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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DO PORTO Francisco Nazareth 2º Ciclo de Estudos de Mestrado em Português Língua Segunda/Língua Estrangeira Monumentalidade Apócrifa: Discurso, Currículo e Poder. Uma Experiência de Ensino de Cultura Portuguesa a Estrangeiros 2012 Orientador: Professora Doutora Isabel Margarida Duarte Versão provisória 1 Agradecimentos O trabalho aqui apresentado tem como objetivo principal a aquisição de uma graduação relacionada com o ensino de Língua e Cultura Portuguesas para estrangeiros, conforme diretivas elaboradas em quadro normativo superior que regula as funções dos Leitores do Instituto Camões I.P.. Contudo, ele estendeu-se muito para além disso, conforme se perceberá, e os principais incentivadores de tal processo são os seguintes “culpados” que passo a nomear: os meus colegas do – assim denominado – “Bloco de Leste”, Sofia Soares (Zagreb fica, seguramente, uma cidade mais pobre sem ela), André Cunha (cujo dissidência intelectual se tornou fundamental para que eu pudesse entender – e cito – certos “vultos” académicos da região), Clara Riso (cujo sorriso sempre ajuda a aliviar o peso das “monumentalidades”), Patrícia Ferreira (sabedora, na pele, do verdadeiro significado da palavra “apócrifo” em contexto “pósCeausescu”) e Joaquim Ramos (Praga já não tem Kafka: foi substituído à altura); sem eles, este esforço não teria tido metade da motivação que teve. Os meus amigos Tristan Lefilleul (autor de entrevistas tardiamente traduzidas e que, por isso, não puderam ser integradas nesta tese, vindo a constituir material de trabalho para o futuro: um grande obrigado segue no vento em direção a Ulan Bator) e Sasho Nedelkovski (por me ajudar a perceber o sentido que ainda tem, para muita gente, a proposta de multietnicidade que deveria unir os “eslavos do Sul”). O grande Francesco Martino, profundo conhecedor da região e capaz de ser, nos tempos que correm, um jornalista que escreve com honestidade. As minhas ex-alunas Ani Nikolova e Deya Gavrailova que, com custos pessoais, sempre questionaram modelos dogmáticos que lhes eram impostos e me facultaram informações preciosas para o entendimento do “currículo oculto” como estado manifesto de poder, superando, por isso, “fronteiras”. A Professora Doutora Isabel Duarte pelo carinho e boa vontade colocados na supervisão deste trabalho: não esquecerei a nossa bem-humorada viagem a Veliko Târnovo. A minha amiga Lurdinha Paniago: sem as nossas conversas – curiosamente também em Veliko Târnovo – eu não teria sabido canalizar a conceptualização foucauldiana nesta perspetiva. A todos aqueles que aqui não menciono e que me ajudaram; também, a todos aqueles que me dificultaram acesso às informações de que eu precisava: constituíram um sintoma interessante de muito do que aqui se diz. Um grande obrigado, Francisco Nazareth, Sófia, Setembro de 2012. 2 Introdução Este trabalho tem como tema organizador a noção de “monumentalidade apócrifa”, aplicada à análise dos discursos culturais nacionalistas enquanto espaços de poder e saber que são veiculados por currículos escolares. Nesse sentido, usaremos como ferramentas de trabalho conceitos de cariz foucauldiano para podermos desmontar, enquanto regimes de verdade, discursos que se apresentam como indiscutíveis, sendo, no entanto, para nós, apenas convenções. Monumentalidade apócrifa quer dizer, no contexto deste trabalho, um discurso cultural de autoridade que, sendo discurso, se apresenta como facto. Existe nele uma suposta adequação entre linguagem e real que é absoluta e uma noção teleológica e positiva de perenidade - e ancestralidade - que não é posta em causa. Nesse sentido, o discurso, concebido como a verdade, é solene e ritual, afirmando-se como o poder de uma verdade maior, essencial e profunda que, sendo apenas uma versão do tempo e do espaço, é apresentada como algo indiscutível, ocultando-se o seu convencionalismo e manobrando-se uma enunciação tida como algo de universal e necessário que, pela ocultação da divergência, exclui em relação a si mesma qualquer dissidência. Este espaço discursivo monolítico e inabalável, embora careça de confirmação absoluta, é uma construção convencionada e performativa, um horizonte de expectativas textuais que é único e idealizado e onde qualquer assombro epistémico que o questione é visto como carecendo de fundamento. A construção do tema da monumentalidade apócrifa, sustenta-se em temáticas foucauldianas (não só no trabalho de Michel Foucault, mas também no de comentadores) (1979/2007, 2001, 2003, 2003, 2005, 2005, 2007, 2010), nomeadamente na questão do binómio poder e saber enquanto discurso normativo de adestramento que estabelece um regime de verdade tomado como mito de coesão primordial. Ele cria, em termos coletivos, a hegemonia daquilo que pode ser dito e se transforma em vigilância interiorizada que faz falar um determinado tipo de regime de verdade. Veremos em seguida como é que este regime de verdade, na senda de Foucault, sustenta as análises sobre o nacionalismo como sendo um discurso de convenção criado em torno dos dispositivos da modernidade que o estabelecem como registo ritualizado de hegemonia social. Mobilizaremos aqui os estudos em torno do nacionalismo de Patrick Geary (2008), que demonstram o seu lado apócrifo, de Ernest Gellner (1983, 1996), que mostra o quanto o nacionalismo é devedor da 3 industrialização capitalista e é seu parceiro, de Eric Hobsbawm (1983/2000, 1990/2008, 1990/2011), que apresenta a propaganda como disseminadora da língua, da etnicidade e da religião e a tradição como algo inventado e não perene, e de Benedict Anderson (1983/2008) que nos mostra o quanto a disseminação da imprensa escrita se transformou em discurso de poder para a imaginação comunitária. Esta narrativa toma, na nossa perspetiva, a forma de um currículo oculto nos estudos historiográficos, literários e culturais, no sentido não de estar absolutamente oculto, mas de não se mostrar como convenção. A sua apresentação como “a” verdade e não como “uma” verdade é que oculta o seu carácter convencional: remeteremos esta noção para o trabalho de Tomaz Tadeu da Silva (1999, 2000/2011). Para sustentar este tema, desenvolveremos uma análise do discurso nacionalista na Bulgária, conforme ele se apresenta na vulgata histórica e literária, tendo em conta os seus tropismos, afirmações e lugares comuns, mediante o estabelecimento de um recorte histórico que refere o tempo da presença otomana. Em seguida, apresentaremos versões críticas deste monumento, não só feitas por estudiosos internacionais, mas também búlgaros, que demonstram o seu carácter apócrifo de convenção que, sendo silenciada enquanto tal, se apresenta como dogma indiscutível. Mostraremos, depois, como os valores deste tipo de nacionalismo se recapitulam, enquanto máquinas poderosas de imaginação social, na leitura de uma cultura estrangeira. Usaremos para isso a teoria da recapitulação, como modelo teórico que permite ver como a filogenia histórica, cultural e literária dos currículos búlgaros se recapitula como ontogenia na leitura que é feita sobre Portugal, os portugueses e a literatura portuguesa. Escolheremos referenciais que são próximos temporalmente da presença otomana na Bulgária, tais como os Lusíadas e as descobertas. Mostraremos ainda que a nação não é indiscutível mesmo em Portugal, espaço territorialmente estável há muitos séculos. Para muitos historiadores, antropólogos, pensadores e sociólogos portugueses o referencial nação é quando muito gradual e tomar os portugueses e Portugal como algo tipológico e perene é da ordem do delírio: é preciso regressar à máquina discursiva do Salazarismo para encontrar tal ideia indiscutível. Por fim, mostraremos como a nossa experiência docente na Bulgária levou à necessidade de programas culturais que se apresentassem como espaços de resistência dialogante e contrastiva em relação ao critério de autoridade indiscutível de uma visão arcaica e idílica de Portugal. Com o cinema português visto enquanto antropologia visual, a cultura como resistência que parte do corpo como afirmação política de 4 dissidência, as literaturas africanas como espaços mestiços que desafiam a ordem do discurso de poder outrora imperial, a poesia como estando dominada por um presente urbano e internacionalizado a nível da linguagem e dos afetos e o pensamento como entrando em ordens discursivas que passam por suspeitas quanto a mitologias racionalistas (discutindo e desconstruindo o carácter convencional dos idealismos modernos que promoveram utopias de progresso dominadas pela ilusão e pela promoção da catástrofe ecológica), tentamos apresentar um discurso divergente sobre Portugal e os portugueses, aliás, convenhamos, significantes em profunda e quotidiana mutação. É nossa intenção, por isso, mostrar como a monumentalidade apócrifa não é mais do que um discurso de poder que se apresenta como indiscutível, muitas vezes pela invocação do medo e do domínio da escrita sobre o oral, do professor sobre o aluno, do centro sobre as periferias. O nosso registo, mais do que pós-colonial, é talvez pósimperial: mostra como se pode estabelecer um diálogo entre as periferias da Europa que seja um convite à serenidade no encontro e no diálogo entre as pessoas. Nem os búlgaros são vítimas perenes de qualquer tipo de jugo, nem os portugueses são peitos ilustres que apenas avançaram de forma imaculada o poder da – aliás discutível – “civilização”. Um convite à abertura, portanto, e ao exorcismo dos vários esqueletos guardados em armários de ficções históricas com cariz problemático. 5 Capítulo 1 – Discurso de Poder e Nacionalismo: Os contributos da discursividade foucauldiana para a análise da emergência moderna do nacionalismo em Patrick Geary, Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson e suas consequências numa possível conceção de “currículo oculto” O primeiro capítulo deste trabalho pretende colocar em diálogo a ideia de nacionalismo, conforme esta dá corpo ao “currículo oculto” (para esta noção, remeteremos para Tomaz Tadeu da Silva 1) da escolarização na Bulgária a nível das noções de cultura, civilização, literatura e identidade (mediante um processo de homogeneização). Mas para chegar à ideia de nacionalismo e de nacionalidade – e à sua problematização – é preciso ver de que forma olhamos para essa ideia do ponto de vista da subjetivação e do regime de verdade em que a instituição escolar se encontra. Para tal, vamos recorrer a uma leitura conceptual herdeira de Michel Foucault – que constituirá a grelha intelectual de todo o texto – sobre o discurso, nomeadamente lendo-o em diálogo com as noções relacionais de saber e poder, de subjetividade, de arquivo e episteme (que serão aqui lidas no que têm de comum), de regime de verdade, de história, controlo, disciplina (também mediante o estabelecimento de correlações), dispositivo e estratégia. Ou seja: as noções não serão apresentadas de modo separado mas por um processo em que elas se vão definindo entre si de modo relacional. Não nos interessa criar um léxico foucauldiano – isso está feito 2 – mas, isso sim, construir uma grelha de análise baseada em apropriações do trabalho foucauldiano3 e não numa análise do seu pensamento “de per si”, pelo que a periodização do mesmo (nomeadamente a diferença entre arqueologia e genealogia), embora não seja irrelevante, será apresentada sem uma profundidade grande e tendo em conta sempre a sua contribuição para este trabalho como ferramenta. Importa também ver os pressupostos filosóficos de onde parte o pensamento de Foucault, de modo a que se possa perceber que a maneira como se vão analisar os processos do currículo assente numa visão nacionalista da cultura (e da civilização, da identidade, da história e da literatura) não pretende remetê-la para um espaço onde seja vista como “atrasada” ou “arcaica” ou “antiquada”4, mas apenas vê-la como uma 1 A referência para este autor será colocada mais adiante neste capítulo. Judith Revel (2005), Michel Foucault: Conceitos Essenciais (São Carlos: Claraluz). 3 Como Gilles Deleuze, em conversa com Michel Foucault, observa bem, uma teoria é uma “caixa de ferramentas”. Michel Foucault (1979/2007: 71), Microfísica do Poder (São Paulo: Graal). 4 O que seria, aliás, profundamente anti-foucauldiano. 2 6 possibilidade de emergência de um objeto de verdade (e já estamos a usar linguagem foucaldiana) e não “a” verdade considerada de modo positivista, único e linear. A) Foucault e a Analítica dos Regimes Discursivos de Verdade: Saber, Poder, Subjetividade e Normatividade Importa por isso começar pelos pressupostos reflexivos da crítica de Foucault ao pensamento tradicional sobre a história da filosofia (ou talvez pelo modo como Foucault lê a hermenêutica que critica na relação que esta estabelece com a história do pensamento), para percebermos como ele desmonta três pressupostos fundamentais cuja desconstrução nos será necessária: 1 – a desmontagem da noção positivista de verdade; 2 – a desmontagem da noção linear e teleológica da história de cariz “ilustrado”, hegeliano e marxista; 3 – a desmontagem da noção essencialista de sujeito herdeira do racionalismo. A dívida fundamental de Foucault nesta leitura é a sua própria visão de Nietzsche, ao qual ele vai buscar a noção de genealogia para contrapor (complementando-o) ao esforço inicial em torno da arqueologia, para alguns ainda demasiado marcado pelos esforços do estruturalismo. É que, para Foucault, a arqueologia permite uma visão que, diríamos, é mais paradigmática daquilo que conta como regime discursivo, enquanto que a genealogia permite perceber melhor os processos de descontinuidade que aconteceram ao longo dos vários momentos históricos sem qualquer preocupação linear, mas esta diferença supõe uma explicação mais detalhada5. 5 Para Judith Revel, é a relação com o poder e a subjetividade que auxilia a passagem da arqueologia à genealogia. Ao procurar saber o que é o arquivo de uma época, como conjunto de discursos possíveis e pronunciados, Foucault, ao trabalhar o discurso como acontecimento (ao contrário do estruturalismo que o trata como sistema), vai perguntar pelas condições de emergência dessa descontinuidade, ou seja, desse regime discursivo que configura uma relação de saber e poder. Assim, ao “beber” em Nietzsche a noção de genealogia, ele parte para uma crítica da atualidade recusando visões sequenciais (baseadas em pré-existências essenciais) ou tranquilizadoras e apostando numa dispersão. Judith Revel (2010: 79/92), Foucault, Une Pensée du Discontinu (Paris: Mille et Une Nuits). Alfredo Veiga-Neto ajuda-nos a cimentar esta conceptualização quando vê o sujeito moderno em Foucault como objeto de discursos e produto de saberes que nele circulam e o regulam em termos de enunciação. Assim, a arqueologia escava camadas nos discursos pronunciados, revelando fragmentos possuidores de determinados jogos de regras contingentes que mostram como o discurso vem a ser o que é, definindo um determinado sistema de formação. Desse modo, a análise arqueológica descreve discursos em busca de regularidades, articuladas com práticas onde se engendram conhecimentos epistémicos. Por exemplo, um currículo escolar é um exemplo epistémico de uma rede discursiva que tem como objetivo capturar o indivíduo do ponto de vista institucional, cavando aí saberes pedagógicos que instauram uma tipologia subjetiva que é simultânea a uma formação histórica. Alfredo Veiga-Neto (2003: 52/61), Foucault e a Educação (Belo Horizonte: Autêntica). Por outro lado, a genealogia é um modo de olhar a história porque explica uma génese no tempo. Não buscando fundações essenciais, o que não interessa a Foucault, lê as regras de formação discursiva 7 Ora, quanto à verdade, para o registo foucauldiano, não existe tal coisa como aquilo a que o pensamento ocidental se habituou a chamar verdade, isto é, não existe nem uma adequação absoluta (palavra ou conceito que não tem sentido no léxico foucauldiano) entre linguagem e real, nem uma recolha ou descoberta do mundo por processos cumulativos, nem um sentido positivo e unívoco dos conceitos que usamos para dar sentido à realidade. Para Foucault, cada época funciona de acordo com o seu próprio regime de verdade e cada contexto cultural, di-lo-íamos, também. Isto é importante para perceber não só o modo como ele se relaciona com a história do pensamento, mas, ainda, a maneira como ele interpreta os mecanismos disciplinares que se ergueram com a construção da modernidade europeia e, ainda, o modo como esses mecanismos disciplinares deram origem a processos de subjetivação marcados pelo controlo que, segundo Foucault, são ainda a marca da regulação presente na nossa época, assumindo que a tecnologia permitiu à modernidade espalhar-se como narrativa por todo o globo. É preciso insistirmos nisto, para percebermos que Foucault não o vê de modo fatalista: é que, como a modernidade se espalhou como discurso de poder, lá onde há relações de poder, há relações de resistência e, por isso, onde um discurso se insinua como “a” verdade, é sempre possível erguer um outro que mostre estrategicamente que ele é não “a” verdade mas apenas “uma” verdade6. Isto será importante na processualidade discursiva que se segue, para podermos perceber como se ergue, no meio de um espaço discursivo homogéneo, a possibilidade de um discurso “outro” que se insinue não apenas – ou necessariamente - como discurso “crítico”, mas como visão paralela ou acompanhante, inaugurando exatamente uma crítica da postura positivista de verdade que é aquela que se insinua em qualquer discurso de poder que se pretenda mostrar único. É que, para Foucault, ao contrário dos pressupostos quer do racionalismo quer do empirismo clássicos (que perdurariam na fenomenologia), a verdade não está lá à espera de ser descoberta. Na realidade, mais do que descobrir verdades, os discursos “inventam” objetos. Cada objeto assume um valor de verdade que é relacional quanto a outros objetos no momento histórico que ocupa e no espaço contextual em que se situa. Por isso, o valor imanentes às coisas ditas ou seja, vê-as na ascendência, ou seja ainda, nas condições de possibilidade do que é dito. Não se fixa o objeto: buscam-se os fragmentos, as omissões do que vem ao registo interpretável, sem querer conhecer origens absolutas, mas sim processos. De modo resumido: a genealogia analisa processos e a arqueologia analisa momentos. Veiga-Neto (2003: 65/76). 6 “O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exactamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objecto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso”. Foucault (1979/2007: 71). 8 de verdade dos discursos é tanto mais coeso conforme se situam em contextos que lhes atribuem determinado sentido, quanto perdem essa coesão se confrontados com sistemas de pensamento – e, por consequência, de verdade – que lhes não dão o mesmo estatuto. Por isso, a verdade tem que ser situada, isto é, tem que ser pensada de acordo com os processos de significação que a vão estatuir como tal7. Por seu lado, a história não pode ser lida, para Foucault, como a longa marcha do espírito, ou a grande aventura da humanidade, ou, ainda, como o triunfo de uma classe sobre outras em devir dialético. Para se erguer sobre a história este tipo de apriorismo, como “espírito” ou “humanidade”, é preciso imaginar tais coisas como essências primordiais e imutáveis que permaneceriam “acima” (ou pelo menos “fora”) dos espaços relacionais onde se inauguram os saberes e poderes de cada época e, também, onde eles se rompem por descontinuidades que não correspondem a uma marcha que tem um sentido teleológico. É muito importante termos em conta este pressuposto, já que ele nos ajuda a ver como determinadas conceções primordialistas do passado pressupõem a manutenção de identidades únicas que estariam às vezes “adormecidas” em determinados momentos para tão depressa “renascerem” como uma Fénix mitológica. Esta visão da história – que Foucault desmonta arduamente – é uma visão metafísica e substancialista configuradora de um sentido para as coisas que não derivará delas mas de algo que lhes é exterior, ou anterior. Para ele, isto é como se o raciocínio teleológico visse o passado em função do presente, isto é, as coisas existem como existem porque caminham para nós, elas são o nosso sentido e atribuem-nos a bagagem com que nós construímos o sentido do futuro: de certa forma é como se o que existe “hoje” fosse necessariamente pré-determinado pelo que está “antes” 7 Veiga-Neto mostra-nos que, para Foucault, a linguagem, mais do que descobrir o mundo, inventa-o pela sua contingência e parcialidade. É ela que constitui o sentido, é ela que sendo não-natural (arbitrária) não denota mas atribui; é ela que, sendo criada em práticas sociais historicamente determinadas, condiciona o dizer que se dá por uma subjetividade activa. Nós nascemos num mundo que já é de linguagem: onde circulam discursos. Não somos origens nem donos dos processos e, por isso, o discurso é algo de circulatório: construído e problemático e não natural, ou suficiente ou objetivo. Por outras palavras, o discurso não representa as coisas, mas forma os objetos de que fala. Uma prática discursiva é um conjunto de enunciados que forma o substrato de ações e molda a maneira de construir o mundo. O enunciado, assim, não se reduz a uma verbalização proposicional: ele manifesta um saber repetido, apropriado e aceite como rede convencional de verdades institucionalizadas. E é esse discurso que revela o arquivo, ou seja, as regras que em determinado período ou sociedade determinam o que pode ser dito, o que é sancionado como “verdade”. Isso é o que conta como conhecimento para esse contexto e define as regras autorizadas do dizer. Por isso, analisar discursos está para além das analíticas formalistas. Analisar o discurso, na senda de Foucault, é descobrir epistemes, isto é, regras que regem a produção destes, as suas condições de possibilidade como verdade que não é essencial, remota, fundadora, mas que manifesta uma certa ordem de imersão, distribuída por um tecido social, por uma época, por um lugar e, portanto, construtora de subjetividades. O discurso não descobre verdades: cria-as por regimes e é nesse processo que se ativa uma circulação de poder (e saber) como vontade de verdade. Veiga-Neto (2003: 107/20). 9 exatamente porque há um “fora” do tempo (que o período medieval consignava como “Deus”, a modernidade como “razão” e – redistribuindo – o positivismo cientista como “plano da natureza”, Hegel como “devir do espírito”, Marx como “classe”, etc.) que o constitui. Para Foucault, a história constitui-se por descontinuidades e elas não têm que ser lidas como sendo marcadas por um “sentido” que lhes é exterior, por uma “essência” que está fora e que marcha ao longo dela. As épocas respondem por si e as descontinuidades respondem mais pela incerteza que pelo determinismo, mais pelo caos que pela ordem que lhes é interna. É por isso que o conceito de resistência é importante: sabendo o que somos, isto é, sabendo o que nos constitui como subjetividades, podemos inaugurar lateralidades e descontinuidades. Agora, o formato dessas descontinuidades, o regime de verdade que elas inauguram, não está prédeterminado por aquilo a que elas podem ou não resistir, por mais que se relacionem com isso; aliás, se ele é relacional, ele não depende de um “fora de si”, mas de um espaço de imanência onde irrompem acontecimentos, eventos, que não correspondem a um sentido constituído fora do discurso a partir do qual se estabelecem e com o qual dialogam8. Também o sujeito não pode ser lido como essa “coisa” que Descartes viu, ou como esse “campo transcendental” que Kant vislumbrou; a subjetividade não é essencial, ela não é um “eu” estável, permanente, que corresponda às figuras lineares do humanismo erguidas pelo pensamento metafísico. Pensar um sujeito que seja exterior 8 Para Inês Lacerda Araújo, Foucault critica as filosofias da modernidade (o racionalismo, o positivismo, a fenomenologia, o marxismo, o hegelianismo) por estas fazerem valer como transcendente o que constatam empiricamente: fazem-no valer como ciência, como algo dado aí, como determinação produtiva histórica, etc., para fundar um essencialismo antropológico. Por outro lado, é uma ilusão ver a história como evolutiva, progressiva ou causal. A Foucault não lhe interessa a origem, o primevo, o longínquo das coisas. Nós não somos o necessário culminar do passado, não é forçoso que assim seja. As transformações do passado não estão erradas para que nos possamos confirmar como certos. Foram a obsessão representativa do século XVII e a obsessão histórica do século XVIII que levaram a que o homem fosse pensado como unitário. Ora, cada época tem uma articulação significativa do dizer, vestígios que condicionam o falar e o constituir de objetos. Inês Lacerda Araújo (2001: 36/7), Foucault e a Crítica do Sujeito (Curitiba: U.F.P.R.). Esse pendor antropocêntrico da modernidade institui, para Foucault, segundo Veiga-Neto, uma filosofia da consciência (baseada numa natureza comum, universal, progressiva) na qual o mundo está numa relação direta com o agente soberano da sua explicação, cujo progresso – ou desenvolvimento – resulta do uso cumulativo da sua razão, com a qual, supostamente, se vai completando, preenchendo, desalienando (no caso de Marx) e processualizando. O que Foucault faz é destranscendentalizar este sujeito (não é substância dada, não é anterior ao mundo, não está acima da história). A sua concepção autónoma ou singular forma-se em camadas que o constituem em práticas de poder e saber de cada momento histórico. Veiga-Neto (2003: 131/8). Esta análise é devedora de Nietzsche, segundo Revel: é ele que ajuda a recusar a ideia de uma consciência contínua, meta-histórica, é ele que ajuda a recusar o processo histórico como absoluto, é ele que ajuda a recusar o sujeito pré-existente (o solipsismo da tradição cartesiana como mito da interioridade profunda), é ele que ajuda a recusar uma ideia tranquilizadora do devir teleológico, fundido e reconhecido em e por nós. Não há teleologias: há acidentes, desvios, bifurcações, dispersões. Revel (2010: 86/92). 10 aos discursos que o constituem é como pensar um “olho cósmico” que contemplaria o processo discursivo de organização de enunciados, mas estando fora deles, de modo estável, impassível e analítico. Grande parte da história do pensamento moderno pensou assim, ou seja, pensou a partir desta ilusão de que é o sujeito que constrói os discursos e organiza os enunciados e não – por outro lado – que são os discursos e o processo enunciativo que dão forma à maneira como ele pensa. Esse sujeito metafísico seria “a-histórico” e “a-geográfico”, ou seja, constituiria uma “natureza humana” universal, imutável, um espírito/sombra da história e da geografia que estaria em todos os lugares e em todos os tempos. Se é verdade que a modernidade potenciou tecnologicamente a ubiquidade dessa conceção, mediante a disciplina, primeiro, e posteriormente mediante o controlo das subjetividades de forma a que elas se ergam como “universal primeiro” - porque a modernidade se instaurou mediante dispositivos disciplinares que constituíram uma norma, isto é, um padrão que por sua vez inaugura aquilo que é o desvio (voltaremos a esta questão a propósito da relação entre poder e saber9) – aquilo para que Foucault chama a atenção (e é isso que é preciso enfatizar) é que não existe nada de “natural” no sujeito moderno, mas, sim, de “naturalização”. Aquilo que nós tomamos como “natural” ao chamarmos “natureza humana” a uma determinada forma de “ser” é inaugurado por discursos e dispositivos de enunciação que dizem respeito a épocas e – para usar o conceito deleuziano – a “cartografias” 10. O sujeito que somos descobre como “natural” o que é produto “inventivo” dos espaços discursivos da sua época. Dito de outra forma, o sujeito é sempre um sujeito situado em malhas de enunciação: ele age, pensa, fala, silencia, de acordo com códigos e enunciados que correspondem ao sistema de convenções que estão disponíveis no discurso que usa. Não existe sujeito exterior, fora do tempo e do espaço. Mais: o posicionamento dessa subjetividade como sendo um “fora” metafísico, corresponde exatamente a uma estratégia de poder que, ao ser invisível como tal, se mostra relacionalmente como “natural”. É por isso que a própria maneira como Foucault fala da relação entre poder, saber, verdade e sujeito, no discurso, é 9 “De uma maneira geral os mecanismos do poder nunca foram muito estudados na história. Estudaram-se as pessoas que detiveram o poder. (...) Ora, o poder em suas estratégias, ao mesmo tempo gerais e sutis, em seus mecanismos, nunca foi muito estudado. Um assunto que foi ainda menos estudado é a relação entre o poder e o saber, as incidências de um sobre o outro.” Foucault (1979/2007: 141). 10 Gilles Deleuze chama a Foucault “cartógrafo”: Gilles Deleuze (2005: 33/53), Foucault (São Paulo: Brasiliense). 