
como convenção. Creio ter sido mesmo este o grande esforço de Foucault no seu
trabalho e a sua grande ferramenta de contribuição analítica do discurso, ou seja, dar
forma a um espaço que permita ver as convenções pelas quais se estabelecem relações
de poder, saber e verdade, para, no mesmo passo, na dobra, poder mostrá-las
exatamente como isso, ou seja, como convenções e – como tal – abrir possibilidades
de descontinuidade, que nada têm de subalterno, uma vez que ser “outro” é ser mais
um discurso que não é exterior ou excluído, mas é uma possibilidade de verdade entre
outras16.
B) Visões Criticas Quanto ao Regime de Verdade Inerente à Genealogia dos
Discursos Nacionalistas: Patrick Geary, Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict
Anderson
É, quanto a nós, essa a possibilidade de análise do nacionalismo que se ergue nos
trabalhos de Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson (que podem ser
vistos – usando terminologia foucaudiana – como “genealogistas” 17 e não como
historiadores tradicionais, que veremos pelo que têm de comum), exatamente porque
permitem ver o nacionalismo – e a noção atual de nacionalidade - como uma invenção
moderna que se tenta passar por discurso de verdade absoluta ao remeter para
primordialismos de cariz mitológico – e mitográfico, diríamos – essencialista e
universalista, no sentido de promover coercivamente a coesão dos sujeitos mediante
um discurso de verdade que se insinua como “a” verdade positiva, pois, à maneira da
análise de Foucault, define o que pode ser dito, isto é, o que conta como regime
positivo ou de positividade constatável como monumento 18, no sentido foucauldiano
16
“O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele que dá conselhos. Cabe àqueles que se
batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projecto, as táticas, os alvos de que necessitam. O que o
intelectual pode fazer é fornecer os instrumentos de análise, e é este, hoje, essencialmente, o papel do
historiador (...) em outros termos, fazer um sumário topográfico e geológico da batalha.” Foucault
(2007: 151).
17
Veiga-Neto fala mesmo em Hobsbawm como genealogista. Veiga-Neto (2003: 66).
18
Para Veiga-Neto, a leitura monumental evita a redução lógica e gramatical, por um lado, e a
ingenuidade hermenêutica, por outro. Ela nunca é definitiva nem cai na ilusão positivista de ir atrás de
qualquer verdade maior, mais essencial, mais profunda. Em suma, não interessa muito o que compõe o
texto por dentro, mas os contactos de superfície que o texto mantém com o que o cerca e é isso que
permite mapear o regime de verdade que o acolhe e que ele sustenta, o qual reforça e ao qual dá vida.
Por exemplo, quando um enunciado exclui, ele responde por um regime de verdade do qual faz parte,
que atende a uma vontade de verdade e que é parte de um processo de poder. É preciso, por isso,
19
também, ao qual nós acrescentámos apócrifo para – ao mostrar o seu cariz discutível,
argumentável e mitológico – debater o seu estatuto de verdade. Veremos ainda como
é que essa noção de nacionalismo encaixa numa interpretação foucauldiana de
currículo como manifestação documentada de um regime de verdade.
Patrick J. Geary, no seu livro O Mito das Nações19, faz uma afirmação que me parece
coerente com o que vou dizer a seguir sobre os autores mencionados. Para ele “a
ciência histórica moderna nasceu no século XIX, concebida e desenvolvida como
instrumento do nacionalismo europeu. Como ferramenta da ideologia nacionalista, a
história das nações europeias foi um grande sucesso, mas transformou a nossa
perceção do passado numa lixeira de resíduos tóxicos cheia do veneno do
nacionalismo étnico, que se infiltrou profundamente na consciência popular. A
eliminação destes resíduos é o desafio mais desencorajador enfrentado hoje pelos
historiadores”20. Geary é um medievalista e um dos mais ferozes críticos do
nacionalismo europeu. Pretende mostrar que a população europeia atual é o resultado
de várias “ondas migratórias”21 e que, por isso, os discursos de coesão com os quais
temos vindo a pensar o nosso passado nos últimos dois séculos não fazem qualquer
sentido e correspondem, dessa forma, a um processo político – di-lo-emos,
foucauldianamente – de adestramento social do nosso imaginário por um processo
duplo de homogeneização (“nós”) e de divisão (“outros”). Para Geary, o nacionalismo
é apenas “pseudo-história”22 em que se pressupõe (usando um essencialismo retirado
do tempo como imutabilidade) um conjunto de unidades distintas (pela língua, pela
religião, pelo caráter) que seriam “inequívocas e imutáveis” 23. Ora, na sua perspetiva
isto corresponde a silenciar toda uma história diferente que é anterior ao nacionalismo
moderno. Trata-se, para ele, de um projeto de manipulação de direitos étnicos em
função de interesses políticos e permite mesmo a criação de projetos económicos de
subalternização e neo-colonização, pois, por exemplo, a limpeza étnica é um resultado
do espalhamento global deste tipo de narrativa.
Para Geary, o nacionalismo é inseparável da modernidade: ele é um projeto
combinado da filosofia romântica (as divisões entre natureza e cultura e a teleologia,
perguntar qual é a vontade (de verdade, de saber, de poder) à qual atende um determinado enunciado,
do ponto de vista foucauldiano. Veiga-Neto (2003: 126/7).
19
Patrick J. Geary (2008), O Mito das Nações: A Invenção do Nacionalismo (Lisboa: Gradiva).
20
Geary (2008: 23).
21
Geary (2008:17).
22
Geary (2008: 19).
23
Geary (2008: 19).
20
por exemplo), da história “científica” positivista (posterior ao projeto da “ilustração”)
e das filologias primordialistas: processos essencialistas (no sentido em que Foucault
fala) que não dão conta das dinâmicas complexas da mutabilidade e que reconstroem
o passado – reinventam – sem o ler, mas com base em categorias modernas aí
projetadas por processos ligados à construção – diríamos, panóptica – das ciências
humanas classificatórias em que a história tem uma função mitológica – e mitográfica
– homogeneizadora. Como especialista da Idade Média, Geary fala mesmo de uma
“invenção” mítica desta24 transformando-a em ideologia, com capa autoritária de
ciência neutra que diz “a” verdade. Estas comunidades “imaginadas” (não
imaginárias: elas passam mesmo a existir, fruto deste maciço processo de
subjetivação) criam sistemas gregários padronizados que, no mesmo processo,
incluem e excluem, já que, por exemplo, há uma comum subalternização das minorias
a partir do momento em que o estado passa a estar identificado com a nação.
Por outro lado, nos grandes impérios, deu-se um fenómeno inverso: foram as minorias
letradas – as elites das minorias – que, ao estudarem fora, trouxeram consigo as
ferramentas intelectuais de reivindicação territorial e de construção nacional, por
exclusão do papel de integração multiétnica que – apesar do centralismo dominante –
esses impérios tinham. Ele cita os casos otomano e habsburguiano neste processo em
que a ideia de nação foi trazida de “fora” para depois servir de fundamento à
reivindicação “interior” de um território e de um estado. Nesse sentido, foi necessário
às elites promoverem um estudo “iluminado” e “romântico” da língua, da cultura e da
história (normalmente nas capitais do centro da Europa), propagarem essas ideias por
“eruditos” e conseguirem finalmente o apoio das “massas” para um sistema de
pensamento que lhes constrói uma identidade (pouco presente, por exemplo, em
sociedades agrárias, baseadas em outro tipo de vínculo social e discursivo), com base
na imaginação de uma idade média onde, para Geary, a nação não poderia ser nunca
uma categoria identificativa, dado o enorme fosso que separava as populações em
servidão da nobreza senhorial25. Por outro lado, os vínculos das aristocracias
europeias eram exteriores aos reinos e territórios: o seu poder era, de certa forma,
exercido de fora e vertical.
Ora, o processo revolucionário francês deu origem a uma vaga independentista e de
mutação de referências que abriu precedentes na Europa. Se, em França, a ideologia
24
25
Geary (2008: 24).
Geary (2008: 27).
21
revolucionária não esteve ligada à língua ou à etnicidade, mas ao bem comum, é com
o uso do pensamento de Herder que se inicia a mitologização do passado em função
da unidade linguística e cultural primordial. No entanto, o nacionalismo de Herder
não é ainda revolucionário (essa questão estará presente no século XIX): ele é
proclamador de diversidades culturais. É, contudo, com base nestes dois blocos
discursivos que se lança o fervor nacionalista posterior.
Ora, achamos que a referência anterior encerra grande parte das preocupações que são
comuns a Gellner, Hobsbawm e Anderson e, por isso, a incluímos. Embora as suas
genealogias críticas do nacionalismo não sejam tão acirradas, concordam que este é
um fenómeno discursivo inseparável da modernidade e da descontinuidade que esta
inaugura. Para Gellner, a nação está ligada às transformações do estado moderno, a
nível económico, político e cultural. O nacionalismo é uma narrativa – baseada em
enunciados de princípio – de congruência da unidade política e nacional, que se opera
a partir do estado, ou seja, o estado antecede a nação26.
A génese da nação e do nacionalismo liga-se, para Gellner, à industrialização
moderna, pois os coletivos agrícolas estabelecem relações com diferentes formas de
vínculo gregário: são comunidades dispersas, a sua mobilidade social é problemática e
a coesão situa-se no quadro dos discursos familiares e ligados às ocupações. A
verticalidade da elite militar, burocrática ou soberana existe como estado, mas não se
configura como nação. É a aurora industrial que gera as mudanças fundamentais para
o advento do nacionalismo 27. Na realidade, só com a industrialização passa a haver
mais mobilidade social, mais especialização e um novo processo de divisão do
trabalho. A industrialização pressupõe a existência de sujeitos que adquirem saberes
padronizados e estes só são possíveis mediante a existência de uma instituição – a
escola – que os faculte e que, por isso, forme dentro de uma cultura comum e
homogénea. Isso promove, obviamente, uma homogeneização social e a construção
26
Assim como o exemplo de Geary sobre as elites minoritárias que formaram nações, também Tom
Nairn acharia problemática esta visão funcionalista: há estados que antecedem nações e há nações que
antecedem estados; este último processo, contudo, não é possível sem a existência das elites (de que
fala Geary) para todos os autores que aqui apresentamos, ou seja, quer por um processo, quer por outro,
nações e nacionalismo não são conceitos que se possam remeter para a um léxico epistémico prémoderno:
Tom Nairn, “The Modern Janus”, New Left Review 94, pp. 3-29.
Citado em:
Nergis Canefe (2004), “Foundational Paradoxes of Balkan Nationalisms: Authenticity, Modernity and
Nationhood” Turkish Review of Balkan Studies Nº 8, Ortadogu ve Balkan Incelemeleri Vakfi (Research
Foundation of Middle Eastern and Balkan Studies), pp. 107-148.
27
Ernest Gellner (1983: 40), Nations and Nationalism (Ithaca: C.U.P.).
22
da pertença a um discurso narrativo cultural comum, o que não acontecia com as
sociedades agrárias, organizadas em torno da família e da ocupação28.
Como a industrialização não ocorre em todos os lugares ao mesmo tempo, ela não
promoveu aquilo que poderia ser uma cultura internacional. O que acontece, para
Gellner, é que a homogeneização cultural em certos lugares originou a sua
diferenciação em relação a outros, o que levou a uma natureza conflituosa – que é
inerente ao próprio processo cumulativo da indústria – e à promoção de
subalternidades assentes em discursos ligados a uma construção da desigualdade e a
uma discriminação com base na língua, na cultura ou na cor da pele. De certa forma, o
discurso do nacionalismo é, ao mesmo tempo, um discurso de homogeneização (“os
nossos”) e de diferenciação (“os outros”). A formação do estado-nação moderno está,
por isso, intimamente ligada ao industrialismo e à nova configuração política que
passa a definir o estado – ao contrário de antes – com base no enunciado da barreira
cultural29. É com assento na definição da fronteira divisória do estado enquanto
esquartejamento cultural de territórios30 que se postula a nação, pela erosão de outros
vínculos de agrupamento anteriores, com os de parentesco, de habilidade ou de
privilégio. Além disso, a nação não poderia ser homogénea sem uma cultura fixada
por (e partilhada em) um discurso escrito. A nação é assim um fenómeno moderno e
nada tem de primordial. Porque ela promove processos de homogeneização interna e
de diferenciação externa é, de certa forma, o nacionalismo como discurso que produz
a nação como identidade, identificada com o estado como espaço de gestão
(disciplinar e de controlo, diríamos). Embora existissem – antes da nação – estados
que já correspondiam a uma língua e a uma cultura, não é possível haver nação, para
Gellner, sem um discurso que é veiculado pelas elites, na escola, através de um
sistema que promove a identificação geral com algo de comum 31. Esse discurso é
ritualizado e depende de um processo de construção propagandística baseado na
existência de uma simbologia mitológica que é comunicativa, escrita e arquetípica32.
Como Gellner, Hobsbawm também vê a nação como algo recente, relacionado com o
advento da modernidade (perspetiva em que ambos estão próximos da ideia
28
Ernest Gellner (1996: 111) “O Advento do Nacionalismo e a Sua Interpretação: os Mitos da Nação e
da Classe”, Gopal Balakrishnan (Org.) (1996), Um Mapa da Questão Nacional (Rio de Janeiro:
Contraponto), pp. 107-144.
29
Gellner (1983: 39/40).
30
No fundo, uma forma quadricular, em linguagem foucauldiana.
31
E, por isso, criador de uma norma.
32
Gellner (1996: 119).
23
foucauldiana da produção discursiva de subjetividades por adestramento ortopédico).
A entidade a que chamamos nação, e que dá forma a um determinado corpo social,
pressupõe o espaço territorial do estado, razão pela qual lhe chamamos estadonação.33 Para Hobsbawm, na realidade, não faz sentido discutir a nação, o
nacionalismo e a nacionalidade sem os relacionarmos com o corpo do estado: o
estado, como para Gellner, é o que antecede a nação e não o contrário 34. Para
acontecer a nação no contexto da modernidade é necessário um conjunto de
pressupostos económicos e tecnológicos – sobretudo – mas também políticos. A
propaganda é um aspeto essencial35, dado que só ela pode explicar o comportamento
subestrutural de mobilização que acontece a nível do “proto-nacionalismo”. Nesse
sentido, existem mecanismos simbólicos de vinculação a territórios que podem ser
definidos em relação a questões de crença ou de fidelidade a um modelo de autoridade
pré-existente. Com isto, coloca-se de facto a questão (anotada) de Tom Nairn, ou seja,
do estado-nação ou da nação-estado. Ora, para Hobsbawm, embora o estado seja a
condição essencial para a verdadeira existência da nação, pode haver uma “protonação” que determina a convergência da subestrutura, mediante uma propaganda
construída a partir da superstrutura em relação a um dado território. O uso da palavra
estrutura deve-se, em grande parte, aqui, à convergência de Hobsbawm quanto a
certos pressupostos do pensamento marxista, o que não acontece com Gellner36.
Para Hobsbawm, entre os elementos que podem ser mobilizados a nível “protonacionalista” estão a língua, a etnicidade ou a religião 37. Se a língua é um fator de
coesão forte, as mobilizações étnicas e religiosas podem ser também coadjuvantes do
ponto de vista da pertença, embora estes sistemas de coesão não sejam suficientes
para formar nações: o elemento fundamental é o estado e, por isso, só o século XVIII
europeu cria as condições de soberania popular no seu exercício ligado a um estado
independente – questão na qual o nacionalismo é herdeiro da visão de estado saída da
revolução francesa e da possibilidade de nesse estado se exercer um esforço coesivo e
coercivo ligado a teorizações comunitárias assentes em processos de identificação
33
O que também polemizaria com a visão das nações que trazem o nacionalismo de “fora” para
territórios ainda não identificados com elas. Contudo, Hobsbawm resolve melhor esta questão com a
ideia do “proto-nacionalismo” e de que existirá sempre um território imaginado. Eric Hobsbawm
(1990/2008: 73/7), Nations and Nationalism Since 1780 (New York: C.U.P.).
34
Hobsbawm (1990/2008: 9/10).
35
Correspondendo a um discurso produtor de subjetividades.
36
Sobre Hobsbawm e o marxismo:
Eric Hobsbawm (1997/2011: 195), On History (London: Abacus).
37
Enunciados correspondentes a vontades de verdade e processos de poder.
24
comum e simbólica, aspeto no qual é herdeiro do romantismo alemão e das
teorizações de “cultura” e de “língua” conforme elas surgem em Herder, uma vez que
é este processo que cria formas de devoção comunitária e sentimentos de vinculação
doutrinária38.
O que há a salientar ainda em Hobsbawm é que a nação constitui um processo de
descontinuidade. Ela é inseparável da produção de “tradições nacionais” e é com a
ritualização destas que se dá o mecanismo de identificação que é necessário ao
processo coesivo. Nessa produção – ou “invenção”39 – aquilo que se apresenta como
antigo ou primordial é, de facto, novo, e constitui um projeto de propaganda que surge
como discurso de poder. Ou seja: embora o estado seja fundamental para a existência
da nação, em ordem ao seu florescimento ela precisa de uma narrativa de poder que a
ritualize como imaginário coletivo. Esses rituais simbólicos inculcam valores,
narrativas e normas por repetição, o que, pela sua própria natureza, cria uma sensação
psicológica coletiva de continuidade em relação ao passado. Além disso, esse passado
é escolhido como desejável e aceitável por óbvios processos de revelação e ocultação.
Desta forma, Hobsbawm dá a ver o quanto as leituras oficiais são, de certa forma,
ficções coletivas de continuidade que circulam como imaginário discursivo
identitário, obviamente por exclusão de “outras” narrativas. Neste sentido, por ser um
argumento menos funcionalista, embora não mencione tanto o papel fundamental da
escola, Hobsbawm mostra o quanto o discurso tem o valor de construção de
subjetividades coesivas, por processos coercivos. A repetição ritualizada desse
passado (que é sempre um “país distante” 40) toma a forma de uma transformação
discursiva do tecido social identitário, legitima instituições e hierarquias sociais,
contextualiza princípios tomados como comuns e, ao solidificar grupos, legitima
ações que tomam a forma de registo público coletivo. É essa imaginação de um
momento mítico de criação que permite passar do essencialismo nacionalista à
unidimensionalidade política e étnica41.
Também para Anderson as nações são um fenómeno moderno e datam das revoluções
liberais que aconteceram no final do século XVIII, mais concretamente a americana.
38
Hobsbawm (1990/2008: 20/3).
Eric Hobsbawm (1983/2000: 1/2), “Introduction: Inventing Traditions”, Eric Hobsbawm & Terence
Ranger (Eds.) (1983/2000), The Invention of Tradition (London: C.U.P.).
40
Glosamos aqui o título do livro:
David Lowenthal (1985), The Past is a Foreign Country (Cambridge: C.U.P.).
41
Hobsbawm (1983/2000: 13).
39
25
Gostaríamos de apresentar aqui uma ressalva em que discordamos desta proposta. Na
realidade, fazemos uma diferença entre as revoluções do chamado “novo mundo”,
“inventado” pelos europeus – como observa Eduardo Lourenço 42 – e o nacionalismo
europeu propriamente dito. É que o fundamento das identidades nacionais surgidas
nos territórios da América foi, muitas vezes, colocado em torno da “terra” – com tudo
o que isso implica de subalternização das tradições locais aí encontradas e que são
excluídas do processo histórico por ocultação – enquanto que o nacionalismo europeu
é, na maioria das vezes, étnico e gira em torno da ideia de “povo” ou “sangue”,
herdeira do romantismo. Por isso, parece-nos mais adequado aplicar às revoluções
americanas a ideia de patriotismo e guardar o nacionalismo para a Europa. Contudo,
desenvolver esta questão seria um programa de trabalho demasiado vasto para aqui
incluir mais do que este apontamento.
Voltando a Anderson, ele vê o nacionalismo como um sistema discursivo totalizador e
cultural43 que se relaciona com outros, como o do estado monárquico ou das
comunidades religiosas44. “Imaginar a nação” supõe, contudo, o surgimento de
características que também se associam ao advento da modernidade, como por
exemplo o desaparecimento do latim como língua vernácula de comunicação
religiosa, abrindo espaço ao surgimento de uma expressão de “verdade” bíblica em
outros vernáculos, o que é inseparável da “Reforma”, pois ajuda a pulverizar a ideia
de uma cristandade comum. Além disso, desaparece o vínculo social dito “natural”
com formas de soberania vertical (o pensamento de Anderson é paralelo a Foucault),
uma vez que se pressupõe a imaginação de uma fraternidade coletiva ligada por uma
língua e na qual a soberania vai perdendo qualquer tipo de divinização. Outro aspeto
fundamental (alem da língua e do processo de dessacralização da soberania) é a
própria dessacralização do tempo, pois este aparece lentamente como estando
desligado de qualquer plano divino, dado que surge associado ao processo de
desenvolvimento científico, ou seja, entra-se num tempo sem escatologia e onde o
papel da revelação é secundarizado e não há antecipação cosmológica por qualquer
tipo de discurso de redenção. O novo tempo, a nova conceção de tempo (transversal,
coletiva, simultânea e convencional) calendarizada e entregue ao “império” da
42
Em vários textos, mas registamos este que está disponível em rede:
Eduardo Lourenço, “O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros” (S/D),
http://www.ieei.pt/files/EduardoLourenco.pdf (consulta: 02/01/2012).
43
Portanto, um regime normativo de verdade discursiva.
44
Benedict Anderson (1983/2008: 34), Comunidades Imaginadas (São Paulo: Companhia das Letras).
26
contabilidade numérica, é antecipadora do registo, por exemplo, da imprensa escrita
que irá revolucionar a relação das pessoas com o acontecimento e é uma consequência
do trabalho de invenção da imprensa45. O espaço de coesão permitido pela relação
entre o tempo e a escrita são fundamentais como fenómenos de coesão: eles ligam as
pessoas a vínculos territoriais com base na identificação imaginada de um território. É
isso que faz da nação uma comunidade imaginada: nós não conhecemos a maioria dos
nossos concidadãos, mas “conhecemo-los” mediante a essencialização escrita, fixada,
dos seus traços, hábitos e características e é esse coletivo imaginado que constrói a
nação como entidade na nossa mente por via de um discurso comum e homogéneo 46.
A produção de livros em massa, na língua vernácula, é, por isso, fundamental para
uma consciência nacional de identificação mútua. A escrita fixa e uniformiza a
linguagem: ela dá à nação um sentido discursivo de continuidade coletiva no tempo e
permite a disseminação mitológica – e mitográfica – do coletivo imaginado 47. Além
disso, é a tecnologia, na sua relação com o capitalismo moderno, que permite esta
interação, dado que sem um sistema de produção que homogeneíza os
comportamentos (como mostra Foucault), não é possível criar uma coesão como base
no espalhamento de um processo escrito ligado à fixação da língua e que separa, ao
mesmo tempo que homogeneíza, dada a diversidade de vernáculos que esse processo
tecnológico permite expandir. Ou seja: embora o processo capitalista seja homogéneo
nas suas formas e consentâneo com toda a modernidade (que não ocorre sempre ao
mesmo tempo), a disseminação de várias escritas em várias línguas criou fenómenos
paralelos de coesão e separação.
C) Padronização e Currículo: Ocultar “Uma” Verdade como “A” Verdade Dentro
do Poder da Convenção Escolarizada
Ora, é nossa opinião que todas as características comuns existentes nos discursos de
Gellner, Hobsbawm e Anderson, para além do processo nacionalista de poder que
apresentámos antecipadamente, tendo em conta a visão de Geary, no que ela tem de
comum entre os três, antecipa o “currículo oculto” conforme o entendemos do ponto
de vista da padronização discursiva existente no percurso escolar búlgaro em relação a
45
Anderson (1983/2008: 69/70).
Um discurso de poder e saber, que produz subjetividades e as faz falar de certa forma.
47
Anderson (1983/2008: 79/81).
46
27
questões de cultura, civilização, identidade e literatura. Mas, antes de mais, é preciso
explicar o que queremos dizer com “oculto”. Como é possível dizer “oculto” numa
interpretação arqueo-genealógica se, para Foucault, o discurso é visível, isto é, nada
está “oculto” e se um dos aspetos mais importantes dos autores que apresentámos é
exatamente a visibilidade escrita do projeto nacionalista como narrativa? Cumpre-nos
esclarecer a forma como ele se “oculta”.
Ora, ele é “oculto” no mesmo processo em que é visível, simplesmente a sua
ocultação surge porque se apresenta como “a” verdade e não como “uma” verdade.
Nesse sentido, ao tentar fazer uma adequação entre linguagem e real (que é
positivista) na apresentação dos pretensos “factos” históricos, ao mostrar a história (e
a cultura, a civilização, a literatura e a historiografia) como a longa marcha desde
tempos primordiais do mesmo espírito que se vai dando a ver teleologicamente (o que
é hegeliano) e ao mostrar isso enquanto residindo sobreposto e imutável como um
espírito que é coletivo, comum e arquetípico para todos (o que é uma herança
racionalista) o discurso nacionalista apresenta-se como “a” verdade e o que ele
mascara – nesse mesmo processo – é o facto de ser apenas uma convenção entre
outras. Na realidade, a sua força coesiva está precisamente na sua insinuação
apresentadora como algo que não autoriza discussão, uma vez que se dá a ver num
ritual solene. Se este se apresentasse como uma narrativa conflitual entre muitas
outras, ele perderia o seu poder mítico de monumentalidade ritual e coletiva. Desta
forma – para deixar claro – o que para nós é “oculto” no currículo é exatamente o
facto de a sua autoridade como verdade não aceitar o debate enquanto discurso de
poder e é isso que é preciso desmascarar, porque, quanto ao resto, ele cumpre as
funções habitualmente atribuídas ao “currículo oculto”, ou seja, na senda de Tomaz
Tadeu da Silva, “desocultar o currículo oculto” supõe mostrar “os processos sociais
que moldam a nossa subjetividade como que por detrás das nossas costas, sem nosso
conhecimento consciente”48. Ora, nesta questão, trata-se de tomar consciência do
texto, não porque ele esteja atrás, mas porque está à frente: tomar-se consciência de
que a sua semântica está lá, visível, monumental, no texto e no tipo de discurso que
ele veicula. Só assim perceberemos como se aprendem “atitudes e valores próprios de
outras esferas sociais (diríamos, exteriores à instituição escolar, fazendo aqui um
48
Tomaz Tadeu da Silva (1999: 80), Documentos de Identidade: Uma Introdução às Teorias do
Currículo (Belo Horizonte: Autêntica).
28
parêntese), como, por exemplo aqueles ligados à nacionalidade” 49. Aprendem-se,
exatamente, porque eles estão lá, convencionados em texto e servem para que os
sujeitos se “ajustem”50 a “rituais, regras, regulamentos e normas” 51. É por isso que, em
sociedades nacionais que (pelo menos) se pretendem monoculturais e homogéneas ele
contribui “para aprendizagens sociais relevantes”52 mediante adestramentos bem
foucauldianos das “relações sociais”, da “organização do espaço” e do “ensino do
tempo”53 regidos por interditos, divisões e ritualizações. O que é oculto é exatamente
o seu caráter de convenção que não aceita a diferença. É por isso que o valor de
verdade positivista, teleológico e racionalista com o qual o discurso de poder do
nacionalismo se apresenta corresponde “às pretensões totalizantes das grandes
narrativas”54. É isso que é preciso desmascarar, já que, na senda de Foucault, nos
interessa mostrar que “a ciência e o conhecimento, longe de serem o outro do poder,
são também campos de luta em torno da verdade” 55 já que “o currículo é,
definitivamente, um espaço de poder. O conhecimento corporificado no currículo
carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder” 56 e estas são “em suma,
um território político”57. Não sendo exterior ao poder, o currículo transporta saber e,
por isso, esse saber “é parte inerente do poder” e da demonstração de que a
“subjetividade é já sempre social”58, sendo, por isso, o currículo, enquanto documento
discursivo, “lugar, espaço, território (...) relação de poder” e é “no currículo (que) se
forja a nossa identidade”59.
Ora, a narrativa nacionalista é um discurso de poder: forjado na modernidade,
parceiro da industrialização capitalista e da revolução científica e tecnológica, enteado
da “ilustração”, sobrinho do romantismo alemão, ocupante do estado, beneficiário da
institucionalização da escolarização normativa, utilizador da disseminação do
vernáculo escrito a nível da imprensa e da divulgação do livro em massa e construtor
propagandista arquetípico, simbólico, ritualizado e imaginado de identidades, às
49
Silva (1999: 79).
Silva (1999: 79).
51
Silva (1999: 79).
52
Silva (1999: 78).
53
Silva (1999: 79).
54
Silva (1999: 145).
55
Silva (1999: 146).
56
Silva (1999: 147).
57
Silva (1999: 148).
58
Silva (1999: 149).
59
Silva (1999: 150).
50
29
quais, quando é dado o poder de se tomarem como verdadeiras, se configuram – como
relicários sagrados – enquanto mutuamente exclusivistas. Isto é uma criação da
modernidade cuja convenção mais poderosa está no fazer-se passar por arcaica.
Veremos, no capítulo seguinte, como é que esta monumentalidade se insinua na
leitura da “história nacional” como “verdade” no contexto búlgaro, assim como
também daremos exemplos de intelectuais que questionam esse modelo.
Capítulo 2 – Desconstruindo a Monumentalidade Apócrifa: Convencionalismo
Nacionalista, Ficções de Verdade e Exclusivismo Histórico e Narrativo;
Contributos Búlgaros para a Desmistificação do Imaginário
Neste capítulo, pretendemos apresentar uma breve visão da historiografia oficial
búlgara, na sua visão narrativa positivista, teleológica e racionalista, como
constituindo aquilo a que chamamos monumentalidade apócrifa: monumentalidade,
porque documentada de modo solene e ritual como facto; apócrifa, porque a sua
versão do passado, como todas, é discutível – e discutida – em circuitos que, sendo
intelectuais, não correspondem ao arquivo académico dominante e à forma como se
30
dá a reprodução social de critérios de afirmação identitária 60 tidos como indiscutíveis,
homogéneos, essencialistas e exclusivistas.
A discussão da versão oficial será, em seguida, apresentada, uma vez que ela contribui
sobremaneira para a demonstração daquilo que a monumentalidade apócrifa oculta,
ou seja, o seu convencionalismo. Essa discussão parte, precisamente, do contexto
búlgaro e do modo como nele se insinuam leituras alternativas da historiografia, da
cultura e – consequentemente – da literatura, que disputam os critérios de verdade
pelos quais se dissemina a coesão social.
A) Historiografia, Literatura e Poder: O Discurso Oficial Escolarizado em Contexto
Búlgaro
Como é apresentada a historiografia búlgara? Em primeiro lugar, antecipamos que ela
é positivista, ou seja, que para a sua reprodução social como forma pela qual as
pessoas se veem a si mesmas, não há separação entre verdade e linguagem, no sentido
em que não se separa facto e discurso, palavra e coisa: foi assim que aconteceu (o
discurso “diz” o real como ele de “facto” é) e não há distância crítica, interrogativa e
dubitativa. É possível encontrar este processo identitário em qualquer conversa de
café, nomeadamente se o truque que “faz falar” este tipo de discurso for a menção da
presença da comunidade cigana, ou, ainda, a questão da Macedónia e as relações com
os vizinhos turcos, sérvios ou gregos. Dito de outra forma, há uma afirmação
inquestionável de um passado monumental e monolítico, cujos confins geográficos
são marcados pela ideia “irredentista” da “grande” Bulgária. Por outro lado, o “outro”
– seja o vizinho ou o cigano – é sempre visto por formas de exclusão que são ou
inferiorizações ou tentativas de assimilação, no mesmo sentido colonial que a palavra
assimilação teve em contextos imperiais de “missão civilizacional” 61. Dito de outra
60
Seguimos, para este contexto cultural, na direcção apontada por Tomaz Tadeu da Silva quando diz o
seguinte:
“A identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção uma relação, um ato
performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A
identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de
representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.”
Tomaz Tadeu da Silva (2000/2011: 96/7), “A Produção Social da Identidade e da Diferença”, Tomaz
Tadeu da Silva (Org.), Identidade e Diferença: A Perspectiva dos Estudos Culturais (Petrópolis:
Vozes), pp. 73-102.
61
“Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização
das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se
manifesta no campo da identidade e da diferença. (...) A identidade normal é “natural”, desejável,
única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas
31
forma: se um cigano é (pela sua gestão nómada da vida e do espaço, por exemplo)
obviamente “inferior” e a “domar”, um macedónio será visto como um búlgaro ao
qual é preciso ajudar a reconhecer o búlgaro que está “dentro” dele, um sérvio como
alguém suspeito de querer o que é “nosso” (designadamente a Macedónia) e um turco
no contexto do ressentimento para com aquele que “atrasou” a nossa marcha da
civilização. Veremos isto na configuração discursiva.