11 fundamental como estratégia de resistência, ou seja, o pensamento foucauldiano sobre o poder não é um pensamento fatalista: é um pensamento que mostra, dá a ver, expõe dispositivos e, ao fazê-lo, é ele mesmo uma estratégia que nos diz, pela apresentação do que nos constitui enquanto processos enunciativos, como fazer para inaugurar lateralidades, intensidades, acontecimentos que sejam discursos “outros” – ou seja, que sejam alteridades – em relação ao momento da inauguração insidiosa de “uma” verdade como “a” verdade, de “um” sujeito como “o” sujeito, de “uma” história como “a” história. É por isso que é preciso vermos como Foucault fala da relação entre poder, saber e subjetividade que se inaugura na modernidade, para percebermos que é essa inauguração que permite “inventar” sujeitos, verdades e histórias: e a história contada pelos nacionalismos, conforme ela se insinua em literaturas, culturas e identidades – nomeadamente através do esforço curricular como vontade de verdade, fruto de um lugar, de um espaço, de um território (também eles configurados por discursos de poder: não esquecer aqui a força da geografia), mas também de uma relação histórica de poder e saber – é uma delas. Para Foucault, a subjetividade é produto de discursos e, neles, de organizações enunciativas que estão disponíveis numa determinada época. Cada época dispõe de um regime de verdade e é este que convenciona o que pode ou não ser dito, ou seja, os enunciados que têm valor de verdade e que, por o terem, condicionam também o que não é dito, na medida em que há exclusão. Esse regime de verdade dispõe-se num arquivo que se torna visível – é assim que vemos a relação entre estes dois conceitos – num espaço epistémico de conhecimentos. Nesse sentido, a modernidade inaugura uma descontinuidade fundamental, já que é nela que se passa de um regime de soberania – no qual o poder era visível – para o regime da disciplina – no qual o poder se torna invisível e é essa invisibilidade que o dissemina, precisamente porque ele se vai naturalizar através da norma. No espaço – melhor, na configuração – da soberania, o poder central e vertical do soberano era visível, ou seja, ele era apresentado como tal, nomeadamente (e são vários os exemplos) mediante a punição e o flagelo públicos de qualquer prevaricador que ousasse pisar as regras do interdito instituído verticalmente pelo soberano. Ao tornar-se invisível, o poder vai cumprir o imperativo económico da utilidade, ou seja, vai tornar os sujeitos produtivos. Dito de uma forma mais fácil – e do ponto de vista do discurso – o poder soberano silenciava (quem ousava ir contra ele); o poder disciplinar faz falar (produz sujeitos que enunciam as coisas de determinada maneira e 12 se estabelecem de acordo com certas convenções de verdade correspondentes a configurações de saber e poder)11. Na realidade, a disciplina moderna surge como contemporânea do advento do capitalismo: mais do que flagelar, encarcerar e silenciar indivíduos, o que importa é sujeitá-los, isto é – e agora – usá-los, torná-los úteis, produzi-los, tornando-os produtivos, doutriná-los, tornando-os doutrinantes. Não quer dizer que a soberania acabe do dia para a noite, apenas que ganha novo estatuto estratégico (de certa forma, é possível dizer que a época contemporânea irá corresponder à manutenção simultânea da soberania clássica, da disciplina moderna e do controlo atual, mediante aquilo a que Foucault dá o nome de governamentalização). Desta forma, a clausura já não serve apenas para punir e flagelar (e, quando o faz, isso já não constitui espetáculo público, isto é, já não é visível): a clausura passa a servir, sobretudo, para formar e regulamentar, ou seja, regimentar. De certa forma, para Foucault, com a invenção das ciências humanas, o carcerário como modelo espalhouse institucionalmente pela sociedade, de forma a cumprir os imperativos coesivos do estado e produtivos da economia: a escola (que é o que interessa enfatizar mais aqui) é apenas uma destas instituições “quadriculares” da modernidade que, mediante o confinamento, produz sujeitos por discursos (os quartéis serão uma outra e importante do ponto de vista do discurso nacionalista –, arriscar-nos-íamos a dizer, também a imprensa escrita, já que para Foucault, ao fazer falar de determinada 11 Para Márcio Alves da Fonseca é neste contexto que devemos pensar o poder, ou seja, na sua relação com o sujeito em termos de construção da subjetividade e dos discursos produzidos de modo positivo pelos sujeitos no mundo. Como o poder é relacional, capilar e disperso, a malha do poder é mais produtora que repressiva: é nessa malha que se produzem pensamentos, discursos e atitudes, mediante a circulação de um saber associado. Ora, é isso que surge de diferente no século XIX: uma tecnologia institucional e disciplinar de docilidade que se apropria do indivíduo, instiga determinadas ações e incita a um certo tipo de discursos. Trata-se de fabricar ortopedicamente uma impressão de autonomia por dispositivos que viabilizam práticas e formações dizíveis. Este processo supõe a absoluta visualização panóptica dos indivíduos e das suas ações para que a intensidade do conhecimento promova um controlo interiorizado (o indivíduo como guardião de si mesmo). Ao transformar os indivíduos em objetos de observação, o processo constrói também um sistema de informação e saber que corrige desvios, mas também mede, classifica e qualifica os comportamentos. Trata-se de um processo de enquadramento, padronização, normalização e – consequentemente – “naturalização” de relações de poder interligadas a campos de saber documentados, arquivados e registados. A sujeição supõe a transformação dos indivíduos em casos treináveis e moldáveis, mediante uma certa gestão institucional do espaço - (posicionamento e identificação), celular, analítico, quadriculado, articulado – do tempo - (programação e ritualização), eficiente, progressivo, segmentado – e do corpo (gestualidade e objectivação), fixado, testado e manipulado. Márcio Alves da Fonseca (2003: 22/71), Michel Foucault e a Constituição do Sujeito (São Paulo: P.U.C.). É este processo (celular, porque localizado no espaço e no tempo; orgânico, porque codificado numa funcionalidade produtiva; genético, porque capitalizável e acumulável; combinatório, porque disposto num dispositivo de conjunto) que constrói o indivíduo moderno fazendo-o falar mediante o seu autoconhecimento em função de um saber, de uma “verdade”, de um poder. Fonseca (2003: 73/93). 13 maneira, o poder institui uma verdadeira medicação social da enunciação individual, uma ortopedia geral dos discursos subjetivos, mediante o processo, primeiro do disciplinar da verdade e, depois, do controlo sobre a disseminação desta: talvez os próprios media contemporâneos possam ser vistos desta forma, assim como as estratégias de construção subjetiva que estão patentes no consumo e na venda, o que extravasa o domínio deste trabalho). Ora, como é que são produzidas subjetividades 12? Exatamente mediante o jogo do poder e do saber, que – muito importante – não são vistos como um monismo isolado à maneira do discurso racionalista, mas como insinuações relacionais. Em Foucault não há uma teoria do poder em que o poder seja visto como algo isolável, isto é, uma espécie de mónada. Também o saber não pode ser visto de tal forma, isto é, como um bloco fechado. Saber e poder não só estão em relação íntima, como correspondem eles mesmos a formas de relação, isto é, instituem-se no “entre” e não no “fora”. Dito ainda de outra maneira: é a relacionalidade que dá a ver os dispositivos de poder e as configurações de saber e não o contrário, ou seja, eles expõem-se nas relações, nos interstícios delas e não num “fora”, ou num “antes”, ou num “acima”. Como ocorre então a disciplinarização social? Mediante o uso de dispositivos de poder e configurações de saber que são formadores no sentido de estarem destinados a tornar os sujeitos falantes em sujeitos dóceis e úteis à reprodução dos discursos produtivos pela sociedade, já que o poder possui uma forma de positividade, isto é, é positivo. Foucault não vê o poder como algo apenas esmagador; o poder é positivo no sentido em que encerra em si uma positividade formadora de subjetividades, identidades e 12 A escola é uma das máquinas de produção de subjetividades porque, como menciona Gail McNicol Jardine, ela supõe a interiorização do discurso pelo aluno de modo a que este seja ensinado a “monitorizar o seu próprio comportamento, a avaliar a sua própria aprendizagem, e a fazer o que lhe é dito porque assim querem”. Ele assume (idealmente) aquela verdade como sua, ela é a “sua” identidade. Escolarizar é, por isso, incluir dentro de um determinado discurso “verdadeiro” que não é desinteressado ou neutro: é histórico, construído e convencionado por um aparato social. Nesse sentido, a escola é uma instituição que “vê”, para que o indivíduo se veja como visto e olhe para si mesmo, que “normaliza”, para que o indivíduo se adeqúe a um padrão e se saiba parte de um todo, e que “diz”, para que o indivíduo fale o que já é verdade para si. Ela corresponde, por isso, à criação de uma norma que refere o sujeito a um todo, que diferencia sujeitos por uma média, que hierarquiza por aproximações, que introduz conformidades e que exclui desvios. É nesse contexto que se ritualiza uma aprendizagem desenvolvimentista – sequenciadora de um progresso – mediante a qual a aplicação de um currículo supõe um determinado tempo de gestação de uma identidade e um espaço possível para a sua atuação futura. Gail McNicol Jardine (2007: 59/95), Foucault e a Educação (Mangualde: Pedago). Para Revel, a interiorização dessa norma (homogeneizada, “naturalizada”) que, ao fixar uma regra, também fixa o desvio, corresponde, em Foucault, a uma medicação social coletiva de condutas, discursos e desejos. A disciplina individualizada, que normaliza, corresponde depois à construção da população pela “naturalidade” da vida numa determinada política do controlo. Da ortopedia individual à medicação coletiva vai todo um processo de normalização. Revel (2010: 202/14). 14 histórias e dos seus discursos, precisamente porque ele dá forma ao que dizemos, ao que fazemos, ao que somos e é em relação com isso (isto é, com o facto de ele existir lá onde há relação e, onde há relação, haver poder) que se pode ou não inaugurar a resistência. Ao contrário das teses marxistas da resistência, que se veem em relação de exterioridade quanto ao poder, para Foucault a resistência está sempre em relação com o poder. O discurso resistente é aquele que se institui precisamente numa relação “outra” com o discurso de poder, mas não está fora dele, ou seja, está em relação estratégica com os dispositivos dele. Entre os dispositivos (há vários) de que Foucault fala ao nível da disciplina estão, por exemplo, o panóptico, o quadriculado e a seriação. O que importa ao poder é tornar os sujeitos visíveis, exatamente na medida em que ele está invisível (ao contrario do poder soberano que era imediatamente visível sob a forma espetacular do flagelo). Para formar ortopedicamente o sujeito moderno, é preciso criar nele a sensação de que está sempre em situação de visibilidade, mesmo que não esteja: é essa a função do panopticismo, que Foucault vai buscar a Jeremy Bentham e à sua ideia sobre a geografia das prisões. É evidente que Foucault usa o panóptico, como imagem, mas não deixa de ser verdade que Bentham fala dele exatamente no contexto que se começa a insinuar na modernidade de Foucault, ou seja, uma forma de tornar os indivíduos úteis ao sistema capitalista. Aliás, é o próprio estatuto da prisão que vai mudando: o cárcere, ao servir já não apenas para “punir”, mas também para “vigiar”, vai tornar-se, mais do que um espaço de tortura, um espaço de reforma. Se em Kafka a metáfora da inscrição da pena no corpo do flagelado surge mediante uma técnica que é, ao mesmo tempo, punitiva e escritora, aquilo a que Foucault dá atenção é à forma de inscrição da disciplina. De certa forma, o sujeito fica escrito de determinada forma, para poder, ele mesmo, escrever dessa forma e falar dessa forma, já que ele é inventado disciplinarmente pelos discursos que o criam mediante enunciados configurados de determinada forma relacional. Foucault avançou mesmo que a criação das ciências humanas, mediante exatamente a compartimentação dos discursos sobre o convencionar do humano, é que “inventam” essas identidades, ou seja, é na modernidade, com o discurso da norma, que são criados o “louco”, o “delinquente”, o “cábula”, ou o “perverso”, uma vez que o desvio é constituído a partir de um discurso normalizado como verdade (o mesmo serve para as questões identitárias do ponto de vista epistémico nacionalista). Na realidade, se o panopticismo tem como objetivo mostrar aos indivíduos que eles estão sempre a ser 15 vistos, mesmo que não estejam, o que acontece é que os sujeitos interiorizam esse mecanismo na sua identidade e reproduzem-no: quando não o reproduzem são desviantes (desvio e resistência não são necessariamente a mesma coisa: o desvio funciona por exclusão, silenciamento e adestramento, a resistência por relação, alteração e desafio). O panopticismo não é uma forma de punição, ele é uma insinuação: ele produz e transforma pela docilização. Ele é uma ortopedia da subjetividade de acordo com um discurso “normal” que corresponde a um arquivo de verdades e interditos configurados em conhecimento e saber que se constituem num conjunto de enunciados epistémicos. Outra das formas de construção subjetiva da modernidade é o quadriculamento. Se Rosalind Krauss apontou a “grelha” como figura intrínseca de um certo modernismo artístico13 e se este deriva de uma visão irónica sobre a geografia urbana das cidades 14 contemporâneas que foram fruto do “planeamento”, mas em função de uma noção estética que deriva do abandono do adorno em prol da frieza funcional, é possível ver essa imagem como herdeira dos fenómenos que Foucault descreve de acordo com o quadriculamento. O que este permite é (exatamente em correspondência com a divisão do homem em secções que é inaugurada no contexto epistémico das ciências humanas) o isolamento dos sujeitos no espaço: para estarem constantemente a ser vistos, mas para não se verem mutuamente. Do ponto de vista da racionalidade moderna, os indivíduos aglomerados de modo fortuito, aleatório, indisciplinado – em suma, a multidão – são perigosos. O que interessa é seccioná-los, compartimentá-los, dividi-los, de modo a melhor os formar. Esta estrutura quadriculada vai desde a cela da prisão, ao espaço da caserna militar, até à sala de aula. Para uma melhor ortopedia da fala do sujeito (mais eficaz, mais normalizadora) interessa que ele interiorize os discursos configurados no saber e dispostos pelo poder de forma a que o seu processo ortopédico se cumpra. Não interessa que ele o discuta antes de o interiorizar como seu. Por fim, a seriação é um processo fundamental na formação de indivíduos produtivos. O indivíduo visível e isolado não pode ser útil se não tiver uma função, isto é, se ele não tiver um espaço próprio para a reprodução do discurso de poder e para a sua utilização na disseminação social do poder e do saber. A seriação é fundamental 13 Rosalind Krauss (1985: 9/22), “Grids”, The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths (Cambridge MA: M.I.T. Press). 14 Jardine fala na cidade moderna, quadriculada, como paradigma geométrico construído a partir do modelo de observação panóptica. Jardine (2007: 78). 16 porque ela dá ao sujeito uma nova individualidade, ou seja, ela atribui-lhe uma função na cadeia da reprodução do poder e do saber, que vai desde a linha de montagem até à hierarquia das escolas, passando pela dos exércitos. A seriação disponibiliza o poder no tecido social, dando capilaridade ao discurso contido no arquivo e enunciado de forma epistémica. Ela é fundamental como mecanismo de coesão porque ela homogeneíza. Homogéneo aqui não quer dizer a mesma coisa que uniforme: nesta interpretação do pensamento foucauldiano – e estamos em crer que para Foucault ele mesmo – uma das formas mais fundamentais pelas quais o poder se completa é exatamente porque ele dá a cada indivíduo e a cada subjetividade nele – e por ele – instituída a sensação de ser único; e, de facto, é: porque a sua função na disseminação dos dispositivos de poder e das configurações de saber é diferente da de outros indivíduos. Homogeneizar aqui significa redistribuir o discurso da norma pelo social mediante as diversas funcionalidades que a compõem. A norma corresponde, então, à assunção por parte dos indivíduos, construídos como subjetividades, de um discurso – que é a extensão enunciativa do arquivo – que os constitui como sendo um discurso “natural”. O que Foucault mostra é que essa naturalização das convenções do poder completa o seu trabalho no todo social pela normalização do mesmo. Cada época tem um discurso que conta como regime de verdade e esse regime de verdade – para ter a forma de naturalidade e de evidência objetiva – tem que ganhar o valor de norma modelar, de convenção distribuída pelo todo de forma primeiro coerciva e depois coesiva. Para ser assumido como tal, isto é, para que esteja completo o trabalho de adestramento, é necessário que esse discurso de poder assuma a forma de uma totalidade explicativa. Essa totalidade explicativa que constitui o arquivo do contexto e da época é que dá sentido aos objetos que se colocam em relações de verdade e de autoridade, isto é, de poder e de saber. É essa totalidade que configura o valor do que é dito, o seu regime, o seu dispositivo discursivo convencional. Cada época explica, de facto, de forma positiva – isto é, em função de uma positividade – um todo, porque existe um todo que está em relações interdependentes de sentido que constituem uma configuração discursiva e não outra. Essa configuração discursiva é o que ajuda a esculpir a identidade, é o que marca cultural, civilizacional e literariamente, é o que configura historiograficamente. Ao tentar ler a verdade de uma determinada forma, assim como a história e o sujeito, a modernidade o que fez foi tentar anular o tempo, o que é paradoxal, já que tenta anular o tempo em função de uma leitura única do 17 mesmo que implica uma verdade e um sujeito únicos e cumulativos, uma vez que a história é linear e evolutiva, ou seja, é vista como caminhando para esse tempo. Ora, uma leitura foucauldiana do saber implica uma descontinuidade em relação a isto que nada tem de evolutivo. O sentido do saber não é único, ele é produzido de acordo com noções de verdade, sujeito e história e com estratégias de poder: Foucault abre à pulverização e à multiplicação plural, no preciso momento e no mesmo passo em que lê a homogeneização moderna. Aquilo que Foucault mais ajuda a pôr em causa na sua crítica ao sujeito, à história e à verdade modernas – e às suas consequências de um ponto de vista ligado ao controlo contemporâneo que é, digamos assim, uma medicação social – é a pressuposição de universalidade. O poder dispositivo disciplinar, e o discurso configurado de saber a ele associado, criaram uma noção de universalidade que, ao fazer-se passar por única, descarta como “outro” – e este outro assume um valor de discurso elitista, no sentido em que, ao ser “outro” de uma verdade tida como “a” verdade, ele é tornado subalterno – todo o saber que não se revê nesse código. Desta forma, o discurso de coesão é também um discurso de exclusão15. Isto parece estar em contradição com o que dissemos antes, ou seja, que “desvio” e “resistência” não são a mesma coisa. Embora seja uma questão problemática, não nos parece estar: o desvio é o que está fora da norma, o que não entra em relação com ela; é esse o sentido dessa exclusão. Aqui teremos que falar em algo que é a resistência em relação à norma (as noções de saber instituído e saber instituinte servem bem este propósito). O que Foucault ajuda a perceber, e isto esclarece, é que, para ser verdadeiramente resistente, o discurso que se contrapõe a uma norma não se pode excluir em relação a ela (por mais que ela o possa tentar silenciar). Ele tem que estar em diálogo com ela, ou seja, para propor uma alteridade verdadeiramente resistente (e não desviante), tem que ser um discurso que mostre – como o de Foucault mostra – que a verdade, o sujeito e a história da modernidade (por exemplo) não são únicos, mas são “uma” forma de ser que corresponde de modo epistémico a um espaço discursivo, ou seja, tem que entrar em diálogo com os valores, códigos e ditames (no fundo, com o dispositivo enunciativo) desse discurso, ao mesmo tempo que não autoriza que esse discurso o defina como desvio. Dito de outra forma, a resistência 15 Para Jardine, ouvir verdades outras ou saberes subjugados é perceber que o que se toma como absoluto e positivo não passa de uma convenção entre outras. Ora, o positivismo moderno criou uma hierarquia de saberes que lhe permitiu desqualificar o valor de verdade do que não lhe interessava do ponto de vista da dominação política e social. Jardine (2007: 40). 18 não está fora, ela dialoga; ela não se exclui do jogo do poder, ela inclui-se em estado de relacionamento com ele para não o deixar definir-se como único e para mostrá-lo como convenção. Creio ter sido mesmo este o grande esforço de Foucault no seu trabalho e a sua grande ferramenta de contribuição analítica do discurso, ou seja, dar forma a um espaço que permita ver as convenções pelas quais se estabelecem relações de poder, saber e verdade, para, no mesmo passo, na dobra, poder mostrá-las exatamente como isso, ou seja, como convenções e – como tal – abrir possibilidades de descontinuidade, que nada têm de subalterno, uma vez que ser “outro” é ser mais um discurso que não é exterior ou excluído, mas é uma possibilidade de verdade entre outras16. B) Visões Criticas Quanto ao Regime de Verdade Inerente à Genealogia dos Discursos Nacionalistas: Patrick Geary, Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson É, quanto a nós, essa a possibilidade de análise do nacionalismo que se ergue nos trabalhos de Ernest Gellner, Eric Hobsbawm e Benedict Anderson (que podem ser vistos – usando terminologia foucaudiana – como “genealogistas” 17 e não como historiadores tradicionais, que veremos pelo que têm de comum), exatamente porque permitem ver o nacionalismo – e a noção atual de nacionalidade - como uma invenção moderna que se tenta passar por discurso de verdade absoluta ao remeter para primordialismos de cariz mitológico – e mitográfico, diríamos – essencialista e universalista, no sentido de promover coercivamente a coesão dos sujeitos mediante um discurso de verdade que se insinua como “a” verdade positiva, pois, à maneira da análise de Foucault, define o que pode ser dito, isto é, o que conta como regime positivo ou de positividade constatável como monumento 18, no sentido foucauldiano 16 “O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele que dá conselhos. Cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projecto, as táticas, os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer é fornecer os instrumentos de análise, e é este, hoje, essencialmente, o papel do historiador (...) em outros termos, fazer um sumário topográfico e geológico da batalha.” Foucault (2007: 151). 17 Veiga-Neto fala mesmo em Hobsbawm como genealogista. Veiga-Neto (2003: 66). 18 Para Veiga-Neto, a leitura monumental evita a redução lógica e gramatical, por um lado, e a ingenuidade hermenêutica, por outro. Ela nunca é definitiva nem cai na ilusão positivista de ir atrás de qualquer verdade maior, mais essencial, mais profunda. Em suma, não interessa muito o que compõe o texto por dentro, mas os contactos de superfície que o texto mantém com o que o cerca e é isso que permite mapear o regime de verdade que o acolhe e que ele sustenta, o qual reforça e ao qual dá vida. Por exemplo, quando um enunciado exclui, ele responde por um regime de verdade do qual faz parte, que atende a uma vontade de verdade e que é parte de um processo de poder. É preciso, por isso, 19 também, ao qual nós acrescentámos apócrifo para – ao mostrar o seu cariz discutível, argumentável e mitológico – debater o seu estatuto de verdade. Veremos ainda como é que essa noção de nacionalismo encaixa numa interpretação foucauldiana de currículo como manifestação documentada de um regime de verdade. Patrick J. Geary, no seu livro O Mito das Nações19, faz uma afirmação que me parece coerente com o que vou dizer a seguir sobre os autores mencionados. Para ele “a ciência histórica moderna nasceu no século XIX, concebida e desenvolvida como instrumento do nacionalismo europeu. Como ferramenta da ideologia nacionalista, a história das nações europeias foi um grande sucesso, mas transformou a nossa perceção do passado numa lixeira de resíduos tóxicos cheia do veneno do nacionalismo étnico, que se infiltrou profundamente na consciência popular. A eliminação destes resíduos é o desafio mais desencorajador enfrentado hoje pelos historiadores”20. Geary é um medievalista e um dos mais ferozes críticos do nacionalismo europeu. Pretende mostrar que a população europeia atual é o resultado de várias “ondas migratórias”21 e que, por isso, os discursos de coesão com os quais temos vindo a pensar o nosso passado nos últimos dois séculos não fazem qualquer sentido e correspondem, dessa forma, a um processo político – di-lo-emos, foucauldianamente – de adestramento social do nosso imaginário por um processo duplo de homogeneização (“nós”) e de divisão (“outros”). Para Geary, o nacionalismo é apenas “pseudo-história”22 em que se pressupõe (usando um essencialismo retirado do tempo como imutabilidade) um conjunto de unidades distintas (pela língua, pela religião, pelo caráter) que seriam “inequívocas e imutáveis” 23. Ora, na sua perspetiva isto corresponde a silenciar toda uma história diferente que é anterior ao nacionalismo moderno. Trata-se, para ele, de um projeto de manipulação de direitos étnicos em função de interesses políticos e permite mesmo a criação de projetos económicos de subalternização e neo-colonização, pois, por exemplo, a limpeza étnica é um resultado do espalhamento global deste tipo de narrativa. Para Geary, o nacionalismo é inseparável da modernidade: ele é um projeto combinado da filosofia romântica (as divisões entre natureza e cultura e a teleologia, perguntar qual é a vontade (de verdade, de saber, de poder) à qual atende um determinado enunciado, do ponto de vista foucauldiano. Veiga-Neto (2003: 126/7). 19 Patrick J. Geary (2008), O Mito das Nações: A Invenção do Nacionalismo (Lisboa: Gradiva). 20 Geary (2008: 23). 21 Geary (2008:17). 22 Geary (2008: 19). 23 Geary (2008: 19). 20 por exemplo), da história “científica” positivista (posterior ao projeto da “ilustração”) e das filologias primordialistas: processos essencialistas (no sentido em que Foucault fala) que não dão conta das dinâmicas complexas da mutabilidade e que reconstroem o passado – reinventam – sem o ler, mas com base em categorias modernas aí projetadas por processos ligados à construção – diríamos, panóptica – das ciências humanas classificatórias em que a história tem uma função mitológica – e mitográfica – homogeneizadora. Como especialista da Idade Média, Geary fala mesmo de uma “invenção” mítica desta24 transformando-a em ideologia, com capa autoritária de ciência neutra que diz “a” verdade. Estas comunidades “imaginadas” (não imaginárias: elas passam mesmo a existir, fruto deste maciço processo de subjetivação) criam sistemas gregários padronizados que, no mesmo processo, incluem e excluem, já que, por exemplo, há uma comum subalternização das minorias a partir do momento em que o estado passa a estar identificado com a nação. Por outro lado, nos grandes impérios, deu-se um fenómeno inverso: foram as minorias letradas – as elites das minorias – que, ao estudarem fora, trouxeram consigo as ferramentas intelectuais de reivindicação territorial e de construção nacional, por exclusão do papel de integração multiétnica que – apesar do centralismo dominante – esses impérios tinham. Ele cita os casos otomano e habsburguiano neste processo em que a ideia de nação foi trazida de “fora” para depois servir de fundamento à reivindicação “interior” de um território e de um estado. Nesse sentido, foi necessário às elites promoverem um estudo “iluminado” e “romântico” da língua, da cultura e da história (normalmente nas capitais do centro da Europa), propagarem essas ideias por “eruditos” e conseguirem finalmente o apoio das “massas” para um sistema de pensamento que lhes constrói uma identidade (pouco presente, por exemplo, em sociedades agrárias, baseadas em outro tipo de vínculo social e discursivo), com base na imaginação de uma idade média onde, para Geary, a nação não poderia ser nunca uma categoria identificativa, dado o enorme fosso que separava as populações em servidão da nobreza senhorial25. Por outro lado, os vínculos das aristocracias europeias eram exteriores aos reinos e territórios: o seu poder era, de certa forma, exercido de fora e vertical. Ora, o processo revolucionário francês deu origem a uma vaga independentista e de mutação de referências que abriu precedentes na Europa. Se, em França, a ideologia 24 25 Geary (2008: 24). Geary (2008: 27). 21 revolucionária não esteve ligada à língua ou à etnicidade, mas ao bem comum, é com o uso do pensamento de Herder que se inicia a mitologização do passado em função da unidade linguística e cultural primordial. No entanto, o nacionalismo de Herder não é ainda revolucionário (essa questão estará presente no século XIX): ele é proclamador de diversidades culturais. É, contudo, com base nestes dois blocos discursivos que se lança o fervor nacionalista posterior. Ora, achamos que a referência anterior encerra grande parte das preocupações que são comuns a Gellner, Hobsbawm e Anderson e, por isso, a incluímos. Embora as suas genealogias críticas do nacionalismo não sejam tão acirradas, concordam que este é um fenómeno discursivo inseparável da modernidade e da descontinuidade que esta inaugura. Para Gellner, a nação está ligada às transformações do estado moderno, a nível económico, político e cultural. O nacionalismo é uma narrativa – baseada em enunciados de princípio – de congruência da unidade política e nacional, que se opera a partir do estado, ou seja, o estado antecede a nação26. A génese da nação e do nacionalismo liga-se, para Gellner, à industrialização moderna, pois os coletivos agrícolas estabelecem relações com diferentes formas de vínculo gregário: são comunidades dispersas, a sua mobilidade social é problemática e a coesão situa-se no quadro dos discursos familiares e ligados às ocupações. A verticalidade da elite militar, burocrática ou soberana existe como estado, mas não se configura como nação. É a aurora industrial que gera as mudanças fundamentais para o advento do nacionalismo 27. Na realidade, só com a industrialização passa a haver mais mobilidade social, mais especialização e um novo processo de divisão do trabalho. A industrialização pressupõe a existência de sujeitos que adquirem saberes padronizados e estes só são possíveis mediante a existência de uma instituição – a escola – que os faculte e que, por isso, forme dentro de uma cultura comum e homogénea. Isso promove, obviamente, uma homogeneização social e a construção 26 Assim como o exemplo de Geary sobre as elites minoritárias que formaram nações, também Tom Nairn acharia problemática esta visão funcionalista: há estados que antecedem nações e há nações que antecedem estados; este último processo, contudo, não é possível sem a existência das elites (de que fala Geary) para todos os autores que aqui apresentamos, ou seja, quer por um processo, quer por outro, nações e nacionalismo não são conceitos que se possam remeter para a um léxico epistémico prémoderno: Tom Nairn, “The Modern Janus”, New Left Review 94, pp. 3-29. Citado em: Nergis Canefe (2004), “Foundational Paradoxes of Balkan Nationalisms: Authenticity, Modernity and Nationhood” Turkish Review of Balkan Studies Nº 8, Ortadogu ve Balkan Incelemeleri Vakfi (Research Foundation of Middle Eastern and Balkan Studies), pp. 107-148. 27 Ernest Gellner (1983: 40), Nations and Nationalism (Ithaca: C.U.P.). 22 da pertença a um discurso narrativo cultural comum, o que não acontecia com as sociedades agrárias, organizadas em torno da família e da ocupação28. Como a industrialização não ocorre em todos os lugares ao mesmo tempo, ela não promoveu aquilo que poderia ser uma cultura internacional. O que acontece, para Gellner, é que a homogeneização cultural em certos lugares originou a sua diferenciação em relação a outros, o que levou a uma natureza conflituosa – que é inerente ao próprio processo cumulativo da indústria – e à promoção de subalternidades assentes em discursos ligados a uma construção da desigualdade e a uma discriminação com base na língua, na cultura ou na cor da pele. De certa forma, o discurso do nacionalismo é, ao mesmo tempo, um discurso de homogeneização (“os nossos”) e de diferenciação (“os outros”). A formação do estado-nação moderno está, por isso, intimamente ligada ao industrialismo e à nova configuração política que passa a definir o estado – ao contrário de antes – com base no enunciado da barreira cultural29. É com assento na definição da fronteira divisória do estado enquanto esquartejamento cultural de territórios30 que se postula a nação, pela erosão de outros vínculos de agrupamento anteriores, com os de parentesco, de habilidade ou de privilégio. Além disso, a nação não poderia ser homogénea sem uma cultura fixada por (e partilhada em) um discurso escrito. A nação é assim um fenómeno moderno e nada tem de primordial. Porque ela promove processos de homogeneização interna e de diferenciação externa é, de certa forma, o nacionalismo como discurso que produz a nação como identidade, identificada com o estado como espaço de gestão (disciplinar e de controlo, diríamos). Embora existissem – antes da nação – estados que já correspondiam a uma língua e a uma cultura, não é possível haver nação, para Gellner, sem um discurso que é veiculado pelas elites, na escola, através de um sistema que promove a identificação geral com algo de comum 31. Esse discurso é ritualizado e depende de um processo de construção propagandística baseado na existência de uma simbologia mitológica que é comunicativa, escrita e arquetípica32. Como Gellner, Hobsbawm também vê a nação como algo recente, relacionado com o advento da modernidade (perspetiva em que ambos estão próximos da ideia 28 Ernest Gellner (1996: 111) “O Advento do Nacionalismo e a Sua Interpretação: os Mitos da Nação e da Classe”, Gopal Balakrishnan (Org.) (1996), Um Mapa da Questão Nacional (Rio de Janeiro: Contraponto), pp. 107-144. 29 Gellner (1983: 39/40). 30 No fundo, uma forma quadricular, em linguagem foucauldiana. 31 E, por isso, criador de uma norma. 32 Gellner (1996: 119). 