Ora, se é positivista, a historiografia búlgara é também teleológica. A história é vista
como a longa marcha do “espírito búlgaro” desde os tempos imemoriais dos “protobúlgaros” que serão, eles mesmos, “o berço” da civilização europeia. Esse espírito
búlgaro desenvolveu-se e constituiu mesmo um alfabeto “próprio”, uma literatura
antiga “própria”, rudimentos de espírito comercial, tecnológico e artístico, até que foi
interrompido. Essa interrupção – que coincide com a presença otomana na península
balcânica – é vista como o grande trauma “nacional”. De um ponto de vista do senso
comum, no qual não é estabelecida uma diferença clara entre a Turquia moderna e
nacionalista e aquilo que foi o Império Otomano multiétnico, a presença otomana é
vista como um momento em que a “Ásia” interrompeu a “marcha” do “Espírito
Europeu” na Bulgária, ou seja, há uma relação de causalidade linear que é vista quer
pela palavra “atraso”, quer pela palavra “jugo”. Do ponto de vista semântico, esta é
uma palavra muito interessante, uma vez que ela não é criada pela historiografia, mas
sim pela literatura. Corresponde ao título de uma das obras – a mais solene e
fundamental – fundadoras da literatura búlgara, conforme ela é vista de forma
canónica; o “jugo” vem do título “Sob o Jugo” 62 do romance de Ivan Vazov que
retrata supostamente as atrocidades cometidas pelos turcos na Bulgária durante os 500
anos de “ocupação” otomana. Sendo assim, a história como ciência importa da
literatura um conceito que é utilizado para caracterizar algo como uma grande “treva”,
um período de “escuridão” em que o processo de “desenvolvimento” europeu do
espírito búlgaro foi interrompido, desligado do seu “lugar natural” e entregue às
sevícias e maldades do “turco cruel” (uma importação do modo como a historiografia
europeia, em si mesma, passou a tratar, a partir sensivelmente do século XVIII, a
“questão oriental”: aliás, Metternich, durante o auge do Império de Habsburgo,
considerava os Balcãs como “Ásia”). Do ponto de vista teleológico, este é mesmo um
simplesmente como a identidade.”
Silva (2000/2011), p. 83.
62
Ivan Vazov (1893/1979), Sob o Jugo (Lisboa: Caminho).
32
“tempo separado” (metáfora que, neste caso, é apropriada ao cinema, uma vez que se
trata da referência a um filme com um tema próximo do de Vazov – neste caso, as
conversões forçadas ao Islão – e supostamente baseado numa crónica rural que Maria
Todorova, em excelente artigo, mostra ser apócrifa63).
Além de positivista e teleológica, esta visão da história, fixada numa historiografia, é
também racionalista. Supõe uma essência superior e imaginária, o “espírito búlgaro”,
que habita todo e qualquer búlgaro, em qualquer lugar – isto é, é ubíquo em termos de
espaço nacional e de diáspora, a qual o cultiva arduamente – e que permaneceu
imutável desde tempos imemoriais, contemplando, na essência de cada um, a marcha
da história na qual, cumulativamente, dentro de um alforge de saber, ia acrescentando
conhecimentos e ideias as quais misturava de forma pastoral com os mitos, as
tradições e os saberes herdados dos seus momentos de “despertar” (linguagem
romântica organizada em discurso racional).
Há um problema, contudo: é que durante o tempo otomano este espírito esteve
“adormecido”. Com exceção de mosteiros e igrejas. Isto é interessante: é uma espécie
de “buraco negro” na narrativa já que mostra que o Império Otomano autorizava a
permanência de lugares de culto, razão pela qual é ofensivo, por exemplo, utilizar a
palavra “colonialismo” em contexto búlgaro. Na realidade, é inaceitável deste ponto
de vista por duas razões: embora o Império Otomano seja contemporâneo das
chamadas “descobertas” ibéricas – o que provoca um misto de fascínio e
ressentimento – compará-lo ao movimento colonial é o mesmo que comparar os
búlgaros aos africanos e, portanto, a “seres sem história” na visão de herança
hegeliana. Por outro lado, é difícil falar em colonização no sentido em que, dentro de
um império multiétnico, se mantiveram – mesmo que incipientes – protótipos de
vernáculos e religiões – não só a ortodoxa, mas várias tradições animistas – apesar da
presença do “turco cruel”. O espírito búlgaro esperava, portanto, um momento para
“acordar”. Foram as igrejas e os mosteiros que mantiveram a fé, que preservaram os
rituais sagrados, que guardaram as relíquias de santos e que concatenaram toda uma
série de rituais simbólicos hoje tidos por “nacionais”, de tal forma que não se pode
entender o nacionalismo búlgaro se o separarmos da cumplicidade da igreja – e da sua
separação da igreja ortodoxa grega ou sérvia, por exemplo – e ainda da forma como
63
Maria Todorova (2004), “Conversion to Islam as a Trope in Bulgarian Historiography, Fiction and
Film”, Maria Todorova (Ed.) (2004), Balkan Identities: Nation and Memory (London: Hurst &
Company), pp. 129-157.
33
esta foi responsável, não só pelo erguer de historiografias mitológicas de coesão
(como é o caso do monge Paisii), mas ainda pela forma como manteve viva a
alfabetização em vernáculos cujos ajustamentos de separação em relação aos vizinhos
(apesar de apelos em defesa do pan-eslavismo linguístico) são fruto das filologias do
século XIX. Foi mesmo a igreja a responsável iniciática pelo “acordar” do “espírito
búlgaro”, já que muitos dos revolucionários criadores da nação (como o herói Levski)
se refugiavam nelas – e nos mosteiros – contando com a sua cumplicidade na proteção
de ações armadas, além dos “haidouks”, grupos lendários de salteadores que atacavam
caravanas contendo os impostos do “sublime porte”, embora a história possa ser vista
com outra complexidade, já que estes muitas vezes eram cúmplices dos “janissários”
– infantaria - na opressão das populações, de forma a obterem dividendos do poder
central. É possível ver neles o germe inicial das atuais máfias balcânicas e há estudos
que apontam para isso64.
Sendo assim, o século XIX é visto como o século do “renascimento” do “espírito
búlgaro” na literatura, na arte sacra, na historiografia, nos estudos de língua (por
separação das outras, em espírito humboldtiano) e na arquitetura (o que é curioso,
pois as casas ditas como próprias ao “renascimento búlgaro” têm uma arquitetura
muito semelhante aos “konaks” – casas aristocráticas – otomanos e à forma como
estes preenchem ainda hoje os “haans” – albergues ou lugares de descanso – que
povoam várias áreas da Turquia ocidental). O “renascimento” do espírito búlgaro é o
momento de “religação” com o seu “parceiro natural”: a Europa. É nesse momento
que as elites letradas (que elaboraram a narrativa da revolução e trouxeram com elas
as armas intelectuais da mesma: o iluminismo de versão francesa ligado ao estado
soberano e o romantismo de versão alemã ligado à nação primordial, conforme vimos
no capítulo anterior) dão origem a uma série de “saberes nacionais” que constituirão a
sua narrativa de poder e a forma de coesão identitária que irá servir para agregar
populações agrárias ou pastoris, na maior parte residentes em zonas montanhosas, que
pouco comunicavam entre si e que não deveriam ainda ter “despertado” para este
“espírito”: um despertar doloroso, digamos. Mark Mazower “faz as contas” e
apresenta a tese de que, pelos seus cálculos, os Balcãs não terão tido um único dia de
paz entre os meados do século XIX e o início da chamada “guerra fria” 65. Aliás, o
64
Ver os dois primeiros capítulos (da primeira parte) da seguinte obra:
Misha Glenny (2008), McMafia: A Journey Through the Global Criminal Underworld (London:
Random House).
65
Mark Mazower (2002), The Balkans: A Short History (London: Random House).
34
“despertar” – ou a religação – do espírito búlgaro à Europa é celebrado com um dia, o
dia “dos despertadores do espírito búlgaro” 66, que é feriado e que corresponde à
celebração desse renascimento em relação a essa essência adormecida, o que foi
conseguido graças à intervenção das elites, de forma a colocarem nos “carris” a
marcha do “progresso europeu” ao qual a Bulgária tinha sido retirada pela intervenção
do “atraso asiático”. Como a Bulgária pertence “de pleno direito” ao espírito europeu,
é como se a Europa lhe devesse algo, sob a forma de um desenvolvimento em relação
ao qual ela esteve separada, em grande parte por “culpa” da Europa. Dado que as
relações dos “impérios centrais” com o Império Otomano foram sempre dúbias, são
hoje celebrados com nomes de ruas aqueles que (nesses impérios) ajudaram a
defender a causa da Bulgária independente (como William Gladstone) e vilipendiados
historicamente aqueles que ousaram defender publicamente (mesmo que por razões
tácitas) uma boa relação com o “sublime porte” (como é o caso de Benjamin
Disraeli). O despertar europeu dessa essência primordial e imutável, que é o “espírito
búlgaro”, foi também, em grande parte, “atrasado” pela Europa, razão pela qual a
Europa “deve” algo à Bulgária sob a forma de ajuda em termos de
“desenvolvimento”, para que o espírito retome a correta “seta” linear do progresso.
Para ilustrarmos esta visão da história, escolhemos precisamente dois textos de
divulgação – que estão presentes em livrarias, traduzidos para línguas estrangeiras e,
de modo interessante, em lojas de artigos para turistas, o que demonstra a insinuação
disseminada deste tipo de discurso como único – vertidos a partir do original búlgaro
e que correspondem, em grande parte, a versões abreviadas de manuais escolares
presentes no currículo oficial de história (os autores são professores universitários).
Neles se entrelaçam também as referências literárias, pelo que constituem, de facto,
monumentos discursivos interessantes e visíveis, a partir dos quais podemos recolher
toda uma articulação axiológica e sistemática demonstradora das questões antes
apresentadas. Concentrar-nos-emos apenas na narrativa do “jugo” otomano, não só
por questões de espaço e tempo relativas a este trabalho, mas porque esse momento
institui o grande trauma, a grande falha que vem incorporada no imaginário nacional.
66
Quando questionada (trata-se de uma experiência pessoal) sobre se a tradução para português estaria
correta, uma colega (preservo a identidade) nossa, via “facebook”, confirmou-o, dizendo o seguinte,
que passo a citar da (significativa) mensagem dela: “Despertar no sentido de quem faz despertar o
“povo" no sentido de cultura, educação e moral. Infelizmente isto também quer dizer que o povo se
encontrava em sono profundo. Visa-se a época da Renascença Búlgara quando a Bulgária fazia parte
do Império Otomano e nem era Estado autónomo.”
35
E é com interesse que abrimos o texto de Milcho Lalkov 67. O índice é, por si mesmo,
esclarecedor: o passado é visto como um momento “brilhante” (embora também
cruzado pela “sombra”) e a “terra” em momento algum deixa de ser vista como
“búlgara”: é nela que estão as “raízes”. O final das “rivalidades” com o Império
Bizantino é lido com a palavra “declínio” e o Império Otomano não deixa dúvidas: é
“sombra”. O que é mais curioso é que pouco é dito sobre o Império Otomano em si.
Dentro do próprio capítulo68, a segunda secção é logo dedicada ao “renascimento”.
Por outras palavras: é como se durante mais ou menos 500 anos (entre os finais do
século XIV e os meados do século XIX) não tivesse havido “verdadeira” história
(embora o renascimento anteceda os movimentos de independência) e o espírito
tivesse vivido em total paralisia. Façamos então uma incursão pela narrativa do texto,
o que nos leva apenas ao levantamento traduzido de expressões usadas no discurso.
Em primeiro lugar, a “invasão” da Bulgária pelos “turcos” foi uma “catástrofe”, pois
o “estado” e as “instituições” foram liquidados. Os “búlgaros” foram retirados de
“posições de governo”, do “sistema social” e das “instituições culturais”. Os
“intelectuais” foram “massacrados” e apenas os “nobres” que admitiram a “conversão
ao Islão” foram incluídos na “administração”. “Seiscentos mil búlgaros” foram
“massacrados” ou “escravizados” e – importante – “a conquista turca separou a
Bulgária da cultura europeia” e da sua “renascença”, o que a “retardou” em termos de
“desenvolvimento histórico e cultural”. O sistema otomano de governo era “feudal” e
o seu modo de produção era “asiático”. Os turcos eram mais “primitivos” do que as
“relações sócio-económicas e políticas” que encontraram. O que fizeram foi proceder
à “assimilação” mediante a “taxa de sangue” que levava “rapazes cristãos” “separados
das suas famílias” para a “infantaria do Império” e à “conversão em massa” por um
sistema de “privilégios económicos e políticos”. Mas os “búlgaros” nunca aceitaram
esta “servidão” e “logo” no século XV começaram a “luta épica” de “preservação da
sua identidade”. Tentaram também “ligar” a sua “resistência” “com as guerras dos
estados europeus “cristãos” contra os otomanos. O “movimento haidouk” foi uma
forma “espontânea” de “resistência armada” chefiada por “bravos e altruístas”
“homens e mulheres” e foi uma forma “consistente e duradoura” de “resistência em
67
Milcho Lalkov (1998), A History of Bulgaria an Outline (Sofia: Sveti Kliment Ohridski University
Press).
68
Para além do índice, todas as citações que aqui incluímos estão entre as páginas 83 e 97:
Milcho Lalkov (1998).
36
massa”. “Revoltas e tumultos, movimentações diplomáticas e participações de
búlgaros nas lutas do Império de Habsburgo constituem evidência histórica da clara
vontade búlgara de liberdade”69.
O “renascimento do povo búlgaro começou no século XVIII” e foi uma
“reverberação” dos ideais “democráticos” da revolução francesa. Por isso, o
“renascimento” búlgaro é parte de direito da história geral da Europa”. A transição
“para os tempos modernos e para a formação da consciência nacional” é uma
diferenciação” em relação “à idade média”, originando a “emergência” da “nação
búlgara”, apesar das “distorções” a que o seu “povo” esteve “submetido”. Um “único”
povo búlgaro e “uma” nação sofreram a “escravidão” dupla dos “turcos” (que foi
“sócio-política”) e dos “gregos” (que foi uma “subjugação nacional, religiosa e
clerical”). A “consolidação nacional” deu-se na “ausência de um estado” e, por isso, o
“nacionalismo dos búlgaros” sob “dominação turca” tentou “desbaratar a servidão
otomana” e “estabelecer um estado nacional”, o que foi um “esforço extraordinário”.
A “emancipação do domínio do patriarca grego de Constantinopla”, a “consolidação
da nova educação e cultura búlgaras” que foram “essencialmente seculares, científiconaturais e ideologicamente nacionalistas” deu-se a par “com o processo de libertação
nacional”, formando a “nação búlgara nos seus territórios étnicos e históricos
originais”. Um dos pilares do ressurgimento contra a “servidão estrangeira e o sistema
feudal e despótico otomano” foi Paisii de Hilendar 70 o “primeiro ideólogo e defensor
do movimento búlgaro de libertação nacional”. Tomou a decisão “patriótica de
escrever a história do povo búlgaro”, usando o seu trabalho como “veículo de
substanciação do direito histórico do povo búlgaro à existência de um estado livre”.
Terá exagerado no seu “programa de emancipação política, espiritual e nacional”
porque estava influenciado pelo “romantismo histórico”, mas soube ver que foram “os
irmãos de Salónica”, “Cirílio e Metódio” com o seu “escrito eslavo” que contribuíram
69
Cada uma das afirmações aqui contidas é passível de contraponto. Um trabalho que as tornasse
pormenorizadamente discutíveis, ponto a ponto, seria uma tese não sobre o discurso e os seus poderes
axiológicos e narrativos na construção de subjectividades, mas sobre a história propriamente dita. Isso
está feito e é ciclópico. Basta-nos apresentar aqui uma citação a esse respeito:
“The vigorous but self-righteous Christians of the Victorian era created the impression that their coreligionists under Ottoman domination had suffered continual persecution for five hundred years. It
was not so. Ottoman history is certainly not free from terrible incidents of hideous outrage, but in
Europe these were occasional. Many, if not most, followed acts of rebellion and if this does not excuse
the excess it perhaps goes some way to explain it.”
R. J. Crampton (1997: 29), A Concise History of Bulgaria (Cambridge: C.U.P.).
70
Não foi possível encontrar acordo quanto à grafia deste nome.
37
como manifestações do “génio criativo búlgaro” para o “armazém de tesouros da
cultura universal”.
O tom laudatório, primordialista, excecionalista e a relação positiva com a noção de
facto, teleológica com a noção de tempo e essencialista com a imutabilidade do
espírito71 permanecem no texto de Alexandar Antonov e Valentina Antonova 72, em
relação ao qual nos centraremos no processo narrativo do mesmo episódio, usando a
mesma estratégia. De um ponto de vista semântico ligado ao índice, o período
otomano é lido como “baixa idade média búlgara” na qual existe uma “conquista das
terras búlgaras” pelos “turcos osmanlis”. Contudo, há uma descrição das terras
búlgaras sob “dominação” até à luta da independência que é mais pormenorizada.
Embora o tom tente ser, por vezes, mais sereno, é indubitável que a tal “dominação”
corresponde à instauração de um “sistema político e religioso estrangeiro” que cria
“vítimas”, “ruínas”, a afirmação do Islão como “ideologia” pela “humilhação” dos
cristãos e a “expulsão” da aristocracia. Há uma descrição do tipo de “possessão” que
era praticado em termos mais económicos e religiosos do que políticos e também se
menciona, entre os impostos, o “imposto de sangue”. Os búlgaros tinham a
“obrigação” de trabalhar a terra e os “cristãos pagavam impostos mais elevados” e
sofriam várias “medidas repressivas” uma vez que o “sistema distinguia as pessoas
não pela pertença étnica, mas com base na religião”, ligadas que estavam “ao
patriarca de Constantinopla”. Por isso, “as famílias e as comunas” é que tiveram um
papel importante “na salvaguarda da identidade nacional”. Havia tentativas de
“assimilação islâmica”, sob a forma de “exoneração fiscal” e a “islamização” por
“conversão voluntária”, ou pela “força da crueldade” permaneceu “viva na
consciência dos búlgaros” havendo prova dela, ainda hoje, nos montes Rodopi, entre
os “Pomaks”, um exemplo vivo da “islamização forçada”. As primeiras tentativas de
“restauração búlgara” datam do século XV, como o auxílio em guerras de “cruzada”
contra os “infiéis”, o que mostra que “a luta pela conservação da nacionalidade e da
ortodoxia foi a força motriz da resistência búlgara” inclusivamente entre o movimento
dos haidouti” (é o nome usado) “símbolo de insubmissão”. “As grandes insurreições”
não tiveram “sucesso” porque o Império era ainda “forte”, mas “testemunham” que o
“estado búlgaro estava vivo” e “contribuíram para a conservação da nacionalidade e
71
Sendo evidente o tom romântico com que estas três questões são encaradas.
As citações referem-se ao espaço entre as páginas 58 e 77, para além do índice:
Alexandar Antonov, Valentina Antonova (1991), Histoire de la Bulgarie (Sófia: May).
72
38
da pertença à ortodoxia.” Embora a “conquista otomana” tenha sido um “duro golpe”
para a “igreja búlgara”, pois muitos mosteiros foram “destruídos” ou “transformados
em mesquitas”, no meio do século XV dá-se uma “renovação” com o surgimento de
“dezenas de mosteiros” que gozavam de “privilégios” como a “dispensa do
pagamento de impostos” (o que não é visto do lado da defesa do aspeto multiétnico do
Império, mas pelo lado da perseverança da própria igreja, cuja nomeação “búlgara”
oculta Bizâncio). Paisii de Hilendar foi quem escreveu “a primeira obra da nova
literatura búlgara e da historiografia” e “com as suas ideias sobre a educação, a
independência espiritual e a libertação política” ofereceu “os fundamentos para uma
nova época – o renascimento nacional”, no qual se dará uma “renovação da cultura e
da educação e a afirmação da consciência nacional” sob a “influência das luzes da
Europa”, em prol de uma nova “cultura laica” e de uma “educação moderna”, já que
“muitos búlgaros estudavam nas escolas laicas de Istambul”. Tudo isto serve de base à
“renovação” do “conhecimento científico”, pois “os búlgaros que estudavam no
estrangeiro” tiveram grande importância “no desenvolvimento da literatura do
renascimento”, na “formação definitiva da moderna língua literária búlgara” e nos
“primeiros passos da imprensa periódica”. A “formação e a afirmação da nação
búlgara” tiveram como “objetivo principal” a “restauração da igreja búlgara
independente” e o “reconhecimento oficial da nação búlgara e das suas fronteiras
históricas e étnicas”.
B) Visões Críticas Desta Monumentalidade Apócrifa: O Nacionalismo como “Um”
Discurso de Poder e não “A” Narrativa da Verdade
Temos, por isso, aqui ilustrado um recorte monumental e discursivo que, embora com
algumas diferenças de tonalidade (já que, por exemplo, a insistência na questão
religiosa é maior no segundo texto), remete para as características que apontámos
antes relativas ao discurso de saber e poder inerentes ao invólucro positivista,
teleológico e racionalista (sub-repticiamente romantizados). Repare-se que, em
momento algum, nos exemplos anteriores, se questiona a primordialidade da nação
búlgara, a sua relação com um território (foco de enormes disputas que
ensanguentaram os Balcãs após o vazio dos Impérios Otomano e Habsburguiano) – a
39
“grande Bulgária”73, conforme é vulgarmente dito – e a ligação deste com um estado.
Também é dada como evidente a permanência de um espírito imutável que se remete
para o “povo”, para a língua e para a cultura nas suas manifestações genuínas. É em
relação a esse espírito que a intromissão da “Ásia” constitui um “atraso”, uma vez que
o impede de seguir o passo da Europa “civilizada”. Além destas questões, o que
complementa o aspeto racionalista é o enorme dualismo maniqueísta que as
definições apresentadas dão a ver: entre atraso e desenvolvimento, entre Ásia e
Europa, entre luz e treva. Não faz parte do domínio deste trabalho ressarcir, mediante
análises suavizantes, o papel do Império Otomano nos Balcãs, embora seja de
designar que grande parte da historiografia que se posiciona perante ele provém de
uma visão da tradição do centro europeu em relação a esta questão. Maria Todorova
argumentou que grande parte do ostracismo com o qual a Europa olha os Balcãs é
uma derivação da visão subalternizada que a maioria da sua historiografia teve em
relação ao “turco”, sempre visto como um misto de crueldade e lascívia, de intriga e
sedução. De certa forma, os Balcãs constituíram uma forma de “orientalismo interno”
e por isso se constituíram como “estudos de balcanismo”74.
Misha Glenny acrescentou, por seu lado, que os sistemas de gestão de populações
desenvolvidos pelo Império Otomano nunca poderiam ser vistos por um processo
maniqueísta. A sua visão, aliás, contribui para a desmistificação heroica dos
“haidouks”, já que a colagem a estes de qualquer “missão nacional” é uma forma de
ignorar o papel que tiveram na formação oportunista de pequenos protetorados rurais
– muitas vezes em guerra uns com os outros ou ocasionalmente associados ao Império
sem qualquer tipo de vínculo nacional – cuja relação com o poder central do “sublime
porte” variava conforme a intensidade na qual este aceitava, ou não, as suas formas de
“angariação” de riqueza. Glenny acha, aliás, que foi a ignorância das potências
ocidentais em relação a esta forma antiga de tradição mista de “guerreiro
comerciante” que não ajudou a perceber porque é que, durante a guerra de
73
A Bulgária dos “três mares” que incluiria grande parte do Sul da Roménia, toda a Macedónia, parte
do Sul da Sérvia e uma grande parte do Norte da Macedónia grega, incluindo a cidade de Salónica.
74
Nergis Canefe (ver referência) cita Maria Todorova, em texto que referenciaremos a seguir, quanto à
sua obra que temos presente quando notamos esta questão. Todorova diz:
“The Balkans are the Ottoman legacy. (...). Probably the most striking feature of the dominant
discourses in the different Balkan countries is the remarkable similarity between them … and the
amazing continuity over time. The picture of the ‘saddest and darkest period’ in Balkan history makes
the five centuries of Ottoman rule the historiographical counterpart of the Western European ‘dark
ages’ before the advent of historical revisionism.”
Maria Todorova (1997: 80) Imagining the Balkans (New York: O.U.P.).
40
fragmentação da antiga Jugoslávia, os diplomatas ocidentais não conseguiam
encontrar explicação para o facto de a guerrilha, por exemplo, no enclave de Bihac,
ter sido entre muçulmanos e muçulmanos. Não poderiam encontrar, porque a
buscavam numa narrativa de fratura religiosa, sem perceber que os jogos de poder
eram de uma natureza diferente e herdeiros de uma mistura de tradições pré-nacionais
com processos contemporâneos de tráfico75.
Quanto ao papel das elites, Mark Mazower tenta mostrar que estas, ao estudarem fora,
trouxeram para os Balcãs a noção de estado-nação importada com elementos do
iluminismo francês, e seu consequente positivismo, e do romantismo alemão, e sua
consequente idealização passadista. Foram essas elites que ocuparam discursivamente
o vazio dos impérios entre as populações eminentemente rurais e as ajudaram a
redefinir as suas identidades como nacionais, com base em mitologias primordialistas
efabulatórias e reivindicadoras de espaços que nem todos poderiam ocupar, já que os
sonhos irredentistas das “grandes” Bulgária, Sérvia, Roménia, Albânia, Grécia, etc.,
chocariam inevitavelmente uns nos outros76.
Aliás, as narrativas nacionais dos vários países têm pontos comuns e é Nergis
Canefe77 quem melhor nos ajuda a percebê-los para voltarmos à monumentalidade
apócrifa búlgara (uma análise da ideia de “meghali” – usamos aqui de propósito o
termo grego que foi proposto por um dos percursores do nacionalismo grego
moderno, Elephterios Venizelos – em todas as “megalomanias” balcânicas constituiria
algo de ciclópico) e à sua visão como convenção de verdade que não constitui “a”
verdade, mas “uma” maneira de a ver, conforme nos ajuda a perceber a crítica
posterior. Para Canefe, a “dispersão desigual” 78 da ideia nacional é o que ajuda a
perceber os nacionalismos balcânicos do ponto de vista do seu discurso coesivo de
poder. Assim, era necessário ver a nacionalidade como continuidade impulsionada
pelo iluminismo europeu, através do encontro de traços primordiais que provassem
ser a Europa “endémica”79 a essas sociedades. A Europa é uma necessidade para a
fundamentação de um discurso que mostre que tais nações nada têm que ver com o
75
Misha Glenny escreveu uma obra enorme sobre os nacionalismos balcânicos da qual não dispomos
neste momento. Sobre Bihac, cuja referência ele acentua posteriormente, ver também:
Misha Glenny (1996: 288) The Fall of Yugoslavia (London: Penguin).
76
Mazower (2002: xliii).
77
Nergis Canefe (2004), “Foundational Paradoxes of Balkan Nationalisms: Authenticity, Modernity
and Nationhood” Turkish Review of Balkan Studies Nº 8, Ortadogu ve Balkan Incelemeleri Vakfi
(Research Foundation of Middle Eastern and Balkan Studies), pp. 107-148.
78
Canefe (2004: 110)..
79
Canefe (2004: 107).
41
“oriente” e que são sociedades do “progresso”. É uma necessidade, por causa da
suspeita da Europa em relação ao grau civilizacional das novas identidades e, por isso,
era-lhes necessário provar que eram europeias. Tal deve-se ao facto de os
nacionalismos europeus terem lançado uma vaga discursiva cuja dispersão resultou
em narrativas de identificação de cariz desigual. Por isso, no caso do século XIX
balcânico, as lideranças foram fundamentais para a necessidade de soberania, já que a
sua legitimidade teria que passar pela sua união – enquanto conjunto de quadros –
com as populações, mediante a construção de um discurso identitário.
Como a produção eurocêntrica do discurso nacionalista esteve relacionada com o
redimensionamento
das
sociedades
pela
industrialização
capitalista,
houve
necessidade de as histórias balcânicas se europeizarem e, por isso, de promoverem
uma separação da dimensão religiosa (secularizando-a de modo cúmplice e utilizável,
diríamos) em função de uma etnicidade (coesiva) justaposta a um estado que tornasse
a nação viável. Assim, o século XIX assiste à combinação da formação da identidade
nacional por relação a uma visão etnocêntrica e a uma conceção identitária
supremacista que envolveu uma verdadeira revolução na construção discursiva das
identidades. Porque a idealização da nação se tornou paradigma universal da
modernidade, a adoção do discurso nacionalista nas franjas da Europa é fundamental
para entender a reprodução do seu discurso, já que é no século XIX que os Balcãs se
incorporam ao mapa político. Contudo, há muito que estes existiam na imaginação
europeia80 e, por isso, “os renascimentos” são representações discursivas da extensão
da linha imaginária civilizacional pelo alargamento do projeto iluminista. Para tal, era
necessário ver o “turco” como o “outro” 81 que ronda ameaçadoramente a “margem”
da Europa e cuja presença em “nós” nos nega como europeus. Assim, é preciso
purificar as “nossas” histórias de presenças orientais, tornando-as europeias de pleno
direito82.
Este “despertar” de um sentido nacional baseado na continuidade histórica e na sua
relação com o iluminismo supõe uma relação direta com a perceção dominante
europeia do Islão e do otomanismo: é precisamente isso que dá marca europeia às
novas narrativas culturais. Assim, e de um modo geral (o que ilustra os excertos
80
Ver isso em Vesna Goldsworthy, nomeadamente no terceiro capítulo, sobre as fábulas ocidentais em
relação aos Balcãs:
Vesna Goldsworthy (1998) Inventing Ruritania: The Imperialism of the Imagination (London: Y.U.P.).
81
Sobre a desmistificação deste imaginário:
Andrew Wheatcroft (1993) The Ottomans: Dissolving Images (London: Penguin).
82
Canefe (2004: 114).
42
retirados do discurso identitário búlgaro), os nacionalismos balcânicos que
floresceram nos momentos do “despertar” funcionam como visões românticas que
buscam histórias de nacionalidade anteriores ao estabelecimento de estados
independentes (o caso do primordialismo “proto-búlgaro”, que tenta ignorar a
possível relação desses povos com a origem nómada e turcomana da Ásia central).
Contudo, a presença otomana é um obstáculo e, por isso, a ênfase é colocada nos
passados medievais e antigos, a expensas de histórias recentes ou, até, de uma
ausência absoluta de história durante o “jugo”83. O termo “estrangeiro” (aplicado ao
“jugo”) tem o sentido de atribuir ao turco uma caracterização próxima do
“barbarismo” mongol, para que se possa conotá-lo com o avanço horroroso de certas
“hordas” pelo meio da civilização. Isso permite caracterizar o período como um
retorno ao “feudalismo primitivo” e à servidão, que afasta as sociedades do seu
“destino” étnico. Desta forma, o “turco” (bárbaro, nómada, atrasado, e sem cultura)
associa-se a um imaginário de “guerra santa”84, o que permite ligar a igreja ortodoxa à
sobrevivência das culturas nacionais e ao seu “renascimento”, dado que o seu papel
foi o de preservar o sentido de “etnicidade histórica” apesar da “dominação”. Ora,
como isto cria o problema de a igreja ortodoxa ter sobrevivido “dentro” do Império e,
como tal, de certa forma, legitimada por ele, a ideia futura de uma nacionalidade e de
um estado seculares não valeriam devido ao facto de a promoção etnolinguística de
diversidades chocar com a unidade cristã da igreja. O problema resolve-se pela
nacionalização desta, redefinida como “comunidade política secular”85. Isto, contudo,
faz permanecer a suspeita comum em relação ao Islão como estrangeiro86.
Embora as sociedades balcânicas tenham sido homogeneizadas pela igreja ortodoxa
bizantina e unificadas politicamente pelo império otomano 87, a reformulação
nacionalista vê a região como uma amálgama etnolinguística diversa e “intemporal”.
Esse trabalho foi feito pela compilação intensa de gramáticas e dicionários que
“codificaram os vernáculos para meios de produção escrita (necessários à escola e à
imprensa) abrindo caminho à autoidentificação circulatória do modelo romântico
83
Canefe (2004: 115).
Canefe (2004: 116).
85
Canefe (2004: 117).
86
Canefe argumenta mais tarde no artigo que esta visão permanece em todas as histórias balcânicas de
índole marxista que, dialeticamente, subalternizam o “modo asiático de produção” otomana. A revisão
otomana em termos menos eurocêntricos tem, como já apontámos, vindo a acontecer. Canefe (2004:
132/34).
87
No caso das regiões mais a Norte pela influência papal e pelo império habsburgiano.
84
43
nacionalista”, mas com base no reportório de signos, símbolos e metodologias
oferecidos pelo iluminismo às novas “identidades nacionais”, sob processos de
“etnografia” racionalizada da identidade nacional, com formulações mutuamente
exclusivas e que têm em comum a exclusão do Islão pelo reconhecimento “em si” da
“Europa civilizada”88. A soberania nacional coincidiu com uma reordenação maciça
de tradições, memórias e histórias que serviram o propósito de “readquirir”, no
sentido de ganhá-la, “uma identidade europeia” 89. É por isso que o “homem doente da
Europa”, o “turco”, tem que ser visto como bárbaro e desprovido de história. A
soberania adquirida serve para romper discursivamente com esse “traço”. Deste
modo, as elites balcânicas criaram um discurso independentista contra o “despotismo
oriental” e a favor da “civilização europeia” reescrevendo uma história de negação do
“relógio atrasado” que lhes fora imposto pelo Islão dentro do imaginário da “régua
civilizacional” do tempo europeu, como mostra também Todorova.
Contudo, a identidade europeia permaneceu sempre em questão e, ainda hoje, em
momentos de crise, o termo “balcanização” serve para caracterizar falta de civismo,
barbarismo, caos e fragmentação aos olhos de um contemplador supostamente
“ilustrado”, já que o imaginário do “encontro” ainda se manifesta integrado às
narrativas europeias iniciais, que contrapunham o caos, a imprevisibilidade e a
sensualidade incontroláveis ao conhecimento e à ordem racionais. O estigma,
interiorizado pelas populações da história sem tempo, sem mudança, sem progresso e,
consequentemente, irracional, é um estereótipo mítico que continua a ajudar na
construção de dicotomias civilizacionais marcadas pela ideia do “não totalmente
europeu”. Este processo, a que Alexander Kiossev chama “auto-colonização”, é
revisto por ele não só em termos de estigma e anormalidade, mas como constituindo
também o cânone historiográfico e literário. A definição que Kiossev dá de culturas
“auto-colonizadas”90 cumpre um processo de hegemonia sem dominação sobre a
88
Canefe (2004: 118).
Canefe (2004: 120).
90
“(...) cultures having succumbed to the cultural power of Europe and the West without having been
invaded and turned into colonies in actual fact. Historical circumstances transformed them into an
extracolonial “periphery”, lateral viewers who have not been directly affected either by important
colonial conflicts or by the techniques of colonial rule. The same circumstances however put them in
situation where they had to recognize self-evidently foreign cultural supremacy and voluntarily absorb
the basic values and categories of colonial Europe. The result might be named hegemony without
domination.”
Alexander Kiossev (S/D), “The Self-Colonizing Metaphor”,
http://monumenttotransformation.org/atlas-of-transformation/html/s/self-colonization/the-selfcolonizing-metaphor-alexander-kiossev.html
(consulta: 22/11/2012).
89
44
imaginação social91 e no plano das categorias assimétricas do classificacionismo
europeu. As hierarquias de uma certa imaginação social tomam posição de poder no
discurso, herdando mitologias do imaginário medieval sobre as “franjas” do universo
que entraram na cultura popular europeia em simbiose com o “exótico”. Por exemplo,
o “mistério místico” do harém oriental foi suplementado por toda uma categorização
assimétrica de poder e saber que levou ao auto-convencimento moderno da
necessidade de libertar povos da “tirania asiática”. Tornando-se global nos séculos
XVIII e XIX, a imaginação colonial arrastou as comunidades laterais para o modelo
eurocêntrico. O desejo de não serem laterais e de quererem reconhecimento para a sua
“civilização” e história levou à interiorização da parafernália conceptual colonial, já
que as elites formadas nessa imaginação ocuparam papéis como intelectuais,
educadores, jornalistas e disseminaram o reportório sem a violência colonial, ou seja,
em livros, aulas, manuais, literatura e propaganda. Com isso, introduziram a ideia de
nação soberana e inventaram tradições históricas em comunidades imaginadas.
Contudo, no momento em que cimentam as categorias “científicas” (de centro e
periferia, de civilização e barbárie) estas comunidades auto-colonizam-se também
com o trauma da falta: veem-se, neste processo, como culturas da “falta” (de
progresso, de intelectualidade, de arte, de ciência) 92. Ora, isto cria paradoxos: por um
lado, a Europa é ao mesmo tempo empírica e não empírica; um lugar físico, mas
também uma estrutura significativa do discurso que é simbolicamente transcendental.
Como o transcendental é sempre neutro e universal, a implicação é que, do ponto de
vista da sua medida, elas não são assim tão europeias quanto isso, pois quem se
coloniza é o próprio sujeito cultural reflexivo. Na construção da sua identidade, as
nações que se “auto-colonizam”, agarram categorias e códigos de definição dentro dos
quais se experimentam discursivamente como semi-ausências. Como a própria Europa
dos séculos XVIII e XIX – preocupada com o “concerto” do “jogo” colonial – olhava
para estes espaços, por um lado como não oferecendo a mesma “distância exótica” e,
por outro, dentro de uma ambivalência paródica, anedótica, aventureira ou nebulosa93,
91
Existem algumas semelhanças entre este conceito e os de “imaginação do centro” e “semi-periferia”
utilizados pelo intelectual português Boaventura de Sousa Santos. Guardarei esse processo de
comparação para mais tarde.
92
“The poignancy of the absences was coupled with a striving for filling in, for catching-up
enlightenment, for all that was typically dubbed “the way toward Europe”. Local elites were driven to
turn themselves and their compatriots into modern people, i.e., Europe.”
Kiossev (S/D), “The Self-Colonizing Metaphor”.
93
Goldsworthy (1998: 111/112).
45
ao importar, no mesmo passo, essa visão anedótica interiorizando-a como autoreconhecimento paródico94, o processo nacionalista pediu emprestado tanto o modelo
como a resistência a ele. É precisamente nesse misto de triunfalismo e ressentimento
que surge a busca das “raízes” em contraste com a adoração da “civilização” (e em
dobra com ela): cresce o transe etnográfico do “autêntico”, a orgia arqueológica do
“primevo” e o idílio filológico orgânico do “nativo”. Tal aparece como patente nas
queixas dos intelectuais búlgaros do “renascimento” sobre a falta do que é “nacional”
(Kiossev cita-as95). Como a falta de escrita, civilização, ciência e história dá cápsula à
permanente procura do “ser” dentro da Europa, a consciência nacional constituiu-se
como falta. Esse trauma, uma vez que se encontra ligado à ordem simbólica da
modernidade, é um “estigma” no qual a “auto-colonização” é, em grande parte, feita
por símbolos de ausência (até a falta do “grande” território nacional entra aqui). Como
se trata de uma importação de modelos, pois as culturas nem são suficientemente
grandes nem centrais, nem suficientemente estrangeiras e distantes, isso implica uma
forma peculiar de modernização que coloca um modelo exógeno no lugar do
imaginário, adotando os seus símbolos como corporizações da corrente dominante da
história.
O paradoxo fundamental é que a estrutura permanecerá estranha, criando a sensação
de que os “nossos” valores não são verdadeiramente “nossos”. A ausência presente –
ou presença ausente – que marca a falta e o sofrimento constitutivo do estigma
explica-se pelo facto de tais culturas, sob essa forma nacional, não existirem antes do
aparecimento como paradoxos: um permanente fantasma cujo desejo de aquisição é a
força normalizadora das instituições. A escola, a universidade, a imprensa, são
constituídas por este trauma: é ele que gera a cultura. Sem o modelo europeu da nação
educada e emancipada, sem o modelo do sistema educativo e das instituições, as
comunidades rurais dos Balcãs nunca se teriam redefinido como identidades
nacionais. O estigma anormal da humilhação pela ausência leva a uma supressão
substancial: por outras palavras, o nascimento da nação não é visto assim, mas como
“renascer”, como “despertar” de uma distância que permite a identificação com um
imaginário mítico. É um auto-convencimento cultural de que o tempo não começa ali,
no trauma, mas é primordial, o que é conseguido pela enumeração de feitos
94
Para um excelente exemplo búlgaro, ver:
Aleko Konstantinov (1895/2010), Bay Ganyo (Madison: U.W.P.).
95
Alexander Kiossev (S/D), “Notes on The Self-Colonising Cultures”,
http://www.kultura.bg/media/my_html/biblioteka/bgvntgrd/e_ak.htm (consulta: 22/11/2012).
46
civilizacionais e pela invenção da sua substância “autêntica e bucólica”. Como o olhar
externo (a norma) devolve o lado obscuro (caótico) e esse é interiorizado como
“estigma” de “anormalidade”, a ideologia nacional esforçar-se-á por reverter o olhar
pelo outro lado, o da luz (harmonia).
Para Kiossev, a literatura e a cultura são disso exemplos paradigmáticos:
transformações do negativo em positivo, da ausência em glória, da vergonha em
orgulho, que quanto mais tentam sublimar a falta mais a reproduzem. Os manuais
literários búlgaros, desde a sua primeira manifestação 96, têm como premissa de base a
definição de literatura ligada à de nacionalidade. Assim, os textos universitários –
positivos e disciplinadores – baseiam-se em noções de clareza, simplicidade,
objetividade e (importante) neutralidade, tomando a literatura – ao ligá-la à formação
da nacionalidade – como “ciência nacional”. A literatura é, por isso, fundamental
como função de construção nacional o que é paralelo à “comunidade imaginada”, ou
seja, há uma homogeneização ficcional de um “indivíduo essencial” com o qual a
audiência distante partilhará as características universais de um “sujeito”. A literatura
é por isso um saber (e um poder) de “grande narrativa”, cuja reprodução heroica
unifica o coletivo em formas simbólicas. Trata-se de um processo linear e aberto ao
futuro, harmonizador do individual e do coletivo por modelos de relação entre o
destino próprio e o da nação. O tempo da origem aparece unido ao estado da sua
representação profana, de tal forma que a literatura assume uma função totalizante e
legitimadora da nação: como vimos, no contexto inicial, os escritores assumiram isto
como falta.
Ora é evidente que uma tal narrativa, unificada como “mono-perspectiva” de um
discurso “positivo nacional”, cria uma homogeneidade que dilui – no imaginário –,
pela sua solenidade autoritária, qualquer virtualidade “outra” de discurso que desafie
essa articulação. Ergue-se assim uma versão monocórdica da literatura nacional sobre
um modelo que carrega as categorias do “clássico”, do “eterno”, do “grandioso” e do
“glorioso”. A literatura cumpre consequentemente o papel de uma espécie de religião
mundana, servindo uma função onto-mitológica que localiza os autores e as obras
num espaço-tempo ideal, espécie de presente sem fim: homogéneo, unificado, e não
casuístico, porque transcende a circunstância já que introduz um idealismo arcaico
96
Alexander Kiossev (2004), “Bulgarian Textbooks of Literary History and the Construction of
National Identity”, Maria Todorova (Ed.) (2004), Balkan Identities: Nation and Memory (London:
Hurst & Company), pp. 355-65.
47
num imaginário que é moderno. É isto que constrói – para nós – a
“monumentalidade”
(solene,
discursiva,
inabalável)
“apócrifa”
(construída,
convencionada, performativa) e, por isso, na linguagem de Kiossev – que aqui
traduzimos literalmente – “os textos universitários positivistas de literatura
normalizam e institucionalizam (na interpretação foucauldiana destes termos) a vaga e
romântica (...) retórica clássica. Eles integram em metáforas universitárias de uso
comum, em clichés institucionalizados por convenções, uma articulação da noção
romântica de literatura e nação, no seio de procedimentos académicos e de ensino que
são positivistas. Este estranho híbrido estabiliza a subjetividade da literatura nacional
transformando-a num emblema de legitimação da identidade nacional.” Esta
“construção de um sujeito nacional (e nacionalista) pela literatura nacional, pela
“herança” e pelo “repositório” (...) corresponde a um filologismo e não a um dado: o
ato de construção da instituição/discurso (literário) na Bulgária (...) junta numa
unidade extraordinária o discurso positivista da história literária às práticas
institucionais positivas da ciência literária e livresca institucional.”97
E qual é a estratégia retórica? Ao incluir como autoridade os textos literários no
contexto filológico eslavo e internacional, o estudo literário búlgaro mascarou as
metáforas românticas com camadas de termos positivistas, veiculando por aí a
ideologia do “sturm und drang” ligada ao “génio”. Dessa forma, a configuração das
obras canónicas (que suprem a falta) como tesouros sem preço joga na fronteira do
empírico e do romântico, concebendo a literatura como um bloco metafísico mítico e
sublime, que manifesta o “espírito búlgaro” na linguagem normalizadora do
positivismo logocêntrico essencialista98. A literatura e o seu ensino assumem, assim,
ao nível institucional, uma função normativa reguladora que impede contradições
entre a comunidade e o indivíduo, o próprio e o estranho, o histórico e o eterno, o
fenómeno e a essência, a vida quotidiana e o imemorial, a “agressão” e a “cultura”. A
ferramenta positiva do tempo hegeliano alivia incompatibilidades relacionadas com o
trauma da falta, sob o estado de manifestação do espírito nacional homogéneo que lhe
dá coerência e totalidade. É, aliás, essa totalização que une a literatura e o folclore
como produtos espirituais identificados, ao nível metafísico, como duas manifestações
97
Kiossev (2004: 359).
“Like Ulysses who visited the world beyond and then returned, literature oscillates between the
multitude of facts and the unity of the spiritual, transgresses its borders, it now finds itself in the
empirical and spreading multitude of texts and epitomises and expresses the inexplicable single
essence, the metaphysical essence of the national spirit.”
Kiossev (2004: 361).
98
48
diferentes da “língua” e do “verbo” que exprimem a “alma” 99. A sua distinção é
apagada pela objetividade do discurso institucional que constrói a ponte entre eles.
Este progresso teleológico coerente do povo nas suas manifestações homogeneíza a
herança e o clássico, emancipando a nação no cenário histórico. O discurso literário é,
por isso, uma metafísica da presença que torna evidente a essência nacional, elevando
passado, presente e futuro à integridade. As “letras” são heranças de continuidade de
quem ganha uma independência que transcende o real, em direção ao tempo ideal, por
um processo em que o moderno suprime o trauma da falta pela legitimação do
“nacional”. Tal escatologia tem a pretensão de suprimir o estigma da falta e a
anormalidade da ausência: a narrativa histórica é quem legitima o tempo moderno
emancipadoramente inserido no projeto ilustrado e cumprindo, por outro lado, uma
função compensatória de legitimação nacional.
Ora, para Dessislava Lilova 100, um dos maiores problemas que o processo coesivo de
construção deste imaginário encontrou foi o de como narrar a queda nas “trevas
otomanas”. O trauma búlgaro tem a dificuldade acrescida de não encontrar um espaço
específico para concretizar o momento da “perda”, ou seja, um evento, uma batalha,
uma morte ocorrida num espaço físico especial e sagrado, como acontece no caso
sérvio em que a “perda” está associada ao espaço totémico do Kosovo. Os búlgaros
não têm um “último” herói sagrado nem um “último” lugar: a crise do “estado” é
atribuída ao facto de os derradeiros monarcas se terem casado com mulheres judias e
gregas, cujas “pérfidas intrigas” conduziram à interrupção trágica da história.
A literatura e a história resolveram o problema pela politização contemporânea do
discurso, suprimindo a falta de uma memória traumática unívoca pela fabricação de
um passado (nos últimos 50 anos otomanos) mediante o uso do ensino e da imprensa:
estes estandardizaram uma norma peculiar da “queda”. Como os manuais de história
universal contavam com brevidade (em traduções do francês e do alemão) o Império
Otomano em relação com Bizâncio (nunca com a Bulgária), a elite teve necessidade
de inventar manuais que suprimissem essa falta. Entretanto, a imprensa brandiu o
início do “trauma” com base numa vulgata que terá circulado na Áustria, não sem
alguma “indignação” das elites com as “inconsistências” aí descortinadas, sendo
necessário, por isso, reescrever e adaptar um texto que ainda não ganhava valor de
99
Kiossev (2004: 362).
Dessislava Lilova (2010), “Relater la Chute Sous le Pouvoir Ottoman: La Version Bulgare”,
Balkanologie Vol. XII, Nº1, http://balkanologie.revues.org/index2140.html (consulta: 22/09/2011).
100
49
norma. Apesar de o primórdio estar no monge Paisii e seus seguidores, a versão final
só será normalizada já no século XIX.
Contudo, a queda era um tema chave para a narrativa do “atraso” em relação à
Europa, já que mostrava o drama do apagamento de um “estado” dessa carta
geográfica. Entre as dificuldades estavam, além da definição do estado, a
nebulosidade das figuras envolvidas, das campanhas militares e dos lugares destas.
Dito de outra forma, havia um “défice de normatividade”; a razão principal para a não
desintegração total da narrativa, vem, por isso, não da sua consistência mas do quadro
ideológico estável101, ou seja, “como” é que o estado desapareceu é menos importante
que o “porquê” descoberto no “inimigo”, nas “divisões” internas e na “decadência”
moral. Tal “imaginação emocional” na descrição da desmoralização das elites tomou
a forma de uma corrente de formação da identidade que via nos “imorais aristocratas
helenizados” a antítese dos “proto-búlgaros” “puros”102. Essa “anomalia feia” tomou
formas literárias apropriadas pela elite intelectual, para quem o “deboche” fez com
que a “servidão” não constituísse uma novidade, pois o poder anterior aos
muçulmanos já tinha “escravizado” o povo. A falta de uma “batalha”, substituída por
um estado dividido e “imoral” deixou o mito histórico num bloqueio, devido ao seu
“défice de heroísmo.”103
No entanto, a elite conseguiu manter a norma discursiva e a ajuda paradoxal veio
precisamente da “competição” das ficções históricas vizinhas – nomeadamente a
sérvia – em torno de qual nação seria mais “digna” ou “maior”. Essa necessidade de
contraposição ajuda a colocar, no lugar da “queda”, não um mito real, mas o mito
moderno do povo soberano, dono da sua história “primordial”: embora os búlgaros já
se encontrassem “fracos” devido ao ambiente de “decadência” que levou ao inevitável
“sacrifício de cristãos”, este processo originou dois regimes de verdade
complementares: um ligado ao estado medieval “interrompido” e outro ligado à
regressão nostálgica.
101
Como diz Maria Todorova (tradução nossa), numa narrativa nacionalista “diferentes fontes tornamse subordinadas ao mesmo objetivo (...) forçadas a falar a mesma língua (...) de modo a que o sentido e,
por extensão, a memória sejam produzidos no espaço entre a intenção autoritária e a receção.”
Maria Todorova (2004: 130).
102
Lilova (2010).
103
Lilova (2010).
50
Diana Mishkova104 acrescenta mais três processos de estruturação construtiva do
discurso através de dobras de semelhança e oposição, neste caso por referência aos
discursos “greco-helenista”, “greco-bizantino”, “eslavista” e “turcófilo”. Mishkova
propõe-se olhar para a Bulgária por uma revisão da ideia de “orientalismo”,
reconhecendo as incompatibilidades (para o modelo) provenientes da ausência de um
colonialismo propriamente dito e de uma tradição local (entre as elites cultas atuais)
de estudos culturais multidisciplinares exteriores às compartimentações formais
tradicionais. Desta forma, a auto-narrativa é problemática dada a ambivalência limiar
do espaço105, em termos de apreensão dos saberes europeus, e a própria polissemia
ganha pela ideia de “Europa”, em função da ambiguidade das ferramentas intelectuais
que ela proporciona, uma vez inseridas no contexto. Assim, a autoidentificação
búlgara não pode ser vista apenas a partir do controlo semântico do “centro” europeu,
o que corresponderia a ignorar matrizes como a russa (do hibridismo eslavo) e a
otomana (cuja interpretação monolítica pelas historiografias nacionais ignorou a
modernização interna do Império).
Sendo verdade que grande parte do século XIX correspondeu a uma educação
disseminada a partir da Europa, a maioria das pessoas era já formada no contexto
limiar do processo de filtragem – e não diretamente – e, dentro desse, até aos anos 30
do século XIX, a “metrópole” búlgara era a “tradução” grega das ideias do ocidente, o
que levou a uma visão desta influência como ameaça ao exclusivismo. Assim, a
entrada da Bulgária na modernidade fez-se pelo estigma social otomano e cultural
grego106. Este processo começa por ser uma “defesa por imitação”: como o
racionalismo europeu chega filtrado pela Grécia (assim como o nacionalismo) o
“despertar” e o “renascimento” fazem-se pelo processo grego, mas em competição
com este. Como os intelectuais acreditavam que o “renascimento” intelectual e
104
Diana Mishkova (2007), “In Quest of Balkan Occidentalism”, How to Think About the Balkans:
Culture, Region, Identity (Sofia: Sofia Academic Nexus, Centre for Advanced Study)
http://www.cas.bg (consulta: 22/09/2011).
105
Esta questão dos limiares e das fronteiras, que é própria do discurso pós-colonial, ressurge também
no trabalho de Albena Hranova em torno dos recursos epistémicos de poder que a literatura nacional
proporciona em termos de normalização do imaginário. No seu trabalho – que, por falta de espaço, não
analisaremos aqui – as metáforas da “ponte” e da “cruz”, por exemplo, servem como recursos para
mostrar como o discurso literário quis ou subverter ou confirmar o “nacional” por via de metáforas de
ambivalência. Isso por si demonstra o quanto a literatura e a história se entrelaçam no processo de
coerção discursiva da identidade:
Albena Hranova (2007), “Balkan History: No Longer European, not Only Ottoman and not yet
National”, How to Think About the Balkans: Culture, Region, Identity (Sofia: Sofia Academic Nexus,
Centre for Advanced Study) http://www.cas.bg (consulta: 22/09/2011).
106
Mishkova (2007: 8).
51
político eram paralelos num utopia totalizadora, as ambiguidades de formação do
modelo grego eram complicadas para a Bulgária pois a Europa via a sua “raiz” na
Grécia. Só que isto influenciava também a autoidentificação grega no século XIX que,
por isso, via como seu grande testemunho de continuidade a igreja. A antinomia entre
“duas Grécias” (racional e progressista, versus retrógrada e religiosa) – com outras
metamorfoses, como ainda veremos – influenciou a tensão balcânica em geral em
torno da etnogénese.
A solução búlgara foi, segundo Mishkova, olhar para Rússia. O eslavismo
providenciou os ingredientes de uma identidade nacional (passado, língua, cultura
imemorial) a partir de um “grande outro” e foi esta onda pan-eslavista que levou
búlgaros a estudarem na Rússia. Contudo, como os “pais” dos estudos eslavos eram
sobretudo germânicos (o modelo da chegada à origem histórica por classificação
linguística), a elite pan-eslava búlgara, ao tomar nas mãos a obsessão de ler o
eslavismo como contraponto à Grécia, chegou ao romantismo alemão. A busca da
etimologia “pura e antiga” dos búlgaros levou ao encontro de um romantismo europeu
transformado em “verdadeira” identidade búlgara e a evolução deste romantismo
nacionalista para um misticismo histórico (contra a “corrupção” helénica) não foi a
única fonte de ambiguidade. Embora a relação entre o mundo eslavo e a igreja
ortodoxa fosse, para alguns intelectuais, importante como contraponto à europeização
“corrupta”, essa ambivalência levou também a sentimentos de dupla periferia (quanto
à Europa e quanto à Rússia) e como os Balcãs não faziam parte de domínios de estudo
sério no contexto europeu (ao contrário do oriente, que dispunha de uma etnografia
própria, apesar de subalternizadora), essa nudez narrativa deixou a identidade inicial
carenciada de espelhos. É a entrada na Europa por via eslava que garante um capital
simbólico (ambíguo, porque eslavo e ortodoxo) de inscrição matricial e um modelo de
autoavaliação. Contudo, perante a autoridade eslava, os búlgaros eram ambíguos:
irmãos anómalos, semi-europeus, e são estas primeiras “autorizações” que marcam a
maneira como a Bulgária surge no mapa político. Tal tradição acomoda, por isso, um
paradoxo de messianismo eslavo, mas também de distância oriental que marca, ainda,
outro canal de ambivalência: o do discurso nacionalista que é, paradoxalmente,
turcófilo, e que nasce das próprias contradições finais do Império (assim como
aconteceu com o discurso laico da Turquia nacionalista moderna). Estes
“modernizadores” (anti-russos e pró-europeus) começaram por promover o
“desenvolvimento” dentro do quadro administrativo do Império Otomano e dentro do
52
quadro intelectual do ocidente (para eles, a nação teria que vir moral e materialmente
daí). É curioso que tal polarização (oriente e ocidente) inclua a Rússia e não os
otomanos que entretanto se “afrancesavam”107. A turcofilia defendeu a nacionalidade
pelo acesso à Europa mediante canais otomanos e foi assim que chegou à defesa da
independência da igreja búlgara (por oposição à grega) e da educação moderna. A
historiografia nacionalista oculta estrategicamente estes turcófilos, mas, nos discursos
da época, tanto eles como os reformadores otomanos defendiam o progresso, a ciência
e a educação positivas. O que acontece é que este contacto com o ocidente se dá a
meio da desintegração entrópica imperial e é aí que este tipo de modernidade dá o
braço ao nacionalismo.
Ora, um dos pontos comuns entre discursos nacionalistas – salienta Boyan Manchev –
é que todos reconverteram figuras mitológicas da antiguidade em linguagem
moderna108. Para o projeto búlgaro isto era complicado – em paralelo com a análise de
Mishkova - pela proximidade grega: rejeitar o mimetismo, levaria à assimilação;
rejeitar a antiguidade retiraria fundamento ontológico à nação, dada a necessidade de
“arquétipos”. Manchev fala, por isso, também em duas Grécias, mas de modo
diferente: a da medida, da beleza, da razão, da polis e a dos mistérios, das orgias, dos
rituais, dos sacrifícios. Usando linguagem nietzscheana, digamos que Apolo foi
reivindicado pelo classicismo e pelo iluminismo e Dionísio pelo romantismo. Um
entra no imaginário por via francesa e outro por via alemã. Ora, como o nacionalismo
búlgaro não dispunha de arquétipo, buscou-o numa versão idílica (em contraste com o
romantismo trágico, mais associado inicialmente a um certo “bizantinismo”) de
libertação dos modelos gregos de assimilação e associada a uma interpretação
luminosa da “idade do ouro”. Grande parte do projeto búlgaro do “renascimento”
assentou na ficção do “paraíso perdido” de uma beatitude natural e pré-política. O
“bom selvagem” é um dispositivo de compensação, pois neutraliza o estigma do
“subdesenvolvimento” em oposição ao “desenvolvimento corrupto” grego. Como o
projeto grego era messiânico (aliás, todas as “grandes” nações balcânicas têm a
pretensão discursiva de que o “outro” reconheça dentro dele que é “nosso” nos termos
do “nosso” discurso109) – helenizar os “selvagens” cristãos submetidos ao império
107
Mishkova (2007: 20).
Boyan Manchev (2007: 3) “Nation Between Tragedy and Idyll”, How to Think About the Balkans:
Culture, Region, Identity (Sofia: Sofia Academic Nexus, Centre for Advanced Study)
http://www.cas.bg (consulta: 22/09/2011).
109
Se esta questão está presente, por exemplo, na relação entre búlgaros e macedónios, a sua extensão
peninsular está presente na seguinte afirmação de Stephen Schwartz:
108
53
“asiático” e retirá-los das suas vidas de “idílio animal” – o discurso coesivo búlgaro
não competiu com o projeto grego nos termos deste e instalou um regime de verdade
baseado no que ele rejeitava, ou seja, o “bom selvagem”. Esse “bom selvagem”
transformou-se, no imaginário búlgaro, no camponês ingénuo, primitivo e moralmente
preservado. Este mito, criado no renascimento por filólogos, poetas, filósofos e
escritores, formou uma imagem virginal de duplo sentido 110. Ao ser estruturalmente
inevitável por pressões externas, levou a uma forma de animalismo pré-político
representativo, através de uma figura paradoxal que vive na fronteira com o mundo
animal. O herói da resistência contra a cultura corrupta mantém, como tal, uma
relação com o espaço bestial e é por isso que o imaginário oscila entre o camponês e o
“haidouk”. Este sofre uma transformação trágico-sacrificial a partir do mito pastoral
que ganha outra aura. O ponto de partida é o lado animal, excluído da representação
política, mas trazido para dentro dela por indecidibilidade entre o trágico e o idílico, o
animalesco e o representativo. Temos assim uma nostalgia fundadora e autóctone do
paganismo transformado em excesso, poder e materialidade: arquétipo do retorno em
que o sacrifício é recriação da matéria original do sublime, do idílico, um pastoral
trágico e semi-panteísta da paisagem, jogo das transcendências imanentes do
camponês e do “haidouk”.
Nesta nossa digressão pelos discursos formadores do modelo nacional de autointerpretação identitária na Bulgária, pretendemos evidenciar os tropismos pelos quais
se ergue todo um discurso que vimos designando como monumental e apócrifo. Todas
as sociedades precisam de mitos de coesão; mas nem todas elas afundam na esfera do
indiscutível a sua imposição como convenções. É evidente que, quando falamos em
indiscutibilidade, suscitamos aqui a questão de a nação, com esta carga monumental e
apócrifa, não fazer parte do domínio de discussão do discurso político pelo qual se
definem as identidades111. É evidente que se poderia fazer um paralelo fácil com todos
“(...) this conception has played a ghastly role in the bloodletting that has marked Yugoslav history in
this century, the Serbs often demanding that Balkan Muslims acknowledge their “inner Serb” or die.”
Stephen Schwartz (2005: 248), Sarajevo Rose: A Balkan Jewish Notebook (London: SAQI Books).
110
Manchev (2007: 6).
111
Milla Mineva, num interessantíssimo trabalho sobre as dobras discursivas do discurso publicitário
na Bulgária (reclames de cerveja, por exemplo) chama a atenção para o modo como até a publicidade,
que é um produto do individualismo competitivo, se reforma sob a forma de discurso de coesão
coletiva na Bulgária na qual, como é evidente, o nacional não se discute, uma vez que ele é tomado
como adquirido, uma espécie de significante zero. A despolitização do nacionalismo é a forma subreptícia mais insidiosa de o manter como dogma que esconde a sua convenção. O reportório histórico
surge, por isso, como espaço neutro que invade as vidas privadas através dos media e ganha como tal a
forma de um consenso rígido, monolítico e não declarado, que todo o discurso político concorda em
preservar como “facto”.
54
os nacionalismos e a tentação de mencionar aqui a “não discussão” salazarista (Deus,
Pátria e Família) é forte. Contudo, isso suporia uma análise das fortes condicionantes
locais do regime totalitário português que não cabe aqui.
Evidenciar a auto-colonização, mostrar a fabricação de um discurso que serve para
lidar com a treva “otomana” de modo cómodo, salientar os mútuos exclusivismos das
construções discursivas balcânicas ou apresentar reinterpretações mitológicas da
origem tem o evidente propósito de enriquecer – na senda de Foucault – a ideia de que
a discursividade constitui um saber e um poder que implicam enunciações próprias
dos objetos, com consequências formativas nos sujeitos: isto é paralelo à
industrialização moderna, é próprio da invenção de tradições e não seria possível sem
a partilha tecnológica de um reportório textual que induz à imaginação coletiva. É por
isso que Geary, Gellner, Hobsbawm e Anderson ajudam a cimentar a veia arqueogenealógica, confirmada aqui.
É sintomático mesmo que as críticas a este tipo de interpretação acabem por admiti-la
e Ivelin Sardamov é um caso curioso 112. Ao criticar visões instrumentalistas e
construtivistas da história, em nome de um “primordialismo dos participantes”, acha
que não levam em conta o poder da memória nas culturas folclóricas (no caso do
instrumentalismo, embora admita que as elites manipularam isso) e a predisposição
humana para a violência junto com o espírito crítico dos indivíduos perante as ficções
(no caso do construtivismo, embora reconheça que a propaganda reconverteu
imaginários em linguagens novas). Ou seja, embora ele ache que o instrumentalismo
exagera quanto à manipulação das elites e o construtivismo quanto à estruturação
sócio-discursiva das identidades, reconhece que as elites e os discursos sociais têm
uma estruturação epistémica importante no discurso nacionalista. Sendo que as
sociedades balcânicas possuíam estruturas de parentesco tradicionais negociadas no
quadro de impérios, o nacionalismo integrou-se-lhes como consciência regressiva
usando a visão do “outro” como ameaça113. Como os veículos de coesão narrativa
anteriores às literaturas se encerravam na cultura popular, o discurso político usou
esse imaginário por um processo de reconstrução da glória antiga e as instituições
modernas traduziram esses tradicionalismos em linguagem etnocêntrica, reformando
Milla Mineva (2008) “Made in Bulgaria: The National as Advertising Repertoire”, Eurozine
http://www.eurozine.com (consulta: 22/09/2011).
112
Ivelin Sardamov (1999/2010), “Combattants de la Cause Nationale: Ethnicité, et Génocide Dans les
Balkans” Balkanologie Vol III, Nº 2, http://balkanologie.revues.org/index736.html (consulta:
22/09/2011).
113
Sardamov (1999/2010).
55
as lendas na linguagem secularizada dos currículos educativos. Essa fusão de
mitologias e narrativas orais permitiu a reivindicação de “grandes” territórios sob a
forma conflitual. É por isso que, ainda hoje, as minorias (dentro de territórios
supostamente “mono” - étnicos e culturais) são transformadas em cidadãos de
segunda classe, pois a memória serve tanto para justificar o sofrimento como a
violência114.
A retórica nacional é assim uma máquina de reconversão mitológica e foram os
intelectuais que converteram narrativas orais (muitas vezes comuns115) em linguagens
de exclusão, utilizando – na fixação do discurso escolar 116 – imaginários que tinham
um sentido de coesão ligado a outros tipos de vínculos e manipulando superstições
por processos de imortalização nacional do coletivo étnico monolítico, com
consequências dogmáticas, reprodutivas e arrasadoras. A forma como tudo isto se
repercute de modo positivo e recapitulado em programas de ensino de “civilização” e
literatura estrangeiras, a nível localmente recapitulado, é o que veremos no capítulo
seguinte, assim como a possibilidade de discussão desses mesmos modelos por
discursos que são silenciados a nível bibliográfico.
114
“Terror by remembering is a parallel process to terror by forgetting. Both processes have the
function of building a new state, a new truth. Terror by remembering is a strategy by which the
continuity (…) of national identity is established, terror by forgetting is a strategy whereby (…)
identity and any remote prospect of its being re-established is wiped out.
Dubravka Ugresic (1998: 80), The Culture of Lies (London: Phoenix House).