23 foucauldiana da produção discursiva de subjetividades por adestramento ortopédico). A entidade a que chamamos nação, e que dá forma a um determinado corpo social, pressupõe o espaço territorial do estado, razão pela qual lhe chamamos estadonação.33 Para Hobsbawm, na realidade, não faz sentido discutir a nação, o nacionalismo e a nacionalidade sem os relacionarmos com o corpo do estado: o estado, como para Gellner, é o que antecede a nação e não o contrário 34. Para acontecer a nação no contexto da modernidade é necessário um conjunto de pressupostos económicos e tecnológicos – sobretudo – mas também políticos. A propaganda é um aspeto essencial35, dado que só ela pode explicar o comportamento subestrutural de mobilização que acontece a nível do “proto-nacionalismo”. Nesse sentido, existem mecanismos simbólicos de vinculação a territórios que podem ser definidos em relação a questões de crença ou de fidelidade a um modelo de autoridade pré-existente. Com isto, coloca-se de facto a questão (anotada) de Tom Nairn, ou seja, do estado-nação ou da nação-estado. Ora, para Hobsbawm, embora o estado seja a condição essencial para a verdadeira existência da nação, pode haver uma “protonação” que determina a convergência da subestrutura, mediante uma propaganda construída a partir da superstrutura em relação a um dado território. O uso da palavra estrutura deve-se, em grande parte, aqui, à convergência de Hobsbawm quanto a certos pressupostos do pensamento marxista, o que não acontece com Gellner36. Para Hobsbawm, entre os elementos que podem ser mobilizados a nível “protonacionalista” estão a língua, a etnicidade ou a religião 37. Se a língua é um fator de coesão forte, as mobilizações étnicas e religiosas podem ser também coadjuvantes do ponto de vista da pertença, embora estes sistemas de coesão não sejam suficientes para formar nações: o elemento fundamental é o estado e, por isso, só o século XVIII europeu cria as condições de soberania popular no seu exercício ligado a um estado independente – questão na qual o nacionalismo é herdeiro da visão de estado saída da revolução francesa e da possibilidade de nesse estado se exercer um esforço coesivo e coercivo ligado a teorizações comunitárias assentes em processos de identificação 33 O que também polemizaria com a visão das nações que trazem o nacionalismo de “fora” para territórios ainda não identificados com elas. Contudo, Hobsbawm resolve melhor esta questão com a ideia do “proto-nacionalismo” e de que existirá sempre um território imaginado. Eric Hobsbawm (1990/2008: 73/7), Nations and Nationalism Since 1780 (New York: C.U.P.). 34 Hobsbawm (1990/2008: 9/10). 35 Correspondendo a um discurso produtor de subjetividades. 36 Sobre Hobsbawm e o marxismo: Eric Hobsbawm (1997/2011: 195), On History (London: Abacus). 37 Enunciados correspondentes a vontades de verdade e processos de poder. 24 comum e simbólica, aspeto no qual é herdeiro do romantismo alemão e das teorizações de “cultura” e de “língua” conforme elas surgem em Herder, uma vez que é este processo que cria formas de devoção comunitária e sentimentos de vinculação doutrinária38. O que há a salientar ainda em Hobsbawm é que a nação constitui um processo de descontinuidade. Ela é inseparável da produção de “tradições nacionais” e é com a ritualização destas que se dá o mecanismo de identificação que é necessário ao processo coesivo. Nessa produção – ou “invenção”39 – aquilo que se apresenta como antigo ou primordial é, de facto, novo, e constitui um projeto de propaganda que surge como discurso de poder. Ou seja: embora o estado seja fundamental para a existência da nação, em ordem ao seu florescimento ela precisa de uma narrativa de poder que a ritualize como imaginário coletivo. Esses rituais simbólicos inculcam valores, narrativas e normas por repetição, o que, pela sua própria natureza, cria uma sensação psicológica coletiva de continuidade em relação ao passado. Além disso, esse passado é escolhido como desejável e aceitável por óbvios processos de revelação e ocultação. Desta forma, Hobsbawm dá a ver o quanto as leituras oficiais são, de certa forma, ficções coletivas de continuidade que circulam como imaginário discursivo identitário, obviamente por exclusão de “outras” narrativas. Neste sentido, por ser um argumento menos funcionalista, embora não mencione tanto o papel fundamental da escola, Hobsbawm mostra o quanto o discurso tem o valor de construção de subjetividades coesivas, por processos coercivos. A repetição ritualizada desse passado (que é sempre um “país distante” 40) toma a forma de uma transformação discursiva do tecido social identitário, legitima instituições e hierarquias sociais, contextualiza princípios tomados como comuns e, ao solidificar grupos, legitima ações que tomam a forma de registo público coletivo. É essa imaginação de um momento mítico de criação que permite passar do essencialismo nacionalista à unidimensionalidade política e étnica41. Também para Anderson as nações são um fenómeno moderno e datam das revoluções liberais que aconteceram no final do século XVIII, mais concretamente a americana. 38 Hobsbawm (1990/2008: 20/3). Eric Hobsbawm (1983/2000: 1/2), “Introduction: Inventing Traditions”, Eric Hobsbawm & Terence Ranger (Eds.) (1983/2000), The Invention of Tradition (London: C.U.P.). 40 Glosamos aqui o título do livro: David Lowenthal (1985), The Past is a Foreign Country (Cambridge: C.U.P.). 41 Hobsbawm (1983/2000: 13). 39 25 Gostaríamos de apresentar aqui uma ressalva em que discordamos desta proposta. Na realidade, fazemos uma diferença entre as revoluções do chamado “novo mundo”, “inventado” pelos europeus – como observa Eduardo Lourenço 42 – e o nacionalismo europeu propriamente dito. É que o fundamento das identidades nacionais surgidas nos territórios da América foi, muitas vezes, colocado em torno da “terra” – com tudo o que isso implica de subalternização das tradições locais aí encontradas e que são excluídas do processo histórico por ocultação – enquanto que o nacionalismo europeu é, na maioria das vezes, étnico e gira em torno da ideia de “povo” ou “sangue”, herdeira do romantismo. Por isso, parece-nos mais adequado aplicar às revoluções americanas a ideia de patriotismo e guardar o nacionalismo para a Europa. Contudo, desenvolver esta questão seria um programa de trabalho demasiado vasto para aqui incluir mais do que este apontamento. Voltando a Anderson, ele vê o nacionalismo como um sistema discursivo totalizador e cultural43 que se relaciona com outros, como o do estado monárquico ou das comunidades religiosas44. “Imaginar a nação” supõe, contudo, o surgimento de características que também se associam ao advento da modernidade, como por exemplo o desaparecimento do latim como língua vernácula de comunicação religiosa, abrindo espaço ao surgimento de uma expressão de “verdade” bíblica em outros vernáculos, o que é inseparável da “Reforma”, pois ajuda a pulverizar a ideia de uma cristandade comum. Além disso, desaparece o vínculo social dito “natural” com formas de soberania vertical (o pensamento de Anderson é paralelo a Foucault), uma vez que se pressupõe a imaginação de uma fraternidade coletiva ligada por uma língua e na qual a soberania vai perdendo qualquer tipo de divinização. Outro aspeto fundamental (alem da língua e do processo de dessacralização da soberania) é a própria dessacralização do tempo, pois este aparece lentamente como estando desligado de qualquer plano divino, dado que surge associado ao processo de desenvolvimento científico, ou seja, entra-se num tempo sem escatologia e onde o papel da revelação é secundarizado e não há antecipação cosmológica por qualquer tipo de discurso de redenção. O novo tempo, a nova conceção de tempo (transversal, coletiva, simultânea e convencional) calendarizada e entregue ao “império” da 42 Em vários textos, mas registamos este que está disponível em rede: Eduardo Lourenço, “O Nosso Tempo e o Tempo dos Outros” (S/D), http://www.ieei.pt/files/EduardoLourenco.pdf (consulta: 02/01/2012). 43 Portanto, um regime normativo de verdade discursiva. 44 Benedict Anderson (1983/2008: 34), Comunidades Imaginadas (São Paulo: Companhia das Letras). 26 contabilidade numérica, é antecipadora do registo, por exemplo, da imprensa escrita que irá revolucionar a relação das pessoas com o acontecimento e é uma consequência do trabalho de invenção da imprensa45. O espaço de coesão permitido pela relação entre o tempo e a escrita são fundamentais como fenómenos de coesão: eles ligam as pessoas a vínculos territoriais com base na identificação imaginada de um território. É isso que faz da nação uma comunidade imaginada: nós não conhecemos a maioria dos nossos concidadãos, mas “conhecemo-los” mediante a essencialização escrita, fixada, dos seus traços, hábitos e características e é esse coletivo imaginado que constrói a nação como entidade na nossa mente por via de um discurso comum e homogéneo 46. A produção de livros em massa, na língua vernácula, é, por isso, fundamental para uma consciência nacional de identificação mútua. A escrita fixa e uniformiza a linguagem: ela dá à nação um sentido discursivo de continuidade coletiva no tempo e permite a disseminação mitológica – e mitográfica – do coletivo imaginado 47. Além disso, é a tecnologia, na sua relação com o capitalismo moderno, que permite esta interação, dado que sem um sistema de produção que homogeneíza os comportamentos (como mostra Foucault), não é possível criar uma coesão como base no espalhamento de um processo escrito ligado à fixação da língua e que separa, ao mesmo tempo que homogeneíza, dada a diversidade de vernáculos que esse processo tecnológico permite expandir. Ou seja: embora o processo capitalista seja homogéneo nas suas formas e consentâneo com toda a modernidade (que não ocorre sempre ao mesmo tempo), a disseminação de várias escritas em várias línguas criou fenómenos paralelos de coesão e separação. C) Padronização e Currículo: Ocultar “Uma” Verdade como “A” Verdade Dentro do Poder da Convenção Escolarizada Ora, é nossa opinião que todas as características comuns existentes nos discursos de Gellner, Hobsbawm e Anderson, para além do processo nacionalista de poder que apresentámos antecipadamente, tendo em conta a visão de Geary, no que ela tem de comum entre os três, antecipa o “currículo oculto” conforme o entendemos do ponto de vista da padronização discursiva existente no percurso escolar búlgaro em relação a 45 Anderson (1983/2008: 69/70). Um discurso de poder e saber, que produz subjetividades e as faz falar de certa forma. 47 Anderson (1983/2008: 79/81). 46 27 questões de cultura, civilização, identidade e literatura. Mas, antes de mais, é preciso explicar o que queremos dizer com “oculto”. Como é possível dizer “oculto” numa interpretação arqueo-genealógica se, para Foucault, o discurso é visível, isto é, nada está “oculto” e se um dos aspetos mais importantes dos autores que apresentámos é exatamente a visibilidade escrita do projeto nacionalista como narrativa? Cumpre-nos esclarecer a forma como ele se “oculta”. Ora, ele é “oculto” no mesmo processo em que é visível, simplesmente a sua ocultação surge porque se apresenta como “a” verdade e não como “uma” verdade. Nesse sentido, ao tentar fazer uma adequação entre linguagem e real (que é positivista) na apresentação dos pretensos “factos” históricos, ao mostrar a história (e a cultura, a civilização, a literatura e a historiografia) como a longa marcha desde tempos primordiais do mesmo espírito que se vai dando a ver teleologicamente (o que é hegeliano) e ao mostrar isso enquanto residindo sobreposto e imutável como um espírito que é coletivo, comum e arquetípico para todos (o que é uma herança racionalista) o discurso nacionalista apresenta-se como “a” verdade e o que ele mascara – nesse mesmo processo – é o facto de ser apenas uma convenção entre outras. Na realidade, a sua força coesiva está precisamente na sua insinuação apresentadora como algo que não autoriza discussão, uma vez que se dá a ver num ritual solene. Se este se apresentasse como uma narrativa conflitual entre muitas outras, ele perderia o seu poder mítico de monumentalidade ritual e coletiva. Desta forma – para deixar claro – o que para nós é “oculto” no currículo é exatamente o facto de a sua autoridade como verdade não aceitar o debate enquanto discurso de poder e é isso que é preciso desmascarar, porque, quanto ao resto, ele cumpre as funções habitualmente atribuídas ao “currículo oculto”, ou seja, na senda de Tomaz Tadeu da Silva, “desocultar o currículo oculto” supõe mostrar “os processos sociais que moldam a nossa subjetividade como que por detrás das nossas costas, sem nosso conhecimento consciente”48. Ora, nesta questão, trata-se de tomar consciência do texto, não porque ele esteja atrás, mas porque está à frente: tomar-se consciência de que a sua semântica está lá, visível, monumental, no texto e no tipo de discurso que ele veicula. Só assim perceberemos como se aprendem “atitudes e valores próprios de outras esferas sociais (diríamos, exteriores à instituição escolar, fazendo aqui um 48 Tomaz Tadeu da Silva (1999: 80), Documentos de Identidade: Uma Introdução às Teorias do Currículo (Belo Horizonte: Autêntica). 28 parêntese), como, por exemplo aqueles ligados à nacionalidade” 49. Aprendem-se, exatamente, porque eles estão lá, convencionados em texto e servem para que os sujeitos se “ajustem”50 a “rituais, regras, regulamentos e normas” 51. É por isso que, em sociedades nacionais que (pelo menos) se pretendem monoculturais e homogéneas ele contribui “para aprendizagens sociais relevantes”52 mediante adestramentos bem foucauldianos das “relações sociais”, da “organização do espaço” e do “ensino do tempo”53 regidos por interditos, divisões e ritualizações. O que é oculto é exatamente o seu caráter de convenção que não aceita a diferença. É por isso que o valor de verdade positivista, teleológico e racionalista com o qual o discurso de poder do nacionalismo se apresenta corresponde “às pretensões totalizantes das grandes narrativas”54. É isso que é preciso desmascarar, já que, na senda de Foucault, nos interessa mostrar que “a ciência e o conhecimento, longe de serem o outro do poder, são também campos de luta em torno da verdade” 55 já que “o currículo é, definitivamente, um espaço de poder. O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder” 56 e estas são “em suma, um território político”57. Não sendo exterior ao poder, o currículo transporta saber e, por isso, esse saber “é parte inerente do poder” e da demonstração de que a “subjetividade é já sempre social”58, sendo, por isso, o currículo, enquanto documento discursivo, “lugar, espaço, território (...) relação de poder” e é “no currículo (que) se forja a nossa identidade”59. Ora, a narrativa nacionalista é um discurso de poder: forjado na modernidade, parceiro da industrialização capitalista e da revolução científica e tecnológica, enteado da “ilustração”, sobrinho do romantismo alemão, ocupante do estado, beneficiário da institucionalização da escolarização normativa, utilizador da disseminação do vernáculo escrito a nível da imprensa e da divulgação do livro em massa e construtor propagandista arquetípico, simbólico, ritualizado e imaginado de identidades, às 49 Silva (1999: 79). Silva (1999: 79). 51 Silva (1999: 79). 52 Silva (1999: 78). 53 Silva (1999: 79). 54 Silva (1999: 145). 55 Silva (1999: 146). 56 Silva (1999: 147). 57 Silva (1999: 148). 58 Silva (1999: 149). 59 Silva (1999: 150). 50 29 quais, quando é dado o poder de se tomarem como verdadeiras, se configuram – como relicários sagrados – enquanto mutuamente exclusivistas. Isto é uma criação da modernidade cuja convenção mais poderosa está no fazer-se passar por arcaica. Veremos, no capítulo seguinte, como é que esta monumentalidade se insinua na leitura da “história nacional” como “verdade” no contexto búlgaro, assim como também daremos exemplos de intelectuais que questionam esse modelo. Capítulo 2 – Desconstruindo a Monumentalidade Apócrifa: Convencionalismo Nacionalista, Ficções de Verdade e Exclusivismo Histórico e Narrativo; Contributos Búlgaros para a Desmistificação do Imaginário Neste capítulo, pretendemos apresentar uma breve visão da historiografia oficial búlgara, na sua visão narrativa positivista, teleológica e racionalista, como constituindo aquilo a que chamamos monumentalidade apócrifa: monumentalidade, porque documentada de modo solene e ritual como facto; apócrifa, porque a sua versão do passado, como todas, é discutível – e discutida – em circuitos que, sendo intelectuais, não correspondem ao arquivo académico dominante e à forma como se 30 dá a reprodução social de critérios de afirmação identitária 60 tidos como indiscutíveis, homogéneos, essencialistas e exclusivistas. A discussão da versão oficial será, em seguida, apresentada, uma vez que ela contribui sobremaneira para a demonstração daquilo que a monumentalidade apócrifa oculta, ou seja, o seu convencionalismo. Essa discussão parte, precisamente, do contexto búlgaro e do modo como nele se insinuam leituras alternativas da historiografia, da cultura e – consequentemente – da literatura, que disputam os critérios de verdade pelos quais se dissemina a coesão social. A) Historiografia, Literatura e Poder: O Discurso Oficial Escolarizado em Contexto Búlgaro Como é apresentada a historiografia búlgara? Em primeiro lugar, antecipamos que ela é positivista, ou seja, que para a sua reprodução social como forma pela qual as pessoas se veem a si mesmas, não há separação entre verdade e linguagem, no sentido em que não se separa facto e discurso, palavra e coisa: foi assim que aconteceu (o discurso “diz” o real como ele de “facto” é) e não há distância crítica, interrogativa e dubitativa. É possível encontrar este processo identitário em qualquer conversa de café, nomeadamente se o truque que “faz falar” este tipo de discurso for a menção da presença da comunidade cigana, ou, ainda, a questão da Macedónia e as relações com os vizinhos turcos, sérvios ou gregos. Dito de outra forma, há uma afirmação inquestionável de um passado monumental e monolítico, cujos confins geográficos são marcados pela ideia “irredentista” da “grande” Bulgária. Por outro lado, o “outro” – seja o vizinho ou o cigano – é sempre visto por formas de exclusão que são ou inferiorizações ou tentativas de assimilação, no mesmo sentido colonial que a palavra assimilação teve em contextos imperiais de “missão civilizacional” 61. Dito de outra 60 Seguimos, para este contexto cultural, na direcção apontada por Tomaz Tadeu da Silva quando diz o seguinte: “A identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.” Tomaz Tadeu da Silva (2000/2011: 96/7), “A Produção Social da Identidade e da Diferença”, Tomaz Tadeu da Silva (Org.), Identidade e Diferença: A Perspectiva dos Estudos Culturais (Petrópolis: Vozes), pp. 73-102. 61 “Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. (...) A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas 31 forma: se um cigano é (pela sua gestão nómada da vida e do espaço, por exemplo) obviamente “inferior” e a “domar”, um macedónio será visto como um búlgaro ao qual é preciso ajudar a reconhecer o búlgaro que está “dentro” dele, um sérvio como alguém suspeito de querer o que é “nosso” (designadamente a Macedónia) e um turco no contexto do ressentimento para com aquele que “atrasou” a nossa marcha da civilização. Veremos isto na configuração discursiva. Ora, se é positivista, a historiografia búlgara é também teleológica. A história é vista como a longa marcha do “espírito búlgaro” desde os tempos imemoriais dos “protobúlgaros” que serão, eles mesmos, “o berço” da civilização europeia. Esse espírito búlgaro desenvolveu-se e constituiu mesmo um alfabeto “próprio”, uma literatura antiga “própria”, rudimentos de espírito comercial, tecnológico e artístico, até que foi interrompido. Essa interrupção – que coincide com a presença otomana na península balcânica – é vista como o grande trauma “nacional”. De um ponto de vista do senso comum, no qual não é estabelecida uma diferença clara entre a Turquia moderna e nacionalista e aquilo que foi o Império Otomano multiétnico, a presença otomana é vista como um momento em que a “Ásia” interrompeu a “marcha” do “Espírito Europeu” na Bulgária, ou seja, há uma relação de causalidade linear que é vista quer pela palavra “atraso”, quer pela palavra “jugo”. Do ponto de vista semântico, esta é uma palavra muito interessante, uma vez que ela não é criada pela historiografia, mas sim pela literatura. Corresponde ao título de uma das obras – a mais solene e fundamental – fundadoras da literatura búlgara, conforme ela é vista de forma canónica; o “jugo” vem do título “Sob o Jugo” 62 do romance de Ivan Vazov que retrata supostamente as atrocidades cometidas pelos turcos na Bulgária durante os 500 anos de “ocupação” otomana. Sendo assim, a história como ciência importa da literatura um conceito que é utilizado para caracterizar algo como uma grande “treva”, um período de “escuridão” em que o processo de “desenvolvimento” europeu do espírito búlgaro foi interrompido, desligado do seu “lugar natural” e entregue às sevícias e maldades do “turco cruel” (uma importação do modo como a historiografia europeia, em si mesma, passou a tratar, a partir sensivelmente do século XVIII, a “questão oriental”: aliás, Metternich, durante o auge do Império de Habsburgo, considerava os Balcãs como “Ásia”). Do ponto de vista teleológico, este é mesmo um simplesmente como a identidade.” Silva (2000/2011), p. 83. 62 Ivan Vazov (1893/1979), Sob o Jugo (Lisboa: Caminho). 32 “tempo separado” (metáfora que, neste caso, é apropriada ao cinema, uma vez que se trata da referência a um filme com um tema próximo do de Vazov – neste caso, as conversões forçadas ao Islão – e supostamente baseado numa crónica rural que Maria Todorova, em excelente artigo, mostra ser apócrifa63). Além de positivista e teleológica, esta visão da história, fixada numa historiografia, é também racionalista. Supõe uma essência superior e imaginária, o “espírito búlgaro”, que habita todo e qualquer búlgaro, em qualquer lugar – isto é, é ubíquo em termos de espaço nacional e de diáspora, a qual o cultiva arduamente – e que permaneceu imutável desde tempos imemoriais, contemplando, na essência de cada um, a marcha da história na qual, cumulativamente, dentro de um alforge de saber, ia acrescentando conhecimentos e ideias as quais misturava de forma pastoral com os mitos, as tradições e os saberes herdados dos seus momentos de “despertar” (linguagem romântica organizada em discurso racional). Há um problema, contudo: é que durante o tempo otomano este espírito esteve “adormecido”. Com exceção de mosteiros e igrejas. Isto é interessante: é uma espécie de “buraco negro” na narrativa já que mostra que o Império Otomano autorizava a permanência de lugares de culto, razão pela qual é ofensivo, por exemplo, utilizar a palavra “colonialismo” em contexto búlgaro. Na realidade, é inaceitável deste ponto de vista por duas razões: embora o Império Otomano seja contemporâneo das chamadas “descobertas” ibéricas – o que provoca um misto de fascínio e ressentimento – compará-lo ao movimento colonial é o mesmo que comparar os búlgaros aos africanos e, portanto, a “seres sem história” na visão de herança hegeliana. Por outro lado, é difícil falar em colonização no sentido em que, dentro de um império multiétnico, se mantiveram – mesmo que incipientes – protótipos de vernáculos e religiões – não só a ortodoxa, mas várias tradições animistas – apesar da presença do “turco cruel”. O espírito búlgaro esperava, portanto, um momento para “acordar”. Foram as igrejas e os mosteiros que mantiveram a fé, que preservaram os rituais sagrados, que guardaram as relíquias de santos e que concatenaram toda uma série de rituais simbólicos hoje tidos por “nacionais”, de tal forma que não se pode entender o nacionalismo búlgaro se o separarmos da cumplicidade da igreja – e da sua separação da igreja ortodoxa grega ou sérvia, por exemplo – e ainda da forma como 63 Maria Todorova (2004), “Conversion to Islam as a Trope in Bulgarian Historiography, Fiction and Film”, Maria Todorova (Ed.) (2004), Balkan Identities: Nation and Memory (London: Hurst & Company), pp. 129-157. 33 esta foi responsável, não só pelo erguer de historiografias mitológicas de coesão (como é o caso do monge Paisii), mas ainda pela forma como manteve viva a alfabetização em vernáculos cujos ajustamentos de separação em relação aos vizinhos (apesar de apelos em defesa do pan-eslavismo linguístico) são fruto das filologias do século XIX. Foi mesmo a igreja a responsável iniciática pelo “acordar” do “espírito búlgaro”, já que muitos dos revolucionários criadores da nação (como o herói Levski) se refugiavam nelas – e nos mosteiros – contando com a sua cumplicidade na proteção de ações armadas, além dos “haidouks”, grupos lendários de salteadores que atacavam caravanas contendo os impostos do “sublime porte”, embora a história possa ser vista com outra complexidade, já que estes muitas vezes eram cúmplices dos “janissários” – infantaria - na opressão das populações, de forma a obterem dividendos do poder central. É possível ver neles o germe inicial das atuais máfias balcânicas e há estudos que apontam para isso64. Sendo assim, o século XIX é visto como o século do “renascimento” do “espírito búlgaro” na literatura, na arte sacra, na historiografia, nos estudos de língua (por separação das outras, em espírito humboldtiano) e na arquitetura (o que é curioso, pois as casas ditas como próprias ao “renascimento búlgaro” têm uma arquitetura muito semelhante aos “konaks” – casas aristocráticas – otomanos e à forma como estes preenchem ainda hoje os “haans” – albergues ou lugares de descanso – que povoam várias áreas da Turquia ocidental). O “renascimento” do espírito búlgaro é o momento de “religação” com o seu “parceiro natural”: a Europa. É nesse momento que as elites letradas (que elaboraram a narrativa da revolução e trouxeram com elas as armas intelectuais da mesma: o iluminismo de versão francesa ligado ao estado soberano e o romantismo de versão alemã ligado à nação primordial, conforme vimos no capítulo anterior) dão origem a uma série de “saberes nacionais” que constituirão a sua narrativa de poder e a forma de coesão identitária que irá servir para agregar populações agrárias ou pastoris, na maior parte residentes em zonas montanhosas, que pouco comunicavam entre si e que não deveriam ainda ter “despertado” para este “espírito”: um despertar doloroso, digamos. Mark Mazower “faz as contas” e apresenta a tese de que, pelos seus cálculos, os Balcãs não terão tido um único dia de paz entre os meados do século XIX e o início da chamada “guerra fria” 65. Aliás, o 64 Ver os dois primeiros capítulos (da primeira parte) da seguinte obra: Misha Glenny (2008), McMafia: A Journey Through the Global Criminal Underworld (London: Random House). 65 Mark Mazower (2002), The Balkans: A Short History (London: Random House). 34 “despertar” – ou a religação – do espírito búlgaro à Europa é celebrado com um dia, o dia “dos despertadores do espírito búlgaro” 66, que é feriado e que corresponde à celebração desse renascimento em relação a essa essência adormecida, o que foi conseguido graças à intervenção das elites, de forma a colocarem nos “carris” a marcha do “progresso europeu” ao qual a Bulgária tinha sido retirada pela intervenção do “atraso asiático”. Como a Bulgária pertence “de pleno direito” ao espírito europeu, é como se a Europa lhe devesse algo, sob a forma de um desenvolvimento em relação ao qual ela esteve separada, em grande parte por “culpa” da Europa. Dado que as relações dos “impérios centrais” com o Império Otomano foram sempre dúbias, são hoje celebrados com nomes de ruas aqueles que (nesses impérios) ajudaram a defender a causa da Bulgária independente (como William Gladstone) e vilipendiados historicamente aqueles que ousaram defender publicamente (mesmo que por razões tácitas) uma boa relação com o “sublime porte” (como é o caso de Benjamin Disraeli). O despertar europeu dessa essência primordial e imutável, que é o “espírito búlgaro”, foi também, em grande parte, “atrasado” pela Europa, razão pela qual a Europa “deve” algo à Bulgária sob a forma de ajuda em termos de “desenvolvimento”, para que o espírito retome a correta “seta” linear do progresso. Para ilustrarmos esta visão da história, escolhemos precisamente dois textos de divulgação – que estão presentes em livrarias, traduzidos para línguas estrangeiras e, de modo interessante, em lojas de artigos para turistas, o que demonstra a insinuação disseminada deste tipo de discurso como único – vertidos a partir do original búlgaro e que correspondem, em grande parte, a versões abreviadas de manuais escolares presentes no currículo oficial de história (os autores são professores universitários). Neles se entrelaçam também as referências literárias, pelo que constituem, de facto, monumentos discursivos interessantes e visíveis, a partir dos quais podemos recolher toda uma articulação axiológica e sistemática demonstradora das questões antes apresentadas. Concentrar-nos-emos apenas na narrativa do “jugo” otomano, não só por questões de espaço e tempo relativas a este trabalho, mas porque esse momento institui o grande trauma, a grande falha que vem incorporada no imaginário nacional. 66 Quando questionada (trata-se de uma experiência pessoal) sobre se a tradução para português estaria correta, uma colega (preservo a identidade) nossa, via “facebook”, confirmou-o, dizendo o seguinte, que passo a citar da (significativa) mensagem dela: “Despertar no sentido de quem faz despertar o “povo" no sentido de cultura, educação e moral. Infelizmente isto também quer dizer que o povo se encontrava em sono profundo. Visa-se a época da Renascença Búlgara quando a Bulgária fazia parte do Império Otomano e nem era Estado autónomo.” 35 E é com interesse que abrimos o texto de Milcho Lalkov 67. O índice é, por si mesmo, esclarecedor: o passado é visto como um momento “brilhante” (embora também cruzado pela “sombra”) e a “terra” em momento algum deixa de ser vista como “búlgara”: é nela que estão as “raízes”. O final das “rivalidades” com o Império Bizantino é lido com a palavra “declínio” e o Império Otomano não deixa dúvidas: é “sombra”. O que é mais curioso é que pouco é dito sobre o Império Otomano em si. Dentro do próprio capítulo68, a segunda secção é logo dedicada ao “renascimento”. Por outras palavras: é como se durante mais ou menos 500 anos (entre os finais do século XIV e os meados do século XIX) não tivesse havido “verdadeira” história (embora o renascimento anteceda os movimentos de independência) e o espírito tivesse vivido em total paralisia. Façamos então uma incursão pela narrativa do texto, o que nos leva apenas ao levantamento traduzido de expressões usadas no discurso. Em primeiro lugar, a “invasão” da Bulgária pelos “turcos” foi uma “catástrofe”, pois o “estado” e as “instituições” foram liquidados. Os “búlgaros” foram retirados de “posições de governo”, do “sistema social” e das “instituições culturais”. Os “intelectuais” foram “massacrados” e apenas os “nobres” que admitiram a “conversão ao Islão” foram incluídos na “administração”. “Seiscentos mil búlgaros” foram “massacrados” ou “escravizados” e – importante – “a conquista turca separou a Bulgária da cultura europeia” e da sua “renascença”, o que a “retardou” em termos de “desenvolvimento histórico e cultural”. O sistema otomano de governo era “feudal” e o seu modo de produção era “asiático”. Os turcos eram mais “primitivos” do que as “relações sócio-económicas e políticas” que encontraram. O que fizeram foi proceder à “assimilação” mediante a “taxa de sangue” que levava “rapazes cristãos” “separados das suas famílias” para a “infantaria do Império” e à “conversão em massa” por um sistema de “privilégios económicos e políticos”. Mas os “búlgaros” nunca aceitaram esta “servidão” e “logo” no século XV começaram a “luta épica” de “preservação da sua identidade”. Tentaram também “ligar” a sua “resistência” “com as guerras dos estados europeus “cristãos” contra os otomanos. O “movimento haidouk” foi uma forma “espontânea” de “resistência armada” chefiada por “bravos e altruístas” “homens e mulheres” e foi uma forma “consistente e duradoura” de “resistência em 67 Milcho Lalkov (1998), A History of Bulgaria an Outline (Sofia: Sveti Kliment Ohridski University Press). 68 Para além do índice, todas as citações que aqui incluímos estão entre as páginas 83 e 97: Milcho Lalkov (1998). 36 massa”. “Revoltas e tumultos, movimentações diplomáticas e participações de búlgaros nas lutas do Império de Habsburgo constituem evidência histórica da clara vontade búlgara de liberdade”69. O “renascimento do povo búlgaro começou no século XVIII” e foi uma “reverberação” dos ideais “democráticos” da revolução francesa. Por isso, o “renascimento” búlgaro é parte de direito da história geral da Europa”. A transição “para os tempos modernos e para a formação da consciência nacional” é uma diferenciação” em relação “à idade média”, originando a “emergência” da “nação búlgara”, apesar das “distorções” a que o seu “povo” esteve “submetido”. Um “único” povo búlgaro e “uma” nação sofreram a “escravidão” dupla dos “turcos” (que foi “sócio-política”) e dos “gregos” (que foi uma “subjugação nacional, religiosa e clerical”). A “consolidação nacional” deu-se na “ausência de um estado” e, por isso, o “nacionalismo dos búlgaros” sob “dominação turca” tentou “desbaratar a servidão otomana” e “estabelecer um estado nacional”, o que foi um “esforço extraordinário”. A “emancipação do domínio do patriarca grego de Constantinopla”, a “consolidação da nova educação e cultura búlgaras” que foram “essencialmente seculares, científiconaturais e ideologicamente nacionalistas” deu-se a par “com o processo de libertação nacional”, formando a “nação búlgara nos seus territórios étnicos e históricos originais”. Um dos pilares do ressurgimento contra a “servidão estrangeira e o sistema feudal e despótico otomano” foi Paisii de Hilendar 70 o “primeiro ideólogo e defensor do movimento búlgaro de libertação nacional”. Tomou a decisão “patriótica de escrever a história do povo búlgaro”, usando o seu trabalho como “veículo de substanciação do direito histórico do povo búlgaro à existência de um estado livre”. Terá exagerado no seu “programa de emancipação política, espiritual e nacional” porque estava influenciado pelo “romantismo histórico”, mas soube ver que foram “os irmãos de Salónica”, “Cirílio e Metódio” com o seu “escrito eslavo” que contribuíram 69 Cada uma das afirmações aqui contidas é passível de contraponto. Um trabalho que as tornasse pormenorizadamente discutíveis, ponto a ponto, seria uma tese não sobre o discurso e os seus poderes axiológicos e narrativos na construção de subjectividades, mas sobre a história propriamente dita. Isso está feito e é ciclópico. Basta-nos apresentar aqui uma citação a esse respeito: “The vigorous but self-righteous Christians of the Victorian era created the impression that their coreligionists under Ottoman domination had suffered continual persecution for five hundred years. It was not so. Ottoman history is certainly not free from terrible incidents of hideous outrage, but in Europe these were occasional. Many, if not most, followed acts of rebellion and if this does not excuse the excess it perhaps goes some way to explain it.” R. J. Crampton (1997: 29), A Concise History of Bulgaria (Cambridge: C.U.P.). 70 Não foi possível encontrar acordo quanto à grafia deste nome. 37 como manifestações do “génio criativo búlgaro” para o “armazém de tesouros da cultura universal”. O tom laudatório, primordialista, excecionalista e a relação positiva com a noção de facto, teleológica com a noção de tempo e essencialista com a imutabilidade do espírito71 permanecem no texto de Alexandar Antonov e Valentina Antonova 72, em relação ao qual nos centraremos no processo narrativo do mesmo episódio, usando a mesma estratégia. De um ponto de vista semântico ligado ao índice, o período otomano é lido como “baixa idade média búlgara” na qual existe uma “conquista das terras búlgaras” pelos “turcos osmanlis”. Contudo, há uma descrição das terras búlgaras sob “dominação” até à luta da independência que é mais pormenorizada. Embora o tom tente ser, por vezes, mais sereno, é indubitável que a tal “dominação” corresponde à instauração de um “sistema político e religioso estrangeiro” que cria “vítimas”, “ruínas”, a afirmação do Islão como “ideologia” pela “humilhação” dos cristãos e a “expulsão” da aristocracia. Há uma descrição do tipo de “possessão” que era praticado em termos mais económicos e religiosos do que políticos e também se menciona, entre os impostos, o “imposto de sangue”. Os búlgaros tinham a “obrigação” de trabalhar a terra e os “cristãos pagavam impostos mais elevados” e sofriam várias “medidas repressivas” uma vez que o “sistema distinguia as pessoas não pela pertença étnica, mas com base na religião”, ligadas que estavam “ao patriarca de Constantinopla”. Por isso, “as famílias e as comunas” é que tiveram um papel importante “na salvaguarda da identidade nacional”. Havia tentativas de “assimilação islâmica”, sob a forma de “exoneração fiscal” e a “islamização” por “conversão voluntária”, ou pela “força da crueldade” permaneceu “viva na consciência dos búlgaros” havendo prova dela, ainda hoje, nos montes Rodopi, entre os “Pomaks”, um exemplo vivo da “islamização forçada”. As primeiras tentativas de “restauração búlgara” datam do século XV, como o auxílio em guerras de “cruzada” contra os “infiéis”, o que mostra que “a luta pela conservação da nacionalidade e da ortodoxia foi a força motriz da resistência búlgara” inclusivamente entre o movimento dos haidouti” (é o nome usado) “símbolo de insubmissão”. “As grandes insurreições” não tiveram “sucesso” porque o Império era ainda “forte”, mas “testemunham” que o “estado búlgaro estava vivo” e “contribuíram para a conservação da nacionalidade e 71 Sendo evidente o tom romântico com que estas três questões são encaradas. As citações referem-se ao espaço entre as páginas 58 e 77, para além do índice: Alexandar Antonov, Valentina Antonova (1991), Histoire de la Bulgarie (Sófia: May). 72 38 da pertença à ortodoxia.” Embora a “conquista otomana” tenha sido um “duro golpe” para a “igreja búlgara”, pois muitos mosteiros foram “destruídos” ou “transformados em mesquitas”, no meio do século XV dá-se uma “renovação” com o surgimento de “dezenas de mosteiros” que gozavam de “privilégios” como a “dispensa do pagamento de impostos” (o que não é visto do lado da defesa do aspeto multiétnico do Império, mas pelo lado da perseverança da própria igreja, cuja nomeação “búlgara” oculta Bizâncio). Paisii de Hilendar foi quem escreveu “a primeira obra da nova literatura búlgara e da historiografia” e “com as suas ideias sobre a educação, a independência espiritual e a libertação política” ofereceu “os fundamentos para uma nova época – o renascimento nacional”, no qual se dará uma “renovação da cultura e da educação e a afirmação da consciência nacional” sob a “influência das luzes da Europa”, em prol de uma nova “cultura laica” e de uma “educação moderna”, já que “muitos búlgaros estudavam nas escolas laicas de Istambul”. Tudo isto serve de base à “renovação” do “conhecimento científico”, pois “os búlgaros que estudavam no estrangeiro” tiveram grande importância “no desenvolvimento da literatura do renascimento”, na “formação definitiva da moderna língua literária búlgara” e nos “primeiros passos da imprensa periódica”. A “formação e a afirmação da nação búlgara” tiveram como “objetivo principal” a “restauração da igreja búlgara independente” e o “reconhecimento oficial da nação búlgara e das suas fronteiras históricas e étnicas”. B) Visões Críticas Desta Monumentalidade Apócrifa: O Nacionalismo como “Um” Discurso de Poder e não “A” Narrativa da Verdade Temos, por isso, aqui ilustrado um recorte monumental e discursivo que, embora com algumas diferenças de tonalidade (já que, por exemplo, a insistência na questão religiosa é maior no segundo texto), remete para as características que apontámos antes relativas ao discurso de saber e poder inerentes ao invólucro positivista, teleológico e racionalista (sub-repticiamente romantizados). Repare-se que, em momento algum, nos exemplos anteriores, se questiona a primordialidade da nação búlgara, a sua relação com um território (foco de enormes disputas que ensanguentaram os Balcãs após o vazio dos Impérios Otomano e Habsburguiano) – a 39 “grande Bulgária”73, conforme é vulgarmente dito – e a ligação deste com um estado. Também é dada como evidente a permanência de um espírito imutável que se remete para o “povo”, para a língua e para a cultura nas suas manifestações genuínas. É em relação a esse espírito que a intromissão da “Ásia” constitui um “atraso”, uma vez que o impede de seguir o passo da Europa “civilizada”. Além destas questões, o que complementa o aspeto racionalista é o enorme dualismo maniqueísta que as definições apresentadas dão a ver: entre atraso e desenvolvimento, entre Ásia e Europa, entre luz e treva. Não faz parte do domínio deste trabalho ressarcir, mediante análises suavizantes, o papel do Império Otomano nos Balcãs, embora seja de designar que grande parte da historiografia que se posiciona perante ele provém de uma visão da tradição do centro europeu em relação a esta questão. Maria Todorova argumentou que grande parte do ostracismo com o qual a Europa olha os Balcãs é uma derivação da visão subalternizada que a maioria da sua historiografia teve em relação ao “turco”, sempre visto como um misto de crueldade e lascívia, de intriga e sedução. De certa forma, os Balcãs constituíram uma forma de “orientalismo interno” e por isso se constituíram como “estudos de balcanismo”74. Misha Glenny acrescentou, por seu lado, que os sistemas de gestão de populações desenvolvidos pelo Império Otomano nunca poderiam ser vistos por um processo maniqueísta. A sua visão, aliás, contribui para a desmistificação heroica dos “haidouks”, já que a colagem a estes de qualquer “missão nacional” é uma forma de ignorar o papel que tiveram na formação oportunista de pequenos protetorados rurais – muitas vezes em guerra uns com os outros ou ocasionalmente associados ao Império sem qualquer tipo de vínculo nacional – cuja relação com o poder central do “sublime porte” variava conforme a intensidade na qual este aceitava, ou não, as suas formas de “angariação” de riqueza. Glenny acha, aliás, que foi a ignorância das potências ocidentais em relação a esta forma antiga de tradição mista de “guerreiro comerciante” que não ajudou a perceber porque é que, durante a guerra de 73 A Bulgária dos “três mares” que incluiria grande parte do Sul da Roménia, toda a Macedónia, parte do Sul da Sérvia e uma grande parte do Norte da Macedónia grega, incluindo a cidade de Salónica. 74 Nergis Canefe (ver referência) cita Maria Todorova, em texto que referenciaremos a seguir, quanto à sua obra que temos presente quando notamos esta questão. Todorova diz: “The Balkans are the Ottoman legacy. (...). Probably the most striking feature of the dominant discourses in the different Balkan countries is the remarkable similarity between them … and the amazing continuity over time. The picture of the ‘saddest and darkest period’ in Balkan history makes the five centuries of Ottoman rule the historiographical counterpart of the Western European ‘dark ages’ before the advent of historical revisionism.” Maria Todorova (1997: 80) Imagining the Balkans (New York: O.U.P.). 40 fragmentação da antiga Jugoslávia, os diplomatas ocidentais não conseguiam encontrar explicação para o facto de a guerrilha, por exemplo, no enclave de Bihac, ter sido entre muçulmanos e muçulmanos. Não poderiam encontrar, porque a buscavam numa narrativa de fratura religiosa, sem perceber que os jogos de poder eram de uma natureza diferente e herdeiros de uma mistura de tradições pré-nacionais com processos contemporâneos de tráfico75. Quanto ao papel das elites, Mark Mazower tenta mostrar que estas, ao estudarem fora, trouxeram para os Balcãs a noção de estado-nação importada com elementos do iluminismo francês, e seu consequente positivismo, e do romantismo alemão, e sua consequente idealização passadista. Foram essas elites que ocuparam discursivamente o vazio dos impérios entre as populações eminentemente rurais e as ajudaram a redefinir as suas identidades como nacionais, com base em mitologias primordialistas efabulatórias e reivindicadoras de espaços que nem todos poderiam ocupar, já que os sonhos irredentistas das “grandes” Bulgária, Sérvia, Roménia, Albânia, Grécia, etc., chocariam inevitavelmente uns nos outros76. Aliás, as narrativas nacionais dos vários países têm pontos comuns e é Nergis Canefe77 quem melhor nos ajuda a percebê-los para voltarmos à monumentalidade apócrifa búlgara (uma análise da ideia de “meghali” – usamos aqui de propósito o termo grego que foi proposto por um dos percursores do nacionalismo grego moderno, Elephterios Venizelos – em todas as “megalomanias” balcânicas constituiria algo de ciclópico) e à sua visão como convenção de verdade que não constitui “a” verdade, mas “uma” maneira de a ver, conforme nos ajuda a perceber a crítica posterior. Para Canefe, a “dispersão desigual” 78 da ideia nacional é o que ajuda a perceber os nacionalismos balcânicos do ponto de vista do seu discurso coesivo de poder. Assim, era necessário ver a nacionalidade como continuidade impulsionada pelo iluminismo europeu, através do encontro de traços primordiais que provassem ser a Europa “endémica”79 a essas sociedades. A Europa é uma necessidade para a fundamentação de um discurso que mostre que tais nações nada têm que ver com o 75 Misha Glenny escreveu uma obra enorme sobre os nacionalismos balcânicos da qual não dispomos neste momento. Sobre Bihac, cuja referência ele acentua posteriormente, ver também: Misha Glenny (1996: 288) The Fall of Yugoslavia (London: Penguin). 76 Mazower (2002: xliii). 77 Nergis Canefe (2004), “Foundational Paradoxes of Balkan Nationalisms: Authenticity, Modernity and Nationhood” Turkish Review of Balkan Studies Nº 8, Ortadogu ve Balkan Incelemeleri Vakfi (Research Foundation of Middle Eastern and Balkan Studies), pp. 107-148. 78 Canefe (2004: 110).. 79 Canefe (2004: 107). 41 “oriente” e que são sociedades do “progresso”. É uma necessidade, por causa da suspeita da Europa em relação ao grau civilizacional das novas identidades e, por isso, era-lhes necessário provar que eram europeias. Tal deve-se ao facto de os nacionalismos europeus terem lançado uma vaga discursiva cuja dispersão resultou em narrativas de identificação de cariz desigual. Por isso, no caso do século XIX balcânico, as lideranças foram fundamentais para a necessidade de soberania, já que a sua legitimidade teria que passar pela sua união – enquanto conjunto de quadros – com as populações, mediante a construção de um discurso identitário. Como a produção eurocêntrica do discurso nacionalista esteve relacionada com o redimensionamento das sociedades pela industrialização capitalista, houve necessidade de as histórias balcânicas se europeizarem e, por isso, de promoverem uma separação da dimensão religiosa (secularizando-a de modo cúmplice e utilizável, diríamos) em função de uma etnicidade (coesiva) justaposta a um estado que tornasse a nação viável. Assim, o século XIX assiste à combinação da formação da identidade nacional por relação a uma visão etnocêntrica e a uma conceção identitária supremacista que envolveu uma verdadeira revolução na construção discursiva das identidades. Porque a idealização da nação se tornou paradigma universal da modernidade, a adoção do discurso nacionalista nas franjas da Europa é fundamental para entender a reprodução do seu discurso, já que é no século XIX que os Balcãs se incorporam ao mapa político. Contudo, há muito que estes existiam na imaginação europeia80 e, por isso, “os renascimentos” são representações discursivas da extensão da linha imaginária civilizacional pelo alargamento do projeto iluminista. Para tal, era necessário ver o “turco” como o “outro” 81 que ronda ameaçadoramente a “margem” da Europa e cuja presença em “nós” nos nega como europeus. Assim, é preciso purificar as “nossas” histórias de presenças orientais, tornando-as europeias de pleno direito82. Este “despertar” de um sentido nacional baseado na continuidade histórica e na sua relação com o iluminismo supõe uma relação direta com a perceção dominante europeia do Islão e do otomanismo: é precisamente isso que dá marca europeia às novas narrativas culturais. Assim, e de um modo geral (o que ilustra os excertos 80 Ver isso em Vesna Goldsworthy, nomeadamente no terceiro capítulo, sobre as fábulas ocidentais em relação aos Balcãs: Vesna Goldsworthy (1998) Inventing Ruritania: The Imperialism of the Imagination (London: Y.U.P.). 81 Sobre a desmistificação deste imaginário: Andrew Wheatcroft (1993) The Ottomans: Dissolving Images (London: Penguin). 82 Canefe (2004: 114). 42 retirados do discurso identitário búlgaro), os nacionalismos balcânicos que floresceram nos momentos do “despertar” funcionam como visões românticas que buscam histórias de nacionalidade anteriores ao estabelecimento de estados independentes (o caso do primordialismo “proto-búlgaro”, que tenta ignorar a possível relação desses povos com a origem nómada e turcomana da Ásia central). Contudo, a presença otomana é um obstáculo e, por isso, a ênfase é colocada nos passados medievais e antigos, a expensas de histórias recentes ou, até, de uma ausência absoluta de história durante o “jugo”83. O termo “estrangeiro” (aplicado ao “jugo”) tem o sentido de atribuir ao turco uma caracterização próxima do “barbarismo” mongol, para que se possa conotá-lo com o avanço horroroso de certas “hordas” pelo meio da civilização. Isso permite caracterizar o período como um retorno ao “feudalismo primitivo” e à servidão, que afasta as sociedades do seu “destino” étnico. Desta forma, o “turco” (bárbaro, nómada, atrasado, e sem cultura) associa-se a um imaginário de “guerra santa”84, o que permite ligar a igreja ortodoxa à sobrevivência das culturas nacionais e ao seu “renascimento”, dado que o seu papel foi o de preservar o sentido de “etnicidade histórica” apesar da “dominação”. Ora, como isto cria o problema de a igreja ortodoxa ter sobrevivido “dentro” do Império e, como tal, de certa forma, legitimada por ele, a ideia futura de uma nacionalidade e de um estado seculares não valeriam devido ao facto de a promoção etnolinguística de diversidades chocar com a unidade cristã da igreja. O problema resolve-se pela nacionalização desta, redefinida como “comunidade política secular”85. Isto, contudo, faz permanecer a suspeita comum em relação ao Islão como estrangeiro86. Embora as sociedades balcânicas tenham sido homogeneizadas pela igreja ortodoxa bizantina e unificadas politicamente pelo império otomano 87, a reformulação nacionalista vê a região como uma amálgama etnolinguística diversa e “intemporal”. Esse trabalho foi feito pela compilação intensa de gramáticas e dicionários que “codificaram os vernáculos para meios de produção escrita (necessários à escola e à imprensa) abrindo caminho à autoidentificação circulatória do modelo romântico 83 Canefe (2004: 115). Canefe (2004: 116). 85 Canefe (2004: 117). 86 Canefe argumenta mais tarde no artigo que esta visão permanece em todas as histórias balcânicas de índole marxista que, dialeticamente, subalternizam o “modo asiático de produção” otomana. A revisão otomana em termos menos eurocêntricos tem, como já apontámos, vindo a acontecer. Canefe (2004: 132/34). 87 No caso das regiões mais a Norte pela influência papal e pelo império habsburgiano. 84 43 nacionalista”, mas com base no reportório de signos, símbolos e metodologias oferecidos pelo iluminismo às novas “identidades nacionais”, sob processos de “etnografia” racionalizada da identidade nacional, com formulações mutuamente exclusivas e que têm em comum a exclusão do Islão pelo reconhecimento “em si” da “Europa civilizada”88. A soberania nacional coincidiu com uma reordenação maciça de tradições, memórias e histórias que serviram o propósito de “readquirir”, no sentido de ganhá-la, “uma identidade europeia” 89. É por isso que o “homem doente da Europa”, o “turco”, tem que ser visto como bárbaro e desprovido de história. A soberania adquirida serve para romper discursivamente com esse “traço”. Deste modo, as elites balcânicas criaram um discurso independentista contra o “despotismo oriental” e a favor da “civilização europeia” reescrevendo uma história de negação do “relógio atrasado” que lhes fora imposto pelo Islão dentro do imaginário da “régua civilizacional” do tempo europeu, como mostra também Todorova. Contudo, a identidade europeia permaneceu sempre em questão e, ainda hoje, em momentos de crise, o termo “balcanização” serve para caracterizar falta de civismo, barbarismo, caos e fragmentação aos olhos de um contemplador supostamente “ilustrado”, já que o imaginário do “encontro” ainda se manifesta integrado às narrativas europeias iniciais, que contrapunham o caos, a imprevisibilidade e a sensualidade incontroláveis ao conhecimento e à ordem racionais. O estigma, interiorizado pelas populações da história sem tempo, sem mudança, sem progresso e, consequentemente, irracional, é um estereótipo mítico que continua a ajudar na construção de dicotomias civilizacionais marcadas pela ideia do “não totalmente europeu”. Este processo, a que Alexander Kiossev chama “auto-colonização”, é revisto por ele não só em termos de estigma e anormalidade, mas como constituindo também o cânone historiográfico e literário. A definição que Kiossev dá de culturas “auto-colonizadas”90 cumpre um processo de hegemonia sem dominação sobre a 88 Canefe (2004: 118). Canefe (2004: 120). 90 “(...) cultures having succumbed to the cultural power of Europe and the West without having been invaded and turned into colonies in actual fact. Historical circumstances transformed them into an extracolonial “periphery”, lateral viewers who have not been directly affected either by important colonial conflicts or by the techniques of colonial rule. The same circumstances however put them in situation where they had to recognize self-evidently foreign cultural supremacy and voluntarily absorb the basic values and categories of colonial Europe. The result might be named hegemony without domination.” Alexander Kiossev (S/D), “The Self-Colonizing Metaphor”, http://monumenttotransformation.org/atlas-of-transformation/html/s/self-colonization/the-selfcolonizing-metaphor-alexander-kiossev.html (consulta: 22/11/2012). 89 44 imaginação social91 e no plano das categorias assimétricas do classificacionismo europeu. As hierarquias de uma certa imaginação social tomam posição de poder no discurso, herdando mitologias do imaginário medieval sobre as “franjas” do universo que entraram na cultura popular europeia em simbiose com o “exótico”. Por exemplo, o “mistério místico” do harém oriental foi suplementado por toda uma categorização assimétrica de poder e saber que levou ao auto-convencimento moderno da necessidade de libertar povos da “tirania asiática”. Tornando-se global nos séculos XVIII e XIX, a imaginação colonial arrastou as comunidades laterais para o modelo eurocêntrico. O desejo de não serem laterais e de quererem reconhecimento para a sua “civilização” e história levou à interiorização da parafernália conceptual colonial, já que as elites formadas nessa imaginação ocuparam papéis como intelectuais, educadores, jornalistas e disseminaram o reportório sem a violência colonial, ou seja, em livros, aulas, manuais, literatura e propaganda. Com isso, introduziram a ideia de nação soberana e inventaram tradições históricas em comunidades imaginadas. Contudo, no momento em que cimentam as categorias “científicas” (de centro e periferia, de civilização e barbárie) estas comunidades auto-colonizam-se também com o trauma da falta: veem-se, neste processo, como culturas da “falta” (de progresso, de intelectualidade, de arte, de ciência) 92. Ora, isto cria paradoxos: por um lado, a Europa é ao mesmo tempo empírica e não empírica; um lugar físico, mas também uma estrutura significativa do discurso que é simbolicamente transcendental. Como o transcendental é sempre neutro e universal, a implicação é que, do ponto de vista da sua medida, elas não são assim tão europeias quanto isso, pois quem se coloniza é o próprio sujeito cultural reflexivo. Na construção da sua identidade, as nações que se “auto-colonizam”, agarram categorias e códigos de definição dentro dos quais se experimentam discursivamente como semi-ausências. Como a própria Europa dos séculos XVIII e XIX – preocupada com o “concerto” do “jogo” colonial – olhava para estes espaços, por um lado como não oferecendo a mesma “distância exótica” e, por outro, dentro de uma ambivalência paródica, anedótica, aventureira ou nebulosa93, 91 Existem algumas semelhanças entre este conceito e os de “imaginação do centro” e “semi-periferia” utilizados pelo intelectual português Boaventura de Sousa Santos. Guardarei esse processo de comparação para mais tarde. 92 “The poignancy of the absences was coupled with a striving for filling in, for catching-up enlightenment, for all that was typically dubbed “the way toward Europe”. Local elites were driven to turn themselves and their compatriots into modern people, i.e., Europe.” Kiossev (S/D), “The Self-Colonizing Metaphor”. 93 Goldsworthy (1998: 111/112). 45 ao importar, no mesmo passo, essa visão anedótica interiorizando-a como autoreconhecimento paródico94, o processo nacionalista pediu emprestado tanto o modelo como a resistência a ele. É precisamente nesse misto de triunfalismo e ressentimento que surge a busca das “raízes” em contraste com a adoração da “civilização” (e em dobra com ela): cresce o transe etnográfico do “autêntico”, a orgia arqueológica do “primevo” e o idílio filológico orgânico do “nativo”. Tal aparece como patente nas queixas dos intelectuais búlgaros do “renascimento” sobre a falta do que é “nacional” (Kiossev cita-as95). Como a falta de escrita, civilização, ciência e história dá cápsula à permanente procura do “ser” dentro da Europa, a consciência nacional constituiu-se como falta. Esse trauma, uma vez que se encontra ligado à ordem simbólica da modernidade, é um “estigma” no qual a “auto-colonização” é, em grande parte, feita por símbolos de ausência (até a falta do “grande” território nacional entra aqui). Como se trata de uma importação de modelos, pois as culturas nem são suficientemente grandes nem centrais, nem suficientemente estrangeiras e distantes, isso implica uma forma peculiar de modernização que coloca um modelo exógeno no lugar do imaginário, adotando os seus símbolos como corporizações da corrente dominante da história. O paradoxo fundamental é que a estrutura permanecerá estranha, criando a sensação de que os “nossos” valores não são verdadeiramente “nossos”. A ausência presente – ou presença ausente – que marca a falta e o sofrimento constitutivo do estigma explica-se pelo facto de tais culturas, sob essa forma nacional, não existirem antes do aparecimento como paradoxos: um permanente fantasma cujo desejo de aquisição é a força normalizadora das instituições. A escola, a universidade, a imprensa, são constituídas por este trauma: é ele que gera a cultura. Sem o modelo europeu da nação educada e emancipada, sem o modelo do sistema educativo e das instituições, as comunidades rurais dos Balcãs nunca se teriam redefinido como identidades nacionais. O estigma anormal da humilhação pela ausência leva a uma supressão substancial: por outras palavras, o nascimento da nação não é visto assim, mas como “renascer”, como “despertar” de uma distância que permite a identificação com um imaginário mítico. É um auto-convencimento cultural de que o tempo não começa ali, no trauma, mas é primordial, o que é conseguido pela enumeração de feitos 94 Para um excelente exemplo búlgaro, ver: Aleko Konstantinov (1895/2010), Bay Ganyo (Madison: U.W.P.). 95 Alexander Kiossev (S/D), “Notes on The Self-Colonising Cultures”, http://www.kultura.bg/media/my_html/biblioteka/bgvntgrd/e_ak.htm (consulta: 22/11/2012). 46 civilizacionais e pela invenção da sua substância “autêntica e bucólica”. Como o olhar externo (a norma) devolve o lado obscuro (caótico) e esse é interiorizado como “estigma” de “anormalidade”, a ideologia nacional esforçar-se-á por reverter o olhar pelo outro lado, o da luz (harmonia). Para Kiossev, a literatura e a cultura são disso exemplos paradigmáticos: transformações do negativo em positivo, da ausência em glória, da vergonha em orgulho, que quanto mais tentam sublimar a falta mais a reproduzem. Os manuais literários búlgaros, desde a sua primeira manifestação 96, têm como premissa de base a definição de literatura ligada à de nacionalidade. Assim, os textos universitários – positivos e disciplinadores – baseiam-se em noções de clareza, simplicidade, objetividade e (importante) neutralidade, tomando a literatura – ao ligá-la à formação da nacionalidade – como “ciência nacional”. A literatura é, por isso, fundamental como função de construção nacional o que é paralelo à “comunidade imaginada”, ou seja, há uma homogeneização ficcional de um “indivíduo essencial” com o qual a audiência distante partilhará as características universais de um “sujeito”. A literatura é por isso um saber (e um poder) de “grande narrativa”, cuja reprodução heroica unifica o coletivo em formas simbólicas. Trata-se de um processo linear e aberto ao futuro, harmonizador do individual e do coletivo por modelos de relação entre o destino próprio e o da nação. O tempo da origem aparece unido ao estado da sua representação profana, de tal forma que a literatura assume uma função totalizante e legitimadora da nação: como vimos, no contexto inicial, os escritores assumiram isto como falta. Ora é evidente que uma tal narrativa, unificada como “mono-perspectiva” de um discurso “positivo nacional”, cria uma homogeneidade que dilui – no imaginário –, pela sua solenidade autoritária, qualquer virtualidade “outra” de discurso que desafie essa articulação. Ergue-se assim uma versão monocórdica da literatura nacional sobre um modelo que carrega as categorias do “clássico”, do “eterno”, do “grandioso” e do “glorioso”. A literatura cumpre consequentemente o papel de uma espécie de religião mundana, servindo uma função onto-mitológica que localiza os autores e as obras num espaço-tempo ideal, espécie de presente sem fim: homogéneo, unificado, e não casuístico, porque transcende a circunstância já que introduz um idealismo arcaico 96 Alexander Kiossev (2004), “Bulgarian Textbooks of Literary History and the Construction of National Identity”, Maria Todorova (Ed.) (2004), Balkan Identities: Nation and Memory (London: Hurst & Company), pp. 355-65. 47 num imaginário que é moderno. É isto que constrói – para nós – a “monumentalidade” (solene, discursiva, inabalável) “apócrifa” (construída, convencionada, performativa) e, por isso, na linguagem de Kiossev – que aqui traduzimos literalmente – “os textos universitários positivistas de literatura normalizam e institucionalizam (na interpretação foucauldiana destes termos) a vaga e romântica (...) retórica clássica. Eles integram em metáforas universitárias de uso comum, em clichés institucionalizados por convenções, uma articulação da noção romântica de literatura e nação, no seio de procedimentos académicos e de ensino que são positivistas. Este estranho híbrido estabiliza a subjetividade da literatura nacional transformando-a num emblema de legitimação da identidade nacional.” Esta “construção de um sujeito nacional (e nacionalista) pela literatura nacional, pela “herança” e pelo “repositório” (...) corresponde a um filologismo e não a um dado: o ato de construção da instituição/discurso (literário) na Bulgária (...) junta numa unidade extraordinária o discurso positivista da história literária às práticas institucionais positivas da ciência literária e livresca institucional.”97 E qual é a estratégia retórica? Ao incluir como autoridade os textos literários no contexto filológico eslavo e internacional, o estudo literário búlgaro mascarou as metáforas românticas com camadas de termos positivistas, veiculando por aí a ideologia do “sturm und drang” ligada ao “génio”. Dessa forma, a configuração das obras canónicas (que suprem a falta) como tesouros sem preço joga na fronteira do empírico e do romântico, concebendo a literatura como um bloco metafísico mítico e sublime, que manifesta o “espírito búlgaro” na linguagem normalizadora do positivismo logocêntrico essencialista98. A literatura e o seu ensino assumem, assim, ao nível institucional, uma função normativa reguladora que impede contradições entre a comunidade e o indivíduo, o próprio e o estranho, o histórico e o eterno, o fenómeno e a essência, a vida quotidiana e o imemorial, a “agressão” e a “cultura”. A ferramenta positiva do tempo hegeliano alivia incompatibilidades relacionadas com o trauma da falta, sob o estado de manifestação do espírito nacional homogéneo que lhe dá coerência e totalidade. É, aliás, essa totalização que une a literatura e o folclore como produtos espirituais identificados, ao nível metafísico, como duas manifestações 97 Kiossev (2004: 359). “Like Ulysses who visited the world beyond and then returned, literature oscillates between the multitude of facts and the unity of the spiritual, transgresses its borders, it now finds itself in the empirical and spreading multitude of texts and epitomises and expresses the inexplicable single essence, the metaphysical essence of the national spirit.” Kiossev (2004: 361). 