115
A documentarista búlgara Adélia Peeva (“Who’s is This Song?”) ridicularizou de forma
cinematográfica a mitologia exclusivista dos nacionalismos ao fazer uma viagem pela península em
torno de uma canção que é de “todos”, mas que cada um reivindica como “sua”. Misha Glenny mostra
que, nos intervalos das batalhas do fim da Jugoslávia, soldados de ambos os lados da frente cantavam
ao desafio as mesmas canções populares. A propósito de vários exemplos deste tipo de cumplicidade
bélica, Glenny diz o seguinte:
“This camaraderie between the opposing merchants of slaughter was one of the most horrifying
phenomena I observed during the war.”
Glenny (1996: 28).
116
O abismo subalterno que separa o discurso escrito do oral na mecânica dos comportamentos
escolarizados pode ter uma relação direta com essa inversão do valor da fala, tornando-a inferior e
desvalorizada através dos mecanismos modernos de afirmação da fixação no texto.
56
Capítulo 3 - Recapitulação, Monumentalidade e Idílio no Currículo Búlgaro de
História, Cultura e Literatura Portuguesas: a Necessidade da Crítica às Visões
Nacionalistas e de Excesso Mítico nos Olhares Sobre a Realidade Portuguesa
Neste capítulo analisaremos a maneira como os mecanismos culturais de filogenia
inerentes aos processos de construção da identidade, da nacionalidade e da cultura
búlgaras, presentes na instituição universitária, se recapitulam – como mecanismos
inerentes à filogenia do aluno e da subjetivação discursiva curricular enquanto
sujeitos de um processo de acomodação objetiva – no acesso à história, cultura e
literatura estrangeiras, como processos de apropriação cultural emergentes dentro de
uma ontogenia relativa ao discurso com o qual se toma contacto. Nesse processo, não
só a cultura portuguesa é vista como algo estável e perene, como qualquer voz que
seja dissonante em relação a isso não aparece no discurso oficializado
programaticamente. Para tal, procederemos a uma análise inicial do que se entende
aqui por “recapitulação”, desmontando o cariz positivista que a noção teve no
contexto histórico do seu surgimento entre as ciências da vida, passaremos à sua visão
como metáfora heurística e depois analisaremos os programas curriculares de história
da civilização portuguesa e de literatura portuguesa que, segundo a nossa perspetiva,
recapitulam (por acomodação do exógeno) o modo como na Bulgária se dá a
interpretação entrelaçada da história, da historiografia e da literatura nacionais.
57
Passaremos em seguida a uma leitura lateral que seleciona, na intelectualidade
portuguesa que se debruçou sobre este tema, exemplos que mostram que, mesmo em
Portugal, espaço com fronteiras estáveis há bastantes séculos, os conceitos de
nacionalidade e primórdio não são tomados como ideias absolutas, podendo ser
discutidos enquanto tal e atribuídos a contextos próprios de exaltação.
Apresentaremos, sempre que possível e em nota, extratos de afirmações dos alunos
demonstrativas dos valores implícitos numa mecânica recapitulada, onde se dá o
império da repetição sobre a crítica e do escrito sobre o oral.
A) Recapitulação da Monumentalidade Apócrifa: Acomodação da Filogenia
Arquetípica Nacionalista à Ontogenia Curricular da “Civilização” e da “Literatura”
Portuguesas
Do ponto de vista heurístico que nos interessa aqui quanto à recapitulação, entraremos
em diálogo com Richard Carlson117, salvaguardando o valor metafórico que o conceito
tem para nós. De um ponto de vista exclusivamente relacionado com as ciências da
vida, a teoria da recapitulação perdeu o seu valor e é cada vez mais vista como uma
teoria de sentido “integral” que, ao projetar na complexidade do mundo uma visão
teleológica – herdeira de um discurso de poder de cariz positivista e progressista 118 surge como justificadora de mecanismos interpretativos da vida que legitimam
espaços desiguais de afirmação social, não sendo estes mais do que extrapolações
unidimensionais. Acreditamos que, do ponto de vista sócio-cultural, a inconsciência
disso resulta em processos semelhantes de subalternização fruto de um aristocratismo
discutível. Na realidade, tal interpretação da teoria da recapitulação interessa-nos
como indício (do ponto de vista da análise discursiva) que é metafórico para questões
de reincidência, repetição, reprodução, “mimésis” ou acomodação arquetípica.
Algures entre estes desdobramentos imagéticos, elencados comparativamente, está
aquilo que queremos ver com ela.
De certa forma, a recapitulação é uma tentação metafísica de interpretação (muitas
vezes por analogias finalistas) do real enquanto modelo coesivo e total. Segundo
Carlson, este tipo de monismo é traçado genealogicamente por Foucault como sendo
117
Richard Carlson (2011), “Integral Ideology: An Ideological Genealogy of Integral Theory and
Practice” http://www.integralworld.net/carlson.html (consulta: Outubro de 2011).
118
O que torna possível encontrá-la como sinal ou sintoma, para a desmascarar enquanto verdade.
58
originário da antiguidade clássica e medieval, por exemplo em Gregório de Nissa. O
pensamento integral, hierárquico e gradual é o antecedente epistémico das narrativas
sequenciais do universo, onde a recapitulação se integra. E, de facto, isso é
significativo se tivermos em conta que o que se trata de mostrar é a transposição
acrítica de um modelo linear de uma cultura para outra. Quando no século XIX (sendo
significativo que seja aí) Ernst Haeckel desenvolveu a recapitulação, é num contexto
teleológico, positivista e linear que o faz. Desta forma, é natural que quando esse
modelo não é contestado, em inserções onde os processos são aceites como “factos”
do mundo, ele seja extrapolado de modo mimético de um bloco cultural para outro,
sem qualquer tipo de visão que aceite descontinuidades, incertezas ou complexidades.
É num contexto parecido que Haeckel vê a ontogenia dos seres vivos (o seu processo
de crescimento) como recapitulando a filogenia das espécies (a linha evolutiva
destas).
Para nós, do ponto de vista discursivo, a ontogenia curricular, pela qual se normaliza
o perfil do aluno no espaço da história, da “civilização” (o termo vulgar) e da
literatura portuguesas, recapitula a filogenia clássica do ensino búlgaro sobre a qual se
falou no capítulo anterior. Há, assim, semelhanças entre o que Haeckel via nos seres
vivos (num “símile” repetido de positivismo e de romantismo, que se extremou no
conceito de “raça”) e o que entra de modo incontestado pelos processos curriculares
inerentes à norma discursiva do nacionalismo, isto porque a ânsia de se provar a
capacidade de pertença a uma cultura “superior” (europeia, portanto) não questiona o
próprio critério pelo qual a ideia de “superioridade” se gera enquanto espaço
epistémico, criando os fenómenos de “ambivalência”, “falta” e “auto-colonização” de
que já falámos. Contudo, o uso da recapitulação para promover programas de
subalternização escapa ao âmbito deste trabalho. Apesar disso, o que a recapitulação
ajuda a desmascarar é o facto de que o seu uso (não intencional e – estamos em crer –
inconsciente) enquanto “facto” não demonstra o seu espaço de convenção ou modelo
que não são únicos. Desta forma, a conceção de saber e poder que a reincidência
reprodutora ajuda a encontrar é um processo elitista que chega, inclusivamente, à
organização das bibliotecas. Na realidade, naquelas que conhecemos no contexto em
que trabalhamos, os “clássicos” (da literatura portuguesa, entenda-se, seguidos pelas
histórias da literatura, pelos dicionários da mesma e imediatamente ao lado de alguns
volumes da história de Portugal, da história da arte portuguesa e da história geral da
civilização e dos descobrimentos) ocupam um lugar “central” (bem mais central que
59
os estudos linguísticos, as gramáticas e os textos de aprendizagem da língua) e, por
outro lado, os textos brasileiros ocupam já um lugar periférico (onde se incluem obras
literárias, e histórias da literatura e da civilização), sendo que, para a “periferia” do
“arquivo”, são despojados os produtos literários africanos, por exemplo, aos quais é
dedicado um pequeno armário colocado na secção “inferior” de uma das “últimas”
estantes, ao fundo do “quadrilátero” que constitui pelo menos uma das bibliotecas.
Esta visão distributiva não é muito distante daquela que o darwinismo social possuía
em relação aos seres humanos, ou da que Hegel possuía em relação à história. Nesse
sentido há, como a visão foucauldiana do “fazer falar” anuncia, um quadro de
adestramento que vê o real dentro de um modelo discursivo onde se estabelece uma
dicotomia entre o “primitivo” “infantil” (que se pode desdobrar em figuras como o
“aluno”, a “África”) e o “avançado” “adulto” (por oposição, no “professor” ou na
“Europa”). Em ambos os casos, há uma “luz” – a da elite aristocrática – que irradiará
de um “centro” em direção à “treva” do “outro”, o “exótico”, digamos, seguindo a
etimologia. Tal conceção é compatível com a ideia de progresso positivo (do inferior
ao superior) e de idealismo romântico (a cultura como manifestação do espírito),
compactadas numa forma moderna, ordenada, direcional. Ainda: há um “arquétipo” –
a “escada” do saber – imitado na construção da ontogenia do aluno a partir do que se
assume acriticamente ser a filogenia da cultura “universal” da “civilização”
(reproduzindo-se um modelo europeu, próprio de um determinado momento histórico
e tornado perene, como dispositivo discursivo, por décadas de transmissão). Neste
contexto, a ideia progressista de uma “evolução” a partir da “superstição” para a
razão, combina-se com a ideia da “permanência primordial” do “espírito do povo”
que assiste, além do tempo, ao processo do seu auto-reconhecimento. Isso dar-se-á,
presume-se, nos dois extremos da Europa, no limite da Ibéria e nos confins dos
Balcãs, pela revisão dos mitos como absolutos, ou seja, como se as quedas, as
iluminações, os providencialismos, os messianismos, os despertares, as restaurações,
que são metáforas de coesão, fossem factos históricos com fraca necessidade de
exposição crítica ao estatuto de convenções hermenêuticas: é isso que se recapitula.
De certa forma, as estruturas construídas a partir do “centro” romântico e positivista
(como estratégias de normalização moderna) espalharam-se e a sua filtragem irradiada
recapitula-se como linguagem factual. São ferramentas pelas quais as culturas se
recapitularão (reinventando-se) como europeias, exatamente porque as suas histórias e
literaturas são lidas pelos utensílios intelectuais de um certo momento central.
60
Na realidade, a recapitulação (como facto e não como convenção ou metáfora) foi
uma tentação na cultura europeia e Freud, apesar da sua suspeita moderada em relação
à civilização (que ele achava, apesar de neurótica, um mal necessário contra
tendências destrutivas), assim como Jung (ambos citados por Carlson) adotaram-na,
ao ponto de este último achar que as crianças na infância recapitulariam estádios
“primitivos” da humanidade (do mesmo modo que o modelo positivista de
aprendizagem vê no aluno um balde vazio). Existe nisto um resquício cartesiano –
assente na estrutura universal da mente – lido como caminho para o superior, para a
civilização, para o centro, para a luz, tudo sem ambiguidades, sem espaços
intermédios.
Trata-se aqui de conceitos que, não tomados como convenções e sim como
adequações entre linguagem e real, enformam pressupostos que, não deixando de ter a
sua necessidade, não abrem espaço crítico para a sua visão enquanto discursos de
poder, nem abrem brechas para visões mais contextuais, segundo as quais espaços e
tempos diversos respondem por lógicas diversas. Assim (de acordo com o artigo
citado) se Stephen Jay Gould (ele que é biólogo) pode afirmar que a recapitulação
serviu para justificar intentos coloniais (o “primitivo”, o “fardo do homem branco”,
etc.), não nos parece descabido usá-la para referir que o seu uso acrítico serviu
também como “auto-colonização semi-periférica”, no sentido de que a afirmação
“somos europeus” esconde, na verdade, um desejo (“queremos ser europeus”): um
desejo eurocêntrico incorporado em mimetismos programáticos, estruturadores de
espaços, de arquivos e de todo um acervo monocromático sem dissonância, dado que
se trata de afirmar o indiscutível e de apanhar o “comboio” do tempo vetorial
sequencial, no sentido foucauldiano das séries e sua importância na modelação
subjetiva.
B) Monumentalidade Apócrifa Programática: Um Portugal Estereotipado e
Idealizado
É este essencialismo que encontramos nos programas de “história e cultura de
Portugal” (conhecido entre os alunos como “civilização”) e no programa de “literatura
portuguesa”, assinados, respetivamente, por Vera Kirkova e Yana Andreeva. Na nossa
perspetiva, trata-se de recapitular, em relação a Portugal, uma “monumentalidade” de
cariz solene e também “apócrifo”, na medida em que vista como única. Os tropismos
61
(positivistas, teleológicos, racionalistas e românticos) recapitulam-se num “espírito
português” que é a sua essência desde os primórdios, estendendo-se pela história e
pelos textos como auto-consumação reconciliada, em vários momentos, do povo
consigo mesmo através das expressões mais altas da sua cultura característica e da sua
história épica; não existe – pelo menos nos textos dos programas – qualquer
questionamento da adequação entre linguagem e facto, sendo este concebido como
cabendo no discurso, sem distância hermenêutica que o mostre como interpretação: a
“coisa” coincide com a “palavra”. São programas “canónicos”, no sentido tradicional
do termo, ou seja, “oficializam o que deve ser dito como essencial”. Além disso,
existe a afirmação inquestionável de um passado heroico, no qual assume primordial
importância a figura da missão civilizacional, com grande relevo histórico 119. Trata-se
também de um conjunto teleológico, até pelo tipo de linguagem, na qual se antevê a
longa marcha de Portugal desde os seus primórdios, passando pelo espalhamento do
espírito pelo mundo através das descobertas, pelos períodos de queda ou decadência,
como o filipino, e também de regeneração. Neste contexto, os Lusíadas têm um
estatuto fundacional, dado que existem como referência monumental testemunhada e
guardada na mitologia sebastianista. A essência portuguesa é ubíqua, extravasada
pelas descobertas para o “universal” e imemorial, que se foi enriquecendo com novos
contributos necessários à manutenção do espírito do povo como regeneração na linha
do tempo. Almeida Garrett, Alexandre Herculano (e também Teófilo Braga) surgem,
por isso, como incontornáveis na restauração do passado.
Quando o título do programa refere história e cultura “de Portugal” 120, fica-se com a
sensação estática de algo que não muda, devido à linearidade do tempo e à etnografia
do espaço cultural. Embora o programa não apresente objetivos ou metodologia de
desdobramento, diz, em “anotação” prévia, que se trata de familiarizar o aluno com o
“desenvolvimento de Portugal nos seus aspectos essenciais”. Desta forma, Portugal é
apresentado como uma entidade permanentemente nomeada como tal e que se
desenvolve, assume-se, sem dúvidas em relação ao seu auto-reconhecimento
identitário. A “cultura portuguesa”, um bloco cujas características estruturantes são
119
A propósito de processos comparativos, uma aluna teve o ensejo de – num trabalho sobre tradições
culturais – escrever o seguinte: “sei que Portugal é um país com tradições muito fortes, alimentadas
pelos séculos de história maravilhosa, pelos Descobrimentos, etc.. Na Bulgária não é assim. Penso que
muitas tradições búlgaras se perderam com a longa escravatura que sofremos. Outras perderam-se por
causa de algumas tendências estrangeiras, fruto da mistura cultural.”
120
Vera Kirkova (S/D), “História e Cultura de Portugal” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski,
Filologia Portuguesa, Programa de Estudos), em anexo: anexo 1.
62
vistas como adquiridas, espraia-se pela geografia, pela etnografia, pela história e pela
arte: ela é um conjunto que a linguagem nos apresenta sempre no singular (“a casa”,
“o vestuário”, “a cozinha”, “o fado”121) dotado de uma identidade fechada sobre si e
auto-referente. É evidente que não questionamos a necessidade de existir uma imagem
patrimonial: aliás, isso é fundamental para que processos de outra ordem a possam
desmontar, fazendo-a descer do pedestal factual. Contudo, esta espécie de “ontologia
de postal” (a ideia heideggeriana de ontologia ajuda aqui a ver estes fenómenos
ônticos em que essência e existência se conjugam num dispositivo discursivo
elaborado e estereotipado, como se a homogeneidade fosse a marca de um espaço
que, sabemo-lo, é feito de ambivalências e cruzamentos que complicam este tipo de
visões) carece de problematização e simplifica os “portugueses” a faixas enunciativas
de significação (sempre no sentido foucauldiano, claro) arregimentadas em torno do
ideal platónico do “típico”, pouco próprias a intersecções que, diríamos, terão sido
sempre marcantes e não só contemporâneas e que desaparecem silenciadas a partir de
um quadro presentificado, onde os mecanismos de um presente perpetuado
(sequencial, disciplinar, taxinómico, de um poder positivo inerente à genealogia das
ciências humanas do século XIX) surgem como estratégias de iluminação de um
passado e de um lugar, a partir de um espaço-tempo outro que o cristaliza numa
significação, talvez não sua, exatamente porque não o interroga nos seus termos.
Assim, o ponto 1 é dedicado à geografia (falamos de conteúdos: os programas
oficializados e disponíveis não apresentam, enquanto monumentos visíveis, os
objetivos), apresentada não como condicionante complexa para a formação da
entidade (à qual se dá o nome de “Portugal” mais tarde, diga-se, e que implicaria a
fixação de populações junto às faixas costeiras, distintas do estilo gregário encontrado
nos vestígios montanhosos, conforme mostram alguns exemplos elencados por José
Mattoso122), e sim como um dado acabado (“o mar”, o clima”, “a hidrografia”, “a
população”); isto é, algo que está como se tivesse sempre estado, olhando pelo
121
É curiosa a maneira como este entra no imaginário discente. Num trabalho sobre o fado, como
património da humanidade, uma aluna escreveu o seguinte: “eu não posso sentir o significado real do
fado e a razão é bastante óbvia: eu não sou portuguesa. Os portugueses percebem esta canção triste, que
é o seu destino e identidade nacional. O fado expressa a alma melancólica do português e aplica uma
diferença entre a identidade portuguesa e a identidade apaixonada dos espanhóis ou a identidade
sofisticada dos franceses, por exemplo. O fado está cheio de saudade, uma noção sem equivalência
noutras línguas e noutros lugares do mundo. A saudade é sempre portuguesa, uma mentalidade
nacional única, presente nas melodias cantadas pelos fadistas.”
122
José Mattoso, Suzanne Daveau, Duarte Belo (2010: 13/14), Portugal, o Sabor da Terra (Rio Tinto:
Temas e Debates).
63
presente (os rios, o relevo, a divisão administrativa) questões tomadas como imutáveis
e não processuais, dado a relação intensa entre os seres humanos, a terra, a história e a
construção – constante – de opções políticas relativas às relações que essas coisas
estabelecem entre si, o processo de povoamento e a artificialidade (técnica) colocada
sobre o real em bruto, digamos. Há, curiosamente, na parte dedicada à geografia, uma
área dedicada à “toponímia” da “capital” – de um reino, de um estado e, diríamos,
mais tarde, de uma nação – Lisboa, sabendo-se que houve outras e que os processos
de construção de centros administrativos não obedeciam às condicionantes discursivas
que passam a ter, na melhor das hipóteses, a partir do período pombalino. Nesta
integra-se uma visão dos “monumentos” e das “praças”, visão patrimonial dada, que
não menciona criticamente o regime simbólico (celebrador, memorial, seletivo),
icónico (representação centralizada de poder) e ritual (criadora de uma relação
totémica, privilegiada, seletiva e oficializada pelo poder em relação ao tempo) de tais
espaços, apresentados como ilusões de perenidade primordial, isto é, essências
empedernidas de um espírito que, ao ignorarmos toda a ambiguidade mestiça da sua
construção, é visto como totalização teleológica de uma constância.
O ponto 2 trata do “povo” e da sua “origem”, conceitos que remetem para um cariz
herderiano. Embora a apresentação seja lacónica, dado que, em linearidade, se salta
logo para a “emigração” e para o “aumento populacional” posterior a 1974, é preciso
ter em conta a questão foucauldiana das “origens” e da obsessão com estas, ou seja, o
princípio metafísico sob o qual se descobre a busca factual de verdades últimas (e
primeiras) que, na maior parte dos casos se reveste de leituras mitológicas e
fundacionais (dadas a entrever nos tópicos imaginários populares e românticos do
“verde Minho”, do “indómito Viriato”, do “solo sagrado de Aljubarrota”, etc.). Seguese, na mesma linha, uma incursão pela “etnografia” (em que o programa se aproxima
das leituras de museu que encontramos em reinvenções do passado presentes nas
“casas tradicionais”, em “aldeias museu” ou em “parques temáticos”123) na qual se
fala sempre no singular. O “português”, portanto, é suposto habitar um tipo de casa,
vestir-se de determinada forma, comer tal tipo de cozinha e, obviamente, celebrar
certo tipo de eventos e diversões (a “tourada” também aparece, insinuando o lado viril
e marialva que, como veremos, se recapitula aqui em termos próximos ao arquivo
discursivo do Estado Novo, associado também aos brandos costumes).
123
À laia de curiosidade, digamos que a Bulgária também tem o seu “Portugal dos Pequeninos”:
chama-se “Etar” e fica muito perto de Veliko Târnovo.
64
O ponto 3 é dedicado à “evolução” (significativamente) histórica, na qual avulta,
como primeiro aspeto (elucidativo do ponto de vista discursivo), a “origem” “préhistórica” do povo e – muito significativamente – a “génese da nacionalidade”
associada à “reconquista” (é, aliás, de mencionar, o quase total esquecimento a que o
programa vota a presença muçulmana na península: fonte bastante forte de
ambiguidades culturais e temporais daquilo a que se convencionou chamar
“Portugal”, presença óbvia nos hábitos, costumes, paisagens e toponímia do Sul, os
árabes são completamente (ou quase) ignorados e brevemente mencionados como
“chegada dos muçulmanos” – definidos pela religião – usando-se a reconquista como
historiografia oficial do nosso “tempo europeu”, como o Salazarismo bem soube
perpetuar). Assim, pela associação “genética” (“génese”) da nacionalidade à
reconquista, Portugal como “nação” surge, desde logo, ligado a um vínculo religioso
e, por isso, o período medieval é visto – muito a propósito e linearmente – como
sendo de uma “sociedade portuguesa” de pleno direito. No seu contexto – a presença
romântica e bucólica dispensa apresentações com critério, aqui, de integração
historiográfica – os “amores” de Pedro e Inês são vistos como “drama histórico” que
remete para uma incursão do texto da tragédia de António Ferreira (escrita no século
XVI e recuperada pela hermenêutica filológica do século XIX) como retórica
historiográfica “ilustradora” do passado a partir de fora da sua referência textual.
O último aspeto a salientar aqui é a leitura posterior à “expansão” a partir da
linguagem usada. Sequenciam-se os conceitos de “evolução” e “exploração”,
seguidos depois da ideia de “desastre”, associado não a condicionantes geoestratégias,
mas ao “sebastianismo”, e de “decadência”, ligada à “ocupação espanhola”.
Apresentam-se depois a “restauração”, numa linearidade clássica, as “reformas”
pombalinas e as “revoluções” (todas tidas como tal: 1820, 1910 e 1974). Fala-se da
“resistência” à “ditadura” e da “integração europeia” como reconciliação final com o
tempo central.
O ponto 4 é dedicado à arte e nela nos apercebemos que o “românico” e o “gótico” já
são vistos como arte portuguesa integrante da “nação” nos circuitos europeus de
referência estética. É evidente que tal apresentação não deixa de ter o valor de
estabelecer um código de ligação “factual” (e, nesse sentido, contestável) no modo
como o saber vai ser integrado no que os alunos já trazem, enquanto bagagem
monumental, da sua formação anterior: é o horizonte de expectativas que faz com que
65
não se crie um estranhamento epistémico avesso ao desejo de continuidade 124.
Contudo, é contestável o dispositivo denotativo apresentado e é óbvio que, tendo em
conta um questionamento narrativo dos pendores racionalistas, teleológicos,
positivistas e românticos, não pode deixar de ser notado o regime de verdade única e
hegemónica aqui inscrito.
Ainda na arte: a seguir à apresentação dos séculos XVIII e XIX, há um enigmático
último ponto dedicado às “artes menores”: ficamos sem saber quais são, por
contraponto às “maiores” com as quais se compararão. A bibliografia indica também
aspetos interessantes, sendo o mais significativo o que se prende com o facto de a
única história de Portugal apresentada ser a de José Hermano Saraiva, edição de 1991.
Tal referência é não só marcante em termos ideológicos, como o programa não
apresenta data e, continuando em vigor, isso dá-lhe um estatuto de perenidade
atemporal. Na geografia indica-se Orlando Ribeiro (incontornável) e há ainda uma
“história geral da civilização” de 1978 (A. Vasco Rodrigues).
Passemos ao programa de “literatura portuguesa”125, dividido em quatro partes, e que
deveria ter o título de “história da literatura portuguesa”. Não se indicando o ano,
percebe-se pela estrutura curricular presente nos horários da licenciatura em filologia
portuguesa (inserida na secção de estudos portugueses e no departamento de estudos
ibero-americanos) que o programa de “história e cultura” é lecionado no primeiro
ano126 e que o programa de “literatura” corresponde aos quatro semestres do segundo
e terceiro anos. Extrapolando dos discursos comuns de corredor (não o podemos
provar), o programa não ficará teleologicamente completo por falta de tempo: o
“modernismo” não é dado, o que seria útil do ponto de vista da própria crítica à
estrutura epistémica. Assim, há uma organização linear da temporalidade histórica em
que o espírito literário “português” se manifesta, desdobrando-se vetorialmente como
essência127. Não havendo também objetivos ou metodologia, a “anotação” mostra que
124
O contrário também é plausível e, para já, cumpre perguntar: será que os alunos não têm desejo de
mudança?
125
Yana Andreeva (S/D), “Literatura Portuguesa” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski,
Filologia Portuguesa, Programa de Estudos), em anexo: anexo 2, a), b), c) e d).
126
Os alunos do primeiro ano são submetidos a um curso intensivo de língua no mês que antecede o
início das aulas e todo o currículo do primeiro ano compreende este vetor, razão pela qual será
porventura possível inserir a “civilização” aí.
127
É elucidativa a este respeito uma “antologia” da literatura portuguesa, da autoria de Yana Andreeva,
existente na biblioteca de estudos portugueses da Universidade de Sófia. Na nota introdutória, diz-se
que a escolha se prende com “textos exemplificativos de determinadas estéticas literárias” que
contribuem para a “explicitação do fundo cultural”, “considerando o carácter contínuo do processo
literário” e tendo, por isso, em conta o “princípio cronológico na ordem de apresentação de autores e
obras, evitando o agrupamento em tendências, escolas ou estilos literários”. Por isso, a ordenação
66
pretende “acompanhar” o “desenvolvimento da literatura portuguesa” desde as suas
“origens” (que são situadas na poesia galego-portuguesa). A primeira parte vai até à
segunda metade do século XVI e depreendemos que tal vasta temporalidade é já a de
uma literatura portuguesa representativa. Na anotação da segunda parte fala-se em
“principais tendências” da literatura portuguesa ao longo dos “séculos”, na terceira em
“escritores mais relevantes” (com acento óbvio no autor) e na última em “períodos”
(acento no cânone historiográfico).
Quanto aos conteúdos, a primeira parte remete para a época medieval e para o período
renascentista. Da poesia “galego-portuguesa”, passamos à “novela” de cavalaria, à
“historiografia linhagística”, à prosa “doutrinal” da corte, à “crónica” (Fernão Lopes),
à poesia “palaciana” (Garcia de Resende) e à “tradição dramática” (com relevo para
Gil Vicente). No período renascentista há uma breve alusão ao “contexto históricocultural” e estético, falando-se depois da “poesia” (Sá de Miranda e António Ferreira),
da “novelística” (Bernardim Ribeiro), da “historiografia” (João de Barros), da
“literatura de viagens” (Fernão Mendes Pinto), do “teatro clássico” (a “Castro” de
António Ferreira, que imortalizou o amor de Pedro e Inês, contemplado
simbolicamente no programa de história, que se centra não em contextos fatoriais,
mas no culto personalista da heroicidade lendária), para culminar na incontornável
“épica” mitológica camoniana, através do texto fundacional dos Lusíadas, cuja
abordagem em aula é o que mais nos intriga, assim como na história a temática das
“descobertas”128.
A segunda parte do programa é também periodizada (maneirismo, barroco e
neoclassicismo) e aí se incluem os autores (Camões, Vieira e Bocage, este último
apresentado como “pré-romântico” e Camões pela “lírica”). A terceira parte segue o
mesmo processo (romantismo, realismo e naturalismo), incluindo aí os autores
“considera a data de nascimento dos autores ou a data da sua mais importante produção”. Pretende-se
“uma visão orgânica da Literatura Portuguesa no seu movimento evolutivo, facultando ao leitor a
apreciação estética da tradição literária”:
Yana Andreeva (selecção, organização e notas biobibliográficas) (S/D: 5/6) Antologia da Literatura
Portuguesa: Séculos XIII-XVIII (Sófia: Editora Universitária São Clemente de Ókhrida).
128
Numa outra antologia, também existente na biblioteca e muito consultada pelos alunos, existe,
como introdução ao texto dos “Lusíadas” um curioso extrato de José Victor Adragão em que nos surge
o “homem português” como ligado à “água” enquanto “espaço de sonho”. “À beira-mar”, a “água” era
“convite” e até as “donzelas”, “ainda a nossa língua era uma criança”, “escolhiam o mar como
confidente”. Por isso, o português é um homem do “mar”, o que nos distingue dos “irmãos ibéricos” e
nos levou a “antecipar” a “aventura” da “loucura de caminhar sobre as ondas”. Esse “desvario” de
“jovens ousados”, “rotas desejadas por comerciantes empreendedores” e “searas de evangelização para
missionários ardentes”, era um “apelo que vinha do fundo”, de “conquistar o mar” e Camões, “de cujo
patriotismo ninguém pode duvidar”, trata o mar como uma “doação”.
Antónia Péeva (2002: 202) Literatura Portuguesa (Sófia: Pet Plus).
67
(Herculano, Garrett, Soares de Passos e Antero, por um lado, e, entre os realistas e
naturalistas, Guerra Junqueiro, Cesário e Eça). Na última parte também se remete para
os autores “mais significativos” do cânone, indo de Nobre e Pessanha até Sá-Carneiro
Pessoa e Torga, onde o programa termina129.
O programa indica, como constantes bibliográficas, a “história da literatura
portuguesa” em versão coletiva das publicações “Alfa” (que está na biblioteca);
contudo, as indicações que os alunos fotocopiam mais frequentemente são as da
“história da literatura portuguesa” de Óscar Lopes e do “dicionário de literatura” de
Jacinto do Prado Coelho (repetidos nas várias partes do programa, assim como
curiosamente, e remetendo para o século XIX, a “história da literatura” de Teófilo
Braga, também consultável na biblioteca). Na quarta parte, acrescentam-se 4 obras de
Álvaro Manuel Machado (um dicionário, outra sobre o romantismo, outra sobre a
“geração de 70” e ainda uma comparativa, sobre o romantismo português, do ponto de
vista da “tipologia”). Nesta parte, algumas referências mudam e, por isso, temos três
obras de José Carlos Seabra Pereira (sobre o decadentismo, o simbolismo, o “Orpheu”
e o modernismo) e uma de Carlos Reis sobre literatura moderna e contemporânea.
Contudo, da vasta bibliografia existente sobre Pessoa (inclusive na biblioteca, onde se
contam, entre outros, José Gil e Eduardo Lourenço) apenas se apresenta um texto de
António Quadros, cuja visão do poeta remete para uma certa heroicidade mística
nacional130, dada a sua ligação ao quadro da “filosofia portuguesa” e a nomes como
Dalila Pereira da Costa.
A informação sobre a avaliação é escassa. No programa habitualmente conhecido
como de “civilização”, ela é apresentada como atribuindo 20% à avaliação contínua e
80 % ao exame (a contínua implica a “participação nos seminários”). A “literatura”
divide e dá 50% para cada lado, mencionando que a contínua supõe “trabalhos
escritos, participação em seminários e provas presenciais”. Sabemos da existência de
129
O programa é silencioso quanto ao neorrealismo: não fala de Carlos de Oliveira, nem de Alves
Redol, nem de Fernando Namora nem de Manuel da Fonseca. Também é omisso quanto ao
surrealismo: não há Alexandre O’Neill nem Mário Cesariny (ambas as linhas numa visão
convencional).
130
Uma coisa que fascina o imaginário coletivo voltado para a Europa. Num trabalho em que escolheu
falar sobre a “perfeição” de certas sociedades (um debate que se levantou numa aula), uma aluna
escreveu este sintomático parágrafo: “nós, os búlgaros, sempre consideramos as outras sociedades
melhores do que nós. Os outros povos têm sempre mais qualidades, são mais inteligentes, capazes e
trabalhadores. Por exemplo, os alemães e os franceses tornaram-se num ideal de sociedades perfeitas,
com um padrão de vida bastante alto, até inatingível. (...) Nós aceitamos que estas sociedades são
perfeitas porque as comparamos com a situação má no nosso país. Consideramo-los melhores pela sua
economia fortíssima e pela sua grande história.”
68
tais provas pelos alunos (o nome que usam para elas é “controlo”) e, como não
sabemos o que implica a “participação em seminários”, referimos só que os trabalhos
escritos – normalmente deixados na biblioteca para serem recolhidos – que já
folheámos analisam sempre um “autor” (não um texto, um aspeto, uma nuance
estética, social, antropológica ou histórica) e aí se encontra sempre a mesma estrutura:
um resumo dos “dados biográficos”, uma anotação discorrida sobre as “obras” no
“período histórico” e os elementos fundamentais de definição das linhas mestras. As
bibliografias destes “resumos críticos” (assim se chamam) apontam sempre para os
mesmos nomes: Óscar Lopes, Jacinto do Prado Coelho e Teófilo Braga, apenas para
mencionar três. À data em que escrevemos131, não possuímos apontamentos de aulas
dos alunos nem entrevistas que, com ajuda, solicitámos (foram feitas em búlgaro por
um jornalista francês, nosso amigo e que domina a língua) e que teríamos curiosidade
em consultar, o que não foi possível, não só porque as pessoas são muito discretas no
facultar de informações, como porque o atraso na tradução das entrevistas não foi da
nossa responsabilidade: serão trabalhadas em outro momento de um projeto de
investigação sobre a “monumentalidade apócrifa” que – é nossa intenção – queremos
continuar.
Não nos queríamos alongar muito sobre o regime de verdade epistémica aqui
manifestado e achamos que este tipo de perspetivas pode ser mesmo necessário (não
custa dizer que a visão do “cânone ocidental” apresentada por Harold Bloom faz falta,
nem que seja para ser motivo de desconstrução da linearidade ou da ideia de que as
“letras” são um epifenómeno de gestação aristocrática da “luz” platónica), até porque
a organização de ideias periodizadas ajuda a formar o “lastro” básico da escrita
crítica.
A propósito, mencionemos aqui uma reflexão nossa elaborada em período anterior.
De facto, parece-nos mais fácil construir uma perspetiva crítica a partir de um magma
dogmático do que de outra forma; aceitamos isso enquanto política discursiva, dado
que a experiência da liberdade, como Foucault nos lembra, passa pelo reconhecimento
da coerção. Em determinada altura (texto que não está publicado e por isso não
identificaremos em nota), utilizámos para isso a metáfora da “casa” – que repetimos
resumidamente aqui – para comparar a nossa experiência docente na Bulgária e na
Austrália (um contexto sobre o qual não nos alongaremos). Estamos em crer que os
131
2/02/12: fizemos o pedido a alunos e ex-alunos. Quanto às entrevistas, que deveriam estar prontas a
12 de Abril de 2012, não as possuímos à data de revisão deste trabalho, ou seja, Julho de 2012.
69
alunos búlgaros têm uma “casa” solidamente construída, com ótimas paredes,
excelentes e sólidas divisões portas sóbrias e janelas discretas. É uma casa com
fundações resistentes, tendencialmente perenes, solenes, primordiais; mas é uma casa
sem “telhado”. Já os alunos australianos serão porventura possuidores de belos e
sedutores “telhados”, aliás “multicoloridos” e reflexo dos contributos “multiculturais”
para a elaboração “representativa” e gráfica das diferenças. Contudo, as casas não têm
paredes sólidas, fundações consistentes ou sistematicamente baseadas. O que
queremos dizer com isto é que a montagem do sistema normativo curricular de
adestramento discursivo na Bulgária favorece um processo educativo solidamente
“fundacional”, mas este não encoraja o espírito crítico, é reprodutor e assenta numa
leitura diretiva e autoritária de conteúdos. A montagem do sistema curricular na
Austrália, herdeira dos “area” e “cultural studies”, bem como do “affirmative action”
e do “minority rights” inerente ao que a vulgata de senso comum tem vindo a chamar
“politicamente correto”, é favorável ao exercício expressivo e crítico, mas muitas
vezes este exerce-se tendo em conta apenas o modelo da “performance” lúdica,
carecendo de substância no sentido em que falámos antes de “lastro”. A razão para
esta breve meditação está em deixar claro que não pretendemos menorizar o trabalho
dos programas apresentados, mas sim inserir uma visão lateral crítica que desmonte
convencionalismos tradicionais132. O que nos parece insidioso na forma como o
regime de verdade se apresenta enquanto discurso de poder é a máscara de
“pensamento único”. Em nenhum momento os programas questionam o modelo
primordial da história nacional e em nenhum momento se abrem brechas na ideia
desenvolvimentista do “génio” português. Literatura e história aparecem entrelaçadas
num arquivo factual e positivo, racional e essencialista, teleológico e linear, romântico
e populista.
C) Críticas ao “Destino Mítico” Português e aos Modelos Nacionalistas Herdados
do “Estado Novo”: Identidade, Nação, Cultura e Literatura como Questões e não
como Factos
132
Perpetuadores, de certa forma, do estigma da falta. Vejamos o que uma aluna escreveu sobre
história e identidade: “se realmente a pessoa é de um pais com uma grande história, ela se sente bem
em todos os lugares e tem respeito não só no seu próprio país mas nos outros países também. Esta
pessoa tem respeito por si própria e pelas outras pessoas. A sociedade, numa nação com grande
história, tem mais poder, as pessoas são mais credíveis e o desenvolvimento do país e da nação não
pára, independentemente da altura em que a sociedade vive.”
70
Ora, se é inegável a antiguidade do espaço territorial português, parece-nos todavia
que existem hoje muitas perspetivas que apontam para um questionamento da
ancestralidade da nação como “destino”, para a crítica à auto-configuração “mítica”
da história “nacional” e achamos que para voltar a encontrar perspetivas curriculares
deste género sobre Portugal e o seu génio descritos como únicos, insondáveis e letra
de verdade, temos que recuar ao regime discursivo salazarista, em relação ao qual
encontramos algumas preocupantes nuances de recapitulação na objetivação
epistémica dos alunos a nível histórico e literário, o que não é estranho, já que esses
processos de “nacionalização das massas” fazem da nação o espaço do indiscutível
que é familiar aos estudantes no ensino secundário búlgaro, conforme já se mostrou.
Daí que o “indiscutível” salazarista seja um paralelo ao nacionalismo em termos de
horizonte de expectativas normalizadoras da subjetividade.
Mesmo em Portugal a ideia de nação é complexa para muitos intelectuais. Vários
autores têm desmontado o nosso primordialismo como construção por vezes vista
como gradual, também atribuível ao nacionalismo romântico e transformada em
“cartilha” heroica pelo Estado Novo. Manuel Villaverde Cabral133 afirma que o
“resvalar” histórico para o essencialismo tem sido moderado pelos contributos da
antropologia e da sociologia, contexto no qual se deve discutir o “primado” da nação.
Revendo genealogias discursivas sobre o tema, Cabral avança que o primordialismo
cai sempre na contradição exclusivista, mostrando fraco potencial analítico ao mudar
de nação. O papel do estado como padronização discursiva é fundamental e em
Portugal há exemplos que mostram esse estatuto normativo estatal (e coercivo da
igreja) como anterior à nação. Daí que a primazia do estado seja mais sensata para
“explicar Portugal”, presente, por exemplo, em José Mattoso 134 que, sem
essencialismos e admitindo uma naturalização territorial estável, avança que, a haver
“portugueses antes de Portugal”, estariam confinados a uma estreita faixa do Norte
atlântico. A conquista de Lisboa é crucial para a formação do “estado”, para a
“centralização” e para a “expansão”. Para Cabral só é lícito começar a falar em
“identidade nacional” quando muito a partir de 1580, com a conjugação do discurso
dos Lusíadas com o domínio filipino: de facto, o século XIX vai codificar o
nacionalismo a partir da leitura garrettiana de Camões e essa identidade inicial é
133
Manuel Villaverde Cabral (2004), “Conteúdo e Relevância da Identidade Nacional Portuguesa”,
Semear: Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, Vol. 9 (Rio de Janeiro:
P.U.C.), pp. 55-74.
134
Cabral (2004: 60).
71
restrita a círculos letrados, dado que é elaborada a partir da perda da independência do
estado. A invocação de uma etno-genealogia imemorial é um “imaginário sectorial”
resistente, sendo mais marcante a multiplicidade de identidades (fé, família, lugar,
estatuto, profissão) vinculativas. O século XVIII é, aliás, palco de outro conflito que
permanecerá na reflexão identitária, ou seja, entre “castiços” (o discurso do Portugal
primevo) e “estrangeirados” (o desencanto com o “vício” dos portugueses).
Desta forma, a busca de uma “essência nacional” (linha que para Cabral vai do
romantismo ao Estado Novo) só pode levar a uma “crítica devastadora”, pois repete
os estereótipos – coniventes com o salazarismo – de Jorge Dias: o mar, os lusitanos, a
luta contra os mouros, a saudade, os brandos costumes, o povo ingovernável, etc..
Desta forma, “qualquer carácter nacional é vácuo”: o conteúdo da identidade
portuguesa é o de um “nacionalismo igual a todos” na reivindicação exclusiva e
remete, por isso, para um discurso “não autónomo” (recapitulado, se quisermos) da
identidade nacional, sendo a prova do vazio dessas identidades o facto de todas as
reivindicarem como exclusivas. Aliás, os inquéritos sociológicos remetem os
portugueses para espaços que raramente se identificam primeiro com o nacional.
Quando esse discurso não é ativado do exterior, salientam-se laços “quotidianos”, o
que mostra que a identidade nacional é propriedade das elites e a nacionalização das
populações está longe de estar completa (com contributos da instrução pública e do
sufrágio universal, sendo este recente em Portugal). O nacionalismo serve muito
menos para caracterizar Portugal do que a família ou o clientelismo e só a ativação
política cria efeitos reais, como mostram os espetáculos desportivos. Para Cabral,
“sendo indiscutível a relevância de algo tão inefável como a identidade nacional, esta
última é menos parte da solução (...) do que parte dos problemas que a Nação – na
realidade a Sociedade e o Estado – tem para resolver”135.
Numa posição semelhante, mas mais processual e menos enfática para com as elites
pela aceitação de pressupostos coletivos para um período anterior, José Manuel Sobral
atribui à elite romântica a definição de elementos da cultura nacional como
inquestionável, construtora de uma literatura e de uma história com signos sagrados e
providencialistas quanto ao “destino”, vendo esta elite a nação como produto da ação
política dos primeiros reis. Como a definição de “génese” é marcada por contextos
políticos, no século XIX não havia dúvidas quanto aos “primórdios” e, por isso, só na
atualidade vamos encontrar análises “sérias” – também com Mattoso, para quem o
135
Cabral (2004: 74).
72
estado é o “motor” construtivo, não havendo qualquer “primórdio” da consciência
nacional; só o clero (e não os nobres de carácter feudal) seria minoritariamente
coesivo. Mesmo o historiador Martim Albuquerque, segundo Sobral, vê a formação
como algo gradual, com as cruzadas (referente religioso), o conflito com Castela
(referente opositor), a transformação do estado em império (referente expansionista) e
a exaltação discursiva “lusíada” (referente mítico). Sobral salienta que Mattoso insiste
mesmo no facto de antes do século XIX não ser “presumível” a generalização de uma
consciência identitária, dado que é o estado que cria uma cultura nacionalista assente
na “escola”, em “rituais” e na “imprensa” 136. Mattoso desconfia, aliás, de
“antiguidades”
e
características
das
“perenidades”
elaborações
discursivas
de
nacionalistas,
uma
como
“essência
outros
nacional”,
historiadores
contemporâneos (Sobral fala de Luís Reis Torgal), dado que foi o Estado Novo quem
impôs este tipo de narrativa pelo controlo do ensino da história137.
Além do mais, a representação epistémica só pode referir o discurso das elites, não se
podendo generalizar para grupos que não sabem ler ou escrever, ou seja, a identidade
nacional depende de enunciados fixados em discursos e, se ainda no presente há um
hiato entre a “imagem histórica” dos escolarizados e a de outros portugueses, é
legítimo pensar que ele era maior antes da escolarização hegemónica138. Por isso, para
Mattoso o “momento” da nação (historiográfico, literário, artístico) data do primeiro
liberalismo. Contudo, é evidente que a identidade se “naturaliza” na vida
quotidiana139, através dos jornais, do boletim meteorológico, dos eventos desportivos.
136
José Manuel Sobral (2003: 1110) “A Formação das Nações e o Nacionalismo: Os Paradigmas
Explicativos e o Caso Português”, Análise Social, Vol. XXXVII (165) (Lisboa: I.C.S.U.L.), pp. 10931126.
137
Sobral (2003: 1110).
138
Sobral (2003: 1112).
139
Em outro artigo, Sobral fala do “nacionalismo banal” como algo que não pode surgir sem os
processos de socialização homogénea inaugurados pela modernidade, já que construir história é
construir um discurso de atribuição de sentido e é por isso que a narrativa histórica é decisiva no
discurso nacionalista. Há sempre nacionalismo quando se vê a nação como algo primordial a que se
pertence “naturalmente” e a “cor” dos “factos” muda sempre que estes são encarados por prismas
diversos. A existência de fronteiras explica, por isso, que a formação nacional tenha sido gradual.
Contudo, a consciência disso depende de um “nacionalização da sociedade” (Sobral, 1996: 29), ou seja,
uma “naturalização” do que é minoritário. Isso só acontece no contexto do discurso nacional do estado
moderno, mediante a simbólica da modernidade (em que as representações são como que uma religião
do passado com uma “aura de sagrado”). Como Portugal foi desde cedo um estado homogéneo, é a
revolução liberal que cria o “discurso historicista” da tradição procurada pela “imaginação” (Sobral,
1996: 31): nesse contexto, Garrett convoca uma ligação primordial entre rei e povo e Herculano
escreve uma história e um romance histórico com privilégio atribuído ao medievo. Por outro lado, a
transformação em império foi fundamental para a mitologia e apesar de a oposição ao exterior ser já
marcante em Fernão Lopes, serão a emergência do conceito moderno de fronteira e a glorificação dos
heróis durante a restauração o que vai deixar traços na historiografia letrada.
73
A questão é saber se é possível extrapolar para um passado coletivo enquanto
iconografia. É que a diferenciação face ao outro e a “construção social da fronteira”
dependem gradualmente da intervenção estatal, unificando o coletivo, a língua, a
burocracia e a centralização do poder. Esse estado (que, em termos foucauldianos,
institucionaliza, classifica e estrutura) levará à formação identitária a partir de uma
entidade delimitada e é possível imaginar que as crises dinásticas, a dominação
filipina e o sebastianismo (por exemplo) tenham criado laços de solidariedade
independentista gradual. São, contudo, sentimentos de ordem prática e não de
explicitação discursiva, própria aos grupos capazes de articular esse género de
representação. A emergência de uma “entidade”, a elaboração gradual de mitos
estereotipados através de categorizações conflituais e a difusão de uma representação
da nação produzida pela minoria através da educação, da imprensa, da transação de
capitais (simbólicos e narrativos também) e de um discurso ritualizado 140, próprio à
modernidade do século XIX, foram os três momentos graduais pelos quais passou,
segundo Sobral, a construção da identidade nacional portuguesa.
Helena Carvalhão Buescu chama, aliás, a atenção para algumas destas questões do
ponto de vista da literatura 141. Para Buescu, o Camões de Garrett, como filtragem
normativa, insere-se na produção de um imaginário nacional identitário que é cultural
e ideológico, investido de um sentido que ultrapassa o literal. A morte de Camões,
próxima da perda da independência, identifica-se com a “morte” desta, escrevendo
Garrett sobre Camões dentro de uma agenda identitária romântica da “identidade
nacional”142. Daí que o programa seja o de levar a tomar partido pelo discurso do
“verdadeiro” Portugal, despertando a consciência “cristalizada” na figura do herói
como simbolismo que a nação envolve. Ligar o século XIX a Camões é uma forma de
imortalizar a “transmissão da herança” por uma remissão do texto à época
José Manuel Sobral (1996), “Nações e Nacionalismo: Algumas Teorias recentes Sobre a Sua Génese e
Persistência na Europa (Ocidental) e o Caso Português”, Inforgeo Nº 11 (Lisboa: Colibri), pp. 13-41.
140
Para Sobral, ainda em outro artigo, a homogeneidade da nação não funciona sem rituais
patrimoniais. O passado é “agregado ao presente” (Sobral, 1999: 71) por um vínculo “glorioso”. “Nada
há de especificamente português nisto” (Sobral, 1999: 72). O século XIX criou instrumentos de
popularização da identidade cujo “paradoxo” reside em que a afirmação da diferença é feita por
afinidades e os tópicos são os mesmos, ou seja, uma memória narrativa discursiva baseada em
artefactos, documentos, edifícios e locais solenes, cujo aspecto comemorativo e repetitivo é recriado na
literatura como mito, tornando-se coercivamente monumental na escolarização, mediante a produção
de um discurso inserido no espaço simbólico da “lembrança”.
José Manuel Sobral (1999), “Da Casa à Nação: Passado, Memória, Identidade”, Etnográfica, Vol III
(1) (Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Social), pp. 71-86.
141
Helena Carvalhão Buescu (1993), “De Camões a Camões: Onde a Perda Acaba e a Restauração
Começa”, Penélope: Fazer e Desfazer a História, Nº 9/10 (Lisboa: Cosmos), pp. 197-206.
142
Buescu (1993: 198).
74
“oitocentista”143 e nisso o projeto político é óbvio: como a “restauração” terá tido nos
“Lusíadas” o símbolo, trata-se de fazer o mesmo no século XIX, reavivando a nação
pela simbologia do herói romântico. O Camões de Garrett é assim investido em
“monumento”144 discursivo memorial. João Carlos Firmino Andrade de Carvalho
afirma também que, para a cultura portuguesa, a identidade histórica nasce com o
nacionalismo romântico145: o atual conceito de cultura legitimador da nacionalidade é
filho da obsessão das “origens”, encenada em nós por Herculano e Garrett que,
segundo Fernando Magalhães146, “democratizam” a identidade nacional. A produção
de discursos nacionais deve ser observada “à luz do romance histórico escrito em
língua vernácula”147, pois a uniformização permite pensar a nação como “antiga” por
uma linguagem que cria sentido de continuidade, acelerando-se a objetivação do
sentimento como percursor da moderna historiografia pelo modelo narrativo usado
por Herculano na sua escrita da história. É em Herculano que se compõe o modelo
memorialista em torno do lugar (Aljubarrota) e se transforma o coletivo em ator,
edificando-se por aí (em conjunto com Garrett) uma cultura nacional icónica e de
disseminação estereotipada, no âmbito popular, de sentimentos e ideais materializados
na “gente portuguesa”.
De facto, perante este excurso, não é descabido dizer que o modo como olhamos para
o passado, enquanto imaginário coletivo “português”, é fruto de uma construção
filtrada que o crivo romântico estabeleceu, sendo possível dizer que o salazarismo o
transformou em discurso celebrante, apenas propenso a análises mais serenas (dando
como aceite que também elas têm essencialismos) num período posterior ao fim do
Estado Novo, já que este, em termos foucauldianos, foi uma máquina de subjetivação
da cultura popular assente numa fortíssima forma mitológica de “fazer falar” o
passado. Ignorar o poder que a máquina discursiva do regime teve na construção de
subjetividades é esquecer o poder fantasmático que esses discursos ainda possuem e a
forma como se reproduzem a nível da cultura popular, tornando difíceis as análises
143
Buescu (1993: 199).
Buescu (1993: 201).
145
João Carlos Firmino Andrade de Carvalho (2009: 82) “Cultura, Literatura, Identidade e a
Construção de Ideais Nacionais”, Carnets, Cultures Litteráires: Nouvelles Performances et
Développement Nº Spécial, Automne/Hiver, pp. 81-90, http://carnets.web.ua.pt/ (consulta: Outubro de
2011).
146
Fernando Magalhães (2011: 2) “Construindo a Identidade: O Papel do Romance Histórico na
Afirmação de Portugal Enquanto Nação”, Sin Frontera, http://ufsinfrontera.com/academico/ (consulta:
Janeiro de 2012).
147
Magalhães (2011: 6).
144
75
que mostram não ser necessário olhar para Portugal como “destino” ou que
desmascaram a forma como, ainda hoje, há dificuldades num pensamento sem
excesso mítico. Não admira, por isso, que em contextos onde a cultura nacionalista é
referenciada como algo não criticável, se olhe para a mitologia portuguesa com um
misto de fascínio por emulação e de idealismo fixado.
São, aliás, inúmeras as análises do salazarismo que mostram como, discursivamente,
este terá construído uma cultura popular tão forte e tão assente em pressupostos
contextuais próprios que analisá-la à luz de uma generalização excessiva leva ao risco
de perda das idiossincrasias fundamentais que, ao tornarem o regime menos agressivo
que outros totalitarismos contemporâneos, fizeram dele um insidioso dispositivo
produtor de dogmas ainda repetidos acriticamente. Luís Reis Torgal e Amadeu
Carvalho Homem apontam mesmo para características “arquivadas” de discurso que
nos parecem repercutidas nos valores recapitulados programaticamente e que temos
apresentado. Descontando o lado de um catolicismo moralista (o que não é pouco), a
configuração enunciativa do regime (como restauração das “almas” e apologia
nacionalista dos “verdadeiros valores nacionais” e do “povo”, através da exaltação
dos “heróis míticos” e dos “brandos costumes” assentes numa aprendizagem da
“subordinação” e numa apologia do “ruralismo rústico” 148) está presente em acervos
de bibliotecas que permitem “extrapolar” para uma episteme de adestramento. Por um
lado, temos a exaltação da obediência, da austeridade e da castidade inerentes a um
nacionalismo patriarcal cristão, rústico e providencialmente bíblico, em que a igreja é
“traço dominante do carácter do povo que andou pelo mundo a descobrir, mercadejar
e propagar a fé”149 e, por outro, a idade média como repositório dos “valores
ocidentais”, pervertidos pelo “individualismo”, cabendo à “revolução nacional” o
“restauro” da genuína “nacionalidade”. A idade média associa-se à valorização do
ruralismo bucólico, “simples”, “cristão” e à exaltação dos valores históricos dos
portugueses, sobretudo a “gesta” da expansão, mediante o culto personalista de heróis
e o registo mitológico das façanhas individuais 150. O império é a “suprema expressão
da criatividade lusíada”, realização do “génio ecuménico”, “missionário e
civilizador”, derramado sobre os confins do mundo como “redenção” que liberta as
148
Luís Reis Torgal & Amadeu Carvalho Homem (1982: 1439), “Ideologia Salazarista e “Cultura
Popular” – Análise da Biblioteca de Uma Casa do Povo” Análise Social Vol. XVIII (72-73-74, 3º, 4º,
5º) (Lisboa: I.C.S.U.L.), pp 1437-1464.
149
Torgal e Homem citam, muito apropriadamente, discursos e notas de Salazar presentes nas
introduções aos textos: Torgal & Homem (1982: 1446).
150
Torgal & Homem (1982: 1449).
76
“populações do primitivismo”151. A literatura tem, neste contexto, a finalidade de
ilustrar
a
grandiosidade
da
nação,
sendo
omnipresentes
os
“clássicos
historiográficos” glorificadores, épicos e que salientam a “sentimentalidade
ultramarina”152 e exaltam a “idealização rural” (com tendência para a apreciação de
Garrett) vinda do “nacionalismo romântico”, como também a épica “sebastianista” da
“mensagem” pessoana como “salvadora do espírito da nação”. Os temas marítimo e
medievo são omnipresentes neste “nacionalismo literário”, cristão e heroico, com base
na “valentia marialva”. As antologias poéticas encontradas revelam também uma
“espiritualidade perene” e um património de valores visto como “incólume” à
passagem do tempo, verdadeiro espírito do “povo”153.
D) A Busca de Uma Serenidade Discursiva Anti-Delirante: Eduardo Lourenço e
Boaventura de Sousa Santos
Ora, parece-nos que este tipo de arquivo discursivo mitológico não andará longe dos
programas que analisámos, até porque entronca bem nos processos de construção
nacional da historiografia e da literatura búlgaras, conforme visto no capítulo anterior.
É por isso que achamos essenciais os discursos que se propuseram desdramatizar
Portugal, retirando-o de uma “aura” mitológica de fascínio idealista e mostrando-o
como um país que tendo peculiaridades próprias é, nesse sentido, tão circunstancial
como todos os outros e não da ordem do “providencial”, do “essencial” do
“miraculoso”, do “destino” do “escatológico”. Esse Portugal, que encaixa num
imaginário local também ele visto como “excecionalidade primordial”, vem sendo
ferozmente criticado pelas vozes que entre nós se dedicaram a desmontar mitos como
sendo da ordem do psicanalítico, como é o caso de Eduardo Lourenço, ou que se
dedicaram a vê-lo de um ponto de vista social e sem “espelhos” de “excesso de
representação”, como é o caso de Boaventura de Sousa Santos. Pese embora o facto
de ambos poderem ser criticados por caírem em novos essencialismos, propomo-nos
uma breve leitura pelo que têm de crítica genealógica aos modelos monumentais e
apócrifos, através de arqueologias “outras” que desconstroem mitos providencialistas
e excecionais. Isso é necessário para desdramatizar a névoa que se ergue sobre uma
151
152
153
Torgal & Homem (1982: 1450).
Torgal & Homem (1982: 1452).
Torgal & Homem (1982: 1454).
77
cultura idiossincrática, marcada pela pluralidade e por uma abertura que é
intensamente contemporânea.
Eduardo Lourenço, curiosamente em dois textos escritos com um intervalo de 20
anos, não tem uma visão tão distante de Boaventura Sousa Santos (que, embora o
critique, também pode ser visto como caindo em essencialismos). Lourenço é um
crítico feroz do excesso mítico com que Portugal se contempla enquanto discurso
cultural. Esse excesso não permite uma serenidade analítica distanciada. Já em 1978 154
Lourenço falava do “irrealismo” da imagem que os portugueses têm de si mesmos,
como se a história contasse a aventura “celeste” de um herói isolado e a literatura
desse forma de “monólogo” a uma “máscara traumática” nunca amadurecida.
Lourenço atribui tais mitos a um “perfil freudiano” que mistura “fanfarronice e
humildade” como fundo do “caráter português”155. Para ele, a mitologia foi sempre da
ordem do “milagre”, um povo garantido por um “poder outro”. Há nisto a consciência
de uma “falha” e de uma proteção “absoluta”, “inferioridade e superioridade” dando
as mãos como “máscaras” que fermentam nos Lusíadas, uma “ficção de desmesura”
que sente a necessidade de ser contada como “eco triste” da nossa grandeza. O
problema é que a história como solilóquio não é reflexão e serão a historiografia
romântica e nacionalista quem nos vai dar um perfil nacional, quando não existia mais
do que uma ligação à coroa (hierárquica e administrativa, mas não cultural), ou seja,
um território comum às gentes que “ainda não é nação”.
O sebastianismo, como “consciência delirante” de uma falta, torna-se razão de ser e
os Lusíadas prova de existência que orienta para um futuro utópico, por mediação do
passado, servindo de sonho para o descontentamento presente 156. Isso provoca
ausência de serenidade e alucinação. Por isso, o século XIX será o momento mais
patológico em que “perante a balança da Europa” 157, Antero questiona a nossa
viabilidade. Herculano e Garrett não terão sentido, antes de Antero, esta decadência
“física” pela presença tecnológica da civilização. Para fugir a esta existência
diminuída, o século XIX “descobre” África no sentido “imperial” 158 e é por isso que o
“Ultimatum” é o grande “traumatismo” repressivo do idílio. Contudo, gera mais um
154
Todas as citações que se seguem são deste texto, até à indicação de outro:
Eduardo Lourenço (1978/1997: 77/123) “Psychanalyse mythique du destin portugais”, Mythologie de
la Saudade (Paris: Editions Chandeigne).
155
No fundo, uma neo-essência também ela criticável por troca de generalizações.
156
Sousa Santos dirá, por outras palavras, como veremos, coisas muito parecidas.
157
Uma citação óbvia de Garrett.
158
Tese também paralela às de Sousa Santos.
78
paradoxo cultural: um ultranacionalismo místico e saudoso, fuga que entra pela
república como mais uma exaltação mascarada, a que o regime posterior chamará
“abismo”. O salazarismo “arruma a casa” por um totalitarismo arcaico, modesto
reacionário e conservador através de mais uma metamorfose de ficção: o delírio do
“oásis de paz” que serviria de “exemplo” para outras nações. É por essa veia que se
explora o fervor nacional, ou seja, por uma distância mitológica em relação à miséria
das populações. Por isso, a resistência não é menos mítica, já que o neorrealismo
explora o vínculo contrário: a mitologia marxista dos “humilhados” contra a visão
católica oficial da gente “bem comportada”. Se houve, na época, verdadeira subversão
cultural em Portugal, ela esteve no surrealismo pela sua oposição aos arquétipos
míticos e primevos e pela radicalização da arte, ajudando a desconstruir ficções
“arcaicas”.
Contudo,
o
movimento
da
“filosofia
portuguesa”
recupera
a
“esquizofrenia sublime e mística” do “ser português”, messianismo do mistério por
uma fixação alucinada na fusão discursiva entre as descobertas, a “nação” e o
“império”. Vivemos sempre em desmesura, como se a realidade não contasse e
fossemos flutuando entre compensações – regimentadas em discursos instituídos e
instituintes – próprias a um “colonizador de segunda” 159. Nem a guerra colonial nos
terá despertado deste “sonambulismo” que impediu a discussão, como se tivéssemos
vivido sempre “ausentes” de nós mesmos160.
Claro que nenhum povo vive sem ideal, mas, para Lourenço, Portugal viveu sempre
em função de discursos coesivos irreais e, sendo certo que as identidades se vivem no
plano simbólico do que os românticos chamaram “alma” e que é um “mito”161, a nossa
matriz bebe na “reconquista”, olhada como “providencialismo” “messiânico” da
“cruz”. É o século XIX quem lê a nossa história como “destino”, inscrevendo na
compreensão o que vinha de uma “ficção mítica activa” que se encerra magicamente
no império como “refúgio”. Essa clausura coloca o verdadeiro Sebastião no texto dos
Lusíadas, ícone do presente virtual, do passado morto e do futuro onírico. Uma
cultura que viveu de “arcaísmos fechados” teve no barroco a “glorificação sonhada”
de nós mesmos. O romantismo, vendo a cultura como essência da nação, volta-se para
fora (vem de lá enquanto regime de verdade) e, ao discutir Portugal, “refunda-o”.
159
Ou semi-periférico, na linguagem de Sousa Santos.
O próprio salazarismo não foi discutido com seriedade, como se o totalitarismo tivesse acabado de
um dia para o outro: apenas terá “adormecido”, esperando melhores dias para renascer.
161
Todas as referências que se seguem são tiradas deste texto:
Eduardo Lourenço (1998/1999: 9/83), “Portugal como Destino: dramaturgia cultural portuguesa”,
Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade (Lisboa: Gradiva).
160
79
Herculano e Garrett inscrevem-nos na história da cultura e, como ela não existia,
“inventaram-na”, isto é, inventaram Portugal como história lendo o passado iluminado
a partir do presente162 e recriado mitologicamente pela colocação de Camões no
“centro”. Para o romantismo, Portugal existe porque existiu e existiu porque Camões
o “guardou” enquanto memória. É aqui que se cola a saudade como mitologia
imanente a uma inventariação do tempo, tão “digna” como a de qualquer outra nação
europeia. Descobre-se Portugal à luz de um farol que vem de “fora” e que nos ajuda
na ficção discursiva. É perante esse fora que a geração posterior se sente pequena: a
Europa já chegou pelas ideias163, mas nós ainda não estamos nela e por isso nos
sentimos “decadentes”. Surge assim o paradoxo de, no mesmo século, Portugal se
inventar como mitologia e, por outro lado, descobrir-se como inferior (com a “geração
de 70”): o passado evocado pelos românticos é reduzido a “cegueira”, mediante a
utopia (de Antero) de um novo tempo primordial, anterior à “decadência”. O
confronto com o atraso leva a que os contemporâneos de Antero se vejam como
“vencidos da vida” e só Eça terá sido capaz de remodelar esse imaginário pela sátira.
Como em Portugal nada se faz à revelia do catolicismo, os românticos exaltaram o
cristianismo contra ele e a “geração de 70” entusiasma-se com algo não menos
utópico: o panteísmo. Ora, este cruzamento de paradigmas exógenos com o que
existia, criou uma relação “esquizofrénica” com a Europa, já que entramos nesse
“palco” vindos de outro “filme” e “melancolizados” pelo psicodrama do
“Ultimatum”: a “geração de 70” vive o “trauma da falta” como subalterna da Europa e
o “acordar” para África é mais uma visão messiânica da qual apenas muito lentamente
nos temos vindo a desvincular por obra de intelectuais apostados num “imperativo
cosmopolizante”. A historiografia do século XIX fez com que passássemos meio
século a sonhar e o salazarismo, transformando isso em discurso autoritário
indiscutível, não foi posteriormente discutido, aparecendo hipostático como um
“esqueleto esquecido no armário”164.
Numa linha mais sociológica, mas também passível de ser vista como desconstrução
de mitologias discursivas essencialistas, lineares, idealistas e tomadas como
162
O que Foucault critica, como já foi mencionado no capítulo 1, vendo isto na senda do que Nietzsche
chamava a tragédia do historicismo.
163
Na linguagem de Sousa Santos, trata-se da chegada da base da imaginação do centro. Na linguagem
de Kiossev, trata-se da chegada do pretexto para a auto-colonização.
164
Para Lourenço, as únicas grandes figuras do século XX português em termos de imaginação são
Pascoais e Pessoa, um pelo “êxtase que se desvanece” e outro pela procura de uma “margem” da qual a
história é apenas “antevisão”.