98 48 diferentes da “língua” e do “verbo” que exprimem a “alma” 99. A sua distinção é apagada pela objetividade do discurso institucional que constrói a ponte entre eles. Este progresso teleológico coerente do povo nas suas manifestações homogeneíza a herança e o clássico, emancipando a nação no cenário histórico. O discurso literário é, por isso, uma metafísica da presença que torna evidente a essência nacional, elevando passado, presente e futuro à integridade. As “letras” são heranças de continuidade de quem ganha uma independência que transcende o real, em direção ao tempo ideal, por um processo em que o moderno suprime o trauma da falta pela legitimação do “nacional”. Tal escatologia tem a pretensão de suprimir o estigma da falta e a anormalidade da ausência: a narrativa histórica é quem legitima o tempo moderno emancipadoramente inserido no projeto ilustrado e cumprindo, por outro lado, uma função compensatória de legitimação nacional. Ora, para Dessislava Lilova 100, um dos maiores problemas que o processo coesivo de construção deste imaginário encontrou foi o de como narrar a queda nas “trevas otomanas”. O trauma búlgaro tem a dificuldade acrescida de não encontrar um espaço específico para concretizar o momento da “perda”, ou seja, um evento, uma batalha, uma morte ocorrida num espaço físico especial e sagrado, como acontece no caso sérvio em que a “perda” está associada ao espaço totémico do Kosovo. Os búlgaros não têm um “último” herói sagrado nem um “último” lugar: a crise do “estado” é atribuída ao facto de os derradeiros monarcas se terem casado com mulheres judias e gregas, cujas “pérfidas intrigas” conduziram à interrupção trágica da história. A literatura e a história resolveram o problema pela politização contemporânea do discurso, suprimindo a falta de uma memória traumática unívoca pela fabricação de um passado (nos últimos 50 anos otomanos) mediante o uso do ensino e da imprensa: estes estandardizaram uma norma peculiar da “queda”. Como os manuais de história universal contavam com brevidade (em traduções do francês e do alemão) o Império Otomano em relação com Bizâncio (nunca com a Bulgária), a elite teve necessidade de inventar manuais que suprimissem essa falta. Entretanto, a imprensa brandiu o início do “trauma” com base numa vulgata que terá circulado na Áustria, não sem alguma “indignação” das elites com as “inconsistências” aí descortinadas, sendo necessário, por isso, reescrever e adaptar um texto que ainda não ganhava valor de 99 Kiossev (2004: 362). Dessislava Lilova (2010), “Relater la Chute Sous le Pouvoir Ottoman: La Version Bulgare”, Balkanologie Vol. XII, Nº1, http://balkanologie.revues.org/index2140.html (consulta: 22/09/2011). 100 49 norma. Apesar de o primórdio estar no monge Paisii e seus seguidores, a versão final só será normalizada já no século XIX. Contudo, a queda era um tema chave para a narrativa do “atraso” em relação à Europa, já que mostrava o drama do apagamento de um “estado” dessa carta geográfica. Entre as dificuldades estavam, além da definição do estado, a nebulosidade das figuras envolvidas, das campanhas militares e dos lugares destas. Dito de outra forma, havia um “défice de normatividade”; a razão principal para a não desintegração total da narrativa, vem, por isso, não da sua consistência mas do quadro ideológico estável101, ou seja, “como” é que o estado desapareceu é menos importante que o “porquê” descoberto no “inimigo”, nas “divisões” internas e na “decadência” moral. Tal “imaginação emocional” na descrição da desmoralização das elites tomou a forma de uma corrente de formação da identidade que via nos “imorais aristocratas helenizados” a antítese dos “proto-búlgaros” “puros”102. Essa “anomalia feia” tomou formas literárias apropriadas pela elite intelectual, para quem o “deboche” fez com que a “servidão” não constituísse uma novidade, pois o poder anterior aos muçulmanos já tinha “escravizado” o povo. A falta de uma “batalha”, substituída por um estado dividido e “imoral” deixou o mito histórico num bloqueio, devido ao seu “défice de heroísmo.”103 No entanto, a elite conseguiu manter a norma discursiva e a ajuda paradoxal veio precisamente da “competição” das ficções históricas vizinhas – nomeadamente a sérvia – em torno de qual nação seria mais “digna” ou “maior”. Essa necessidade de contraposição ajuda a colocar, no lugar da “queda”, não um mito real, mas o mito moderno do povo soberano, dono da sua história “primordial”: embora os búlgaros já se encontrassem “fracos” devido ao ambiente de “decadência” que levou ao inevitável “sacrifício de cristãos”, este processo originou dois regimes de verdade complementares: um ligado ao estado medieval “interrompido” e outro ligado à regressão nostálgica. 101 Como diz Maria Todorova (tradução nossa), numa narrativa nacionalista “diferentes fontes tornamse subordinadas ao mesmo objetivo (...) forçadas a falar a mesma língua (...) de modo a que o sentido e, por extensão, a memória sejam produzidos no espaço entre a intenção autoritária e a receção.” Maria Todorova (2004: 130). 102 Lilova (2010). 103 Lilova (2010). 50 Diana Mishkova104 acrescenta mais três processos de estruturação construtiva do discurso através de dobras de semelhança e oposição, neste caso por referência aos discursos “greco-helenista”, “greco-bizantino”, “eslavista” e “turcófilo”. Mishkova propõe-se olhar para a Bulgária por uma revisão da ideia de “orientalismo”, reconhecendo as incompatibilidades (para o modelo) provenientes da ausência de um colonialismo propriamente dito e de uma tradição local (entre as elites cultas atuais) de estudos culturais multidisciplinares exteriores às compartimentações formais tradicionais. Desta forma, a auto-narrativa é problemática dada a ambivalência limiar do espaço105, em termos de apreensão dos saberes europeus, e a própria polissemia ganha pela ideia de “Europa”, em função da ambiguidade das ferramentas intelectuais que ela proporciona, uma vez inseridas no contexto. Assim, a autoidentificação búlgara não pode ser vista apenas a partir do controlo semântico do “centro” europeu, o que corresponderia a ignorar matrizes como a russa (do hibridismo eslavo) e a otomana (cuja interpretação monolítica pelas historiografias nacionais ignorou a modernização interna do Império). Sendo verdade que grande parte do século XIX correspondeu a uma educação disseminada a partir da Europa, a maioria das pessoas era já formada no contexto limiar do processo de filtragem – e não diretamente – e, dentro desse, até aos anos 30 do século XIX, a “metrópole” búlgara era a “tradução” grega das ideias do ocidente, o que levou a uma visão desta influência como ameaça ao exclusivismo. Assim, a entrada da Bulgária na modernidade fez-se pelo estigma social otomano e cultural grego106. Este processo começa por ser uma “defesa por imitação”: como o racionalismo europeu chega filtrado pela Grécia (assim como o nacionalismo) o “despertar” e o “renascimento” fazem-se pelo processo grego, mas em competição com este. Como os intelectuais acreditavam que o “renascimento” intelectual e 104 Diana Mishkova (2007), “In Quest of Balkan Occidentalism”, How to Think About the Balkans: Culture, Region, Identity (Sofia: Sofia Academic Nexus, Centre for Advanced Study) http://www.cas.bg (consulta: 22/09/2011). 105 Esta questão dos limiares e das fronteiras, que é própria do discurso pós-colonial, ressurge também no trabalho de Albena Hranova em torno dos recursos epistémicos de poder que a literatura nacional proporciona em termos de normalização do imaginário. No seu trabalho – que, por falta de espaço, não analisaremos aqui – as metáforas da “ponte” e da “cruz”, por exemplo, servem como recursos para mostrar como o discurso literário quis ou subverter ou confirmar o “nacional” por via de metáforas de ambivalência. Isso por si demonstra o quanto a literatura e a história se entrelaçam no processo de coerção discursiva da identidade: Albena Hranova (2007), “Balkan History: No Longer European, not Only Ottoman and not yet National”, How to Think About the Balkans: Culture, Region, Identity (Sofia: Sofia Academic Nexus, Centre for Advanced Study) http://www.cas.bg (consulta: 22/09/2011). 106 Mishkova (2007: 8). 51 político eram paralelos num utopia totalizadora, as ambiguidades de formação do modelo grego eram complicadas para a Bulgária pois a Europa via a sua “raiz” na Grécia. Só que isto influenciava também a autoidentificação grega no século XIX que, por isso, via como seu grande testemunho de continuidade a igreja. A antinomia entre “duas Grécias” (racional e progressista, versus retrógrada e religiosa) – com outras metamorfoses, como ainda veremos – influenciou a tensão balcânica em geral em torno da etnogénese. A solução búlgara foi, segundo Mishkova, olhar para Rússia. O eslavismo providenciou os ingredientes de uma identidade nacional (passado, língua, cultura imemorial) a partir de um “grande outro” e foi esta onda pan-eslavista que levou búlgaros a estudarem na Rússia. Contudo, como os “pais” dos estudos eslavos eram sobretudo germânicos (o modelo da chegada à origem histórica por classificação linguística), a elite pan-eslava búlgara, ao tomar nas mãos a obsessão de ler o eslavismo como contraponto à Grécia, chegou ao romantismo alemão. A busca da etimologia “pura e antiga” dos búlgaros levou ao encontro de um romantismo europeu transformado em “verdadeira” identidade búlgara e a evolução deste romantismo nacionalista para um misticismo histórico (contra a “corrupção” helénica) não foi a única fonte de ambiguidade. Embora a relação entre o mundo eslavo e a igreja ortodoxa fosse, para alguns intelectuais, importante como contraponto à europeização “corrupta”, essa ambivalência levou também a sentimentos de dupla periferia (quanto à Europa e quanto à Rússia) e como os Balcãs não faziam parte de domínios de estudo sério no contexto europeu (ao contrário do oriente, que dispunha de uma etnografia própria, apesar de subalternizadora), essa nudez narrativa deixou a identidade inicial carenciada de espelhos. É a entrada na Europa por via eslava que garante um capital simbólico (ambíguo, porque eslavo e ortodoxo) de inscrição matricial e um modelo de autoavaliação. Contudo, perante a autoridade eslava, os búlgaros eram ambíguos: irmãos anómalos, semi-europeus, e são estas primeiras “autorizações” que marcam a maneira como a Bulgária surge no mapa político. Tal tradição acomoda, por isso, um paradoxo de messianismo eslavo, mas também de distância oriental que marca, ainda, outro canal de ambivalência: o do discurso nacionalista que é, paradoxalmente, turcófilo, e que nasce das próprias contradições finais do Império (assim como aconteceu com o discurso laico da Turquia nacionalista moderna). Estes “modernizadores” (anti-russos e pró-europeus) começaram por promover o “desenvolvimento” dentro do quadro administrativo do Império Otomano e dentro do 52 quadro intelectual do ocidente (para eles, a nação teria que vir moral e materialmente daí). É curioso que tal polarização (oriente e ocidente) inclua a Rússia e não os otomanos que entretanto se “afrancesavam”107. A turcofilia defendeu a nacionalidade pelo acesso à Europa mediante canais otomanos e foi assim que chegou à defesa da independência da igreja búlgara (por oposição à grega) e da educação moderna. A historiografia nacionalista oculta estrategicamente estes turcófilos, mas, nos discursos da época, tanto eles como os reformadores otomanos defendiam o progresso, a ciência e a educação positivas. O que acontece é que este contacto com o ocidente se dá a meio da desintegração entrópica imperial e é aí que este tipo de modernidade dá o braço ao nacionalismo. Ora, um dos pontos comuns entre discursos nacionalistas – salienta Boyan Manchev – é que todos reconverteram figuras mitológicas da antiguidade em linguagem moderna108. Para o projeto búlgaro isto era complicado – em paralelo com a análise de Mishkova - pela proximidade grega: rejeitar o mimetismo, levaria à assimilação; rejeitar a antiguidade retiraria fundamento ontológico à nação, dada a necessidade de “arquétipos”. Manchev fala, por isso, também em duas Grécias, mas de modo diferente: a da medida, da beleza, da razão, da polis e a dos mistérios, das orgias, dos rituais, dos sacrifícios. Usando linguagem nietzscheana, digamos que Apolo foi reivindicado pelo classicismo e pelo iluminismo e Dionísio pelo romantismo. Um entra no imaginário por via francesa e outro por via alemã. Ora, como o nacionalismo búlgaro não dispunha de arquétipo, buscou-o numa versão idílica (em contraste com o romantismo trágico, mais associado inicialmente a um certo “bizantinismo”) de libertação dos modelos gregos de assimilação e associada a uma interpretação luminosa da “idade do ouro”. Grande parte do projeto búlgaro do “renascimento” assentou na ficção do “paraíso perdido” de uma beatitude natural e pré-política. O “bom selvagem” é um dispositivo de compensação, pois neutraliza o estigma do “subdesenvolvimento” em oposição ao “desenvolvimento corrupto” grego. Como o projeto grego era messiânico (aliás, todas as “grandes” nações balcânicas têm a pretensão discursiva de que o “outro” reconheça dentro dele que é “nosso” nos termos do “nosso” discurso109) – helenizar os “selvagens” cristãos submetidos ao império 107 Mishkova (2007: 20). Boyan Manchev (2007: 3) “Nation Between Tragedy and Idyll”, How to Think About the Balkans: Culture, Region, Identity (Sofia: Sofia Academic Nexus, Centre for Advanced Study) http://www.cas.bg (consulta: 22/09/2011). 109 Se esta questão está presente, por exemplo, na relação entre búlgaros e macedónios, a sua extensão peninsular está presente na seguinte afirmação de Stephen Schwartz: 108 53 “asiático” e retirá-los das suas vidas de “idílio animal” – o discurso coesivo búlgaro não competiu com o projeto grego nos termos deste e instalou um regime de verdade baseado no que ele rejeitava, ou seja, o “bom selvagem”. Esse “bom selvagem” transformou-se, no imaginário búlgaro, no camponês ingénuo, primitivo e moralmente preservado. Este mito, criado no renascimento por filólogos, poetas, filósofos e escritores, formou uma imagem virginal de duplo sentido 110. Ao ser estruturalmente inevitável por pressões externas, levou a uma forma de animalismo pré-político representativo, através de uma figura paradoxal que vive na fronteira com o mundo animal. O herói da resistência contra a cultura corrupta mantém, como tal, uma relação com o espaço bestial e é por isso que o imaginário oscila entre o camponês e o “haidouk”. Este sofre uma transformação trágico-sacrificial a partir do mito pastoral que ganha outra aura. O ponto de partida é o lado animal, excluído da representação política, mas trazido para dentro dela por indecidibilidade entre o trágico e o idílico, o animalesco e o representativo. Temos assim uma nostalgia fundadora e autóctone do paganismo transformado em excesso, poder e materialidade: arquétipo do retorno em que o sacrifício é recriação da matéria original do sublime, do idílico, um pastoral trágico e semi-panteísta da paisagem, jogo das transcendências imanentes do camponês e do “haidouk”. Nesta nossa digressão pelos discursos formadores do modelo nacional de autointerpretação identitária na Bulgária, pretendemos evidenciar os tropismos pelos quais se ergue todo um discurso que vimos designando como monumental e apócrifo. Todas as sociedades precisam de mitos de coesão; mas nem todas elas afundam na esfera do indiscutível a sua imposição como convenções. É evidente que, quando falamos em indiscutibilidade, suscitamos aqui a questão de a nação, com esta carga monumental e apócrifa, não fazer parte do domínio de discussão do discurso político pelo qual se definem as identidades111. É evidente que se poderia fazer um paralelo fácil com todos “(...) this conception has played a ghastly role in the bloodletting that has marked Yugoslav history in this century, the Serbs often demanding that Balkan Muslims acknowledge their “inner Serb” or die.” Stephen Schwartz (2005: 248), Sarajevo Rose: A Balkan Jewish Notebook (London: SAQI Books). 110 Manchev (2007: 6). 111 Milla Mineva, num interessantíssimo trabalho sobre as dobras discursivas do discurso publicitário na Bulgária (reclames de cerveja, por exemplo) chama a atenção para o modo como até a publicidade, que é um produto do individualismo competitivo, se reforma sob a forma de discurso de coesão coletiva na Bulgária na qual, como é evidente, o nacional não se discute, uma vez que ele é tomado como adquirido, uma espécie de significante zero. A despolitização do nacionalismo é a forma subreptícia mais insidiosa de o manter como dogma que esconde a sua convenção. O reportório histórico surge, por isso, como espaço neutro que invade as vidas privadas através dos media e ganha como tal a forma de um consenso rígido, monolítico e não declarado, que todo o discurso político concorda em preservar como “facto”. 54 os nacionalismos e a tentação de mencionar aqui a “não discussão” salazarista (Deus, Pátria e Família) é forte. Contudo, isso suporia uma análise das fortes condicionantes locais do regime totalitário português que não cabe aqui. Evidenciar a auto-colonização, mostrar a fabricação de um discurso que serve para lidar com a treva “otomana” de modo cómodo, salientar os mútuos exclusivismos das construções discursivas balcânicas ou apresentar reinterpretações mitológicas da origem tem o evidente propósito de enriquecer – na senda de Foucault – a ideia de que a discursividade constitui um saber e um poder que implicam enunciações próprias dos objetos, com consequências formativas nos sujeitos: isto é paralelo à industrialização moderna, é próprio da invenção de tradições e não seria possível sem a partilha tecnológica de um reportório textual que induz à imaginação coletiva. É por isso que Geary, Gellner, Hobsbawm e Anderson ajudam a cimentar a veia arqueogenealógica, confirmada aqui. É sintomático mesmo que as críticas a este tipo de interpretação acabem por admiti-la e Ivelin Sardamov é um caso curioso 112. Ao criticar visões instrumentalistas e construtivistas da história, em nome de um “primordialismo dos participantes”, acha que não levam em conta o poder da memória nas culturas folclóricas (no caso do instrumentalismo, embora admita que as elites manipularam isso) e a predisposição humana para a violência junto com o espírito crítico dos indivíduos perante as ficções (no caso do construtivismo, embora reconheça que a propaganda reconverteu imaginários em linguagens novas). Ou seja, embora ele ache que o instrumentalismo exagera quanto à manipulação das elites e o construtivismo quanto à estruturação sócio-discursiva das identidades, reconhece que as elites e os discursos sociais têm uma estruturação epistémica importante no discurso nacionalista. Sendo que as sociedades balcânicas possuíam estruturas de parentesco tradicionais negociadas no quadro de impérios, o nacionalismo integrou-se-lhes como consciência regressiva usando a visão do “outro” como ameaça113. Como os veículos de coesão narrativa anteriores às literaturas se encerravam na cultura popular, o discurso político usou esse imaginário por um processo de reconstrução da glória antiga e as instituições modernas traduziram esses tradicionalismos em linguagem etnocêntrica, reformando Milla Mineva (2008) “Made in Bulgaria: The National as Advertising Repertoire”, Eurozine http://www.eurozine.com (consulta: 22/09/2011). 112 Ivelin Sardamov (1999/2010), “Combattants de la Cause Nationale: Ethnicité, et Génocide Dans les Balkans” Balkanologie Vol III, Nº 2, http://balkanologie.revues.org/index736.html (consulta: 22/09/2011). 113 Sardamov (1999/2010). 55 as lendas na linguagem secularizada dos currículos educativos. Essa fusão de mitologias e narrativas orais permitiu a reivindicação de “grandes” territórios sob a forma conflitual. É por isso que, ainda hoje, as minorias (dentro de territórios supostamente “mono” - étnicos e culturais) são transformadas em cidadãos de segunda classe, pois a memória serve tanto para justificar o sofrimento como a violência114. A retórica nacional é assim uma máquina de reconversão mitológica e foram os intelectuais que converteram narrativas orais (muitas vezes comuns115) em linguagens de exclusão, utilizando – na fixação do discurso escolar 116 – imaginários que tinham um sentido de coesão ligado a outros tipos de vínculos e manipulando superstições por processos de imortalização nacional do coletivo étnico monolítico, com consequências dogmáticas, reprodutivas e arrasadoras. A forma como tudo isto se repercute de modo positivo e recapitulado em programas de ensino de “civilização” e literatura estrangeiras, a nível localmente recapitulado, é o que veremos no capítulo seguinte, assim como a possibilidade de discussão desses mesmos modelos por discursos que são silenciados a nível bibliográfico. 114 “Terror by remembering is a parallel process to terror by forgetting. Both processes have the function of building a new state, a new truth. Terror by remembering is a strategy by which the continuity (…) of national identity is established, terror by forgetting is a strategy whereby (…) identity and any remote prospect of its being re-established is wiped out. Dubravka Ugresic (1998: 80), The Culture of Lies (London: Phoenix House). 115 A documentarista búlgara Adélia Peeva (“Who’s is This Song?”) ridicularizou de forma cinematográfica a mitologia exclusivista dos nacionalismos ao fazer uma viagem pela península em torno de uma canção que é de “todos”, mas que cada um reivindica como “sua”. Misha Glenny mostra que, nos intervalos das batalhas do fim da Jugoslávia, soldados de ambos os lados da frente cantavam ao desafio as mesmas canções populares. A propósito de vários exemplos deste tipo de cumplicidade bélica, Glenny diz o seguinte: “This camaraderie between the opposing merchants of slaughter was one of the most horrifying phenomena I observed during the war.” Glenny (1996: 28). 116 O abismo subalterno que separa o discurso escrito do oral na mecânica dos comportamentos escolarizados pode ter uma relação direta com essa inversão do valor da fala, tornando-a inferior e desvalorizada através dos mecanismos modernos de afirmação da fixação no texto. 56 Capítulo 3 - Recapitulação, Monumentalidade e Idílio no Currículo Búlgaro de História, Cultura e Literatura Portuguesas: a Necessidade da Crítica às Visões Nacionalistas e de Excesso Mítico nos Olhares Sobre a Realidade Portuguesa Neste capítulo analisaremos a maneira como os mecanismos culturais de filogenia inerentes aos processos de construção da identidade, da nacionalidade e da cultura búlgaras, presentes na instituição universitária, se recapitulam – como mecanismos inerentes à filogenia do aluno e da subjetivação discursiva curricular enquanto sujeitos de um processo de acomodação objetiva – no acesso à história, cultura e literatura estrangeiras, como processos de apropriação cultural emergentes dentro de uma ontogenia relativa ao discurso com o qual se toma contacto. Nesse processo, não só a cultura portuguesa é vista como algo estável e perene, como qualquer voz que seja dissonante em relação a isso não aparece no discurso oficializado programaticamente. Para tal, procederemos a uma análise inicial do que se entende aqui por “recapitulação”, desmontando o cariz positivista que a noção teve no contexto histórico do seu surgimento entre as ciências da vida, passaremos à sua visão como metáfora heurística e depois analisaremos os programas curriculares de história da civilização portuguesa e de literatura portuguesa que, segundo a nossa perspetiva, recapitulam (por acomodação do exógeno) o modo como na Bulgária se dá a interpretação entrelaçada da história, da historiografia e da literatura nacionais. 57 Passaremos em seguida a uma leitura lateral que seleciona, na intelectualidade portuguesa que se debruçou sobre este tema, exemplos que mostram que, mesmo em Portugal, espaço com fronteiras estáveis há bastantes séculos, os conceitos de nacionalidade e primórdio não são tomados como ideias absolutas, podendo ser discutidos enquanto tal e atribuídos a contextos próprios de exaltação. Apresentaremos, sempre que possível e em nota, extratos de afirmações dos alunos demonstrativas dos valores implícitos numa mecânica recapitulada, onde se dá o império da repetição sobre a crítica e do escrito sobre o oral. A) Recapitulação da Monumentalidade Apócrifa: Acomodação da Filogenia Arquetípica Nacionalista à Ontogenia Curricular da “Civilização” e da “Literatura” Portuguesas Do ponto de vista heurístico que nos interessa aqui quanto à recapitulação, entraremos em diálogo com Richard Carlson117, salvaguardando o valor metafórico que o conceito tem para nós. De um ponto de vista exclusivamente relacionado com as ciências da vida, a teoria da recapitulação perdeu o seu valor e é cada vez mais vista como uma teoria de sentido “integral” que, ao projetar na complexidade do mundo uma visão teleológica – herdeira de um discurso de poder de cariz positivista e progressista 118 surge como justificadora de mecanismos interpretativos da vida que legitimam espaços desiguais de afirmação social, não sendo estes mais do que extrapolações unidimensionais. Acreditamos que, do ponto de vista sócio-cultural, a inconsciência disso resulta em processos semelhantes de subalternização fruto de um aristocratismo discutível. Na realidade, tal interpretação da teoria da recapitulação interessa-nos como indício (do ponto de vista da análise discursiva) que é metafórico para questões de reincidência, repetição, reprodução, “mimésis” ou acomodação arquetípica. Algures entre estes desdobramentos imagéticos, elencados comparativamente, está aquilo que queremos ver com ela. De certa forma, a recapitulação é uma tentação metafísica de interpretação (muitas vezes por analogias finalistas) do real enquanto modelo coesivo e total. Segundo Carlson, este tipo de monismo é traçado genealogicamente por Foucault como sendo 117 Richard Carlson (2011), “Integral Ideology: An Ideological Genealogy of Integral Theory and Practice” http://www.integralworld.net/carlson.html (consulta: Outubro de 2011). 118 O que torna possível encontrá-la como sinal ou sintoma, para a desmascarar enquanto verdade. 58 originário da antiguidade clássica e medieval, por exemplo em Gregório de Nissa. O pensamento integral, hierárquico e gradual é o antecedente epistémico das narrativas sequenciais do universo, onde a recapitulação se integra. E, de facto, isso é significativo se tivermos em conta que o que se trata de mostrar é a transposição acrítica de um modelo linear de uma cultura para outra. Quando no século XIX (sendo significativo que seja aí) Ernst Haeckel desenvolveu a recapitulação, é num contexto teleológico, positivista e linear que o faz. Desta forma, é natural que quando esse modelo não é contestado, em inserções onde os processos são aceites como “factos” do mundo, ele seja extrapolado de modo mimético de um bloco cultural para outro, sem qualquer tipo de visão que aceite descontinuidades, incertezas ou complexidades. É num contexto parecido que Haeckel vê a ontogenia dos seres vivos (o seu processo de crescimento) como recapitulando a filogenia das espécies (a linha evolutiva destas). Para nós, do ponto de vista discursivo, a ontogenia curricular, pela qual se normaliza o perfil do aluno no espaço da história, da “civilização” (o termo vulgar) e da literatura portuguesas, recapitula a filogenia clássica do ensino búlgaro sobre a qual se falou no capítulo anterior. Há, assim, semelhanças entre o que Haeckel via nos seres vivos (num “símile” repetido de positivismo e de romantismo, que se extremou no conceito de “raça”) e o que entra de modo incontestado pelos processos curriculares inerentes à norma discursiva do nacionalismo, isto porque a ânsia de se provar a capacidade de pertença a uma cultura “superior” (europeia, portanto) não questiona o próprio critério pelo qual a ideia de “superioridade” se gera enquanto espaço epistémico, criando os fenómenos de “ambivalência”, “falta” e “auto-colonização” de que já falámos. Contudo, o uso da recapitulação para promover programas de subalternização escapa ao âmbito deste trabalho. Apesar disso, o que a recapitulação ajuda a desmascarar é o facto de que o seu uso (não intencional e – estamos em crer – inconsciente) enquanto “facto” não demonstra o seu espaço de convenção ou modelo que não são únicos. Desta forma, a conceção de saber e poder que a reincidência reprodutora ajuda a encontrar é um processo elitista que chega, inclusivamente, à organização das bibliotecas. Na realidade, naquelas que conhecemos no contexto em que trabalhamos, os “clássicos” (da literatura portuguesa, entenda-se, seguidos pelas histórias da literatura, pelos dicionários da mesma e imediatamente ao lado de alguns volumes da história de Portugal, da história da arte portuguesa e da história geral da civilização e dos descobrimentos) ocupam um lugar “central” (bem mais central que 59 os estudos linguísticos, as gramáticas e os textos de aprendizagem da língua) e, por outro lado, os textos brasileiros ocupam já um lugar periférico (onde se incluem obras literárias, e histórias da literatura e da civilização), sendo que, para a “periferia” do “arquivo”, são despojados os produtos literários africanos, por exemplo, aos quais é dedicado um pequeno armário colocado na secção “inferior” de uma das “últimas” estantes, ao fundo do “quadrilátero” que constitui pelo menos uma das bibliotecas. Esta visão distributiva não é muito distante daquela que o darwinismo social possuía em relação aos seres humanos, ou da que Hegel possuía em relação à história. Nesse sentido há, como a visão foucauldiana do “fazer falar” anuncia, um quadro de adestramento que vê o real dentro de um modelo discursivo onde se estabelece uma dicotomia entre o “primitivo” “infantil” (que se pode desdobrar em figuras como o “aluno”, a “África”) e o “avançado” “adulto” (por oposição, no “professor” ou na “Europa”). Em ambos os casos, há uma “luz” – a da elite aristocrática – que irradiará de um “centro” em direção à “treva” do “outro”, o “exótico”, digamos, seguindo a etimologia. Tal conceção é compatível com a ideia de progresso positivo (do inferior ao superior) e de idealismo romântico (a cultura como manifestação do espírito), compactadas numa forma moderna, ordenada, direcional. Ainda: há um “arquétipo” – a “escada” do saber – imitado na construção da ontogenia do aluno a partir do que se assume acriticamente ser a filogenia da cultura “universal” da “civilização” (reproduzindo-se um modelo europeu, próprio de um determinado momento histórico e tornado perene, como dispositivo discursivo, por décadas de transmissão). Neste contexto, a ideia progressista de uma “evolução” a partir da “superstição” para a razão, combina-se com a ideia da “permanência primordial” do “espírito do povo” que assiste, além do tempo, ao processo do seu auto-reconhecimento. Isso dar-se-á, presume-se, nos dois extremos da Europa, no limite da Ibéria e nos confins dos Balcãs, pela revisão dos mitos como absolutos, ou seja, como se as quedas, as iluminações, os providencialismos, os messianismos, os despertares, as restaurações, que são metáforas de coesão, fossem factos históricos com fraca necessidade de exposição crítica ao estatuto de convenções hermenêuticas: é isso que se recapitula. De certa forma, as estruturas construídas a partir do “centro” romântico e positivista (como estratégias de normalização moderna) espalharam-se e a sua filtragem irradiada recapitula-se como linguagem factual. São ferramentas pelas quais as culturas se recapitularão (reinventando-se) como europeias, exatamente porque as suas histórias e literaturas são lidas pelos utensílios intelectuais de um certo momento central. 60 Na realidade, a recapitulação (como facto e não como convenção ou metáfora) foi uma tentação na cultura europeia e Freud, apesar da sua suspeita moderada em relação à civilização (que ele achava, apesar de neurótica, um mal necessário contra tendências destrutivas), assim como Jung (ambos citados por Carlson) adotaram-na, ao ponto de este último achar que as crianças na infância recapitulariam estádios “primitivos” da humanidade (do mesmo modo que o modelo positivista de aprendizagem vê no aluno um balde vazio). Existe nisto um resquício cartesiano – assente na estrutura universal da mente – lido como caminho para o superior, para a civilização, para o centro, para a luz, tudo sem ambiguidades, sem espaços intermédios. Trata-se aqui de conceitos que, não tomados como convenções e sim como adequações entre linguagem e real, enformam pressupostos que, não deixando de ter a sua necessidade, não abrem espaço crítico para a sua visão enquanto discursos de poder, nem abrem brechas para visões mais contextuais, segundo as quais espaços e tempos diversos respondem por lógicas diversas. Assim (de acordo com o artigo citado) se Stephen Jay Gould (ele que é biólogo) pode afirmar que a recapitulação serviu para justificar intentos coloniais (o “primitivo”, o “fardo do homem branco”, etc.), não nos parece descabido usá-la para referir que o seu uso acrítico serviu também como “auto-colonização semi-periférica”, no sentido de que a afirmação “somos europeus” esconde, na verdade, um desejo (“queremos ser europeus”): um desejo eurocêntrico incorporado em mimetismos programáticos, estruturadores de espaços, de arquivos e de todo um acervo monocromático sem dissonância, dado que se trata de afirmar o indiscutível e de apanhar o “comboio” do tempo vetorial sequencial, no sentido foucauldiano das séries e sua importância na modelação subjetiva. B) Monumentalidade Apócrifa Programática: Um Portugal Estereotipado e Idealizado É este essencialismo que encontramos nos programas de “história e cultura de Portugal” (conhecido entre os alunos como “civilização”) e no programa de “literatura portuguesa”, assinados, respetivamente, por Vera Kirkova e Yana Andreeva. Na nossa perspetiva, trata-se de recapitular, em relação a Portugal, uma “monumentalidade” de cariz solene e também “apócrifo”, na medida em que vista como única. Os tropismos 61 (positivistas, teleológicos, racionalistas e românticos) recapitulam-se num “espírito português” que é a sua essência desde os primórdios, estendendo-se pela história e pelos textos como auto-consumação reconciliada, em vários momentos, do povo consigo mesmo através das expressões mais altas da sua cultura característica e da sua história épica; não existe – pelo menos nos textos dos programas – qualquer questionamento da adequação entre linguagem e facto, sendo este concebido como cabendo no discurso, sem distância hermenêutica que o mostre como interpretação: a “coisa” coincide com a “palavra”. São programas “canónicos”, no sentido tradicional do termo, ou seja, “oficializam o que deve ser dito como essencial”. Além disso, existe a afirmação inquestionável de um passado heroico, no qual assume primordial importância a figura da missão civilizacional, com grande relevo histórico 119. Trata-se também de um conjunto teleológico, até pelo tipo de linguagem, na qual se antevê a longa marcha de Portugal desde os seus primórdios, passando pelo espalhamento do espírito pelo mundo através das descobertas, pelos períodos de queda ou decadência, como o filipino, e também de regeneração. Neste contexto, os Lusíadas têm um estatuto fundacional, dado que existem como referência monumental testemunhada e guardada na mitologia sebastianista. A essência portuguesa é ubíqua, extravasada pelas descobertas para o “universal” e imemorial, que se foi enriquecendo com novos contributos necessários à manutenção do espírito do povo como regeneração na linha do tempo. Almeida Garrett, Alexandre Herculano (e também Teófilo Braga) surgem, por isso, como incontornáveis na restauração do passado. Quando o título do programa refere história e cultura “de Portugal” 120, fica-se com a sensação estática de algo que não muda, devido à linearidade do tempo e à etnografia do espaço cultural. Embora o programa não apresente objetivos ou metodologia de desdobramento, diz, em “anotação” prévia, que se trata de familiarizar o aluno com o “desenvolvimento de Portugal nos seus aspectos essenciais”. Desta forma, Portugal é apresentado como uma entidade permanentemente nomeada como tal e que se desenvolve, assume-se, sem dúvidas em relação ao seu auto-reconhecimento identitário. A “cultura portuguesa”, um bloco cujas características estruturantes são 119 A propósito de processos comparativos, uma aluna teve o ensejo de – num trabalho sobre tradições culturais – escrever o seguinte: “sei que Portugal é um país com tradições muito fortes, alimentadas pelos séculos de história maravilhosa, pelos Descobrimentos, etc.. Na Bulgária não é assim. Penso que muitas tradições búlgaras se perderam com a longa escravatura que sofremos. Outras perderam-se por causa de algumas tendências estrangeiras, fruto da mistura cultural.” 120 Vera Kirkova (S/D), “História e Cultura de Portugal” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Filologia Portuguesa, Programa de Estudos), em anexo: anexo 1. 62 vistas como adquiridas, espraia-se pela geografia, pela etnografia, pela história e pela arte: ela é um conjunto que a linguagem nos apresenta sempre no singular (“a casa”, “o vestuário”, “a cozinha”, “o fado”121) dotado de uma identidade fechada sobre si e auto-referente. É evidente que não questionamos a necessidade de existir uma imagem patrimonial: aliás, isso é fundamental para que processos de outra ordem a possam desmontar, fazendo-a descer do pedestal factual. Contudo, esta espécie de “ontologia de postal” (a ideia heideggeriana de ontologia ajuda aqui a ver estes fenómenos ônticos em que essência e existência se conjugam num dispositivo discursivo elaborado e estereotipado, como se a homogeneidade fosse a marca de um espaço que, sabemo-lo, é feito de ambivalências e cruzamentos que complicam este tipo de visões) carece de problematização e simplifica os “portugueses” a faixas enunciativas de significação (sempre no sentido foucauldiano, claro) arregimentadas em torno do ideal platónico do “típico”, pouco próprias a intersecções que, diríamos, terão sido sempre marcantes e não só contemporâneas e que desaparecem silenciadas a partir de um quadro presentificado, onde os mecanismos de um presente perpetuado (sequencial, disciplinar, taxinómico, de um poder positivo inerente à genealogia das ciências humanas do século XIX) surgem como estratégias de iluminação de um passado e de um lugar, a partir de um espaço-tempo outro que o cristaliza numa significação, talvez não sua, exatamente porque não o interroga nos seus termos. Assim, o ponto 1 é dedicado à geografia (falamos de conteúdos: os programas oficializados e disponíveis não apresentam, enquanto monumentos visíveis, os objetivos), apresentada não como condicionante complexa para a formação da entidade (à qual se dá o nome de “Portugal” mais tarde, diga-se, e que implicaria a fixação de populações junto às faixas costeiras, distintas do estilo gregário encontrado nos vestígios montanhosos, conforme mostram alguns exemplos elencados por José Mattoso122), e sim como um dado acabado (“o mar”, o clima”, “a hidrografia”, “a população”); isto é, algo que está como se tivesse sempre estado, olhando pelo 121 É curiosa a maneira como este entra no imaginário discente. Num trabalho sobre o fado, como património da humanidade, uma aluna escreveu o seguinte: “eu não posso sentir o significado real do fado e a razão é bastante óbvia: eu não sou portuguesa. Os portugueses percebem esta canção triste, que é o seu destino e identidade nacional. O fado expressa a alma melancólica do português e aplica uma diferença entre a identidade portuguesa e a identidade apaixonada dos espanhóis ou a identidade sofisticada dos franceses, por exemplo. O fado está cheio de saudade, uma noção sem equivalência noutras línguas e noutros lugares do mundo. A saudade é sempre portuguesa, uma mentalidade nacional única, presente nas melodias cantadas pelos fadistas.” 122 José Mattoso, Suzanne Daveau, Duarte Belo (2010: 13/14), Portugal, o Sabor da Terra (Rio Tinto: Temas e Debates). 63 presente (os rios, o relevo, a divisão administrativa) questões tomadas como imutáveis e não processuais, dado a relação intensa entre os seres humanos, a terra, a história e a construção – constante – de opções políticas relativas às relações que essas coisas estabelecem entre si, o processo de povoamento e a artificialidade (técnica) colocada sobre o real em bruto, digamos. Há, curiosamente, na parte dedicada à geografia, uma área dedicada à “toponímia” da “capital” – de um reino, de um estado e, diríamos, mais tarde, de uma nação – Lisboa, sabendo-se que houve outras e que os processos de construção de centros administrativos não obedeciam às condicionantes discursivas que passam a ter, na melhor das hipóteses, a partir do período pombalino. Nesta integra-se uma visão dos “monumentos” e das “praças”, visão patrimonial dada, que não menciona criticamente o regime simbólico (celebrador, memorial, seletivo), icónico (representação centralizada de poder) e ritual (criadora de uma relação totémica, privilegiada, seletiva e oficializada pelo poder em relação ao tempo) de tais espaços, apresentados como ilusões de perenidade primordial, isto é, essências empedernidas de um espírito que, ao ignorarmos toda a ambiguidade mestiça da sua construção, é visto como totalização teleológica de uma constância. O ponto 2 trata do “povo” e da sua “origem”, conceitos que remetem para um cariz herderiano. Embora a apresentação seja lacónica, dado que, em linearidade, se salta logo para a “emigração” e para o “aumento populacional” posterior a 1974, é preciso ter em conta a questão foucauldiana das “origens” e da obsessão com estas, ou seja, o princípio metafísico sob o qual se descobre a busca factual de verdades últimas (e primeiras) que, na maior parte dos casos se reveste de leituras mitológicas e fundacionais (dadas a entrever nos tópicos imaginários populares e românticos do “verde Minho”, do “indómito Viriato”, do “solo sagrado de Aljubarrota”, etc.). Seguese, na mesma linha, uma incursão pela “etnografia” (em que o programa se aproxima das leituras de museu que encontramos em reinvenções do passado presentes nas “casas tradicionais”, em “aldeias museu” ou em “parques temáticos”123) na qual se fala sempre no singular. O “português”, portanto, é suposto habitar um tipo de casa, vestir-se de determinada forma, comer tal tipo de cozinha e, obviamente, celebrar certo tipo de eventos e diversões (a “tourada” também aparece, insinuando o lado viril e marialva que, como veremos, se recapitula aqui em termos próximos ao arquivo discursivo do Estado Novo, associado também aos brandos costumes). 123 À laia de curiosidade, digamos que a Bulgária também tem o seu “Portugal dos Pequeninos”: chama-se “Etar” e fica muito perto de Veliko Târnovo. 64 O ponto 3 é dedicado à “evolução” (significativamente) histórica, na qual avulta, como primeiro aspeto (elucidativo do ponto de vista discursivo), a “origem” “préhistórica” do povo e – muito significativamente – a “génese da nacionalidade” associada à “reconquista” (é, aliás, de mencionar, o quase total esquecimento a que o programa vota a presença muçulmana na península: fonte bastante forte de ambiguidades culturais e temporais daquilo a que se convencionou chamar “Portugal”, presença óbvia nos hábitos, costumes, paisagens e toponímia do Sul, os árabes são completamente (ou quase) ignorados e brevemente mencionados como “chegada dos muçulmanos” – definidos pela religião – usando-se a reconquista como historiografia oficial do nosso “tempo europeu”, como o Salazarismo bem soube perpetuar). Assim, pela associação “genética” (“génese”) da nacionalidade à reconquista, Portugal como “nação” surge, desde logo, ligado a um vínculo religioso e, por isso, o período medieval é visto – muito a propósito e linearmente – como sendo de uma “sociedade portuguesa” de pleno direito. No seu contexto – a presença romântica e bucólica dispensa apresentações com critério, aqui, de integração historiográfica – os “amores” de Pedro e Inês são vistos como “drama histórico” que remete para uma incursão do texto da tragédia de António Ferreira (escrita no século XVI e recuperada pela hermenêutica filológica do século XIX) como retórica historiográfica “ilustradora” do passado a partir de fora da sua referência textual. O último aspeto a salientar aqui é a leitura posterior à “expansão” a partir da linguagem usada. Sequenciam-se os conceitos de “evolução” e “exploração”, seguidos depois da ideia de “desastre”, associado não a condicionantes geoestratégias, mas ao “sebastianismo”, e de “decadência”, ligada à “ocupação espanhola”. Apresentam-se depois a “restauração”, numa linearidade clássica, as “reformas” pombalinas e as “revoluções” (todas tidas como tal: 1820, 1910 e 1974). Fala-se da “resistência” à “ditadura” e da “integração europeia” como reconciliação final com o tempo central. O ponto 4 é dedicado à arte e nela nos apercebemos que o “românico” e o “gótico” já são vistos como arte portuguesa integrante da “nação” nos circuitos europeus de referência estética. É evidente que tal apresentação não deixa de ter o valor de estabelecer um código de ligação “factual” (e, nesse sentido, contestável) no modo como o saber vai ser integrado no que os alunos já trazem, enquanto bagagem monumental, da sua formação anterior: é o horizonte de expectativas que faz com que 65 não se crie um estranhamento epistémico avesso ao desejo de continuidade 124. Contudo, é contestável o dispositivo denotativo apresentado e é óbvio que, tendo em conta um questionamento narrativo dos pendores racionalistas, teleológicos, positivistas e românticos, não pode deixar de ser notado o regime de verdade única e hegemónica aqui inscrito. Ainda na arte: a seguir à apresentação dos séculos XVIII e XIX, há um enigmático último ponto dedicado às “artes menores”: ficamos sem saber quais são, por contraponto às “maiores” com as quais se compararão. A bibliografia indica também aspetos interessantes, sendo o mais significativo o que se prende com o facto de a única história de Portugal apresentada ser a de José Hermano Saraiva, edição de 1991. Tal referência é não só marcante em termos ideológicos, como o programa não apresenta data e, continuando em vigor, isso dá-lhe um estatuto de perenidade atemporal. Na geografia indica-se Orlando Ribeiro (incontornável) e há ainda uma “história geral da civilização” de 1978 (A. Vasco Rodrigues). Passemos ao programa de “literatura portuguesa”125, dividido em quatro partes, e que deveria ter o título de “história da literatura portuguesa”. Não se indicando o ano, percebe-se pela estrutura curricular presente nos horários da licenciatura em filologia portuguesa (inserida na secção de estudos portugueses e no departamento de estudos ibero-americanos) que o programa de “história e cultura” é lecionado no primeiro ano126 e que o programa de “literatura” corresponde aos quatro semestres do segundo e terceiro anos. Extrapolando dos discursos comuns de corredor (não o podemos provar), o programa não ficará teleologicamente completo por falta de tempo: o “modernismo” não é dado, o que seria útil do ponto de vista da própria crítica à estrutura epistémica. Assim, há uma organização linear da temporalidade histórica em que o espírito literário “português” se manifesta, desdobrando-se vetorialmente como essência127. Não havendo também objetivos ou metodologia, a “anotação” mostra que 124 O contrário também é plausível e, para já, cumpre perguntar: será que os alunos não têm desejo de mudança? 125 Yana Andreeva (S/D), “Literatura Portuguesa” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Filologia Portuguesa, Programa de Estudos), em anexo: anexo 2, a), b), c) e d). 126 Os alunos do primeiro ano são submetidos a um curso intensivo de língua no mês que antecede o início das aulas e todo o currículo do primeiro ano compreende este vetor, razão pela qual será porventura possível inserir a “civilização” aí. 127 É elucidativa a este respeito uma “antologia” da literatura portuguesa, da autoria de Yana Andreeva, existente na biblioteca de estudos portugueses da Universidade de Sófia. Na nota introdutória, diz-se que a escolha se prende com “textos exemplificativos de determinadas estéticas literárias” que contribuem para a “explicitação do fundo cultural”, “considerando o carácter contínuo do processo literário” e tendo, por isso, em conta o “princípio cronológico na ordem de apresentação de autores e obras, evitando o agrupamento em tendências, escolas ou estilos literários”. Por isso, a ordenação 66 pretende “acompanhar” o “desenvolvimento da literatura portuguesa” desde as suas “origens” (que são situadas na poesia galego-portuguesa). A primeira parte vai até à segunda metade do século XVI e depreendemos que tal vasta temporalidade é já a de uma literatura portuguesa representativa. Na anotação da segunda parte fala-se em “principais tendências” da literatura portuguesa ao longo dos “séculos”, na terceira em “escritores mais relevantes” (com acento óbvio no autor) e na última em “períodos” (acento no cânone historiográfico). Quanto aos conteúdos, a primeira parte remete para a época medieval e para o período renascentista. Da poesia “galego-portuguesa”, passamos à “novela” de cavalaria, à “historiografia linhagística”, à prosa “doutrinal” da corte, à “crónica” (Fernão Lopes), à poesia “palaciana” (Garcia de Resende) e à “tradição dramática” (com relevo para Gil Vicente). No período renascentista há uma breve alusão ao “contexto históricocultural” e estético, falando-se depois da “poesia” (Sá de Miranda e António Ferreira), da “novelística” (Bernardim Ribeiro), da “historiografia” (João de Barros), da “literatura de viagens” (Fernão Mendes Pinto), do “teatro clássico” (a “Castro” de António Ferreira, que imortalizou o amor de Pedro e Inês, contemplado simbolicamente no programa de história, que se centra não em contextos fatoriais, mas no culto personalista da heroicidade lendária), para culminar na incontornável “épica” mitológica camoniana, através do texto fundacional dos Lusíadas, cuja abordagem em aula é o que mais nos intriga, assim como na história a temática das “descobertas”128. A segunda parte do programa é também periodizada (maneirismo, barroco e neoclassicismo) e aí se incluem os autores (Camões, Vieira e Bocage, este último apresentado como “pré-romântico” e Camões pela “lírica”). A terceira parte segue o mesmo processo (romantismo, realismo e naturalismo), incluindo aí os autores “considera a data de nascimento dos autores ou a data da sua mais importante produção”. Pretende-se “uma visão orgânica da Literatura Portuguesa no seu movimento evolutivo, facultando ao leitor a apreciação estética da tradição literária”: Yana Andreeva (selecção, organização e notas biobibliográficas) (S/D: 5/6) Antologia da Literatura Portuguesa: Séculos XIII-XVIII (Sófia: Editora Universitária São Clemente de Ókhrida). 128 Numa outra antologia, também existente na biblioteca e muito consultada pelos alunos, existe, como introdução ao texto dos “Lusíadas” um curioso extrato de José Victor Adragão em que nos surge o “homem português” como ligado à “água” enquanto “espaço de sonho”. “À beira-mar”, a “água” era “convite” e até as “donzelas”, “ainda a nossa língua era uma criança”, “escolhiam o mar como confidente”. Por isso, o português é um homem do “mar”, o que nos distingue dos “irmãos ibéricos” e nos levou a “antecipar” a “aventura” da “loucura de caminhar sobre as ondas”. Esse “desvario” de “jovens ousados”, “rotas desejadas por comerciantes empreendedores” e “searas de evangelização para missionários ardentes”, era um “apelo que vinha do fundo”, de “conquistar o mar” e Camões, “de cujo patriotismo ninguém pode duvidar”, trata o mar como uma “doação”. Antónia Péeva (2002: 202) Literatura Portuguesa (Sófia: Pet Plus). 67 (Herculano, Garrett, Soares de Passos e Antero, por um lado, e, entre os realistas e naturalistas, Guerra Junqueiro, Cesário e Eça). Na última parte também se remete para os autores “mais significativos” do cânone, indo de Nobre e Pessanha até Sá-Carneiro Pessoa e Torga, onde o programa termina129. O programa indica, como constantes bibliográficas, a “história da literatura portuguesa” em versão coletiva das publicações “Alfa” (que está na biblioteca); contudo, as indicações que os alunos fotocopiam mais frequentemente são as da “história da literatura portuguesa” de Óscar Lopes e do “dicionário de literatura” de Jacinto do Prado Coelho (repetidos nas várias partes do programa, assim como curiosamente, e remetendo para o século XIX, a “história da literatura” de Teófilo Braga, também consultável na biblioteca). Na quarta parte, acrescentam-se 4 obras de Álvaro Manuel Machado (um dicionário, outra sobre o romantismo, outra sobre a “geração de 70” e ainda uma comparativa, sobre o romantismo português, do ponto de vista da “tipologia”). Nesta parte, algumas referências mudam e, por isso, temos três obras de José Carlos Seabra Pereira (sobre o decadentismo, o simbolismo, o “Orpheu” e o modernismo) e uma de Carlos Reis sobre literatura moderna e contemporânea. Contudo, da vasta bibliografia existente sobre Pessoa (inclusive na biblioteca, onde se contam, entre outros, José Gil e Eduardo Lourenço) apenas se apresenta um texto de António Quadros, cuja visão do poeta remete para uma certa heroicidade mística nacional130, dada a sua ligação ao quadro da “filosofia portuguesa” e a nomes como Dalila Pereira da Costa. A informação sobre a avaliação é escassa. No programa habitualmente conhecido como de “civilização”, ela é apresentada como atribuindo 20% à avaliação contínua e 80 % ao exame (a contínua implica a “participação nos seminários”). A “literatura” divide e dá 50% para cada lado, mencionando que a contínua supõe “trabalhos escritos, participação em seminários e provas presenciais”. Sabemos da existência de 129 O programa é silencioso quanto ao neorrealismo: não fala de Carlos de Oliveira, nem de Alves Redol, nem de Fernando Namora nem de Manuel da Fonseca. Também é omisso quanto ao surrealismo: não há Alexandre O’Neill nem Mário Cesariny (ambas as linhas numa visão convencional). 130 Uma coisa que fascina o imaginário coletivo voltado para a Europa. Num trabalho em que escolheu falar sobre a “perfeição” de certas sociedades (um debate que se levantou numa aula), uma aluna escreveu este sintomático parágrafo: “nós, os búlgaros, sempre consideramos as outras sociedades melhores do que nós. Os outros povos têm sempre mais qualidades, são mais inteligentes, capazes e trabalhadores. Por exemplo, os alemães e os franceses tornaram-se num ideal de sociedades perfeitas, com um padrão de vida bastante alto, até inatingível. (...) Nós aceitamos que estas sociedades são perfeitas porque as comparamos com a situação má no nosso país. Consideramo-los melhores pela sua economia fortíssima e pela sua grande história.” 68 tais provas pelos alunos (o nome que usam para elas é “controlo”) e, como não sabemos o que implica a “participação em seminários”, referimos só que os trabalhos escritos – normalmente deixados na biblioteca para serem recolhidos – que já folheámos analisam sempre um “autor” (não um texto, um aspeto, uma nuance estética, social, antropológica ou histórica) e aí se encontra sempre a mesma estrutura: um resumo dos “dados biográficos”, uma anotação discorrida sobre as “obras” no “período histórico” e os elementos fundamentais de definição das linhas mestras. As bibliografias destes “resumos críticos” (assim se chamam) apontam sempre para os mesmos nomes: Óscar Lopes, Jacinto do Prado Coelho e Teófilo Braga, apenas para mencionar três. À data em que escrevemos131, não possuímos apontamentos de aulas dos alunos nem entrevistas que, com ajuda, solicitámos (foram feitas em búlgaro por um jornalista francês, nosso amigo e que domina a língua) e que teríamos curiosidade em consultar, o que não foi possível, não só porque as pessoas são muito discretas no facultar de informações, como porque o atraso na tradução das entrevistas não foi da nossa responsabilidade: serão trabalhadas em outro momento de um projeto de investigação sobre a “monumentalidade apócrifa” que – é nossa intenção – queremos continuar. Não nos queríamos alongar muito sobre o regime de verdade epistémica aqui manifestado e achamos que este tipo de perspetivas pode ser mesmo necessário (não custa dizer que a visão do “cânone ocidental” apresentada por Harold Bloom faz falta, nem que seja para ser motivo de desconstrução da linearidade ou da ideia de que as “letras” são um epifenómeno de gestação aristocrática da “luz” platónica), até porque a organização de ideias periodizadas ajuda a formar o “lastro” básico da escrita crítica. A propósito, mencionemos aqui uma reflexão nossa elaborada em período anterior. De facto, parece-nos mais fácil construir uma perspetiva crítica a partir de um magma dogmático do que de outra forma; aceitamos isso enquanto política discursiva, dado que a experiência da liberdade, como Foucault nos lembra, passa pelo reconhecimento da coerção. Em determinada altura (texto que não está publicado e por isso não identificaremos em nota), utilizámos para isso a metáfora da “casa” – que repetimos resumidamente aqui – para comparar a nossa experiência docente na Bulgária e na Austrália (um contexto sobre o qual não nos alongaremos). Estamos em crer que os 131 2/02/12: fizemos o pedido a alunos e ex-alunos. Quanto às entrevistas, que deveriam estar prontas a 12 de Abril de 2012, não as possuímos à data de revisão deste trabalho, ou seja, Julho de 2012. 69 alunos búlgaros têm uma “casa” solidamente construída, com ótimas paredes, excelentes e sólidas divisões portas sóbrias e janelas discretas. É uma casa com fundações resistentes, tendencialmente perenes, solenes, primordiais; mas é uma casa sem “telhado”. Já os alunos australianos serão porventura possuidores de belos e sedutores “telhados”, aliás “multicoloridos” e reflexo dos contributos “multiculturais” para a elaboração “representativa” e gráfica das diferenças. Contudo, as casas não têm paredes sólidas, fundações consistentes ou sistematicamente baseadas. O que queremos dizer com isto é que a montagem do sistema normativo curricular de adestramento discursivo na Bulgária favorece um processo educativo solidamente “fundacional”, mas este não encoraja o espírito crítico, é reprodutor e assenta numa leitura diretiva e autoritária de conteúdos. A montagem do sistema curricular na Austrália, herdeira dos “area” e “cultural studies”, bem como do “affirmative action” e do “minority rights” inerente ao que a vulgata de senso comum tem vindo a chamar “politicamente correto”, é favorável ao exercício expressivo e crítico, mas muitas vezes este exerce-se tendo em conta apenas o modelo da “performance” lúdica, carecendo de substância no sentido em que falámos antes de “lastro”. A razão para esta breve meditação está em deixar claro que não pretendemos menorizar o trabalho dos programas apresentados, mas sim inserir uma visão lateral crítica que desmonte convencionalismos tradicionais132. O que nos parece insidioso na forma como o regime de verdade se apresenta enquanto discurso de poder é a máscara de “pensamento único”. Em nenhum momento os programas questionam o modelo primordial da história nacional e em nenhum momento se abrem brechas na ideia desenvolvimentista do “génio” português. Literatura e história aparecem entrelaçadas num arquivo factual e positivo, racional e essencialista, teleológico e linear, romântico e populista. C) Críticas ao “Destino Mítico” Português e aos Modelos Nacionalistas Herdados do “Estado Novo”: Identidade, Nação, Cultura e Literatura como Questões e não como Factos 132 Perpetuadores, de certa forma, do estigma da falta. Vejamos o que uma aluna escreveu sobre história e identidade: “se realmente a pessoa é de um pais com uma grande história, ela se sente bem em todos os lugares e tem respeito não só no seu próprio país mas nos outros países também. Esta pessoa tem respeito por si própria e pelas outras pessoas. A sociedade, numa nação com grande história, tem mais poder, as pessoas são mais credíveis e o desenvolvimento do país e da nação não pára, independentemente da altura em que a sociedade vive.” 70 Ora, se é inegável a antiguidade do espaço territorial português, parece-nos todavia que existem hoje muitas perspetivas que apontam para um questionamento da ancestralidade da nação como “destino”, para a crítica à auto-configuração “mítica” da história “nacional” e achamos que para voltar a encontrar perspetivas curriculares deste género sobre Portugal e o seu génio descritos como únicos, insondáveis e letra de verdade, temos que recuar ao regime discursivo salazarista, em relação ao qual encontramos algumas preocupantes nuances de recapitulação na objetivação epistémica dos alunos a nível histórico e literário, o que não é estranho, já que esses processos de “nacionalização das massas” fazem da nação o espaço do indiscutível que é familiar aos estudantes no ensino secundário búlgaro, conforme já se mostrou. Daí que o “indiscutível” salazarista seja um paralelo ao nacionalismo em termos de horizonte de expectativas normalizadoras da subjetividade. Mesmo em Portugal a ideia de nação é complexa para muitos intelectuais. Vários autores têm desmontado o nosso primordialismo como construção por vezes vista como gradual, também atribuível ao nacionalismo romântico e transformada em “cartilha” heroica pelo Estado Novo. Manuel Villaverde Cabral133 afirma que o “resvalar” histórico para o essencialismo tem sido moderado pelos contributos da antropologia e da sociologia, contexto no qual se deve discutir o “primado” da nação. Revendo genealogias discursivas sobre o tema, Cabral avança que o primordialismo cai sempre na contradição exclusivista, mostrando fraco potencial analítico ao mudar de nação. O papel do estado como padronização discursiva é fundamental e em Portugal há exemplos que mostram esse estatuto normativo estatal (e coercivo da igreja) como anterior à nação. Daí que a primazia do estado seja mais sensata para “explicar Portugal”, presente, por exemplo, em José Mattoso 134 que, sem essencialismos e admitindo uma naturalização territorial estável, avança que, a haver “portugueses antes de Portugal”, estariam confinados a uma estreita faixa do Norte atlântico. A conquista de Lisboa é crucial para a formação do “estado”, para a “centralização” e para a “expansão”. Para Cabral só é lícito começar a falar em “identidade nacional” quando muito a partir de 1580, com a conjugação do discurso dos Lusíadas com o domínio filipino: de facto, o século XIX vai codificar o nacionalismo a partir da leitura garrettiana de Camões e essa identidade inicial é 133 Manuel Villaverde Cabral (2004), “Conteúdo e Relevância da Identidade Nacional Portuguesa”, Semear: Revista da Cátedra Padre António Vieira de Estudos Portugueses, Vol. 9 (Rio de Janeiro: P.U.C.), pp. 55-74. 134 Cabral (2004: 60). 