80
indiscutíveis, Boaventura de Sousa Santos desmistifica fortemente os discursos sobre
Portugal como “destino”. Se analisarmos as “culturas das nações” 165 para lá das
“construções oficiais” da “cultura nacional”, verificamos (1) que nenhuma cultura é
auto-contida porque os seus limites não coincidem com os do estado, (2) que
nenhuma cultura é indiscriminadamente aberta, possuindo conexões específicas e
prolongamentos próprios e (3) que a cultura de um grupo social não é uma essência,
mas sim uma “negociação” incompreensível sem uma análise da sua trajetória
histórica no “sistema mundo”. Assim, (a) a cultura portuguesa não se esgota nos
portugueses, (b), a cultura dos portugueses não se esgota na cultura portuguesa e (c)
as aberturas portuguesas (Europa, Brasil e África, por exemplo) são específicas ao
nosso estatuto “semi-periférico”. É que Portugal ocupou um espaço de trânsito 166 entre
o mundo colonial e os grandes centros, tendo sido “correia de transmissão” de um
“colonialismo informal”, sobretudo inglês. Manteve um império não porque tivesse
força, mas porque era do interesse dos estados centrais que funcionasse como “lança
em África” dos seus desejos indiretos. A relação colonial “semi-periférica” engendrou
uma identidade sem “conteúdo”167, só com “forma” de “fronteira”. As culturas
nacionais são uma “criação do século XIX” gerida pelo estado, que diferencia a
cultura e promove a homogeneidade 168. Como em Portugal o estado terá tido, segundo
Santos, um empenho fraco nisso, tal criou uma forte “heterogeneidade” e um “défice
de identidade”. Portugal nunca foi suficientemente semelhante às identificações
culturais “positivas”169 europeias, nem suficientemente diferente das produzidas
centralmente em relação aos “não europeus” 170. Era observador do outro na colónia
165
Boaventura de Sousa Santos (1994: 130), Pela Mão de Alice (Porto: Afrontamento).
Esta tese é partilhada, entre outros, por Sérgio Buarque de Holanda, que usou para a Ibéria a ideia
de “território-ponte” (acrescentemos que esta poderia ser aplicada, enquanto zona híbrida de
características diversas, ao outro extremo da Europa). Vejamos o que diz José Lindomar Albuquerque
(com citações de Holanda) em parágrafo bastante elucidativo:
“É importante pensar a Península Ibérica como uma zona de transição cultural e, portanto, aberta aos
influxos externos, sendo os seus habitantes mais maleáveis às mudanças noutros contextos de vida. A
região ibérica é um lugar de fluxos de pessoas, ideias e técnicas, onde as formas sociais não adquirem
contornos definitivos. A organização política e social neste território de transição ou “região indecisa”
entre a Europa e a África não adquire um carácter rígido e de imobilidade capaz de ser “transplantada”
sem sofrer alterações.”
José Lindomar Albuquerque (2010: 332), “As Fronteiras Ibero-Americanas na Obra de Sérgio Buarque
de Holanda”, Análise Social Vol. XIV (195), (Lisboa: I.C.S.U.L.) pp. 329-351.
167
Santos (1994: 132).
168
Por processos de adestramento normativo, diríamos, em termos foucauldianos.
169
Santos (1994: 133).
170
Embora as escolhas bibliográficas que vimos fazendo tenham todas elas ecos de problemáticas
foucauldianas e, pese embora o risco da reiteração poder ser fastidioso, acrescentaríamos aqui (e
pensamos que Santos possui esse eco genealógico e arqueológico) que o poder de definir é exatamente
166
81
como “selvagem” e observado pelos viajantes europeus como “primitivo” 171. Estava
“demasiado próximo” das colónias para ser europeu e “demasiado longe” da Europa
para ser competente. Este “acentrismo” 172 criou processos de “mimesis” (ideia
próxima de Kiossev) e uma forma cultural paradoxal, europeia e selvagem,
colonizadora e emigrante. Foi uma “arbitrariedade” inconsequente e paradoxalmente
cosmopolita, num cosmopolitismo peculiar que é o de um universalismo feito da
multiplicação infinita de localismos.173 Uma dessas formas é o excesso de
interpretação mítica, por um questionamento que é distante e “não expressão de
qualquer crise profunda”. Daí o caráter “superficial das incorporações forâneas”, por
uma “canibalização profiláctica”174, consciência inconsequente de um cosmopolitismo
carnavalesco e “barroco”. Esta situação lábil de “porta de vai-vem” 175 cria, ainda, o
paradoxo da “imaginação do centro”, ou seja, vermo-nos como “um país europeu no
mesmo pé que os demais”, o que gera uma cultura nacional contraditória e fautora,
perante nós e os outros, de “utopia” e “exotismo” 176, frutos do desconhecimento.
Sabe-se pouco sobre Portugal, já que os sucessivos períodos de obscurantismo
criaram “auto-desconhecimento” e “excesso mítico”177: o “encoberto é a imagem da
ignorância de nós mesmos” e as elites, suspensas entre o povo e o poder, não tiveram
quem as trouxesse à realidade. A “marginalidade social” tornou-as irresponsáveis e a
sua “cegueira” produziu a invisibilidade do país 178. Este obscurantismo fez com que
até recentemente não se desenvolvessem ciências sociais e, ainda, o excesso de
“psicanálises” levou à nossa visão como “loucos”179. A falta de visão concreta e o
excesso de “analistas” acabaram por construir um capital simbólico neutralizável por
cooptação política. Por outro lado, o interesse numa integração europeia hegemónica,
sem questionar a “régua”180 de desenvolvimento, levou a um “desconhecimento
o que marca o discurso normativo da modernidade.
171
Mas não concordamos com a visão de Santos de Portugal como “único” (Santos, 1994: 133) neste
estatuto fronteiriço.
172
Santos (1994: 134).
173
Santos (1994: 134).
174
Santos (1994: 135).
175
Santos (1994: 136).
176
Santos (1994: 49).
177
Santos (1994: 50).
178
Tese próxima, como podemos ver, da que Lourenço desenvolve do ponto de vista psicanalítico.
179
Esta referência de Santos vai obviamente para Lourenço. Contudo, na senda de Foucault, do ponto
de vista da visão dos mitos como discursos normativos de poder e adestramento social, a desconstrução
de ambos é-nos útil e parece-nos similar em relação ao desmascarar de discursos sumptuosos como
convenções de dominação (Santos, 1994: 51).
180
Aqui não se trata de citação: a metáfora é nossa.
82
social”181, devido a nos olharmos com uma medida cognitiva “central” que nos vê
como “menos” (de modo linear) e não apenas como “distintos”. Daí que a
generalização mítica - repetida por “arquétipos” inquestionáveis de um “senso comum
fabricado pelas elites”182, ilustrada por instâncias de confirmação mitológica e
conservadora na sua visão “naturalista” da história - assente nos elementos
contraditórios que destilam visões negativas e positivas do “português”. Tal delírio é
“arbitrário”, “selectivo” e estabelece uma relação “telescópica” 183 que diz muito sobre
as elites e pouco sobre os cidadãos, razão pela qual é preciso menos “mistificação”.
Como Portugal é uma sociedade de desenvolvimento intermédio, herdeira de uma
circunstância de “colonizador colonizado”, a integração europeia criou a ilusão de que
o país “passa a ser central” e mostra uma sociedade em que o caminho é “diferente
dos discursos” e na qual a nova “despromoção” “semi-periférica” – criadora de uma
relação “privilegiada”184 com África – dá alguma credibilidade aos discursos míticos
sobre a “vocação atlântica”. Contudo, isto cria também uma “duplicidade de
imagens”, pois, coexistindo representações “típicas das sociedades centrais” e outras
das “periféricas”185, isso explica um pouco a “coexistência” narrativa do “complexo
de inferioridade” com a “hipertrofia mítica”, numa sociedade onde se entrelaçam
simultaneamente vários tempos. De facto, o “mimetismo” dos países centrais, ao não
se transformar em práticas coerentes, ganha um tom “fársico” e, como não existe uma
tradição de organização formal estatal, “sobrepujaram-se” dimensões autoritárias,
legitimadoras e clientelizadas a uma “sociedade providência” assente em laços de
parentesco e vizinhança que exprimem, em novas formas, alguns vínculos rurais
perpetuadores de “extrapolações idealistas”186 (os “brandos costumes”). Ora, Portugal
tem tido, como constante mítica 187 ideal, o “destino”, uma “jeremiada nacional” 188
181
O trabalho de Santos pode ser visto em termos foucauldianos, mas é também herdeiro de Gramsci
(Santos, 1994: 52).
182
Portanto, uma narrativa discursiva e coesiva de normalização (Santos, 1994: 55).
183
Santos (1994: 57).
184
Santos (1994: 59).
185
Uma aluna minha australiana, tendo visitado Portugal, disse que era o “único” pais europeu onde
tinha visto um BMW estacionado ao lado de um jumento. É porque não teria visitado os Balcãs, à
semelhança muito provavelmente de Sousa Santos, que trata estes fenómenos “semi-periféricos” em
Portugal como “únicos”.
186
Santos (1994: 64).
187
A isto chama Santos, em texto mais recente, “excesso de diagnóstico”:
Boaventura de Sousa Santos (2011: 28), Portugal: Ensaio Contra a Auto-Flagelação (Coimbra:
Almedina).
188
Santos (1994: 64).
83
desfocada por duas “patologias”189: o iberismo (“cristão” ou “socializante”) e o
nacionalismo (“tradicionalista” ou “racionalista”) que são polos do mesmo discurso
no qual o “espantalho iberista faz dançar o espantalho nacionalista” 190. É por isso que
são necessárias teses “proporcionadas”, sem “triunfalismos” ou “miserabilismos” e
sem as habituais tentações antropomórficas da mitologia, na qual os intelectuais 191 se
habituaram a confiar em “destinos” que apenas “exprimem no défice de presente” a
projeção num “futuro excessivo” do “excesso de passado”192.
Assim, pretendemos mostrar com esta excursão crítica o seguinte: (1) a teoria da
recapitulação oferece um razoável modelo discursivo para a acomodação analítica de
uma cultura estrangeira aos valores (monumentais e apócrifos) do currículo búlgaro;
(2) nessa acomodação, projeta-se um exotismo solene de falta, que leva a leituras
factuais, autoritárias, essencialistas, teleológicas e indiscutíveis; (3) para encontrar um
semelhante discurso de poder no contexto português, é preciso recuar à axiomática
normativa salazarista, na sua visão heroica, mitológica e arcaica, por filtragem
romântica do rústico medievo, do império e de Camões; (4) sendo o território
português um dos mais estáveis da Europa, isso não impede uma crítica, por
desconstrução, das visões essencialistas e primordiais inerentes ao nacionalismo; (5) o
excesso romântico nas visões de um país “semi-periférico” ou “colonizador de
segunda” dificulta qualquer contemplação da realidade que não passe por platonismos
do “típico”, alheios à serenidade discursiva e criadores de miragens que provocam –
aquando do contacto – o choque com a realidade de um país que não é o paraíso
perdido. É necessário, por isso, contrapor às visões idílicas, modos discursivos
divergentes – e resistentes193 - de olhar para Portugal. É o que pretendemos fazer com
os nossos programas de trabalho, que analisaremos no capítulo seguinte e que
remetem eles mesmos para uma visão que é crítica de monumentalidades solenes e de
leituras apócrifas de Portugal e dos portugueses.
189
É interessante que se critique Lourenço para depois usar este termo.
Santos (1994: 65).
191
A tentação de reproduzir imagens centrais leva sempre à “desproporção” ou do “europacentrismo”
ou do “lusomerdismo” (Santos, 1994: 65).
192
Discurso que quase recapitula o de Lourenço e também as críticas da solenidade primordial do
nacionalismo búlgaro que vimos no capítulo anterior.
193
No sentido do binómio foucauldiano entre poder e resistência.
190
84
Capítulo 4 - Enfatizar o Presente Português: Uma Visão Fluida, Aberta e
Transnacional de Expressões Culturais Hodiernas; Cinema, Cultura, Literaturas
Africanas, Poesia e Pensamento
Neste quarto capítulo propomo-nos, como contrapeso ao que foi apresentado nos
capítulos anteriores, meditar sobre a nossa própria prática docente na Bulgária, nos
últimos seis anos, do ponto de vista discursivo e cultural. Para tal, é nossa intenção
fazer uma descrição dos programas que utilizamos nas cadeiras opcionais que aqui
85
inaugurámos e que correspondem a um quadro programático vasto que tem o título de
semiótica da cultura portuguesa (como existe nas outras filologias, além da
portuguesa) devendo esta suposta “semiótica” ser lecionada pelo Leitor estrangeiro.
Queremos fazer uma leitura dos pressupostos que eles incluem, do arquivo
bibliográfico para o qual eles remetem, das estratégias enunciativas que eles
envolvem de um ponto de vista metodológico e dos conteúdos que são desenvolvidos
em sala de aula.
A) Desmontagem Dialogada da Monumentalidade Apócrifa: Resistências, Fluxos e
Verdades “Outras”
É evidente que tais programas aparecem como contraponto lateral ao que ficou
anunciado nos dois capítulos anteriores sobre o regime de verdade histórico e literário
dos currículos búlgaros e sobre a sua recapitulação disciplinar como espaço de saber e
dispositivo de poder na apresentação da literatura e da história portuguesas em termos
axiomáticos. Pensamos que terá ficado apresentado um panorama sobre os processos
de construção da subjetividade que são inerentes ao modo como o discurso de uma
certa “evidência” normativa é apresentado aos alunos. Esse pressuposto estabelece um
controlo restrito do que é dito como verdade, isto é, do que funciona como regime de
transparência que temos vindo, durante a nossa prática, a desmontar como convenção.
O poder do espaço homogéneo e positivo do discurso único e regimentado só se
expõe como convenção mediante a existência de uma lateralidade que lhe resiste e
que lhe disputa o valor epistémico de conteúdo único e o valor de “voz que fala”,
“fazendo falar”, a partir do silêncio , a construção de um adestramento indiscutível em
função do não desafio à autoridade de um certo “texto”. Mexer com isso é delicado,
uma vez que se trata de contestar uma solenidade narrativa estabelecida como
princípio positivo.
Dissemos, aliás, no primeiro capítulo, que o desmascarar do discurso do único como
convenção é um espaço de resistência que se inaugura a partir do questionamento. A
emergência de um objeto de verdade que se supõe discurso de autoridade só pode ser
contestada se a essa prática de subjetivação se sobrepuser outra que, entrando em
relação discursiva com ela, a contesta nos seus pressupostos, exatamente porque de
certa forma parte deles para erguer uma visão outra. É nesse sentido que o espaço
curricular é, como todo o discurso, uma aventura relacional onde a episteme
86
supostamente neutra – porque tem o poder de definir outras como excludentes – se
desmonta pela inauguração de uma voz que institui um discurso crítico da sua
monumentalidade apócrifa. É nesse sentido que os discursos – em vez de lerem o real
– (na senda de Foucault) inventam objetos. Em contraponto à ideia absoluta de
verdade como adequação entre linguagem e real, é necessário erguer uma cartografia,
ou uma paisagem, onde se apresenta “uma” maneira diversa de ver as coisas – e é esse
o nosso pressuposto, ou seja: estabelecer um discurso que não se apresente como “a”
verdade, mas como “outra” verdade que disputa à verdade da monumentalidade o seu
carácter único, essencial, teleológico e linear. Nesse sentido, o nosso pressuposto
epistémico como estratégia mexe com a noção convencionada de história,
historiografia e literatura - antes apresentada – para a estilhaçar em termos narrativos.
Contra o devir dialético de uma essencialismo hipostático, imutável, primordial,
pretendemos responder por circunstâncias que se integram em fluxos e por espaços de
imanência mais marcados por descontinuidades do que por qualquer instância que
está “fora” e que determina, à distância de uma contemplação escatológica, uma linha
única. Isto envolve-se também com a noção de subjetividade que, para nós, não é
metafísica, ou a-histórica, ou a-geográfica. Não há, em suma, um espírito “sombra”
ou um universal que gere algo de “típico”, apresentado em discurso como um “cristal”
fechado. Não existe para nós nada de natural na cultura e o que tomamos como
“natural” é – isso sim – um processo de enunciação que “naturaliza” de acordo com
códigos disciplinares – e disciplinados – de subjetivação. Mostrar que o que o sujeito
descobre como o em si dos seus sistemas discursivos é interior a cruzamentos
enunciativos do seu tempo e do seu espaço é, assim, também um outro pressuposto
epistémico que apresentamos. Por outras palavras, não deixaremos de mencionar que
na nossa própria produção programática há um jogo entre saber e poder. Há um poder
enunciativo que apresenta e veicula um conjunto cognitivo; contudo, este não se
pretende único e sabe-se como convenção. Sabe-se ainda como outra coisa, ou seja,
sabe-se como enunciado que, não se mascarando de verdade (no singular), demonstra
que o currículo é um espaço agónico onde vão cabendo em mútua contestação
dialogante várias verdades (no plural) e, por isso, desmonta como hegemónicos outros
processos de singularização. Há assim – no nosso projeto pedagógico – uma vontade
de verdade que se dispõe como um acontecimento possível, narrado e estruturado, que
passaremos a apresentar.
87
Compreende-se por aqui que, de certa forma, os pressupostos epistémicos de Foucault
em relação ao discurso são a “sombra falada” dos nossos programas. Eles têm o
cuidado, aliás, de o demonstrar do ponto de vista das bibliografias, onde isso se
tornará óbvio aquando da apresentação do modo como “lemos” determinadas
referências. Quer falemos de cinema português, num sentido que remetemos para os
contextos da antropologia visual, quer falemos de literaturas africanas de expressão
portuguesa, cujo encaixe é pós-colonial, quer falemos de cultura contemporânea
portuguesa, cujo sistema supõe uma arqueologia do corpo contemporâneo como
espaço de inscrição de poderes e de escultura de resistências, quer falemos da
“novíssima” poesia portuguesa, cujo recorte descontínuo é o presente e a sua marca de
quotidiano urbano, quer falemos de pensamento filosófico em Portugal, de um ponto
de vista que abre como dístico a desmontagem de processos utópicos inerentes à
ilusão de linearidade do discurso como alcance do sentido, a mancha que lá está
carrega o “fantasma” foucauldiano, caso não seja por nós, pelo menos devido ao facto
de as leituras onde nos inspiramos terem bem presente a estrutura genealógica de que
não existe um “fora” do tempo e do espaço do enunciado que lhe dê garantias
absolutas. Por outras palavras, em nenhum momento nos apresentamos em discurso
como “a” verdade, embora exista a convicção de que por ali deixamos passar uma
visão possível (e contudo precária), sem que esta se imagine alguma vez como única,
mítica, perene ou indiscutível.
Na verdade, o acento do contemporâneo, do hodierno correspondente a Portugal e às
linhas de fuga com as quais o seu espaço e o seu tempo se cruzam e dialogam, é a
nossa intenção fundamental. Em relatórios de reflexão que fizemos sobre a nossa
prática docente194 tivemos sempre o cuidado de deixar presente que esse é o nosso
projeto, ou seja, tendo em conta as características próprias do universo curricular,
docente, discente, social, antropológico e académico que fomos descortinando,
apresentar uma visão atual, agudamente presente e diversificadamente globalizante da
cultura portuguesa – e também, por vezes, das culturas em português que com ela
dialogam – por contraponto a visões de teor mais clássico, canónico ou tradicionalista.
Trata-se de apostar numa visão menos formalista (se é que a designação serve) do
194
É norma de procedimento institucional o envio ao IC-Sede, com a periodicidade semestral (início
do ano, final do primeiro semestre e final do ano), de relatórios onde os Leitores refletem sobre a sua
prática docente, estratégias aplicadas e/ou de remediação, expectativas de trabalho, descrição de
contextos discentes e docentes, descrição de materiais disponíveis e envio de programas, entre outros
aspetos. Estes relatórios são analisados pelo Gabinete de Apoio Pedagógico.
88
processo educativo, de modo a que esta possa abrir para o inesperado – do ponto de
vista do horizonte de expectativas, conforme ele se compõe pelo que ficou dito nos
capítulos anteriores – para o criativo, para o reflexivo, para o crítico, para o
espontâneo, para o dialogante, tendo em conta a “zona de contacto” (um conceito que
ainda referiremos, para explicarmos o que pretendemos aqui com ele) propiciada pela
língua e – acentuadamente aqui, para o contexto que nos interessa – pela cultura,
como discurso que surge com o estatuto de novo no universo dos alunos. Contudo,
trata-se de, nesse processo, abrir um espaço de contestação a certas carências
provenientes de um arquivo fechado, diretivo, assente sobretudo no registo escrito
enquanto autoridade perentória e cujo valor de facticidade é tomado como
incontestado em atmosfera de um certo silenciamento à alternativa. É nesse hiato que
a interculturalidade se apresenta como processo fundamental de construção de uma
ambivalência que não coincidirá, porventura, nem com a solenidade de partida, nem
com o dialogismo da chegada: um “entre os mundos” (do aluno e do professor, do
arquivo de partida e do de chegada) que é espaço outro, no qual o professor se despe
da autoridade para ouvir e o aluno se reapodera da voz, a partir de um modelo de
subjugação, para dar a falar (além de dar a escrever algo que já não está nem na
autoridade monumental nem na labilidade convencional diversa) uma expressividade
autónoma de encontro.
Esta prática supõe um cruzamento do universo da cultura exógena com a mobilização
tanto do singular dos alunos, como do modo de subjetivação de onde estes provêm.
Ela é zona de contacto 195 ou espaço híbrido, se quisermos, uma vez que a sondagem
supõe um erguer de pontes novas que é necessariamente uma construção mútua. A
uma visão menos clássica do universo de partida da cultura portuguesa assomam
reações do mais diverso tipo, que envolvem uma gestão do assombro, do pasmo, mas
também um confronto com a rejeição, já que se trata de uma queda em relação ao
idílio do grandioso. Contudo, há também intensidades de criatividade pela perceção
de uma possibilidade diversa de “performance” do singular enquanto expressão de
contacto. Como a verdade não surge “ditada” de cima, ela supõe um exercício de
195
No sentido usado por Mary Louise Pratt:
“I use this term to refer to social spaces where cultures meet, clash and grapple with each other, often
in contexts of highly asymmetrical relations of power, such as colonialism, slavery, or their aftermaths
as they are lived in many parts of the world today.”
Mary
Louise
Pratt,
“Arts
of
the
Contact
Zone”:
http://www.class.uidaho.edu/thomas/English_506/Arts_of_the_Contact_Zone.pdf (consulta: Outubro
de 2011).
89
liberdade, de contestação e – por isso – também de medo e angústia perante o ter de
assumir responsabilidades próprias diante do “dito”, que deixou de possuir um valor
de verdade absoluta e reproduzida, mas é na mesma um jogo entre subjetivação e
resistência a partir do espaço de discurso que se cria, pela demonstração implícita do
seu binómio entre saber e poder (o facto de o discurso abrir a essa demonstração
plural não deixa de o constituir como artifício: isso é constantemente lembrado pela
oposição entre a ideia de “uma” verdade e a ausência de pretensão a ser “a” verdade:
quando isto é feito, o discurso abre automaticamente um convite à contestação nos
seus termos epistémicos e é isso que é fundamental para o entendimento do
dialogismo).
Romper, pois, com uma espécie de “conspiração de silêncio” em torno do
monumental e do apócrifo, pela instauração do “estilhaço” atual inerente ao presente
agudo: uma metáfora que quer dizer debater sem mistificações, deixar o pensamento
fluir, sem arcaísmos essenciais, ou primórdios imaginados a partir do adestramento.
Descobrir, intervir, mergulhar na cultura por si mesma como “espaço outro” em que a
palavra do professor não é “letra de lei”, não corresponde a uma escolástica
historicista da “origem”, não diz o que é o positivo ou o absoluto. Isto, por vezes,
suscita a reação curiosa (uma vez que o solene cai do pedestal) de se ter a sensação de
uma interpretação discente que vê o lado lúdico com ausência de “seriedade”, dada a
anterioridade inerente à criação de uma imagem austera e inacessível da palavra
docente como arauto do verdadeiro. Nestes momentos é preciso mostrar que
“solenidade” não é o mesmo que rigor, que “monumentalidade” não é o mesmo que
exigência: a grande aventura – e a grande perplexidade à qual muitos resistem – reside
em mostrar que o investigador (e todos somos: o aluno professor que aprende com os
alunos e os professores alunos que aprendem com o professor), mais do que descobrir
uma verdade sólida, fundamental e fixa, inventa, na senda de Foucault, objetos
precários, discutíveis, modos de ver mundos. E essa precariedade pode ser vista como
angustiante porque ela não se apresenta com o valor de verdade sólida, de essência
total e platónica, porque ela não corresponde aos quadros estáticos da visão positivista
da verdade por correspondência entre palavra e coisa (a tal “ontologia de postal”),
porque contesta o – digamos, em tom de ironia – “peito ilustre lusitano”. Também,
porque ela dá ao discurso oral um valor equivalente ao registo escrito, isto é, incita o
aluno a sair do “silêncio do balde” para ser, também ele, enunciador de um modo de
ver as coisas que não tem que ser “banal”, ou “fácil” mas que tem um valor – também
90
ele – de regime de verdade (mesmo que possa divergir do estabelecido como dito
possível). A submissão “bíblica” ao texto escrito, substituída pelo registo da dúvida,
que contesta o espaço do princípio parmenídeo da “não contradição” e se integra –
podemos também vê-lo assim – numa visão precária e mais heraclitiana (por filtro
nietzscheano, que entra em Foucault como escultura de resistência denunciante),
suscita, por vezes, o desconforto e a insegurança. Os princípios da interrogação
perante os monumentos, o início de uma leitura anti-conformista do apócrifo: essa
aventura, estamos em crer, é o convite que queremos fazer quando damos ao
momento da aula o espaço dos nossos programas opcionais de trabalho.
B) Programa de Cinema Português Contemporâneo
Na linha aqui proposta, o programa de “Cinema Português Contemporâneo” 196 remete,
logo a partir do título (que envolve expressões de textos que João Mário Grilo 197
escreve sobre o tema), para um desmontar de monumentos. Ao contrário de uma
grandiosidade assente numa visão patrimonialista da história e da cultura, o cinema
português é aqui visto pelo prisma do “realismo sujo” e da “não-ilusão” como formas
de expressão estética que apontam para cortes precários no real, olhando-o pelo lado
que o discurso oficial tem tendência a mascarar. Tivemos, mesmo, oportunidade de
debater esta questão com um membro do corpo diplomático que criticou o programa
por mostrar um lado de Portugal que, segundo ele, era feio e cheio de gente estranha
que não mostrava a grandeza das nossas praias, paisagens, monumentos e história.
Ripostámos na altura que, para isso, existem os filmes de propaganda do ICEP,
bastante propalados.
No preâmbulo, o programa menciona a codificação da “antropologia visual” no
sentido de um olhar que “é nostálgico, agressivo, pungente, irónico e melancólico”,
ligado a uma certa “desumanização” e em que o cinema é “veículo de uma
sintomatologia cultural.” Trata-se de, a partir de um modelo antropológico, usar o
196
Os programas serão citados a partir do ano da sua primeira utilização em aula e não da sua versão
apresentada em anexo, dadas as alterações efetuadas a nível do regime de avaliação que supunha, antes,
a elaboração de ensaios e passou a contar, depois (para evitar frequentes situações de plágio) com
exames de consulta e defesas orais:
Francisco Nazareth (2007) “Entre a “Não-Ilusão” e o “Realismo Sujo”: O Cinema Português Actual
Enquanto Modo de Expressão Estética Contemporânea” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski,
Programa), em anexo: anexo 3.
197
Todas as referências bibliográficas deste capítulo remetem para os programas em anexo; as
exceções a esta regra serão raras e documentadas.
91
cinema como espaço de visionamento das linhas de força que constituem uma cultura
ambígua na qual se cruzam narrativas de internacionalização – isto é, pontos de
confluência com outros imaginários (parece-nos que apesar das diferenças glosadas
por Paulo Rocha em texto de Paulo Filipe Monteiro presente em bibliografia, o
cinema português, nos seus usos do tempo, da imagem, da narrativa é, sem dúvida,
cinema europeu, tendo em conta codificações académicas que não estenderemos) e
espaços de construção de perplexidades próprias, nostálgicas, irónicas, e
melancólicas, “janelas” (ideia fundamental: cada texto é uma janela discursiva, um
prisma) de sentido prospetivo. Da paisagem urbana à ficcionalização da história; do
encontro e desencontro com o outro até à problemática dos tráficos contemporâneos,
o cinema surge como pretexto para o estabelecimento do tal processo de análise
discursiva dos pulsares quotidianos marcados pela invisibilidade perante o discurso do
grandioso que o oculta.
No plano dos objetivos, onde se fala na apresentação “de um discurso
cinematográfico que dá a ver o que está escondido” nas formas “triunfalistas”, o
panorama cinematográfico, contextualizado antropologicamente, abre da imagem do
cinema para as linhas de força emergentes em texto cultural. O cinema surge como
espelho em gesto realista que não esquece a ficção e, nesse sentido, se conjuga com
textos que o ilustram de modo a que se faça um trabalho crítico de descoberta cultural
a partir da imagem. O cinema surge, assim, em tensão com a cultura, insinuando
paradoxos ocultos no discurso do “nacional”.
Se a visão da cultura portuguesa que por aqui se insinua é provocatória e anticonvencional – ao confrontar-se com o que vimos nos capítulos anteriores – é
evidente que (o que se aplica aos outros programas que veremos) existe um modelo de
aula assente no debate que pressupõe a visualização da imagem e a sua
contextualização discursiva. O filme, como discurso apresentado nas suas linhas de
força culturais (colocadas sempre como interrogações), é mote para um diálogo
orientado de onde é suposto sair um conjunto de “verdades outras” que não são as da
estética, ou da imagem, ou do professor moderador, ou dos alunos, mas que se
situarão nas linhas de força e nos interstícios ambivalentes destas interconexões. É
suposto haver um processo de descoberta mútua onde a imagem é pretexto que abre a
singularidades autónomas, próprias não só à especificidade de cada um na sua
liberdade reflexiva, mas também ao confronto com uma visão paradoxal, na qual se
vão descobrindo nuances reiteradas e registadas, que constituem um “diário de bordo”
92
(registo que os alunos elaboram por escrito no final de cada aula e que estabelece o
ponto de ligação com a aula seguinte, dado que lhe é dado um tempo de debate prévio
antecedendo cada novo tema) como “monumento alternativo” ou abismo do
assombro.
Em sequência, a avaliação (sujeita a alterações, dada a deteção de plágios em
trabalhos escritos, e que é hoje assente num processo formativo e num sumativo que
substituiu ensaios por exames de consulta: não nos alonguemos sobre isto) surge em
consequência do diálogo de aula, integrando-o sob as formas de participação,
intervenção crítica, redimensionamento constante do espaço interpretativo e
construção de universos próprios de assimilação a partir dele (daí a aposta em ideiaschave como “iniciativa”, “dinâmica”, “interação” e “autonomia”). O trabalho de aula,
o diálogo, o visionamento, a consulta de textos (há uma antologia), supõem um diário
de bordo que será objeto do exame e da posterior defesa oral deste.
Os conteúdos (que de modo algum supõem leituras lineares: a sequência dos filmes
pode ser alterada dado que ela não inclui qualquer perspetiva cumulativa e não vê o
cinema como “prova” de que o “real” é assim, sendo apenas uma possibilidade de ser)
remetem para esse mesmo olhar que supõe um questionar a partir da perplexidade. Se
falamos em questionamento da ilusão, nada melhor que começar com um
documentário, já que se trata da questão mais difícil de responder sobre certo cinema
português, ou seja, se este é documentarismo ficcional ou ficção documental. A
tensão entre estes dois pontos é permanente, uma interrogação sem resposta, já que o
tempo de certo cinema português (a aposta reiterada na lentidão) remete para uma
constante instalação do quotidiano na imagem.
Num segundo momento (reiteramos que sem linearidade: às vezes sentimos
necessidade de alterar a sequência instalada no programa – para espanto de alguns
alunos que aceitam o texto escrito como letra de lei inquestionável – em função de
questões que a própria aula levantou numa lógica de imprevisibilidade) faz-se uma
reflexão literalmente foucauldiana sobre o poder e a invisibilidade, sobre o
adestramento social a partir da imagem e os processos de isolamento e atomização
que isso suscita, sobre a intervenção das lógicas de controlo nas relações humanas e
sobre a maneira como esses mecanismos de sujeição têm esvaziado os sentidos
inerentes às relações contemporâneas, apesar do aparente bem-estar material que
algumas envolvem. “É preciso chamar as coisas pelos nomes”, diz uma das
personagens mais jovens do filme “Lá Fora”, de Fernando Lopes. Num universo de
93
alta tecnologia, de usurpação do binómio público e privado em função da ubiquidade
e omnipresença da vigilância eletrónica, qual panóptico transparente, seremos ainda
capazes de fazer isso? O filme seguinte corresponde a uma hesitação: muitas vezes
integramos logo os “Ossos” e “Mutantes”, de modo a demonstrar que a visibilidade
funciona também por esquecimento e ocultação: a um Portugal “high-tech” de
condomínios fechados, comunicação eletrónica, omnipresença da imagem e
“cimêncio”198 acrítico, corresponde todo um outro de exclusão, povoado por imagens
de inadaptação social, rejeição, preferia, precariedade, medo e pobreza, assim como
de vazio (mas um vazio diverso do vazio sedutor de “Lá Fora”: sedutor, um, do ponto
de vista da imagem; repulsivo, o outro, no mesmo sentido, mas ambos
correspondendo a algo que tem tanto de “pós-humano” como de cadavérico).
Contudo, como “Lá Fora” mexe também com a iconografia nacional, dado que a
interrogação sobre o vazio é feita também a partir de uma citação (no Mosteiro dos
Jerónimos) de “Tabacaria”, redimensionada ontologicamente como algo deslocado,
muitas vezes saltamos deste filme (conforme o diálogo de aula o propicie) para a
zombaria iconoclasta e “maldita” de João César Monteiro, na qual as imensas citações
da história do cinema (como o “Nosferatu” de Murnau) remetem para uma visão
sarcástica e demente de Portugal em que a indigência expedita entra no manicómio
para satirizar os convencionalismos sumptuosos dos “brandos costumes”; como se
trata também de um questionamento da normalidade a partir do desvio, remete para a
arte como resistência, o que veremos no programa de cultura. Monteiro, integrado no
panteão dos malditos contemporâneos portugueses (por exemplo, com Luiz Pacheco
ou Alberto Pimenta), remete para uma leitura do que é icónico e solene a partir de
uma demissão quanto ao caráter de verdade apodíctica que isso acarretaria.
Outro dos temas que trabalhamos é o da emigração. Assim, à visão trágica de João
Canijo sobre os portugueses residentes em França (que pretendem ser bem
comportados, viver sem “ter problemas com os franceses”, mas na realidade não se
integrando e deixando aos filhos um legado de limbo no qual já nem são uma coisa
nem outra: isso é visível, inclusivamente, na língua que falam em “Ganhar a Vida”,
uma vez que várias palavras dizem respeito a um léxico mestiço), corresponde, por
outro lado, o estado de precariedade de um cabo-verdiano que vem para Portugal
trabalhar nas obras de construção (em “Casa de Lava” de Pedro Costa) e que, não
198
Combinação de cimento e silêncio: título de uma obra sociológica e fotográfica que aparece na
bibliografia do programa de cultura do qual falaremos em seguida.
94
sendo aceite no lado de “cá”, também já não o será no lado de “lá”, dado que o
acidente que o remete para o regresso como morto-vivo o acaba por colocar, enquanto
ponto de salvação, nas mãos de uma enfermeira portuguesa, situação que lhe provoca
uma perplexidade agressiva num mundo de inadaptados no qual os restolhos coloniais
(gente que ficou em África, murmúrios crioulos dum mundo passado) são também
ambiguidades de esquecimento bipolar.
A temática colonial abre, depois, para uma leitura anti-heroica da história na qual a
adaptação do romance de Lídia Jorge (“A Costa dos Murmúrios”) por Margarida
Cardoso mostra como a história oficial, propalada pelos meios do Estado Novo e
ainda mantida em muito imaginário popular como verdadeira, deve ser desconstruída
pela ideia de fábula (ela é como que um nevoeiro de gafanhotos que oculta o real). A
personagem de Eva (no filme interpretada por Beatriz Batarda) surge como uma
espécie de fio de Ariadne que desmascara (em conjunto com um jornalista dissidente
que escreve rábulas metafóricas) solenidades: o Portugal colonial foi brutal, o racismo
e o machismo existiram, a guerra teve horrores, os portugueses cometeram massacres,
a ideia do “peito ilustre” lusitano é uma fábula inerente à mitologia nacionalista e, por
isso, uma “história outra” sobre os paradoxos do colonialismo português, feito mais
de negociações no imprevisto do que de planificações centrais, tem de ser contada.
Contudo, deixemos este pressuposto programático do “subalterno” para o programa
de “Literaturas Africanas”. Em sequência, o filme “Capitães de Abril” teria que
aparecer, uma vez que integra em histórias pessoais, modeladas como retratos de
época, um episódio fundamental do Portugal contemporâneo que é essencial para a
visão que vamos construindo em relação a nós mesmos e sem o qual este mesmo texto
que agora escrevemos seria impossível. A revolução (iniciada a partir do
descontentamento militar com a guerra colonial, mas encontrando eco num
“idealismo de rua” no qual vários núcleos - os artistas, as mulheres, os jovens
universitários e a gente humilde - se irmanaram contra os cinismos de ocasião; é esta
um pouco a tese do filme, que remete a figura de Salgueiro Maia para o papel de um
herói sem patente, que desaparecerá na “escuridão da história”, substituído pela figura
dicotómica do General Spínola) é o momento no qual uma espécie de país
semianalfabeto, prisioneiro de um sonambulismo conservador e acrítico, dominado
por discursos de poder assentes em fábulas de grandeza e amordaçado por
mecanismos de dominação do corpo, dos gestos, dos discursos, da ação cívica e do
pensamento (assentes num conluio insidioso com o “olho escatológico” da igreja)
95
parece que acorda. Mas o filme deixa este acordar suspenso numa interrogação para a
qual continua a não haver resposta.
Normalmente, terminaríamos o programa com o filme “Transe” de Teresa Villaverde
mas, devido à violência extrema das suas imagens, optámos por não o mostrar.
Vínhamos optando por mostrar outro filme sobre a mesma temática (os tráficos de
seres humanos, operados por máfias, sobretudo localizadas no Portugal rural) –
“Noite Escura” de João Canijo – mas também este causou algum choque, pelo que
temos optado por acabar o programa em torno de temas anteriormente tratados,
variando muitas vezes o filme que inserimos (como “Lisboetas”, de Sérgio Treffaut,
sobre imigrantes, ou “Ainda há pastores?”, de Jorge Pelicano, sobre a extinção de
modos de vida rural em Portugal e que permite interessantes paralelos quanto à
Bulgária).
Apenas algumas notas finais quanto à bibliografia. Não se trata de uma bibliografia
sobre cinema, mas na qual o cinema é pretexto para a apresentação de remissões em
direção a visões sócio-antropológicas de Portugal, que passam também pelo
questionamento histórico. Se já mencionámos (por causa do título) os textos de João
Mário Grilo, não é demais mencionarmos o de Paulo Filipe Monteiro (que ajuda a
desmontar a “nação” a propósito do discurso cinematográfico), o de Margarida
Calafate Ribeiro (essencial para “A Costa dos Murmúrios” dado que não só inclui um
capítulo sobre o livro, como enfatiza o papel da mulher na necessária “descolonização
mental” de Portugal), o de José Gil (a noção de “não-inscrição” serve-nos, aqui,
sobretudo para percebermos a invisibilidade voluntária e coletiva dos emigrantes
portugueses em França, corolário da “inscrição” adestrada dos mecanismos do poder
do Salazarismo na corporeidade das pessoas sob a forma de um medo que é
necessário ao “cidadão honrado”, como integrador de um “nevoeiro” de incapacidade
crítica perante o convencionalismo) e o texto de Foucault (uma vez que o capítulo
sobre o dispositivo panóptico é essencial para entender “Lá Fora”). O texto de Sousa
Santos já foi analisado no capítulo anterior na perspetiva em que, aqui, também o
cinema português ajuda a desmontar ilusionismos pomposos.
C) Programa de Cultura Portuguesa Contemporânea
96
No nosso curso de “Cultura Portuguesa Contemporânea” 199 toma-se como “referencial
fenomenológico, arqueológico e desconstrutivo” o corpo “enquanto circunstância”
que é constituída por “redes de significação”. Trata-se de construir um diálogo com as
atmosferas culturais presentes entre os criadores portugueses contemporâneos a partir
do espaço do corpo como sendo significativo, isto é, uma rede onde se cruzam
discursos, na medida em que esse “corpo-corporeidade” supõe, por um lado,
processos de adestramento cultural próprios aos modos como Foucault descreve a
modernidade, mas também permite olhar para a criação artística como escultura de
resistência que parte do corpo para questionar o modo como este é identificativamente
fechado e enclausurado, ou seja, a criação artística é um espaço de resistência que
expõe poderes de convenção normativa: já lá voltamos.
Quanto aos objetivos, há uma aposta na interculturalidade, no diálogo e na
apresentação de uma versão do saber que não é vertical (ou seja, que não aposta na
unidimensionalidade de um critério de verdade para se fazer ouvir) e numa versão de
poder que não é unívoca (isto é, remete para um processo de aprendizagem que é
multifocal e descentrado). Ainda, na transversalidade dos saberes, no carácter “inter”
– e “trans” – nacional dos fluxos culturais, no rigor teórico e comunicativo, tentando,
a parir de uma perspetiva crítica, ajudar à pluralidade axiológica e à construção de
sensibilidades estéticas que não sejam patrimoniais enquanto universos de descoberta
e chegada: o mundo cultural como espaço de encruzilhadas.
Talvez não haja muito a acrescentar em termos de metodologia ao que foi dito a
propósito do programa de cinema (sendo fundamentais a “moderação” de diálogos e a
“mobilização” de referências). Contudo, enfatiza-se a construção de um espaço/tempo
de aula que é idiossincrático em relação a hábitos culturais de canonização: dialogar,
portanto, mobilizando saberes, construindo pontes para saberes adicionados como
suplementos, entrada em parcerias de sensibilidades, estabelecimento de paralelismos
e construção de analogias.
Sendo os processos de avaliação semelhantes aos usados no curso de cinema, do
ponto de vista dos conteúdos o corpo institui-se (numa primeira parte que é mais
teórica e para a qual se criou um guia de leitura disponível em rede) como processo
crítico de um ser no mundo que questiona, a partir da sua circunstância, as práticas
199
Francisco Nazareth (2008), “Singluaridade e “Abysmo”: A Obsessão com o Corpo na Cultura
Portuguesa Contemporânea”, (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em anexo:
anexo 4.
97
sociais que sobre ele – e por ele – se insinuam. É assim que ele é pensado como
referencial temático para as práticas de criação portuguesa contemporânea, dado que
surge visto numa espécie de conjunto de círculos concêntricos onde esse “retalho” é o
culminar de uma reflexão sobre – também – a identidade e o território (conceito usado
aqui em sentido deleuziano). Existem assim vários discursos relativos a estes dois
referenciais que se insinuam no e pelo corpo, sendo também verdade que, do ponto
de vista das práticas artísticas como dissidências críticas, ele, corpo, se ergue
posteriormente como alternância provocatória e dimensão de alteridade em relação a
estratégias de adestramento: é assim que ele ajuda a esculpir a criação como arte de
denúncia inscrita no mundo como dissonância. Os discursos que o corpo ajuda a criar
e as suas reflexões críticas sobre o posicionamento no mundo dependem, primeiro, de
uma reflexão sobre identidade e território. Sem nos alongarmos muito, a reflexão
sobre os prismas identitários e nacionais de Portugal e sobre a existência ou não de
uma cultura portuguesa leva depois a uma visão do conceito de “inscrição”, mas numa
leitura deste em relação ao corpo que supõe o modo como ele é herdeiro de Deleuze e
Foucault a partir de uma temática que surge em Kafka. Nesta senda, a arqueologia da
produção social do corpo leva-nos da máquina moderna que inscreve em nós poderes
e saberes200 até à instituição nietzscheana de um corpo como espaço de resistência, na
linha de Foucault, e de palco dissonante, na linha de Deleuze, como uma espécie de
“corpo sem órgãos” inscrito no mundo como crítica. Além disto, passa-se depois para
um corpo que carrega toda uma simbólica política de escultura social da diferença
como espaço de criação de sentidos. Assim, a cultura é uma ferramenta de expressão
que funciona como suspeita a contracorrente do real (de certa forma, a criação cultural
inscreve contra a não-inscrição mediante o corpo como expressividade. O corpo
torna-se o referencial a partir do qual se faz a análise das paisagens da criação
portuguesa no sentido da ideia de um “corpo de combate” 201 constituído por “feixes”
emancipatórios de nomadismo ganhando uma espécie de forma de “obra de arte”
esculpida com a vida, imanente e processualista em múltiplas inscrições ou “mil
palcos”). O corpo é, por isso, o referencial a partir do qual se faz a análise das
paisagens da criação portuguesa no sentido da luta afirmativa em que se ergue para lá
200
Leitura de Gil em relação à “Colónia Penitenciária” de Kafka:
José Gil (1997: 103/12), Metamorfoses do Corpo, Lisboa: Relógio d’Água.
201
São ideias que uso em “apontamentos” para as aulas que estão disponibilizados em rede mas, como
não estão editados, não vale a pena citar aqui.
98
do investimento social que o educa, escreve, contextualiza, treina: a criação é por aqui
desafio à corporeidade estandardizada.
No segundo momento dos conteúdos, e começando pela fotografia, faz-se uma análise
da obra de dois fotógrafos contemporâneos bastante diversos. Em Jorge Molder 202
trabalha-se a indagação em torno da fragmentação da identidade, com referências que
tanto podem ser estendidas ao modernismo literário (nomeadamente Beckett), como à
interrogação sobre o ser contemporâneo quando confrontado com a sua solidão. Por
seu lado, o trabalho de Nuno Cera – mais especificamente “Cimêncio” (mas não só) o
que permite uma interligação com o filme “Lá Fora” – tem um maior pendor
antropológico e sociológico já que, sendo acompanhado por texto, surge como
denúncia direcionada para o esvaziamento cívico do espaço público que, em razão da
disseminação de um bem-estar sanitário, rompeu com a capacidade de discurso crítico
em nome de uma materialidade desértica e descarnada: clausura dos corpos.
No campo da pintura, o enfoque discursivo cai na obra de Julião Sarmento e na de
Paula Rego no que estas têm de postura analítica sobre o universo feminino. Se, em
Sarmento, o confinamento corporal passa pelo auto-investimento sensual de um
silêncio que é retraído em relação a um quotidiano repressivo quanto a qualquer libido
desviante para com normas de uma religiosidade aparentemente secularizada, a obra
de Paula Rego não pode ser vista sem ter em conta a perversidade iconoclasta com
que denuncia o paternalismo inscrito no quotidiano pelo “nevoeiro” salazarista. Nesse
sentido, o corpo grotesco da domesticidade assume um grito de denúncia quando
exposto em imagem devedora de um paradoxal surrealismo realista, que nos mostra
aquilo que o conluio de poderes convencionais (estado e igreja) sempre escondeu.
Esta questão tem sequência quando se fala de dança. Na realidade, se Olga Roriz tenta
– em muito do que faz – reler o texto clássico expondo-o à luz de problemáticas
contemporâneas e, por esse processo, torná-lo atual (além de usar referências
desconcertantes que desmascaram os nossos moralismos, mas apropriando-as de fora
do panorama mais canónico das culturas ditas ocidentais 203), já Vera Mantero é
bastante direta no seu uso de referências filosóficas (Deleuze é um caso explícito)
para as encenar como questionamento social.
202
Sobretudo através de recolhas dos alunos: é isso que se tenta fazer nos vários prismas da criação
contemporânea.
203
O que é visível no trabalho “Os Olhos de Gulay Kabbar”.
99
A parte musical relacionada com o “hip-hop” é, em geral, a que os alunos mais
gostam de trabalhar, até porque envolve um tipo de discurso cujas referências urbanas
são suas e, desta forma, mais fáceis em termos de reapropriação 204. Em tal contexto, a
moda ganha preferência acrescentada e a ligação entre corpo e mercado (que é óbvia)
permite também uma abertura crítica, proposta por alguns projetos portugueses menos
visíveis comercialmente, de um ponto de vista dos desafios ao convencionalismo.
Por outro lado, sendo a arquitetura uma arte que mexe com o espaço – altera-o e
redefine-o do ponto de vista (literal) da paisagem – é óbvio que a própria maneira
como o espaço identitário do “nacional” tem vindo a ser transformado a este nível,
surge como um questionamento que pode ser uniformizador, mas também irónico,
paródico e crítico, sobretudo em relação à maneira como, a partir daí, se
redimensionam os sentidos dos (e para os) corpos e gestos: e a arquitetura faz isso
porque recoloca o movimento em função da sua inserção no diálogo que ele
estabelece com o território. Este foi, aliás, sempre um enfoque muito interessante de
ver no modo como os alunos se posicionam perante ele, ou seja, de que forma os
trabalhos de intervenção urbana de arquitetos portugueses (como, por exemplo,
Álvaro Siza Vieira ou Eduardo Souto Moura) os levaram a colocar o espaço como
uma utilização diversa da cultura e do seu processo de naturalização semântica (como
linguagem, portanto) territorializada.
Em sequência, o teatro e a performance205 entram, não tanto porque seja importante
saber nomes de grupos ou peças, mas pelo modo como essas formas de criação
mexem também elas com o corpo e o espaço, desafiando dicotomias pré-estabelecidas
em dualismos modernos como sejam o de ator e espetador. A intervenção do binómio
gesto/palavra, e o seu jogo com o olhar, com a “desterritorialização” do cenário para
dentro da sua consequente “reterritorialização” como paisagem (qualquer uma),
204
Tendo esta segunda parte do programa sido sempre sujeita a um esforço de recensão – que envolve
recolhas feitas em casa (cuja promoção nem sempre tem sucesso porque os alunos se sentem mais
confortáveis com modelos diretivos e a promoção da investigação autónoma é, para muitos, incómoda)
– houve mesmo um ano (com a presença de um bom grupo, que perdeu a vergonha, desafiou a
dimensão da autoridade e teve espírito de iniciativa) em que os alunos resolveram fazer uma base de
dados (infelizmente nunca completada) sobre cultura portuguesa contemporânea, na qual os autores
que constam do programa foram também abordados, mas apenas entre outros, ou seja, fez-se uma
recolha sobre fotografia, pintura, escultura, dança, etc., que foi apresentada pelos próprios alunos em
aula com a presença do professor apenas como monitor social das diferenças e corretor dos usos
linguísticos feitos durante as apresentações. Neste contexto, a área destinada ao “hip-hop” foi alargada
ao campo mais vasto das “culturas urbanas”, o que permitiu, por exemplo, a inclusão de uma excelente
apresentação de uma aluna sobre a identidade do “graffitti” em Portugal.
205
E o jogo de diluição de fronteiras que estas criações fazem em relação a outras artes: lembremos,
por exemplo, o trabalho de Helena Almeida em torno do diálogo da instalação com a performance e a
fotografia.
100
permite um enfoque no quotidiano como cena e a sua consequente subversão
enquanto código estratégico de adestramento normalizado. Nesta perspetiva, o teatro e
a performance surgem – precisamente no sentido do enfoque do programa – como
esculturas de vida por subversão do poder da norma206.
Não nos querendo estender muito em comentários pelas “bibliografia” e
“cibergrafia”207, faremos apenas alguns comentários breves. A presença de textos de
Foucault e Deleuze parece-nos clara (porque são textos para a elaboração dos
programas e não forçosamente para consulta dos alunos) a partir do que foi dito sobre
os conteúdos. A “arqueologia” aparece em diálogo com o texto de Thomas Kuhn,
exatamente quando se trata de insistir perante os alunos no facto de o acesso à cultura
não depender necessariamente de linearidades cumulativas nem de finalidades
reveladoras (reiteramos: uma perspetiva anti-positivista e não teleológica), podendo
ser “paradigmático”: funcionar por saltos, errâncias, isto é, em linguagem deleuziana,
por nomadismo. Os textos de José Gil sobre o corpo entram em diálogo com Foucault
e Deleuze e proporcionam a leitura da ideia de criação artística como inscrição
resistente. Paul Virilio surge pela necessidade de colocar em diálogo as ideias de
velocidade e paisagem: parece-nos importante, por exemplo, a nível da fotografia de
Nuno Cera. O texto de Nathalie Crohn Schmitt é específico para a problematização da
ideia de palco como separação e para a diluição da ideia de performance no
quotidiano. Quanto aos textos sobre Las Vegas e sobre Los Angeles, são específicos
para a arquitetura e a problemática da naturalização paisagística. A “cibergrafia”
cumpre um propósito fundamental: disponibilizar aos alunos uma rede tão atual
quanto possível de críticos, curadores, criadores e analistas que refletem em Portugal
sobre questões diretamente relacionadas com as temáticas dos programa.
D) Programa de Literaturas Africanas
206
Foi, aliás, interessante a presença na Bulgária de uma criadora portuguesa de teatro físico (ligada
aos projetos “O Ato” e “Transparências”) que veio apresentar uma oficina em língua portuguesa (na
altura, projeto que se estendeu a uma cooperação com o Leitorado de Belgrado, e com o grupo de
teatro aí elaborado e que se chama “Teatro da Cidade Branca”); infelizmente, talvez por medo, a
oficina não teve o impacto necessário e a adesão de alunos, apesar da publicidade, foi escassa.
207
As referências destes aparecem (completas) nos programas em anexo.
101
O Programa de “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”208 tem, através do
seu conceito organizador, o propósito específico de questionar, de um ponto de vista
que é pós-colonial e transnacional, ideias provenientes de visões heroicas e ufanistas
do mundo português, como as que saem de leituras solenes das descobertas e dos
“Lusíadas”, por exemplo. Pretende apontar diretamente ao caráter paradoxal do
colonialismo português e ao caráter – também específico – do universo pós-colonial
que se exprime em língua portuguesa. O estatuto ambíguo destas questões torna-se
claro, a nosso ver, mediante a utilização do conceito de fronteira, exatamente no seu
estatuto de paradoxo, de ambiguidade, de mestiçagem: estar na fronteira, ou habitá-la,
é não pertencer a nenhum dos lados que ela supostamente divide e isso envolve,
claramente, uma situação híbrida. Mas vamos por partes.
Gostaria de chamar a atenção, logo no preâmbulo, para a ideia de “limiar”
desenvolvida enquanto ambivalência; ela permite desmontar a ideia de “origens”
absolutas e, consequentemente, de “alteridades” totalizadas (heranças positivistas e de
visões românticas do discurso). O que é chave aqui é a ideia de “matização”, pois
permite209 mostrar que o desenraizamento cultural já não é um drama mas, em
sociedades marcadas por diásporas, tornou-se condição. É por isso que a analítica do
programa se mostra “devedora” do pós-colonial.
Desta forma, os objetivos do programa apontam para o que chamamos de “cânone
subalterno”. Não só se pretende – relacionando com as diásporas – mostrar que a
fronteira210 é sobretudo uma condição contemporânea, como apresentar nesta as
peculiaridades do mundo de língua portuguesa como não sendo as mesmas que o
“pós-colonial” anglófono, dado o pioneirismo de Gilberto Freyre, apesar dos seus
essencialismos idealistas, no uso do conceito de mestiçagem e dado o cariz singular
208
Francisco Nazareth (2007) “O Pensamento de Fronteira nas Literaturas Africanas de Expressão
Portuguesa: Os Casos de José Eduardo Agualusa e Mia Couto” (Sófia: Universidade Sveti Kliment
Ohridski, Programa), em anexo: anexo 5.
209
E Mia Couto faz isso muito bem pela criação de neologismos e pela utilização de parábolas onde
faz confluir espaços e tempos diversos que aí se diluem; José Eduardo Agualusa utiliza processos
diferentes, não tão ligados à língua mas, isso sim, a uma irrupção da magia que confunde a fronteira
entre o real e o imaginário: o seu texto remete, a nosso ver, para a ideia de que o real, podendo ser mais
incrível que a ficção, desmascara a ideia de solidez e permite pensar numa transumância completa, na
qual os dualismos habituais, como por exemplo a oposição entre o belo e o grotesco, o europeu e o
africano, deixam de fazer sentido, assumindo, então, a ambivalência.
210
Mais do que qualquer coisa de estático: é assim que alguns alunos abordam o programa; apetece-me
aqui citar algo de um episódico surgido num texto escrito numa recensão e do qual já não disponho.
Uma aluna escreveu que veio estudar literaturas africanas porque eram “exóticas”, vinham de um
mundo desconhecido e, em espírito de irreverência, tinha decidido inscrever-se no curso contra uma
afirmação da sua avó que, quando soube da existência deste programa, tinha zombado dizendo que não
sabia que os macacos também escreviam (!).
102
do colonialismo português que, sendo “semi-periférico”, conforme Boaventura Sousa
Santos, era visto como africano na Europa (o colonizador “incompetente”) e europeu
em África (uma espécie de europeu de “segunda”, como se tornou óbvio mais tarde
com as teses raciais brasileiras da linha de Oliveira Viana, contestadas por Gilberto
Freyre, que lamentavam ter sido o Brasil colonizado por gente tão pouco
“civilizada”). Este sentido de uma identidade em trânsito é marcante no modo como
as obras indicadas para a leitura, de Agualusa, mostram personagens cuja errância se
torna consequência dos imprevistos e rumos tomados pela existência e na maneira
como, em Mia Couto, além das próprias consequências ontológicas do jogo entre a
história, a geografia e a identidade, se mostra o efeito que tudo isso tem na reinvenção
da língua, ou seja, no “português corta-mato”. Para evidenciar as versatilidades do
texto, selecionámos, para cada um dos autores, um romance, um conjunto de contos e
um outro de crónicas211, mas não desdobraremos aqui os conteúdos das aulas por falta
de espaço. Concentrar-nos-emos, no plano dos conteúdos, numa melhor definição do
conceito de fronteira como o entendemos enquanto desafio aos modos de pensar
saídos de currículos tradicionais.
Em termos metodológicos, é significativa a ideia, que sempre enfatizámos, de uma
intervenção ativa que suporia uma leitura prévia para que houvesse um debate
interativo que pudesse ser moderado. Contudo, esse sentido de orientação do diálogo
foi quase sempre impossível de desenvolver nas aulas – que muitas vezes ficam
condenadas a ser expositivas – dado que os alunos não leem as obras antes. Como o
volume de leituras para outras cadeiras é maior e existe, em relação a elas, um medo
maior do professor e da sua severidade, as literaturas africanas (consideradas,
subconscientemente, menos sérias, mais lúdicas, mais “exóticas” e, portanto, uma
literatura “menor”, além de o estatuto da cadeira ser opcional) são relegadas para um
estatuto de inferiorização, o que é ainda reafirmado pelo facto de estes textos estarem
escondidos no confim “inferior” do armário da biblioteca. Tal mentalidade integra
uma sujeição naturalizada quotidianamente como norma não dita212.
211
As referências encontram-se no programa em anexo.
Basta uma visita ao museu de arte “estrangeira” de Sófia para se ver como está presente a estrutura
de linha platónica da “escada” que nos conduz desde a arte “primitiva” – nomeadamente a africana e a
asiática, dispostas em verdadeiro espírito hegeliano e onde existe (graças às históricas boas relações da
União Indiana de Nehru com o Bloco Soviético) uma das melhores coleções de arte sacra cristã
portuguesa, proveniente de Goa e evidente, do ponto de vista imagético, como representação mestiça –
até ao cume da “civilização”, a Europa e o ocidente, claro está, bem junto ao topo e perto de uma
clarabóia retangular (de sentido obviamente moderno, depurado) por onde entra a luz.
212
103
Sobre a avaliação, apenas reiteramos que o processo foi sujeito a alterações porque
houve necessidade de evitar plágios em trabalhos e, por conseguinte, passou-se ao
modelo de avaliação sumativa com exame de consulta que posteriormente é defendido
na oral. Como os alunos não leem as obras213 previamente, o que se tenta fazer durante
as aulas é incentivar à participação interrogativa e à construção de um diário de bordo
ou memória descritiva de cada aula, que serve como ponto de ligação e de
questionamento para a aula posterior. É em tal âmbito que grande parte dos alunos se
atém ao valor da palavra escrita que, para eles, tem o estatuto solene de um registo e
ganha um valor “civilizacional” maior que a prática oral, uma vez que esta remete
para um espaço cultural que, inconscientemente, é considerado menor. Recordemos
que nos Balcãs a nação está fortemente ligada à diferenciação linguística, em espírito
herderiano, e esta faz-se mediante a solenização sumptuosa da gramática descritiva
em detrimento do espaço oral que, muitas vezes, é menosprezado como dialeto,
havendo uma significativa solenização fonética do modo como se fala na capital e,
portanto, no centro.
Quanto aos conteúdos, sem alongamentos às obras dos autores, porque é que a ideia
de fronteira desafia leituras teleológicas, positivistas, lineares e românticas da cultura
e da literatura portuguesas, enquanto subversão do cânone tradicional? Ela fá-lo
porque ela é subalterna, pós-hierárquica, pós-vertical, desconstrutiva, errante e não
autoritária. Para o mostrar, começamos normalmente o programa de trabalho através
de duas metáforas de modo a reposicionarmos os contextos perante os alunos. E essas
metáforas são as da oposição entre o turista e o viajante. O subtexto que pretendemos
mostrar é que o turismo supõe uma permanência do efeito “retangular” (ou quadrado)
da modernidade214. De certa forma, enquanto o turismo compra lugares com as
pessoas lá dentro (e Agualusa menciona isso mesmo num dos textos do programa 215),
não procurando a surpresa e apenas a confirmação do “pré-texto”, a viagem é já em si
nomadismo como processo de transformação, mudança, imprevisibilidade e
desconstrução do tal enquadramento estereotipado. Mia Couto menciona isso, aliás,
213
É evidente que se pode ser mais drástico a este nível. Contudo, no contexto búlgaro, a localização
do Leitor é delicada porque ele precisa de negociar permanentemente a sua posição dentro de um
sistema que não o vê como um par, mas como um objeto exótico (supostamente típico) que existe
como um exemplar etnográfico de uma língua e de uma cultura. Este sentido essencialista joga também
com a necessidade de se chamar público para actividades culturais, por exemplo, e acirrar o nível de
pressão sobre o aspeto das leituras consistiria em alienar público necessário em contexto de escassez.
214
A ideia de “quadro mundial” em Heidegger.
215
José Eduardo Agualusa (2000: 37) A Substância do Amor, (Lisboa: Dom Quixote).
104
através de expressões como “sonhambulante” e “pensageiro”, ou seja, na nossa
leitura, aquele que se mestiça no movimento do sonho e na viagem do pensamento.
Nesse sentido, se a viagem é um desafio ao dualismo entre o “eu” e o “outro”, ao
contrário do turismo em que se permanece “fora” e “dentro” de retângulos
(mencionámos, já, a este propósito, em aula, o filme “Babel” 216, onde esta metáfora da
separação é nítida), a viagem é um convite à cultura de fronteira exatamente no
sentido da mistura, do estar “entre” lugares, em estatuto de ambiguidade, de
negociação que envolve um processo de tradução cultural em plena zona de contacto.
Nesses contextos, supera-se o calculismo e o essencialismo em direção à contradição,
à perplexidade, ao múltiplo. A viagem constitui, desta forma, a partir do imaginário
de cada um217, um intróito existencial. Ela mostra-se subversiva porque é uma
proposta de mistura e contaminação, de articulação entre espaços considerados
mutuamente exclusivos, como os centros e as periferias. É neste contexto que os
conceitos de “mestiçagem” de Freyre e do estar entre “Próspero” e “Caliban” de
Sousa Santos se tornam chaves, porque, se Freyre ajudou a explicar as especificidades
contextuais do colonialismo no Brasil (apesar de ele idealizar a lascívia patriarcal do
seu “português”) como sendo contingentes em relação aos modelos anglófonos, Sousa
Santos mostrou que a posição não central que Portugal ocupou no principal momento
colonial da Europa (o século XIX) condicionou fortemente o próprio colonialismo
português e o mundo pós-colonial saído deste como sendo um mundo de jogos de
espelhos onde a ambiguidade é fundamental ao entendimento. O mundo aí criado foi
sempre mulato, sempre “cafrializado”, um mundo visto como impuro pela Europa
central, incompetente como colonizador e levado ao paroxismo carnavalesco quando
as elites mentalmente colonizadas pelos modelos norte-americanos (no Brasil) se
lamentavam da herança de “atraso luso”. O atraso perante a “régua” europeia 218, causa
da nossa própria cultura de fronteira, transladou-se para as sociedades coloniais, do
Brasil à África e à Ásia, e aí se multiplicou em diversas dobras e barroquismos. É
curioso, nesse sentido, que Mia Couto remeta – a propósito dos seus usos da
216
Alejandro González Iñárritu, Babel (2006).
Estas primeiras aulas, de cariz fortemente interrogativo e crítico, geram sempre bastante espanto
pela descoberta, dentro de cada um, do “exótico” visto como impensado.
218
Compreende-se por aqui a ligação desta visão sobre o colonialismo português com a de Sousa
Santos apresentada no capítulo anterior sobre a questão da nação em Portugal. Aliás, ele apresenta
relatos de viajantes europeus que – na época do “Grand Tour”, ou seja, no mesmo momento em que
descobriam o exotismo oriental do “turco cruel” nos Balcãs e nos haréns de Istambul – viam os
portugueses como sujos, desorganizados, feios, escuros, lascivos e bárbaros.
217
105
mestiçagem, do viajante entre identidades, do dinamismo miscigenado que encontra
nele mesmo – a sua filiação literária ao escritor brasileiro João Guimarães Rosa que,
segundo ele, foi também, no modo como inventou uma escrita ambígua e um
português “anfíbio”, um tradutor entre os mundos do texto e da palavra. Sousa Santos
fala assim de um colonialismo híbrido, não por ser melhor ou pior, mas pela
necessidade de negociar a identidade em condições adversas 219. Habitou a fronteira
desde muito cedo, fez-se mulato e misturou-se, tornando-se uma espécie de “europeu
deficiente” perante a imaginação central que nos definia entre o excesso do que não
tinha (um idílio exótico) e a necessidade do que pretendia (uma espécie de selvajaria a
necessitar que a regimentassem). Se os portugueses são debochados, possuem o
excesso do erotismo, logo, uma espécie de sensualidade pouco civilizada; mas, por
outro lado, esta era a visão que os portugueses tinham das mulheres que encontravam
no “novo mundo” e, por isso, o seu estatuto intermédio de mestiçagem é que define o
seu ser de fronteira enquanto “colonizador colonizado”.