71 restrita a círculos letrados, dado que é elaborada a partir da perda da independência do estado. A invocação de uma etno-genealogia imemorial é um “imaginário sectorial” resistente, sendo mais marcante a multiplicidade de identidades (fé, família, lugar, estatuto, profissão) vinculativas. O século XVIII é, aliás, palco de outro conflito que permanecerá na reflexão identitária, ou seja, entre “castiços” (o discurso do Portugal primevo) e “estrangeirados” (o desencanto com o “vício” dos portugueses). Desta forma, a busca de uma “essência nacional” (linha que para Cabral vai do romantismo ao Estado Novo) só pode levar a uma “crítica devastadora”, pois repete os estereótipos – coniventes com o salazarismo – de Jorge Dias: o mar, os lusitanos, a luta contra os mouros, a saudade, os brandos costumes, o povo ingovernável, etc.. Desta forma, “qualquer carácter nacional é vácuo”: o conteúdo da identidade portuguesa é o de um “nacionalismo igual a todos” na reivindicação exclusiva e remete, por isso, para um discurso “não autónomo” (recapitulado, se quisermos) da identidade nacional, sendo a prova do vazio dessas identidades o facto de todas as reivindicarem como exclusivas. Aliás, os inquéritos sociológicos remetem os portugueses para espaços que raramente se identificam primeiro com o nacional. Quando esse discurso não é ativado do exterior, salientam-se laços “quotidianos”, o que mostra que a identidade nacional é propriedade das elites e a nacionalização das populações está longe de estar completa (com contributos da instrução pública e do sufrágio universal, sendo este recente em Portugal). O nacionalismo serve muito menos para caracterizar Portugal do que a família ou o clientelismo e só a ativação política cria efeitos reais, como mostram os espetáculos desportivos. Para Cabral, “sendo indiscutível a relevância de algo tão inefável como a identidade nacional, esta última é menos parte da solução (...) do que parte dos problemas que a Nação – na realidade a Sociedade e o Estado – tem para resolver”135. Numa posição semelhante, mas mais processual e menos enfática para com as elites pela aceitação de pressupostos coletivos para um período anterior, José Manuel Sobral atribui à elite romântica a definição de elementos da cultura nacional como inquestionável, construtora de uma literatura e de uma história com signos sagrados e providencialistas quanto ao “destino”, vendo esta elite a nação como produto da ação política dos primeiros reis. Como a definição de “génese” é marcada por contextos políticos, no século XIX não havia dúvidas quanto aos “primórdios” e, por isso, só na atualidade vamos encontrar análises “sérias” – também com Mattoso, para quem o 135 Cabral (2004: 74). 72 estado é o “motor” construtivo, não havendo qualquer “primórdio” da consciência nacional; só o clero (e não os nobres de carácter feudal) seria minoritariamente coesivo. Mesmo o historiador Martim Albuquerque, segundo Sobral, vê a formação como algo gradual, com as cruzadas (referente religioso), o conflito com Castela (referente opositor), a transformação do estado em império (referente expansionista) e a exaltação discursiva “lusíada” (referente mítico). Sobral salienta que Mattoso insiste mesmo no facto de antes do século XIX não ser “presumível” a generalização de uma consciência identitária, dado que é o estado que cria uma cultura nacionalista assente na “escola”, em “rituais” e na “imprensa” 136. Mattoso desconfia, aliás, de “antiguidades” e características das “perenidades” elaborações discursivas de nacionalistas, uma como “essência outros nacional”, historiadores contemporâneos (Sobral fala de Luís Reis Torgal), dado que foi o Estado Novo quem impôs este tipo de narrativa pelo controlo do ensino da história137. Além do mais, a representação epistémica só pode referir o discurso das elites, não se podendo generalizar para grupos que não sabem ler ou escrever, ou seja, a identidade nacional depende de enunciados fixados em discursos e, se ainda no presente há um hiato entre a “imagem histórica” dos escolarizados e a de outros portugueses, é legítimo pensar que ele era maior antes da escolarização hegemónica138. Por isso, para Mattoso o “momento” da nação (historiográfico, literário, artístico) data do primeiro liberalismo. Contudo, é evidente que a identidade se “naturaliza” na vida quotidiana139, através dos jornais, do boletim meteorológico, dos eventos desportivos. 136 José Manuel Sobral (2003: 1110) “A Formação das Nações e o Nacionalismo: Os Paradigmas Explicativos e o Caso Português”, Análise Social, Vol. XXXVII (165) (Lisboa: I.C.S.U.L.), pp. 10931126. 137 Sobral (2003: 1110). 138 Sobral (2003: 1112). 139 Em outro artigo, Sobral fala do “nacionalismo banal” como algo que não pode surgir sem os processos de socialização homogénea inaugurados pela modernidade, já que construir história é construir um discurso de atribuição de sentido e é por isso que a narrativa histórica é decisiva no discurso nacionalista. Há sempre nacionalismo quando se vê a nação como algo primordial a que se pertence “naturalmente” e a “cor” dos “factos” muda sempre que estes são encarados por prismas diversos. A existência de fronteiras explica, por isso, que a formação nacional tenha sido gradual. Contudo, a consciência disso depende de um “nacionalização da sociedade” (Sobral, 1996: 29), ou seja, uma “naturalização” do que é minoritário. Isso só acontece no contexto do discurso nacional do estado moderno, mediante a simbólica da modernidade (em que as representações são como que uma religião do passado com uma “aura de sagrado”). Como Portugal foi desde cedo um estado homogéneo, é a revolução liberal que cria o “discurso historicista” da tradição procurada pela “imaginação” (Sobral, 1996: 31): nesse contexto, Garrett convoca uma ligação primordial entre rei e povo e Herculano escreve uma história e um romance histórico com privilégio atribuído ao medievo. Por outro lado, a transformação em império foi fundamental para a mitologia e apesar de a oposição ao exterior ser já marcante em Fernão Lopes, serão a emergência do conceito moderno de fronteira e a glorificação dos heróis durante a restauração o que vai deixar traços na historiografia letrada. 73 A questão é saber se é possível extrapolar para um passado coletivo enquanto iconografia. É que a diferenciação face ao outro e a “construção social da fronteira” dependem gradualmente da intervenção estatal, unificando o coletivo, a língua, a burocracia e a centralização do poder. Esse estado (que, em termos foucauldianos, institucionaliza, classifica e estrutura) levará à formação identitária a partir de uma entidade delimitada e é possível imaginar que as crises dinásticas, a dominação filipina e o sebastianismo (por exemplo) tenham criado laços de solidariedade independentista gradual. São, contudo, sentimentos de ordem prática e não de explicitação discursiva, própria aos grupos capazes de articular esse género de representação. A emergência de uma “entidade”, a elaboração gradual de mitos estereotipados através de categorizações conflituais e a difusão de uma representação da nação produzida pela minoria através da educação, da imprensa, da transação de capitais (simbólicos e narrativos também) e de um discurso ritualizado 140, próprio à modernidade do século XIX, foram os três momentos graduais pelos quais passou, segundo Sobral, a construção da identidade nacional portuguesa. Helena Carvalhão Buescu chama, aliás, a atenção para algumas destas questões do ponto de vista da literatura 141. Para Buescu, o Camões de Garrett, como filtragem normativa, insere-se na produção de um imaginário nacional identitário que é cultural e ideológico, investido de um sentido que ultrapassa o literal. A morte de Camões, próxima da perda da independência, identifica-se com a “morte” desta, escrevendo Garrett sobre Camões dentro de uma agenda identitária romântica da “identidade nacional”142. Daí que o programa seja o de levar a tomar partido pelo discurso do “verdadeiro” Portugal, despertando a consciência “cristalizada” na figura do herói como simbolismo que a nação envolve. Ligar o século XIX a Camões é uma forma de imortalizar a “transmissão da herança” por uma remissão do texto à época José Manuel Sobral (1996), “Nações e Nacionalismo: Algumas Teorias recentes Sobre a Sua Génese e Persistência na Europa (Ocidental) e o Caso Português”, Inforgeo Nº 11 (Lisboa: Colibri), pp. 13-41. 140 Para Sobral, ainda em outro artigo, a homogeneidade da nação não funciona sem rituais patrimoniais. O passado é “agregado ao presente” (Sobral, 1999: 71) por um vínculo “glorioso”. “Nada há de especificamente português nisto” (Sobral, 1999: 72). O século XIX criou instrumentos de popularização da identidade cujo “paradoxo” reside em que a afirmação da diferença é feita por afinidades e os tópicos são os mesmos, ou seja, uma memória narrativa discursiva baseada em artefactos, documentos, edifícios e locais solenes, cujo aspecto comemorativo e repetitivo é recriado na literatura como mito, tornando-se coercivamente monumental na escolarização, mediante a produção de um discurso inserido no espaço simbólico da “lembrança”. José Manuel Sobral (1999), “Da Casa à Nação: Passado, Memória, Identidade”, Etnográfica, Vol III (1) (Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Social), pp. 71-86. 141 Helena Carvalhão Buescu (1993), “De Camões a Camões: Onde a Perda Acaba e a Restauração Começa”, Penélope: Fazer e Desfazer a História, Nº 9/10 (Lisboa: Cosmos), pp. 197-206. 142 Buescu (1993: 198). 74 “oitocentista”143 e nisso o projeto político é óbvio: como a “restauração” terá tido nos “Lusíadas” o símbolo, trata-se de fazer o mesmo no século XIX, reavivando a nação pela simbologia do herói romântico. O Camões de Garrett é assim investido em “monumento”144 discursivo memorial. João Carlos Firmino Andrade de Carvalho afirma também que, para a cultura portuguesa, a identidade histórica nasce com o nacionalismo romântico145: o atual conceito de cultura legitimador da nacionalidade é filho da obsessão das “origens”, encenada em nós por Herculano e Garrett que, segundo Fernando Magalhães146, “democratizam” a identidade nacional. A produção de discursos nacionais deve ser observada “à luz do romance histórico escrito em língua vernácula”147, pois a uniformização permite pensar a nação como “antiga” por uma linguagem que cria sentido de continuidade, acelerando-se a objetivação do sentimento como percursor da moderna historiografia pelo modelo narrativo usado por Herculano na sua escrita da história. É em Herculano que se compõe o modelo memorialista em torno do lugar (Aljubarrota) e se transforma o coletivo em ator, edificando-se por aí (em conjunto com Garrett) uma cultura nacional icónica e de disseminação estereotipada, no âmbito popular, de sentimentos e ideais materializados na “gente portuguesa”. De facto, perante este excurso, não é descabido dizer que o modo como olhamos para o passado, enquanto imaginário coletivo “português”, é fruto de uma construção filtrada que o crivo romântico estabeleceu, sendo possível dizer que o salazarismo o transformou em discurso celebrante, apenas propenso a análises mais serenas (dando como aceite que também elas têm essencialismos) num período posterior ao fim do Estado Novo, já que este, em termos foucauldianos, foi uma máquina de subjetivação da cultura popular assente numa fortíssima forma mitológica de “fazer falar” o passado. Ignorar o poder que a máquina discursiva do regime teve na construção de subjetividades é esquecer o poder fantasmático que esses discursos ainda possuem e a forma como se reproduzem a nível da cultura popular, tornando difíceis as análises 143 Buescu (1993: 199). Buescu (1993: 201). 145 João Carlos Firmino Andrade de Carvalho (2009: 82) “Cultura, Literatura, Identidade e a Construção de Ideais Nacionais”, Carnets, Cultures Litteráires: Nouvelles Performances et Développement Nº Spécial, Automne/Hiver, pp. 81-90, http://carnets.web.ua.pt/ (consulta: Outubro de 2011). 146 Fernando Magalhães (2011: 2) “Construindo a Identidade: O Papel do Romance Histórico na Afirmação de Portugal Enquanto Nação”, Sin Frontera, http://ufsinfrontera.com/academico/ (consulta: Janeiro de 2012). 147 Magalhães (2011: 6). 144 75 que mostram não ser necessário olhar para Portugal como “destino” ou que desmascaram a forma como, ainda hoje, há dificuldades num pensamento sem excesso mítico. Não admira, por isso, que em contextos onde a cultura nacionalista é referenciada como algo não criticável, se olhe para a mitologia portuguesa com um misto de fascínio por emulação e de idealismo fixado. São, aliás, inúmeras as análises do salazarismo que mostram como, discursivamente, este terá construído uma cultura popular tão forte e tão assente em pressupostos contextuais próprios que analisá-la à luz de uma generalização excessiva leva ao risco de perda das idiossincrasias fundamentais que, ao tornarem o regime menos agressivo que outros totalitarismos contemporâneos, fizeram dele um insidioso dispositivo produtor de dogmas ainda repetidos acriticamente. Luís Reis Torgal e Amadeu Carvalho Homem apontam mesmo para características “arquivadas” de discurso que nos parecem repercutidas nos valores recapitulados programaticamente e que temos apresentado. Descontando o lado de um catolicismo moralista (o que não é pouco), a configuração enunciativa do regime (como restauração das “almas” e apologia nacionalista dos “verdadeiros valores nacionais” e do “povo”, através da exaltação dos “heróis míticos” e dos “brandos costumes” assentes numa aprendizagem da “subordinação” e numa apologia do “ruralismo rústico” 148) está presente em acervos de bibliotecas que permitem “extrapolar” para uma episteme de adestramento. Por um lado, temos a exaltação da obediência, da austeridade e da castidade inerentes a um nacionalismo patriarcal cristão, rústico e providencialmente bíblico, em que a igreja é “traço dominante do carácter do povo que andou pelo mundo a descobrir, mercadejar e propagar a fé”149 e, por outro, a idade média como repositório dos “valores ocidentais”, pervertidos pelo “individualismo”, cabendo à “revolução nacional” o “restauro” da genuína “nacionalidade”. A idade média associa-se à valorização do ruralismo bucólico, “simples”, “cristão” e à exaltação dos valores históricos dos portugueses, sobretudo a “gesta” da expansão, mediante o culto personalista de heróis e o registo mitológico das façanhas individuais 150. O império é a “suprema expressão da criatividade lusíada”, realização do “génio ecuménico”, “missionário e civilizador”, derramado sobre os confins do mundo como “redenção” que liberta as 148 Luís Reis Torgal & Amadeu Carvalho Homem (1982: 1439), “Ideologia Salazarista e “Cultura Popular” – Análise da Biblioteca de Uma Casa do Povo” Análise Social Vol. XVIII (72-73-74, 3º, 4º, 5º) (Lisboa: I.C.S.U.L.), pp 1437-1464. 149 Torgal e Homem citam, muito apropriadamente, discursos e notas de Salazar presentes nas introduções aos textos: Torgal & Homem (1982: 1446). 150 Torgal & Homem (1982: 1449). 76 “populações do primitivismo”151. A literatura tem, neste contexto, a finalidade de ilustrar a grandiosidade da nação, sendo omnipresentes os “clássicos historiográficos” glorificadores, épicos e que salientam a “sentimentalidade ultramarina”152 e exaltam a “idealização rural” (com tendência para a apreciação de Garrett) vinda do “nacionalismo romântico”, como também a épica “sebastianista” da “mensagem” pessoana como “salvadora do espírito da nação”. Os temas marítimo e medievo são omnipresentes neste “nacionalismo literário”, cristão e heroico, com base na “valentia marialva”. As antologias poéticas encontradas revelam também uma “espiritualidade perene” e um património de valores visto como “incólume” à passagem do tempo, verdadeiro espírito do “povo”153. D) A Busca de Uma Serenidade Discursiva Anti-Delirante: Eduardo Lourenço e Boaventura de Sousa Santos Ora, parece-nos que este tipo de arquivo discursivo mitológico não andará longe dos programas que analisámos, até porque entronca bem nos processos de construção nacional da historiografia e da literatura búlgaras, conforme visto no capítulo anterior. É por isso que achamos essenciais os discursos que se propuseram desdramatizar Portugal, retirando-o de uma “aura” mitológica de fascínio idealista e mostrando-o como um país que tendo peculiaridades próprias é, nesse sentido, tão circunstancial como todos os outros e não da ordem do “providencial”, do “essencial” do “miraculoso”, do “destino” do “escatológico”. Esse Portugal, que encaixa num imaginário local também ele visto como “excecionalidade primordial”, vem sendo ferozmente criticado pelas vozes que entre nós se dedicaram a desmontar mitos como sendo da ordem do psicanalítico, como é o caso de Eduardo Lourenço, ou que se dedicaram a vê-lo de um ponto de vista social e sem “espelhos” de “excesso de representação”, como é o caso de Boaventura de Sousa Santos. Pese embora o facto de ambos poderem ser criticados por caírem em novos essencialismos, propomo-nos uma breve leitura pelo que têm de crítica genealógica aos modelos monumentais e apócrifos, através de arqueologias “outras” que desconstroem mitos providencialistas e excecionais. Isso é necessário para desdramatizar a névoa que se ergue sobre uma 151 152 153 Torgal & Homem (1982: 1450). Torgal & Homem (1982: 1452). Torgal & Homem (1982: 1454). 77 cultura idiossincrática, marcada pela pluralidade e por uma abertura que é intensamente contemporânea. Eduardo Lourenço, curiosamente em dois textos escritos com um intervalo de 20 anos, não tem uma visão tão distante de Boaventura Sousa Santos (que, embora o critique, também pode ser visto como caindo em essencialismos). Lourenço é um crítico feroz do excesso mítico com que Portugal se contempla enquanto discurso cultural. Esse excesso não permite uma serenidade analítica distanciada. Já em 1978 154 Lourenço falava do “irrealismo” da imagem que os portugueses têm de si mesmos, como se a história contasse a aventura “celeste” de um herói isolado e a literatura desse forma de “monólogo” a uma “máscara traumática” nunca amadurecida. Lourenço atribui tais mitos a um “perfil freudiano” que mistura “fanfarronice e humildade” como fundo do “caráter português”155. Para ele, a mitologia foi sempre da ordem do “milagre”, um povo garantido por um “poder outro”. Há nisto a consciência de uma “falha” e de uma proteção “absoluta”, “inferioridade e superioridade” dando as mãos como “máscaras” que fermentam nos Lusíadas, uma “ficção de desmesura” que sente a necessidade de ser contada como “eco triste” da nossa grandeza. O problema é que a história como solilóquio não é reflexão e serão a historiografia romântica e nacionalista quem nos vai dar um perfil nacional, quando não existia mais do que uma ligação à coroa (hierárquica e administrativa, mas não cultural), ou seja, um território comum às gentes que “ainda não é nação”. O sebastianismo, como “consciência delirante” de uma falta, torna-se razão de ser e os Lusíadas prova de existência que orienta para um futuro utópico, por mediação do passado, servindo de sonho para o descontentamento presente 156. Isso provoca ausência de serenidade e alucinação. Por isso, o século XIX será o momento mais patológico em que “perante a balança da Europa” 157, Antero questiona a nossa viabilidade. Herculano e Garrett não terão sentido, antes de Antero, esta decadência “física” pela presença tecnológica da civilização. Para fugir a esta existência diminuída, o século XIX “descobre” África no sentido “imperial” 158 e é por isso que o “Ultimatum” é o grande “traumatismo” repressivo do idílio. Contudo, gera mais um 154 Todas as citações que se seguem são deste texto, até à indicação de outro: Eduardo Lourenço (1978/1997: 77/123) “Psychanalyse mythique du destin portugais”, Mythologie de la Saudade (Paris: Editions Chandeigne). 155 No fundo, uma neo-essência também ela criticável por troca de generalizações. 156 Sousa Santos dirá, por outras palavras, como veremos, coisas muito parecidas. 157 Uma citação óbvia de Garrett. 158 Tese também paralela às de Sousa Santos. 78 paradoxo cultural: um ultranacionalismo místico e saudoso, fuga que entra pela república como mais uma exaltação mascarada, a que o regime posterior chamará “abismo”. O salazarismo “arruma a casa” por um totalitarismo arcaico, modesto reacionário e conservador através de mais uma metamorfose de ficção: o delírio do “oásis de paz” que serviria de “exemplo” para outras nações. É por essa veia que se explora o fervor nacional, ou seja, por uma distância mitológica em relação à miséria das populações. Por isso, a resistência não é menos mítica, já que o neorrealismo explora o vínculo contrário: a mitologia marxista dos “humilhados” contra a visão católica oficial da gente “bem comportada”. Se houve, na época, verdadeira subversão cultural em Portugal, ela esteve no surrealismo pela sua oposição aos arquétipos míticos e primevos e pela radicalização da arte, ajudando a desconstruir ficções “arcaicas”. Contudo, o movimento da “filosofia portuguesa” recupera a “esquizofrenia sublime e mística” do “ser português”, messianismo do mistério por uma fixação alucinada na fusão discursiva entre as descobertas, a “nação” e o “império”. Vivemos sempre em desmesura, como se a realidade não contasse e fossemos flutuando entre compensações – regimentadas em discursos instituídos e instituintes – próprias a um “colonizador de segunda” 159. Nem a guerra colonial nos terá despertado deste “sonambulismo” que impediu a discussão, como se tivéssemos vivido sempre “ausentes” de nós mesmos160. Claro que nenhum povo vive sem ideal, mas, para Lourenço, Portugal viveu sempre em função de discursos coesivos irreais e, sendo certo que as identidades se vivem no plano simbólico do que os românticos chamaram “alma” e que é um “mito”161, a nossa matriz bebe na “reconquista”, olhada como “providencialismo” “messiânico” da “cruz”. É o século XIX quem lê a nossa história como “destino”, inscrevendo na compreensão o que vinha de uma “ficção mítica activa” que se encerra magicamente no império como “refúgio”. Essa clausura coloca o verdadeiro Sebastião no texto dos Lusíadas, ícone do presente virtual, do passado morto e do futuro onírico. Uma cultura que viveu de “arcaísmos fechados” teve no barroco a “glorificação sonhada” de nós mesmos. O romantismo, vendo a cultura como essência da nação, volta-se para fora (vem de lá enquanto regime de verdade) e, ao discutir Portugal, “refunda-o”. 159 Ou semi-periférico, na linguagem de Sousa Santos. O próprio salazarismo não foi discutido com seriedade, como se o totalitarismo tivesse acabado de um dia para o outro: apenas terá “adormecido”, esperando melhores dias para renascer. 161 Todas as referências que se seguem são tiradas deste texto: Eduardo Lourenço (1998/1999: 9/83), “Portugal como Destino: dramaturgia cultural portuguesa”, Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade (Lisboa: Gradiva). 160 79 Herculano e Garrett inscrevem-nos na história da cultura e, como ela não existia, “inventaram-na”, isto é, inventaram Portugal como história lendo o passado iluminado a partir do presente162 e recriado mitologicamente pela colocação de Camões no “centro”. Para o romantismo, Portugal existe porque existiu e existiu porque Camões o “guardou” enquanto memória. É aqui que se cola a saudade como mitologia imanente a uma inventariação do tempo, tão “digna” como a de qualquer outra nação europeia. Descobre-se Portugal à luz de um farol que vem de “fora” e que nos ajuda na ficção discursiva. É perante esse fora que a geração posterior se sente pequena: a Europa já chegou pelas ideias163, mas nós ainda não estamos nela e por isso nos sentimos “decadentes”. Surge assim o paradoxo de, no mesmo século, Portugal se inventar como mitologia e, por outro lado, descobrir-se como inferior (com a “geração de 70”): o passado evocado pelos românticos é reduzido a “cegueira”, mediante a utopia (de Antero) de um novo tempo primordial, anterior à “decadência”. O confronto com o atraso leva a que os contemporâneos de Antero se vejam como “vencidos da vida” e só Eça terá sido capaz de remodelar esse imaginário pela sátira. Como em Portugal nada se faz à revelia do catolicismo, os românticos exaltaram o cristianismo contra ele e a “geração de 70” entusiasma-se com algo não menos utópico: o panteísmo. Ora, este cruzamento de paradigmas exógenos com o que existia, criou uma relação “esquizofrénica” com a Europa, já que entramos nesse “palco” vindos de outro “filme” e “melancolizados” pelo psicodrama do “Ultimatum”: a “geração de 70” vive o “trauma da falta” como subalterna da Europa e o “acordar” para África é mais uma visão messiânica da qual apenas muito lentamente nos temos vindo a desvincular por obra de intelectuais apostados num “imperativo cosmopolizante”. A historiografia do século XIX fez com que passássemos meio século a sonhar e o salazarismo, transformando isso em discurso autoritário indiscutível, não foi posteriormente discutido, aparecendo hipostático como um “esqueleto esquecido no armário”164. Numa linha mais sociológica, mas também passível de ser vista como desconstrução de mitologias discursivas essencialistas, lineares, idealistas e tomadas como 162 O que Foucault critica, como já foi mencionado no capítulo 1, vendo isto na senda do que Nietzsche chamava a tragédia do historicismo. 163 Na linguagem de Sousa Santos, trata-se da chegada da base da imaginação do centro. Na linguagem de Kiossev, trata-se da chegada do pretexto para a auto-colonização. 164 Para Lourenço, as únicas grandes figuras do século XX português em termos de imaginação são Pascoais e Pessoa, um pelo “êxtase que se desvanece” e outro pela procura de uma “margem” da qual a história é apenas “antevisão”. 80 indiscutíveis, Boaventura de Sousa Santos desmistifica fortemente os discursos sobre Portugal como “destino”. Se analisarmos as “culturas das nações” 165 para lá das “construções oficiais” da “cultura nacional”, verificamos (1) que nenhuma cultura é auto-contida porque os seus limites não coincidem com os do estado, (2) que nenhuma cultura é indiscriminadamente aberta, possuindo conexões específicas e prolongamentos próprios e (3) que a cultura de um grupo social não é uma essência, mas sim uma “negociação” incompreensível sem uma análise da sua trajetória histórica no “sistema mundo”. Assim, (a) a cultura portuguesa não se esgota nos portugueses, (b), a cultura dos portugueses não se esgota na cultura portuguesa e (c) as aberturas portuguesas (Europa, Brasil e África, por exemplo) são específicas ao nosso estatuto “semi-periférico”. É que Portugal ocupou um espaço de trânsito 166 entre o mundo colonial e os grandes centros, tendo sido “correia de transmissão” de um “colonialismo informal”, sobretudo inglês. Manteve um império não porque tivesse força, mas porque era do interesse dos estados centrais que funcionasse como “lança em África” dos seus desejos indiretos. A relação colonial “semi-periférica” engendrou uma identidade sem “conteúdo”167, só com “forma” de “fronteira”. As culturas nacionais são uma “criação do século XIX” gerida pelo estado, que diferencia a cultura e promove a homogeneidade 168. Como em Portugal o estado terá tido, segundo Santos, um empenho fraco nisso, tal criou uma forte “heterogeneidade” e um “défice de identidade”. Portugal nunca foi suficientemente semelhante às identificações culturais “positivas”169 europeias, nem suficientemente diferente das produzidas centralmente em relação aos “não europeus” 170. Era observador do outro na colónia 165 Boaventura de Sousa Santos (1994: 130), Pela Mão de Alice (Porto: Afrontamento). Esta tese é partilhada, entre outros, por Sérgio Buarque de Holanda, que usou para a Ibéria a ideia de “território-ponte” (acrescentemos que esta poderia ser aplicada, enquanto zona híbrida de características diversas, ao outro extremo da Europa). Vejamos o que diz José Lindomar Albuquerque (com citações de Holanda) em parágrafo bastante elucidativo: “É importante pensar a Península Ibérica como uma zona de transição cultural e, portanto, aberta aos influxos externos, sendo os seus habitantes mais maleáveis às mudanças noutros contextos de vida. A região ibérica é um lugar de fluxos de pessoas, ideias e técnicas, onde as formas sociais não adquirem contornos definitivos. A organização política e social neste território de transição ou “região indecisa” entre a Europa e a África não adquire um carácter rígido e de imobilidade capaz de ser “transplantada” sem sofrer alterações.” José Lindomar Albuquerque (2010: 332), “As Fronteiras Ibero-Americanas na Obra de Sérgio Buarque de Holanda”, Análise Social Vol. XIV (195), (Lisboa: I.C.S.U.L.) pp. 329-351. 167 Santos (1994: 132). 168 Por processos de adestramento normativo, diríamos, em termos foucauldianos. 169 Santos (1994: 133). 170 Embora as escolhas bibliográficas que vimos fazendo tenham todas elas ecos de problemáticas foucauldianas e, pese embora o risco da reiteração poder ser fastidioso, acrescentaríamos aqui (e pensamos que Santos possui esse eco genealógico e arqueológico) que o poder de definir é exatamente 166 81 como “selvagem” e observado pelos viajantes europeus como “primitivo” 171. Estava “demasiado próximo” das colónias para ser europeu e “demasiado longe” da Europa para ser competente. Este “acentrismo” 172 criou processos de “mimesis” (ideia próxima de Kiossev) e uma forma cultural paradoxal, europeia e selvagem, colonizadora e emigrante. Foi uma “arbitrariedade” inconsequente e paradoxalmente cosmopolita, num cosmopolitismo peculiar que é o de um universalismo feito da multiplicação infinita de localismos.173 Uma dessas formas é o excesso de interpretação mítica, por um questionamento que é distante e “não expressão de qualquer crise profunda”. Daí o caráter “superficial das incorporações forâneas”, por uma “canibalização profiláctica”174, consciência inconsequente de um cosmopolitismo carnavalesco e “barroco”. Esta situação lábil de “porta de vai-vem” 175 cria, ainda, o paradoxo da “imaginação do centro”, ou seja, vermo-nos como “um país europeu no mesmo pé que os demais”, o que gera uma cultura nacional contraditória e fautora, perante nós e os outros, de “utopia” e “exotismo” 176, frutos do desconhecimento. Sabe-se pouco sobre Portugal, já que os sucessivos períodos de obscurantismo criaram “auto-desconhecimento” e “excesso mítico”177: o “encoberto é a imagem da ignorância de nós mesmos” e as elites, suspensas entre o povo e o poder, não tiveram quem as trouxesse à realidade. A “marginalidade social” tornou-as irresponsáveis e a sua “cegueira” produziu a invisibilidade do país 178. Este obscurantismo fez com que até recentemente não se desenvolvessem ciências sociais e, ainda, o excesso de “psicanálises” levou à nossa visão como “loucos”179. A falta de visão concreta e o excesso de “analistas” acabaram por construir um capital simbólico neutralizável por cooptação política. Por outro lado, o interesse numa integração europeia hegemónica, sem questionar a “régua”180 de desenvolvimento, levou a um “desconhecimento o que marca o discurso normativo da modernidade. 171 Mas não concordamos com a visão de Santos de Portugal como “único” (Santos, 1994: 133) neste estatuto fronteiriço. 172 Santos (1994: 134). 173 Santos (1994: 134). 174 Santos (1994: 135). 175 Santos (1994: 136). 176 Santos (1994: 49). 177 Santos (1994: 50). 178 Tese próxima, como podemos ver, da que Lourenço desenvolve do ponto de vista psicanalítico. 179 Esta referência de Santos vai obviamente para Lourenço. Contudo, na senda de Foucault, do ponto de vista da visão dos mitos como discursos normativos de poder e adestramento social, a desconstrução de ambos é-nos útil e parece-nos similar em relação ao desmascarar de discursos sumptuosos como convenções de dominação (Santos, 1994: 51). 180 Aqui não se trata de citação: a metáfora é nossa. 