Parece-nos claro que este conceito ajuda a perceber a alteridade deste programa de
literaturas africanas em relação às visões do “peito ilustre lusitano” que referimos no
capítulo anterior e um breve olhar à bibliografia ajuda a cimentar esse diálogo crítico.
Não querendo adiantar mais sobre Eduardo Lourenço (o título do livro ajuda a
perceber que no nosso programa se pretende mostrar o “fim” do “mito”) e Sousa
Santos, mencionado amiúde, António Sousa Ribeiro surge porque é daqueles
intelectuais que, no mundo de língua portuguesa, melhor ajuda a perceber o conceito
de fronteira como desmontagem de autoritarismos idílicos. O seu texto citado, ajuda a
perceber que as identidades fixas e absolutas são, de facto, mitos porque, na realidade,
os seres humanos são abertos a fluxos assim como os viajantes ao imprevisto. Só a
fronteira permite perceber um modo de comunicação marcado pela “debilidade das
hierarquias”220. Mencionemos, também, a este propósito, Miguel Vale de Almeida que
nos fala do “Atlântico pardo” (exatamente por diferenciação em relação ao “negro”
anglófono de Paul Gilroy), já que ele nos mostra que – no contexto das analíticas póscoloniais – o colonialismo português foi “anacrónico” e “excêntrico”, sendo também
paradoxal, já que foi muitas vezes feito por mestiços de África em adenda aos
subalternos da Europa. Foi também o mais longo porque perpetuado pelo delírio
salazarista. Para Vale de Almeida é essa subalternidade do colonialismo português
219
220
Por exemplo, a falta de gente ou de planificação central.
Ver a bibliografia do programa em anexo: Sousa Ribeiro (2001: 470).
106
que explica, por exemplo, que a construção identitária do Brasil tenha uma relação
muito próxima com África: uma familiaridade baseada no trânsito “pardo” e na
sobrevivência no Brasil de fortes tradições africanas. Uma última referência
bibliográfica para Homi Bhabha a propósito do seu texto citado na bibliografia e
apenas por curiosidade. Ao falar de ambivalência, de estar “entre” e do jogo entre
estereótipo e estigma, pensamos que Bhabha, caso possa ser estendido como
ferramenta analítica dos contextos pós-coloniais para os contextos pós-imperiais mais
latos, nos ajudaria a perceber os processos de “auto-colonização” de que já falámos.
Na realidade, a sua utilização comentada do psicanalista Frantz Fanon ajuda a
perceber que o estigma incorpora a marca do estereótipo de modo ambivalente
porque, no mesmo momento em que rejeita, aspira. De certa forma, a ambivalência
entre o desejo e a repulsa é uma marca não só das heranças coloniais (“pele negra,
máscaras brancas”) como das heranças inerentes aos imperialismos cognitivos (em
que Walter Mignolo nos ajudaria, porque explica a permanência da lógica da
colonialidade para além das colonizações), uma vez que a “imaginação do centro” e a
“auto-colonização” são também misturas entre o desespero de “não ser como” e o
desejo de “parecer com”. Contudo, esta análise, que seria também importante num
alargamento do conceito de fronteira, é demasiado longa para aqui.
E) Programa de Poesia Contemporânea Portuguesa
Quanto ao programa de “Poesia Contemporânea Portuguesa” 221, ele joga também com
uma crítica em relação a processos de análise linear ou de busca de um qualquer
“telos” essencialista e finalista. É evidente que os programas de Cultura e Literaturas
Africanas contêm uma grelha que depois é desdobrada de modo analítico. Mas ela não
se supõe verdadeira e não se assume como sendo mais do que uma convenção
epistémica e discursiva possível. Antes de mais, apenas uma idiossincrasia deste
programa: ele resulta da realização de um curso eletrónico orientado por Luís
Carmelo222. Contudo, ele é depois redimensionado em função da prática docente do
nosso contexto e das finalidades para ele já enunciadas. Como se diz no preâmbulo,
tendo em conta a finalidade geral do trabalho já mencionada, pretende-se aqui ver o
221
Francisco Nazareth (2008) “Escavar Camadas no Presente: A Poesia Contemporânea Portuguesa
Enquanto Espaço e Mundividência” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em
anexo: anexo 6.
222
Um dos cursos fornecidos em rede pela plataforma virtual do Instituto Camões.
107
literário como dimensão discursiva do presente em que as “porosidades” culturais são
transversais a outras áreas de criação e remetem para “sintomatologias” do espaço e
do tempo. A “arte poética” é, desta forma, mergulho no presente da cultura, da
contemporaneidade e da internacionalização de contaminações, jogando aí em tensão
com tradições, passados míticos e dimensões imaginárias e arquetípicas do mar, do
exílio e da partida.
É por isso que no plano dos objetivos se pretende abrir da sensibilidade poética para a
identidade em tensão entre o global e o local, mobilizando (e contaminando)
referências que os alunos tenham de outras áreas. Nesse processo é fundamental a
combinatória transversal, de modo a beber, em outros registos culturais, espaços que,
pelo registo criativo223, por um lado consolidam algumas referências e, por outro,
integram-nas, de modo desmontável, num espaço reflexivo autónomo (onde as
referências construídas criativamente vão levar a um texto estranho, outro, prático,
intercultural e derivado, em casuística problemática, para um além dos critérios de
autoridade que, muitas vezes sem perceberem, os alunos vão pondo em causa). Este
avança dados de “cariz axiológico, cognitivo e textual”, que surgem combinados num
registo de resistência ao cânone que é já próprio dos estudos culturais.
A metodologia explica melhor esta questão, já que os alunos são incitados a criar, a
escrever, a meditar e a desconstruir – por uma nova reconstrução (já deles: autónoma)
– os textos de partida, apercebendo-se aí de um processo de descoberta que os desloca
na direção das suas próprias sombras interiores. Normalmente cada aula supõe um
tema organizador que se desdobra por um conjunto de questões iniciais, nas quais não
se trata de “dissecar” poesia, mas de levantar temas acentuadamente do presente,
integrando neles registos culturais de carácter rizomático (a expressão de Deleuze
para as redes) como inserções contextuais ou motes que animam à descoberta. Os
alunos dispõem de uma pequena antologia de poetas portugueses atuais (que
aparecem citados no programa, tais como Ana Luísa Amaral, Rui Pires Cabral, Vasco
Gato ou Carlos Poças Falcão, por exemplo: uma lista completa seria exaustiva) e,
tendo em conta a temática de cada sessão, escolhem o poema que acham mais
adequado ao espelhamento da problemática levantada (pode, por vezes, ser o mesmo
de outras sessões: a polissemia é um convite). Em processo de integração no seu
“nicho cultural próprio”, os alunos fazem uma pequena reflexão sobre o poema que
escolheram e debatem-no em aula com o professor e com os colegas: sucede muitas
223
E o programa pode ser visto também como um programa de escrita criativa: já lá chegaremos.
108
vezes que dois alunos escolheram o mesmo poema por razões diferentes, o que é
interessantíssimo, dado que – muitas vezes de forma desconfortável (o autoritarismo
permite comodidade em relação ao ocultar da nossa sombra: a autonomia não) – isso
suscita um confronto dialogante com a singularidade. Em seguida, essa escolha fica
registada em “diário de bordo” (o mesmo sistema que usamos para o exame de
consulta em outras disciplinas) em função do tema organizador, passando-se depois
para um espaço de “escrita criativa” no qual a “reescrita dos próprios poemas” leva ao
encontro com dois aspetos fundamentais: a surpresa (o texto escrito, fixado,
“autorizado” em edição, ao entrar em elisão, mostra que não tem carácter rígido, isto
é, apresenta, para pasmo, a possibilidade de o seu critério de verdade ser fluido e
fugidio) e o desconforto (a aura do novo texto é outra, isto é, a “identidade” – fixa em
registo e confrontada com outras à volta – torna-se problemática, sujeita a
contestação, espaço esse que é o da incerteza já que leva ao assumir de uma
responsabilidade perante o que é dito no mesmo momento em que esse “dito” é ainda
processo de auto compreensão; ou seja, diz-se para se tentar entender, levando à ideia
de que o ajustamento perante “verdades outras” é necessário aos nossos próprios
processos de auto-construção como seres no mundo). Em outro momento, após a
leitura coletiva dos “textos novos”, em que a surpresa e o assombro são “espaços
chave” e em que a “tempestade cerebral” em torno dos novos objetos poéticos
surgidos procedeu à metamorfose dos alunos numa espécie de “poetas em causa
própria” (e em “casa” própria, já que se trata de uma apropriação linguística e
cultural), os alunos serão levados a registar essa reflexão “pós-poética” em
metadiscurso, pois é uma hermenêutica em causa própria (e em casa). O que é curioso
– e o que marca muito os exames finais – é que, aos poucos, mediante o texto poético,
estas reflexões vão permitindo aos alunos construir os seus próprios monumentos
(que, como é óbvio, são também apócrifos, mas, por outro lado, evidências de
singularidades plurais) que, no final, se transformam na sua própria grelha ou rede de
significações, dado que, no exame, são confrontados com um texto opinativo sobre
estéticas poéticas contemporâneas e são convidados a posicionar-se criticamente
perante elas. Assim, a chave de leitura inicial (que é no fundo uma pluralidade, como
veremos nos conteúdos), vai sendo substituída aos poucos pelas chaves transversais,
que constituirão um texto outro.
109
Penso que teremos já tecido algumas considerações sobre a avaliação na análise da
metodologia224 e, por isso, passaremos a uma análise dos conteúdos que, como é
óbvio, não necessitam de qualquer análise cumulativa linear, assim como os temas e
os autores a eles ligados surgem apenas como sugestões225. Assim, falamos de
estilhaços do “presente” porque nele se trata de uma existência agudamente marcada
pela ausência de referências estáveis e muitos poetas fazem uma reflexão formal sobre
isso. Assim, a melancolia, muitas vezes em conjunto com o agudo sentimento de
anonimato urbano, surge combinada com uma ideia de destino que é herança de um
peso tradicional, mas misturado com o esgotamento metafísico e salvador que
balizava a vida ontológica de um certo passado. Tal processo, inerente às crises
contemporâneas das grandes narrativas, remete para uma certa desorientação (formal
por orfandade canónica e temática por orfandade de sentido), mas também para um
narcisismo paradoxal, baseado num quotidiano de artifícios, cujos indícios nos
surgem no texto poético pela integração das linguagens eletrónicas e seus
dispositivos. Há também a sensação da diluição, em que a incompletude da identidade
pode ser entrevista. A cidade é paisagem quase permanente e ubíqua nestes
“novíssimos” poetas. É marcada por rotinas, assume uma atmosfera de cinzentismo e
tem um tom de carência trivial, banal, de um tempo em ruínas.
Estabelece-se pois uma estética de “vasos comunicantes” em que a forma poética
bebe estratégias e imaginários em outras criações e trânsitos onde se insinuam
ligações de poder e saber que são ironizadas e deslocadas, remetendo, por isso, para a
crise dos modelos canónicos de explicação. Há todo um conjunto de geografias da
incerteza, que marca esta poéticas viscerais, instalando-se na subjetividade pelo seu
questionar de modelos rígidos, mas também por não ser capaz de pôr outros no seu
lugar: o vazio real e a simulação transfiguram-se em queixumes que o discurso deixa
entrever, pois no mesmo passo em que se privilegia a ausência de linearidade, instalase uma presença ôntica que, não aceitando apriorismos literários, se sente como que
abandonada a um absurdo paradoxal que funciona por canibalização de critérios e
ditirambos piadéticos.
224
Este programa ajuda a consolidar o que se disse sobre a combinação entre o “formativo” e o
“sumativo”, dado que, sendo o exame final de consulta, supõe materiais de aula que são singulares e
não obedecem a qualquer processo monolítico, desde que o rigor exista a nível das citações e da
coerência de perspetiva.
225
Exceção feita, e questionável, ao tema onde se inclui o poeta AlBerto, dado que se trata de uma tese
nossa.
110
Neste contexto, inclinamo-nos para falar de “microrrealismo”: uma escrita que se
assume como menor, que não pretende dizer o ser, que se instala nas pequenas coisas,
na insignificância, e em que o texto assume uma confessionalidade precária, um nicho
discursivo (paralelo ao confinamento do corpo que vimos no programa de cultura,
mas também por nostalgia de tempos mais imaginários que vividos, mais em torno de
“vates” míticos e cinemáticos que reais) que é imanência claustrofóbica a um presente
no qual o texto é procura, deriva e, com isso, uma espécie de resistência que funciona
por testemunho. Neste plano, parece-nos importante mencionar a figura de AlBerto.
Tendemos, numa tese que não impomos, a pensar que o seu “vitalismo”
desintelectualizado, dando à deriva o estatuto de condição formal do texto por
incorporação de um quotidiano feroz, violento, e por uma sensação de ausência de
futuro que é próxima do niilismo “punk”, é marca de alguma geração posterior,
mesmo a nível ficcional226. O romantismo transformado em raiva e a dilaceração que
nega metadiscursos e instala no texto o “rock”, a droga, o sexo, a decadência e a
velocidade, surgem como um transe desbragado de um Rimbaud lusitano pósmoderno227 marcado pela solidão, pela doença, pelo abandono. Mas essa esfinge, cujo
discurso desarmado se encenou até à desaparição 228, era irónica, ébria, ácida, angústia
de uma sombra irreconciliável e vertigem que é impossível hoje não vislumbrar em
muitos dos que traçam o filão por ele deixado (como, por exemplo, Rui Pires Cabral
ou Vasco Gato).
Na impossibilidade do sentido, por vezes o texto poético busca (com uma certa
consciência do grotesco) o revivalismo paródico de géneros, não sem uma nostalgia
“neo” (barroca, ou romântica) envolvida numa intertextualidade com o filão do
tempo, das tradições, e uma gargalhada, já que a “coqueterie” se torna adiamento
performativo da ausência229. De facto, quando mergulha no mundo, a arte desmascarao como convenção e artifício; aliás, uma das consciências que este registo poético tem
é a da dificuldade de encontrar algo que seja “natural” ou “real”, termos esses que são
sempre objetos de suspensão. Nisso, ele passeia-se muito por questões que são
levantadas a nível do texto social e antropológico, quer a interrogação seja mais
226
Os casos de Miguel Esteves Cardoso e Pedro Paixão.
Ao acabar de escrever isto, tenho dúvidas se aceito esta designação. Contudo, toda a escrita é
interrogação e, por vezes, busca paródica de uma confirmação de nós mesmos.
228
Tão bem captada nas fotografias de Paulo Nozolino, que sempre deram capa aos seus livros e que
mergulham a sua poética num jogo de diluição de fronteiras em relação à imagem e à performance.
229
Nestas interrogações, a poesia não deixa de se passear por estratégias de mistura com o código de
outros géneros de citação, deriva ou reinvenção.
227
111
política (pelo levantamento de questões ligadas ao poder da “multidão” conforme a
sua elaboração em Paolo Virno e posterior trabalho de Antonio Negri) quer seja mais
ligada à globalização da exclusão em contextos de mobilidade tecnológica (conforme
aos estudos de urbanismo, por exemplo de Saskia Sassen), quer seja ainda em torno
da impassibilidade do “momento esfíngico” da arte e da performance social do
distanciamento (Mario Perniola) ou do simulacro como diferimento permanente da
origem (Jean Baudrillard). A nova poesia portuguesa – como Luís Carmelo mostra na
sua escrita230 – está consciente destas questões, embora não engajada nelas nos termos
do mesmo discurso. Contudo, há a consciência dos dizeres contemporâneos como
podendo ser circunstanciais, dado, por exemplo, a presença de estratégias de mercado
que, ao rentabilizarem o valor do artístico, esvaziam o seu potencial crítico.
Trata-se de aprender o incerto que erra entre o tempo e a geografia, o abandono e a
fuga, a autobiografia, o trânsito e a dissipação. Parece por vezes que estamos perante
um catastrofismo que o texto insinua como sendo da ordem da alucinação, mas que se
torna descontínuo como intrínseco à velocidade que condiz com uma perda de
referências, com uma espécie de queixume que parece exigir uma reaprendizagem da
lentidão perante um mundo de atomizações: como se as rotinas nos incitassem a
redefinir o antigo/moderno “flâneur” como criatividade inacabada, por cumprir, e em
que a combinação de registos – por um certo superficialismo – sugere a amnésia e o
apagamento. Nesse contexto, a ideia de prótese é fundamental já que a presença do
“virtual”, do “hipertexto”, mostra o caráter ausente de um corporal confinado que
aponta para o platonismo dos “ciberamantes”, não-lineares, não situados, mas também
não “celebratórios” e vivenciados como fugas em deriva.
Esta excursão mostra de que forma estas temáticas se cruzam, já que elas têm em
comum o apontar do texto poético para um aqui e agora. Remetem para referências
bibliográficas que nem sempre são da ordem do literário, já que o próprio Luís
Carmelo faz uma remissão constante para fora dessa “órbita”. Apresentemos apenas
algumas frases sobre textos escolhidos. Com Marc Augé, tentámos uma referência ao
“não-lugar” como esse impessoal e incaracterístico contemporâneo que podendo ser
“todos os lados” não é “lado nenhum”. Douglas Rushkoff, por exemplo, fala na
“coerção” de muitas estratégias usadas pelo mercado para nos despersonalizar e nos
reconstruir como consumidores. O texto de Fernando Pinto do Amaral (ele próprio
apresentado como poeta na antologia) é já uma meditação antiga sobre a
230
Ver a bibliografia do programa em anexo.
112
contemporaneidade literária. Leonel Moura vem traçando percursos escritos sobre as
nossas formas de vida em termos de desaparição precária.
F) Programa de Pensamento Contemporâneo Português
Por fim, quanto ao nosso programa de “Pensamento Contemporâneo Português” 231,
ele ocupa o último lugar desta apresentação, dado que ele tem um estatuto ambíguo.
Na realidade, como o currículo dos alunos de Filologia Portuguesa supõe uma cadeira
obrigatória de “Introdução à Filosofia”, para a qual nunca houve professor, o Leitor
foi “convidado” a lecioná-la mas, para tal, resolveu – como condição apresentada para
a elaboração do programa – conciliar a obrigatória abordagem da tradição filosófica
ocidental com uma integração, não só no âmbito português, mas também no da
finalidade já apresentada para o projeto de trabalho delineado. Assim, embora o
programa tenha um pendor mais canónico, ele não abandona a “problematização
crítica”, já que escolhemos um tema organizador que permite não só desmascarar
ficções de sentido grandioso na tradição ocidental, como, ainda, integrar o
pensamento
feito
em
Portugal
(questionando
aí,
também,
mitologias
providencialistas) nessa linha quimérica que o ocidente traçou como inerência utópica
e que passa também pelo modo como foi entendida a “longa marcha” do progresso,
numa leitura que é devedora da ideia de Nietzsche sobre o historicismo, por via do
desmascaramento deste como ilusão em Foucault.
Assim, a nível dos objetivos, pretende-se mostrar o contacto da “singularização”
portuguesa contemporânea com os seus “correlativos” internacionais pela sua
integração em “linhas de força” que têm um cariz “histórico”, mas problematizando a
“tradição” – por contingências da obrigatoriedade do programa – em função da
atualidade que constrói “suplementos” culturais críticos no universo dos alunos,
mediante o diálogo com o seu contexto. Pretende-se dar “pertinência” atual às
temáticas apresentadas, não num sentido de fechamento num passado amorfo, mas
atirando o texto reflexivo para o seio do atual como poder crítico “aglutinador”
quanto a competências “reflexivas” num “uso” diverso da língua.
231
Francisco Nazareth (2010) “Lugares de “Nenhures”: Utopismo, Imaginação e Mitologia no
Pensamento Contemporâneo Português” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em
anexo: anexo 7.
113
O texto filosófico (quando apresentado em trabalho de aula, é-o em função do
diálogo, sendo curto, sucinto e enfático, correspondendo ao modelo da pequena
citação) é um mote de debate, pois supõe o exercício do pensar e o levantamento de
linhas de força em construção argumentativa que leva à consequente elaboração de
um “diário de bordo”. Este será matéria, assim como as leituras feitas (poucas, muitas
vezes apenas extratos existentes em rede, já que a bibliografia sobre filosofia existente
na biblioteca da Filologia Portuguesa é escassa), do exame de consulta para o qual os
alunos levam materiais e que, dado o tipo de registo pessoal que incita, supõe a devida
singularização do pensar que é também objeto de defesa oral.
A nível dos conteúdos, a nossa análise concentra-se aqui no conceito essencial, não o
reelaborando em função dos autores, dado que isso suporia um desdobramento
extenso dos conteúdos de aula. Os conceitos de “utopia” e “utopismo” que usamos
neste programa passeiam-se pelo questionamento das diversas ilusões arquetípicas
com as quais a tradição ocidental se essencializou, primeiro, e se racionalizou de
modo subjetivado, depois, ou seja, na modernidade, sendo supostamente questionada
não só a nível do vitalismo nietzscheano, e da abertura ao pulsional feita por Freud,
mas também pela crítica da ligação entre progresso e técnica surgida no mundo do
“pós-guerra”. A reflexão portuguesa faz as suas específicas apropriações dessas
temáticas, mas redefinindo-as em função de uma influência histórica forte da igreja e
de um clericalismo que assumiu o valor de discurso de estado com o salazarismo.
Posteriormente, há uma integração do pensar nas linhas de força da reflexão ocidental
e o mundo que se abriu após Abril de 74 é fundamental para isso.
Contudo, sem entrarmos nos autores e centrando-nos no utopismo, na utopia e na
relativização do progresso, vemo-los como filões que sempre marcaram a reflexão
ocidental. Essas “essências”, essas “substâncias” esses lugares de “nenhures”, essas
visões do “bem”, esses “impérios” (no caso português, o “quinto”) – fossem eles
escatológicos, racionais, ou as duas coisas – sempre marcaram a ideia de uma reforma
da natureza humana (que nunca se soube muito bem o que era, mas que sempre se
tentou definir) à luz de um qualquer predicado quimérico de adestramento em que
mais tarde entrou a tecnologia com os seus dispositivos. Tendo o horror da morte em
massa criado (posteriormente à descoberta “vital” da nossa infatigável tensão entre
construção e destruição) o sinal “distópico” contrário, passou-se depois para reflexões
que vieram desmascarar, no nosso mundo contemporâneo, o estatuto desses
determinismos como convenções. Dessa forma, abre-se para um pensamento que se
114
vê como inconclusivo e que questiona formas de poder e saber que nos são coercivas
como artifícios normalizadores que nada têm de natural. Na realidade, a ideia de que o
mundo muda “naturalmente” para melhor pela ação humana, a ideia de que o
progresso é inevitável, a ideia de que existe uma linha que nos levará a um qualquer
tipo de terra prometida (o céu, a ditadura do proletariado, o império, a eternidade,
etc.) é construída ao longo da história da cultura e surge comprometida sempre que
confrontada com o seu lado castrador, e destrutivo (é possível, por exemplo, ver que
hoje se cria exclusão em função da quimera do mercado livre: as essências mantêm-se
vivas nos discursos que circulam). A ideia de que anularemos a história pela
descoberta do sentido e que, por isso, nos reconciliaremos com o tempo, de certa
forma anulando-o, não é nova. Ela existiu em discursos antigos e permanece entre
nós232. Simplesmente ela ganha formas subtis e o mais simples objeto do quotidiano
está carregado de utopismo: veja-se como um simples anúncio a um telemóvel nos
promete um progresso em relação a algo melhor do que o que temos agora. Ora, é esta
fé no sentido da “régua”, este sonho essencialista, esta subjetivação racional
antropocêntrica e moderna, que se caracteriza nos autores do programa, em diálogo
com a crítica que é feita pela presença dos pensadores da “suspeita” e, no caso
português, por exemplo, com Viriato Soromenho-Marques, Eduardo Lourenço ou
José Bragança de Miranda. Para tornar mais clara esta crítica questionadora à ideia
utopista de progresso (esse salto que anularia o tempo por uma espécie de escatologia
onde se inclui – apesar de secularizado – o “olho cosmológico” da modernidade)
apenas alguns comentários sobre a bibliografia. O texto de Soromenho-Marques que
aparece citado é um conjunto de ensaios onde se questiona a forma como uma certa
modernidade saída da fé na razão (que o iluminismo construiu) foi capaz de tornar
monstruosa a técnica e atropelar o planeta em termos ecológicos. O texto de José
Bragança de Miranda tem como subtítulo “linguagem e violência na cultura
contemporânea” e contém, entre outras, uma meditação sobre a omnipresença do
terror e outra em que ao conceito de “atualidade” se juntam as problemáticas do
presente e da história em diálogo com Foucault. O texto de Fernando Gil pode em
232
Os políticos em campanha, para se fazerem ouvir, usam muitas vezes a dicotomia retórica do “eu”
ou o “caos”. Contudo, também se pode dizer que o desafio a este tipo de perspetiva pode ser visto
olhando discursos anteriores ao platonismo, vendo no anular do tempo algo próximo ao monismo em
Parménides e na aceitação da fugacidade e fluidez incomportável do mesmo algo vizinho ao que se
encontra no conceito de mudança em Heraclito.
115
parte ser lido como uma meditação epistemológica sobre o valor do conhecimento de
um ponto de vista que inclui a relação entre a evidência, a convicção e a construção.
Tentámos por aqui (e fazendo uma síntese ou resumo do que fica dito) apresentar, em
diálogo crítico com o que viera de trás, o seguinte: um projeto de trabalho assente
numa demonstração das linhas de força da contemporaneidade portuguesa, que passa
por uma desmistificação de nacionalismos pomposos; um olhar sobre o cinema como
desocultando uma país que muitas vezes desaparece das narrativas celebradoras; um
olhar sobre a cultura como estando integrada no momento presente de um ocidente
contraditório, como interrogação sobre si mesmo, movimentando, por isso, linhas de
força que são, em grande parte, transnacionais; um olhar sobre testemunhos literários
“outros” que, a partir do que foi o “império”, escrevem “de volta” mostrando que, se
por um lado o “português” nada tem de heroico (como quisera ver a narrativa
salazarista), o espaço “pós-colonial” que com ele dialoga vem dizendo como se
constrói na língua portuguesa uma idiossincrasia intensamente ambígua; um olhar
sobre poéticas do presente que demonstram, a partir de imaginários urbanos,
fenómenos de melancolia que são, enquanto espaços singulares de confrontação,
modos contemporâneos de dizer que não escapam às linguagens do presente; um olhar
sobre as convenções do pensamento ocidental como não sendo mais do que fábulas,
muitas vezes perigosas, que marcaram a nossa reflexão sobre a condição
contemporânea e às quais o pensamento feito em Portugal não é obviamente imune.
Esta excursão é uma excursão de resistência lateral. Pretende mostrar que, nos jogos
da verdade, a construção de “objetos outros”, ao desmontar estatutos de convenção,
não se pretende necessariamente mais sólida que eles enquanto dispositivo discursivo.
Ela é mais uma forma, entre outras, de construção de prismas, apenas não se
pretendendo monumental nem tentando apresentar-se, em registo apócrifo, como
única.
Conclusão
Tentámos, mediante o que fica dito, e na senda da demonstração da monumentalidade
apócrifa, traçar uma linha que liga a análise do discurso em Foucault ao nacionalismo.
Passa depois à nossa noção de currículo oculto, remetendo em seguida para a
historiografia búlgara e seus valores, assim como para a sua crítica. Entra em seguida
na recuperação axiológica dos valores filogenéticos da monumentalidade apócrifa
búlgara mediante a sua recapitulação ontogenética em currículos de literatura e
116
“civilização” portuguesas. Apresenta suspeitas sobre a ideia de nação em Portugal
entre historiadores, antropólogos e sociólogos que remetem certos tópicos para
delírios derivados da narrativa de poder salazarista. Vai depois na direção da
apresentação de programas que, entrando em diálogo resistente com o que fica
apresentado – e tentando dar uma imagem contemporânea e arejada de Portugal e da
sua cultura como estando integrados em circuitos transnacionais de referência que
nada têm de exclusivista – mostram que é possível ver vários outros espaços
portugueses – e de língua portuguesa - que andam afastados dos discursos da
grandiloquência exaltadora e delirante. Com o que fica dito, fomos tentando
demonstrar o seguinte:
1 – O trabalho de Foucault é essencial para se perceber que não existe uma adequação
absoluta entre linguagem e real, no sentido de uma verdade positiva e cumulativa. 2 –
A história não é uma marcha linear de qualquer tipo de espírito essencial ou
primordial, que permaneceria incólume e substancial: tal metafísica suporia algo de
anterior ao tempo. 3 – O sujeito não é algo estável e exterior aos discursos que o
formam: ele é crivado por espaços de enunciação que se referem a contextos espaciais
e temporais e que o fazem falar dentro deles. 4 – Esses discursos que o formam são
regimes de verdade, estabelecidos na relação entre dispositivos de poder e
configurações de saber. 5 – O nacionalismo desdobra-se desta forma, no contexto da
modernidade industrializada e capitalista, mediante uma disseminação tecnológica e
propagandeada da escrita e de combinatórias entre a “ilustração” e o romantismo, que
enformam currículos ocultos inerentes à escolarização normativa. 6 – A autointerpretação histórica e literária da mitologia de coesão búlgara passa por aqui como
máquina mitológica de reconversão da retórica nacional em discurso hegemónico. 7 –
Mesmo na Bulgária existem discursos divergentes que resistem a este modelo e que o
mostram como uma forma “auto-colonizada” de lidar com uma suposta “treva”
otomana, mediante a criação de um registo solene (monumental) e indiscutível (apesar
de apócrifo). 8 – As leituras curriculares de Portugal, da literatura portuguesa e da
“civilização” portuguesa recapitulam na ontogenia dos alunos um horizonte de
expectativas que é dogmático e que encaixa de forma acrítica na sua filogenia
histórica e literária nacional. 9 – Para encontrar um tal conjunto discursivo de
arcaísmos rústicos, imperiais e solenes sobre o peito ilustre lusitano é preciso, em
Portugal, regressar ao registo salazarista. 10 – Em Portugal a nação é tudo menos um
referente absoluto e consensual, apesar da longevidade do espaço territorial. 11 - A
117
construção da nação é, quando muito, da ordem do processual e ver Portugal como
um destino mítico é da ordem do psicanalítico e da ilusão que o imagina como centro.
12 – É possível apresentar uma versão divergente sobre Portugal, os portugueses e
mesmo o modo como os espaços pós-imperiais e pós-coloniais estão a lidar com a
língua e com as culturas que nela se expressam; a serenidade divergente em diálogo
resistente com a solenidade delirante é, por isso, um convite a uma visão aberta sobre
espaços e tempos em transformação permanente.
Os pontos aqui apresentados não constituem de modo algum um fechamento, mas um
convite à continuação do filão por eles abertos, já que levantam bastantes questões.
Até onde vai o desejo de mudança dos alunos, isto é, onde começa a sua capacidade
para pôr em causa a solenidade escrita e central em nome de uma divergência oral e
periférica, enquanto metáforas da colocação do saber em circulação? Quais são os
referenciais da monumentalidade apócrifa búlgara que se aproximam dos vizinhos
balcânicos, nomeadamente em espaços da antiga Jugoslávia, e em quais diferem,
sobretudo tendo em conta que as experiências contemporâneas são por demais
diferentes? Em que aspetos a visão de Portugal como arauto civilizacional não
constituirá uma sublimação do inconsciente coletivo imperial marcado por ideias
imperiais irredentistas e herdeiras das mitologias de perenidade criadas pelo século
XIX e a sua máquina de reprodução de imaginários? De que forma insistir em mostrar
visões divergentes de Portugal, dos portugueses e da sua criação literária e cultural
que desconstruam complexos passadistas e fechados? Pontos a ter em conta numa
investigação e num trabalho de campo, nomeadamente exercendo as funções de Leitor
de Língua e Cultura Portuguesas, que queremos, como é óbvio, continuar.
Tendo, aliás, a motivação principal deste trabalho sido de ordem profissional,
nomeadamente ligada ao ensino de cultura portuguesa para estrangeiros, o escopo a
ela ligado cresceu bastante tendo em conta, não só a experiência docente, mas toda
uma cartografia de aprendizagens que constitui a experiência de vida docente – e não
só, uma vez que remete para um diário interior de viagens e, ainda, para
apontamentos, imagens e leituras a elas ligados – no estrangeiro, nomeadamente
numa região tão específica como são os Balcãs e num lugar – ainda mais específico –
como aquele que a Bulgária ocupa, enquanto espaço e território, dentro da dinâmica
geral da região, o que, como se torna claro a partir da abordagem efetuada, os
currículos de aprendizagem literária e historiográfica refletem (sendo também clara a
resistência a isso). Estamos, por isso, em crer que este trabalho é apenas um primeiro
118
momento motivacional de um “trabalho em progresso” que remeterá para
sintomáticas narratologias referentes à nação enquanto espaço discursivo de cariz
antropológico, sociológico e historiográfico, construído a partir do olhar que vem de
fora e é incorporado e interiorizado como próprio, imaginativamente central e “autocolonizado”. Estamos convictos, aliás, que os Balcãs e a Ibéria possuem essa matriz
de regiões de fronteira onde eventuais ambiguidades podem crescer de modo curioso:
talvez como uma “Eurásia” e uma “Afropa” em diálogo “semi-periférico” que
gostaremos de continuar a explorar enquanto filões intelectuais.
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