82 social”181, devido a nos olharmos com uma medida cognitiva “central” que nos vê como “menos” (de modo linear) e não apenas como “distintos”. Daí que a generalização mítica - repetida por “arquétipos” inquestionáveis de um “senso comum fabricado pelas elites”182, ilustrada por instâncias de confirmação mitológica e conservadora na sua visão “naturalista” da história - assente nos elementos contraditórios que destilam visões negativas e positivas do “português”. Tal delírio é “arbitrário”, “selectivo” e estabelece uma relação “telescópica” 183 que diz muito sobre as elites e pouco sobre os cidadãos, razão pela qual é preciso menos “mistificação”. Como Portugal é uma sociedade de desenvolvimento intermédio, herdeira de uma circunstância de “colonizador colonizado”, a integração europeia criou a ilusão de que o país “passa a ser central” e mostra uma sociedade em que o caminho é “diferente dos discursos” e na qual a nova “despromoção” “semi-periférica” – criadora de uma relação “privilegiada”184 com África – dá alguma credibilidade aos discursos míticos sobre a “vocação atlântica”. Contudo, isto cria também uma “duplicidade de imagens”, pois, coexistindo representações “típicas das sociedades centrais” e outras das “periféricas”185, isso explica um pouco a “coexistência” narrativa do “complexo de inferioridade” com a “hipertrofia mítica”, numa sociedade onde se entrelaçam simultaneamente vários tempos. De facto, o “mimetismo” dos países centrais, ao não se transformar em práticas coerentes, ganha um tom “fársico” e, como não existe uma tradição de organização formal estatal, “sobrepujaram-se” dimensões autoritárias, legitimadoras e clientelizadas a uma “sociedade providência” assente em laços de parentesco e vizinhança que exprimem, em novas formas, alguns vínculos rurais perpetuadores de “extrapolações idealistas”186 (os “brandos costumes”). Ora, Portugal tem tido, como constante mítica 187 ideal, o “destino”, uma “jeremiada nacional” 188 181 O trabalho de Santos pode ser visto em termos foucauldianos, mas é também herdeiro de Gramsci (Santos, 1994: 52). 182 Portanto, uma narrativa discursiva e coesiva de normalização (Santos, 1994: 55). 183 Santos (1994: 57). 184 Santos (1994: 59). 185 Uma aluna minha australiana, tendo visitado Portugal, disse que era o “único” pais europeu onde tinha visto um BMW estacionado ao lado de um jumento. É porque não teria visitado os Balcãs, à semelhança muito provavelmente de Sousa Santos, que trata estes fenómenos “semi-periféricos” em Portugal como “únicos”. 186 Santos (1994: 64). 187 A isto chama Santos, em texto mais recente, “excesso de diagnóstico”: Boaventura de Sousa Santos (2011: 28), Portugal: Ensaio Contra a Auto-Flagelação (Coimbra: Almedina). 188 Santos (1994: 64). 83 desfocada por duas “patologias”189: o iberismo (“cristão” ou “socializante”) e o nacionalismo (“tradicionalista” ou “racionalista”) que são polos do mesmo discurso no qual o “espantalho iberista faz dançar o espantalho nacionalista” 190. É por isso que são necessárias teses “proporcionadas”, sem “triunfalismos” ou “miserabilismos” e sem as habituais tentações antropomórficas da mitologia, na qual os intelectuais 191 se habituaram a confiar em “destinos” que apenas “exprimem no défice de presente” a projeção num “futuro excessivo” do “excesso de passado”192. Assim, pretendemos mostrar com esta excursão crítica o seguinte: (1) a teoria da recapitulação oferece um razoável modelo discursivo para a acomodação analítica de uma cultura estrangeira aos valores (monumentais e apócrifos) do currículo búlgaro; (2) nessa acomodação, projeta-se um exotismo solene de falta, que leva a leituras factuais, autoritárias, essencialistas, teleológicas e indiscutíveis; (3) para encontrar um semelhante discurso de poder no contexto português, é preciso recuar à axiomática normativa salazarista, na sua visão heroica, mitológica e arcaica, por filtragem romântica do rústico medievo, do império e de Camões; (4) sendo o território português um dos mais estáveis da Europa, isso não impede uma crítica, por desconstrução, das visões essencialistas e primordiais inerentes ao nacionalismo; (5) o excesso romântico nas visões de um país “semi-periférico” ou “colonizador de segunda” dificulta qualquer contemplação da realidade que não passe por platonismos do “típico”, alheios à serenidade discursiva e criadores de miragens que provocam – aquando do contacto – o choque com a realidade de um país que não é o paraíso perdido. É necessário, por isso, contrapor às visões idílicas, modos discursivos divergentes – e resistentes193 - de olhar para Portugal. É o que pretendemos fazer com os nossos programas de trabalho, que analisaremos no capítulo seguinte e que remetem eles mesmos para uma visão que é crítica de monumentalidades solenes e de leituras apócrifas de Portugal e dos portugueses. 189 É interessante que se critique Lourenço para depois usar este termo. Santos (1994: 65). 191 A tentação de reproduzir imagens centrais leva sempre à “desproporção” ou do “europacentrismo” ou do “lusomerdismo” (Santos, 1994: 65). 192 Discurso que quase recapitula o de Lourenço e também as críticas da solenidade primordial do nacionalismo búlgaro que vimos no capítulo anterior. 193 No sentido do binómio foucauldiano entre poder e resistência. 190 84 Capítulo 4 - Enfatizar o Presente Português: Uma Visão Fluida, Aberta e Transnacional de Expressões Culturais Hodiernas; Cinema, Cultura, Literaturas Africanas, Poesia e Pensamento Neste quarto capítulo propomo-nos, como contrapeso ao que foi apresentado nos capítulos anteriores, meditar sobre a nossa própria prática docente na Bulgária, nos últimos seis anos, do ponto de vista discursivo e cultural. Para tal, é nossa intenção fazer uma descrição dos programas que utilizamos nas cadeiras opcionais que aqui 85 inaugurámos e que correspondem a um quadro programático vasto que tem o título de semiótica da cultura portuguesa (como existe nas outras filologias, além da portuguesa) devendo esta suposta “semiótica” ser lecionada pelo Leitor estrangeiro. Queremos fazer uma leitura dos pressupostos que eles incluem, do arquivo bibliográfico para o qual eles remetem, das estratégias enunciativas que eles envolvem de um ponto de vista metodológico e dos conteúdos que são desenvolvidos em sala de aula. A) Desmontagem Dialogada da Monumentalidade Apócrifa: Resistências, Fluxos e Verdades “Outras” É evidente que tais programas aparecem como contraponto lateral ao que ficou anunciado nos dois capítulos anteriores sobre o regime de verdade histórico e literário dos currículos búlgaros e sobre a sua recapitulação disciplinar como espaço de saber e dispositivo de poder na apresentação da literatura e da história portuguesas em termos axiomáticos. Pensamos que terá ficado apresentado um panorama sobre os processos de construção da subjetividade que são inerentes ao modo como o discurso de uma certa “evidência” normativa é apresentado aos alunos. Esse pressuposto estabelece um controlo restrito do que é dito como verdade, isto é, do que funciona como regime de transparência que temos vindo, durante a nossa prática, a desmontar como convenção. O poder do espaço homogéneo e positivo do discurso único e regimentado só se expõe como convenção mediante a existência de uma lateralidade que lhe resiste e que lhe disputa o valor epistémico de conteúdo único e o valor de “voz que fala”, “fazendo falar”, a partir do silêncio , a construção de um adestramento indiscutível em função do não desafio à autoridade de um certo “texto”. Mexer com isso é delicado, uma vez que se trata de contestar uma solenidade narrativa estabelecida como princípio positivo. Dissemos, aliás, no primeiro capítulo, que o desmascarar do discurso do único como convenção é um espaço de resistência que se inaugura a partir do questionamento. A emergência de um objeto de verdade que se supõe discurso de autoridade só pode ser contestada se a essa prática de subjetivação se sobrepuser outra que, entrando em relação discursiva com ela, a contesta nos seus pressupostos, exatamente porque de certa forma parte deles para erguer uma visão outra. É nesse sentido que o espaço curricular é, como todo o discurso, uma aventura relacional onde a episteme 86 supostamente neutra – porque tem o poder de definir outras como excludentes – se desmonta pela inauguração de uma voz que institui um discurso crítico da sua monumentalidade apócrifa. É nesse sentido que os discursos – em vez de lerem o real – (na senda de Foucault) inventam objetos. Em contraponto à ideia absoluta de verdade como adequação entre linguagem e real, é necessário erguer uma cartografia, ou uma paisagem, onde se apresenta “uma” maneira diversa de ver as coisas – e é esse o nosso pressuposto, ou seja: estabelecer um discurso que não se apresente como “a” verdade, mas como “outra” verdade que disputa à verdade da monumentalidade o seu carácter único, essencial, teleológico e linear. Nesse sentido, o nosso pressuposto epistémico como estratégia mexe com a noção convencionada de história, historiografia e literatura - antes apresentada – para a estilhaçar em termos narrativos. Contra o devir dialético de uma essencialismo hipostático, imutável, primordial, pretendemos responder por circunstâncias que se integram em fluxos e por espaços de imanência mais marcados por descontinuidades do que por qualquer instância que está “fora” e que determina, à distância de uma contemplação escatológica, uma linha única. Isto envolve-se também com a noção de subjetividade que, para nós, não é metafísica, ou a-histórica, ou a-geográfica. Não há, em suma, um espírito “sombra” ou um universal que gere algo de “típico”, apresentado em discurso como um “cristal” fechado. Não existe para nós nada de natural na cultura e o que tomamos como “natural” é – isso sim – um processo de enunciação que “naturaliza” de acordo com códigos disciplinares – e disciplinados – de subjetivação. Mostrar que o que o sujeito descobre como o em si dos seus sistemas discursivos é interior a cruzamentos enunciativos do seu tempo e do seu espaço é, assim, também um outro pressuposto epistémico que apresentamos. Por outras palavras, não deixaremos de mencionar que na nossa própria produção programática há um jogo entre saber e poder. Há um poder enunciativo que apresenta e veicula um conjunto cognitivo; contudo, este não se pretende único e sabe-se como convenção. Sabe-se ainda como outra coisa, ou seja, sabe-se como enunciado que, não se mascarando de verdade (no singular), demonstra que o currículo é um espaço agónico onde vão cabendo em mútua contestação dialogante várias verdades (no plural) e, por isso, desmonta como hegemónicos outros processos de singularização. Há assim – no nosso projeto pedagógico – uma vontade de verdade que se dispõe como um acontecimento possível, narrado e estruturado, que passaremos a apresentar. 87 Compreende-se por aqui que, de certa forma, os pressupostos epistémicos de Foucault em relação ao discurso são a “sombra falada” dos nossos programas. Eles têm o cuidado, aliás, de o demonstrar do ponto de vista das bibliografias, onde isso se tornará óbvio aquando da apresentação do modo como “lemos” determinadas referências. Quer falemos de cinema português, num sentido que remetemos para os contextos da antropologia visual, quer falemos de literaturas africanas de expressão portuguesa, cujo encaixe é pós-colonial, quer falemos de cultura contemporânea portuguesa, cujo sistema supõe uma arqueologia do corpo contemporâneo como espaço de inscrição de poderes e de escultura de resistências, quer falemos da “novíssima” poesia portuguesa, cujo recorte descontínuo é o presente e a sua marca de quotidiano urbano, quer falemos de pensamento filosófico em Portugal, de um ponto de vista que abre como dístico a desmontagem de processos utópicos inerentes à ilusão de linearidade do discurso como alcance do sentido, a mancha que lá está carrega o “fantasma” foucauldiano, caso não seja por nós, pelo menos devido ao facto de as leituras onde nos inspiramos terem bem presente a estrutura genealógica de que não existe um “fora” do tempo e do espaço do enunciado que lhe dê garantias absolutas. Por outras palavras, em nenhum momento nos apresentamos em discurso como “a” verdade, embora exista a convicção de que por ali deixamos passar uma visão possível (e contudo precária), sem que esta se imagine alguma vez como única, mítica, perene ou indiscutível. Na verdade, o acento do contemporâneo, do hodierno correspondente a Portugal e às linhas de fuga com as quais o seu espaço e o seu tempo se cruzam e dialogam, é a nossa intenção fundamental. Em relatórios de reflexão que fizemos sobre a nossa prática docente194 tivemos sempre o cuidado de deixar presente que esse é o nosso projeto, ou seja, tendo em conta as características próprias do universo curricular, docente, discente, social, antropológico e académico que fomos descortinando, apresentar uma visão atual, agudamente presente e diversificadamente globalizante da cultura portuguesa – e também, por vezes, das culturas em português que com ela dialogam – por contraponto a visões de teor mais clássico, canónico ou tradicionalista. Trata-se de apostar numa visão menos formalista (se é que a designação serve) do 194 É norma de procedimento institucional o envio ao IC-Sede, com a periodicidade semestral (início do ano, final do primeiro semestre e final do ano), de relatórios onde os Leitores refletem sobre a sua prática docente, estratégias aplicadas e/ou de remediação, expectativas de trabalho, descrição de contextos discentes e docentes, descrição de materiais disponíveis e envio de programas, entre outros aspetos. Estes relatórios são analisados pelo Gabinete de Apoio Pedagógico. 88 processo educativo, de modo a que esta possa abrir para o inesperado – do ponto de vista do horizonte de expectativas, conforme ele se compõe pelo que ficou dito nos capítulos anteriores – para o criativo, para o reflexivo, para o crítico, para o espontâneo, para o dialogante, tendo em conta a “zona de contacto” (um conceito que ainda referiremos, para explicarmos o que pretendemos aqui com ele) propiciada pela língua e – acentuadamente aqui, para o contexto que nos interessa – pela cultura, como discurso que surge com o estatuto de novo no universo dos alunos. Contudo, trata-se de, nesse processo, abrir um espaço de contestação a certas carências provenientes de um arquivo fechado, diretivo, assente sobretudo no registo escrito enquanto autoridade perentória e cujo valor de facticidade é tomado como incontestado em atmosfera de um certo silenciamento à alternativa. É nesse hiato que a interculturalidade se apresenta como processo fundamental de construção de uma ambivalência que não coincidirá, porventura, nem com a solenidade de partida, nem com o dialogismo da chegada: um “entre os mundos” (do aluno e do professor, do arquivo de partida e do de chegada) que é espaço outro, no qual o professor se despe da autoridade para ouvir e o aluno se reapodera da voz, a partir de um modelo de subjugação, para dar a falar (além de dar a escrever algo que já não está nem na autoridade monumental nem na labilidade convencional diversa) uma expressividade autónoma de encontro. Esta prática supõe um cruzamento do universo da cultura exógena com a mobilização tanto do singular dos alunos, como do modo de subjetivação de onde estes provêm. Ela é zona de contacto 195 ou espaço híbrido, se quisermos, uma vez que a sondagem supõe um erguer de pontes novas que é necessariamente uma construção mútua. A uma visão menos clássica do universo de partida da cultura portuguesa assomam reações do mais diverso tipo, que envolvem uma gestão do assombro, do pasmo, mas também um confronto com a rejeição, já que se trata de uma queda em relação ao idílio do grandioso. Contudo, há também intensidades de criatividade pela perceção de uma possibilidade diversa de “performance” do singular enquanto expressão de contacto. Como a verdade não surge “ditada” de cima, ela supõe um exercício de 195 No sentido usado por Mary Louise Pratt: “I use this term to refer to social spaces where cultures meet, clash and grapple with each other, often in contexts of highly asymmetrical relations of power, such as colonialism, slavery, or their aftermaths as they are lived in many parts of the world today.” Mary Louise Pratt, “Arts of the Contact Zone”: http://www.class.uidaho.edu/thomas/English_506/Arts_of_the_Contact_Zone.pdf (consulta: Outubro de 2011). 89 liberdade, de contestação e – por isso – também de medo e angústia perante o ter de assumir responsabilidades próprias diante do “dito”, que deixou de possuir um valor de verdade absoluta e reproduzida, mas é na mesma um jogo entre subjetivação e resistência a partir do espaço de discurso que se cria, pela demonstração implícita do seu binómio entre saber e poder (o facto de o discurso abrir a essa demonstração plural não deixa de o constituir como artifício: isso é constantemente lembrado pela oposição entre a ideia de “uma” verdade e a ausência de pretensão a ser “a” verdade: quando isto é feito, o discurso abre automaticamente um convite à contestação nos seus termos epistémicos e é isso que é fundamental para o entendimento do dialogismo). Romper, pois, com uma espécie de “conspiração de silêncio” em torno do monumental e do apócrifo, pela instauração do “estilhaço” atual inerente ao presente agudo: uma metáfora que quer dizer debater sem mistificações, deixar o pensamento fluir, sem arcaísmos essenciais, ou primórdios imaginados a partir do adestramento. Descobrir, intervir, mergulhar na cultura por si mesma como “espaço outro” em que a palavra do professor não é “letra de lei”, não corresponde a uma escolástica historicista da “origem”, não diz o que é o positivo ou o absoluto. Isto, por vezes, suscita a reação curiosa (uma vez que o solene cai do pedestal) de se ter a sensação de uma interpretação discente que vê o lado lúdico com ausência de “seriedade”, dada a anterioridade inerente à criação de uma imagem austera e inacessível da palavra docente como arauto do verdadeiro. Nestes momentos é preciso mostrar que “solenidade” não é o mesmo que rigor, que “monumentalidade” não é o mesmo que exigência: a grande aventura – e a grande perplexidade à qual muitos resistem – reside em mostrar que o investigador (e todos somos: o aluno professor que aprende com os alunos e os professores alunos que aprendem com o professor), mais do que descobrir uma verdade sólida, fundamental e fixa, inventa, na senda de Foucault, objetos precários, discutíveis, modos de ver mundos. E essa precariedade pode ser vista como angustiante porque ela não se apresenta com o valor de verdade sólida, de essência total e platónica, porque ela não corresponde aos quadros estáticos da visão positivista da verdade por correspondência entre palavra e coisa (a tal “ontologia de postal”), porque contesta o – digamos, em tom de ironia – “peito ilustre lusitano”. Também, porque ela dá ao discurso oral um valor equivalente ao registo escrito, isto é, incita o aluno a sair do “silêncio do balde” para ser, também ele, enunciador de um modo de ver as coisas que não tem que ser “banal”, ou “fácil” mas que tem um valor – também 90 ele – de regime de verdade (mesmo que possa divergir do estabelecido como dito possível). A submissão “bíblica” ao texto escrito, substituída pelo registo da dúvida, que contesta o espaço do princípio parmenídeo da “não contradição” e se integra – podemos também vê-lo assim – numa visão precária e mais heraclitiana (por filtro nietzscheano, que entra em Foucault como escultura de resistência denunciante), suscita, por vezes, o desconforto e a insegurança. Os princípios da interrogação perante os monumentos, o início de uma leitura anti-conformista do apócrifo: essa aventura, estamos em crer, é o convite que queremos fazer quando damos ao momento da aula o espaço dos nossos programas opcionais de trabalho. B) Programa de Cinema Português Contemporâneo Na linha aqui proposta, o programa de “Cinema Português Contemporâneo” 196 remete, logo a partir do título (que envolve expressões de textos que João Mário Grilo 197 escreve sobre o tema), para um desmontar de monumentos. Ao contrário de uma grandiosidade assente numa visão patrimonialista da história e da cultura, o cinema português é aqui visto pelo prisma do “realismo sujo” e da “não-ilusão” como formas de expressão estética que apontam para cortes precários no real, olhando-o pelo lado que o discurso oficial tem tendência a mascarar. Tivemos, mesmo, oportunidade de debater esta questão com um membro do corpo diplomático que criticou o programa por mostrar um lado de Portugal que, segundo ele, era feio e cheio de gente estranha que não mostrava a grandeza das nossas praias, paisagens, monumentos e história. Ripostámos na altura que, para isso, existem os filmes de propaganda do ICEP, bastante propalados. No preâmbulo, o programa menciona a codificação da “antropologia visual” no sentido de um olhar que “é nostálgico, agressivo, pungente, irónico e melancólico”, ligado a uma certa “desumanização” e em que o cinema é “veículo de uma sintomatologia cultural.” Trata-se de, a partir de um modelo antropológico, usar o 196 Os programas serão citados a partir do ano da sua primeira utilização em aula e não da sua versão apresentada em anexo, dadas as alterações efetuadas a nível do regime de avaliação que supunha, antes, a elaboração de ensaios e passou a contar, depois (para evitar frequentes situações de plágio) com exames de consulta e defesas orais: Francisco Nazareth (2007) “Entre a “Não-Ilusão” e o “Realismo Sujo”: O Cinema Português Actual Enquanto Modo de Expressão Estética Contemporânea” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em anexo: anexo 3. 197 Todas as referências bibliográficas deste capítulo remetem para os programas em anexo; as exceções a esta regra serão raras e documentadas. 91 cinema como espaço de visionamento das linhas de força que constituem uma cultura ambígua na qual se cruzam narrativas de internacionalização – isto é, pontos de confluência com outros imaginários (parece-nos que apesar das diferenças glosadas por Paulo Rocha em texto de Paulo Filipe Monteiro presente em bibliografia, o cinema português, nos seus usos do tempo, da imagem, da narrativa é, sem dúvida, cinema europeu, tendo em conta codificações académicas que não estenderemos) e espaços de construção de perplexidades próprias, nostálgicas, irónicas, e melancólicas, “janelas” (ideia fundamental: cada texto é uma janela discursiva, um prisma) de sentido prospetivo. Da paisagem urbana à ficcionalização da história; do encontro e desencontro com o outro até à problemática dos tráficos contemporâneos, o cinema surge como pretexto para o estabelecimento do tal processo de análise discursiva dos pulsares quotidianos marcados pela invisibilidade perante o discurso do grandioso que o oculta. No plano dos objetivos, onde se fala na apresentação “de um discurso cinematográfico que dá a ver o que está escondido” nas formas “triunfalistas”, o panorama cinematográfico, contextualizado antropologicamente, abre da imagem do cinema para as linhas de força emergentes em texto cultural. O cinema surge como espelho em gesto realista que não esquece a ficção e, nesse sentido, se conjuga com textos que o ilustram de modo a que se faça um trabalho crítico de descoberta cultural a partir da imagem. O cinema surge, assim, em tensão com a cultura, insinuando paradoxos ocultos no discurso do “nacional”. Se a visão da cultura portuguesa que por aqui se insinua é provocatória e anticonvencional – ao confrontar-se com o que vimos nos capítulos anteriores – é evidente que (o que se aplica aos outros programas que veremos) existe um modelo de aula assente no debate que pressupõe a visualização da imagem e a sua contextualização discursiva. O filme, como discurso apresentado nas suas linhas de força culturais (colocadas sempre como interrogações), é mote para um diálogo orientado de onde é suposto sair um conjunto de “verdades outras” que não são as da estética, ou da imagem, ou do professor moderador, ou dos alunos, mas que se situarão nas linhas de força e nos interstícios ambivalentes destas interconexões. É suposto haver um processo de descoberta mútua onde a imagem é pretexto que abre a singularidades autónomas, próprias não só à especificidade de cada um na sua liberdade reflexiva, mas também ao confronto com uma visão paradoxal, na qual se vão descobrindo nuances reiteradas e registadas, que constituem um “diário de bordo” 92 (registo que os alunos elaboram por escrito no final de cada aula e que estabelece o ponto de ligação com a aula seguinte, dado que lhe é dado um tempo de debate prévio antecedendo cada novo tema) como “monumento alternativo” ou abismo do assombro. Em sequência, a avaliação (sujeita a alterações, dada a deteção de plágios em trabalhos escritos, e que é hoje assente num processo formativo e num sumativo que substituiu ensaios por exames de consulta: não nos alonguemos sobre isto) surge em consequência do diálogo de aula, integrando-o sob as formas de participação, intervenção crítica, redimensionamento constante do espaço interpretativo e construção de universos próprios de assimilação a partir dele (daí a aposta em ideiaschave como “iniciativa”, “dinâmica”, “interação” e “autonomia”). O trabalho de aula, o diálogo, o visionamento, a consulta de textos (há uma antologia), supõem um diário de bordo que será objeto do exame e da posterior defesa oral deste. Os conteúdos (que de modo algum supõem leituras lineares: a sequência dos filmes pode ser alterada dado que ela não inclui qualquer perspetiva cumulativa e não vê o cinema como “prova” de que o “real” é assim, sendo apenas uma possibilidade de ser) remetem para esse mesmo olhar que supõe um questionar a partir da perplexidade. Se falamos em questionamento da ilusão, nada melhor que começar com um documentário, já que se trata da questão mais difícil de responder sobre certo cinema português, ou seja, se este é documentarismo ficcional ou ficção documental. A tensão entre estes dois pontos é permanente, uma interrogação sem resposta, já que o tempo de certo cinema português (a aposta reiterada na lentidão) remete para uma constante instalação do quotidiano na imagem. Num segundo momento (reiteramos que sem linearidade: às vezes sentimos necessidade de alterar a sequência instalada no programa – para espanto de alguns alunos que aceitam o texto escrito como letra de lei inquestionável – em função de questões que a própria aula levantou numa lógica de imprevisibilidade) faz-se uma reflexão literalmente foucauldiana sobre o poder e a invisibilidade, sobre o adestramento social a partir da imagem e os processos de isolamento e atomização que isso suscita, sobre a intervenção das lógicas de controlo nas relações humanas e sobre a maneira como esses mecanismos de sujeição têm esvaziado os sentidos inerentes às relações contemporâneas, apesar do aparente bem-estar material que algumas envolvem. “É preciso chamar as coisas pelos nomes”, diz uma das personagens mais jovens do filme “Lá Fora”, de Fernando Lopes. Num universo de 93 alta tecnologia, de usurpação do binómio público e privado em função da ubiquidade e omnipresença da vigilância eletrónica, qual panóptico transparente, seremos ainda capazes de fazer isso? O filme seguinte corresponde a uma hesitação: muitas vezes integramos logo os “Ossos” e “Mutantes”, de modo a demonstrar que a visibilidade funciona também por esquecimento e ocultação: a um Portugal “high-tech” de condomínios fechados, comunicação eletrónica, omnipresença da imagem e “cimêncio”198 acrítico, corresponde todo um outro de exclusão, povoado por imagens de inadaptação social, rejeição, preferia, precariedade, medo e pobreza, assim como de vazio (mas um vazio diverso do vazio sedutor de “Lá Fora”: sedutor, um, do ponto de vista da imagem; repulsivo, o outro, no mesmo sentido, mas ambos correspondendo a algo que tem tanto de “pós-humano” como de cadavérico). Contudo, como “Lá Fora” mexe também com a iconografia nacional, dado que a interrogação sobre o vazio é feita também a partir de uma citação (no Mosteiro dos Jerónimos) de “Tabacaria”, redimensionada ontologicamente como algo deslocado, muitas vezes saltamos deste filme (conforme o diálogo de aula o propicie) para a zombaria iconoclasta e “maldita” de João César Monteiro, na qual as imensas citações da história do cinema (como o “Nosferatu” de Murnau) remetem para uma visão sarcástica e demente de Portugal em que a indigência expedita entra no manicómio para satirizar os convencionalismos sumptuosos dos “brandos costumes”; como se trata também de um questionamento da normalidade a partir do desvio, remete para a arte como resistência, o que veremos no programa de cultura. Monteiro, integrado no panteão dos malditos contemporâneos portugueses (por exemplo, com Luiz Pacheco ou Alberto Pimenta), remete para uma leitura do que é icónico e solene a partir de uma demissão quanto ao caráter de verdade apodíctica que isso acarretaria. Outro dos temas que trabalhamos é o da emigração. Assim, à visão trágica de João Canijo sobre os portugueses residentes em França (que pretendem ser bem comportados, viver sem “ter problemas com os franceses”, mas na realidade não se integrando e deixando aos filhos um legado de limbo no qual já nem são uma coisa nem outra: isso é visível, inclusivamente, na língua que falam em “Ganhar a Vida”, uma vez que várias palavras dizem respeito a um léxico mestiço), corresponde, por outro lado, o estado de precariedade de um cabo-verdiano que vem para Portugal trabalhar nas obras de construção (em “Casa de Lava” de Pedro Costa) e que, não 198 Combinação de cimento e silêncio: título de uma obra sociológica e fotográfica que aparece na bibliografia do programa de cultura do qual falaremos em seguida. 94 sendo aceite no lado de “cá”, também já não o será no lado de “lá”, dado que o acidente que o remete para o regresso como morto-vivo o acaba por colocar, enquanto ponto de salvação, nas mãos de uma enfermeira portuguesa, situação que lhe provoca uma perplexidade agressiva num mundo de inadaptados no qual os restolhos coloniais (gente que ficou em África, murmúrios crioulos dum mundo passado) são também ambiguidades de esquecimento bipolar. A temática colonial abre, depois, para uma leitura anti-heroica da história na qual a adaptação do romance de Lídia Jorge (“A Costa dos Murmúrios”) por Margarida Cardoso mostra como a história oficial, propalada pelos meios do Estado Novo e ainda mantida em muito imaginário popular como verdadeira, deve ser desconstruída pela ideia de fábula (ela é como que um nevoeiro de gafanhotos que oculta o real). A personagem de Eva (no filme interpretada por Beatriz Batarda) surge como uma espécie de fio de Ariadne que desmascara (em conjunto com um jornalista dissidente que escreve rábulas metafóricas) solenidades: o Portugal colonial foi brutal, o racismo e o machismo existiram, a guerra teve horrores, os portugueses cometeram massacres, a ideia do “peito ilustre” lusitano é uma fábula inerente à mitologia nacionalista e, por isso, uma “história outra” sobre os paradoxos do colonialismo português, feito mais de negociações no imprevisto do que de planificações centrais, tem de ser contada. Contudo, deixemos este pressuposto programático do “subalterno” para o programa de “Literaturas Africanas”. Em sequência, o filme “Capitães de Abril” teria que aparecer, uma vez que integra em histórias pessoais, modeladas como retratos de época, um episódio fundamental do Portugal contemporâneo que é essencial para a visão que vamos construindo em relação a nós mesmos e sem o qual este mesmo texto que agora escrevemos seria impossível. A revolução (iniciada a partir do descontentamento militar com a guerra colonial, mas encontrando eco num “idealismo de rua” no qual vários núcleos - os artistas, as mulheres, os jovens universitários e a gente humilde - se irmanaram contra os cinismos de ocasião; é esta um pouco a tese do filme, que remete a figura de Salgueiro Maia para o papel de um herói sem patente, que desaparecerá na “escuridão da história”, substituído pela figura dicotómica do General Spínola) é o momento no qual uma espécie de país semianalfabeto, prisioneiro de um sonambulismo conservador e acrítico, dominado por discursos de poder assentes em fábulas de grandeza e amordaçado por mecanismos de dominação do corpo, dos gestos, dos discursos, da ação cívica e do pensamento (assentes num conluio insidioso com o “olho escatológico” da igreja) 95 parece que acorda. Mas o filme deixa este acordar suspenso numa interrogação para a qual continua a não haver resposta. Normalmente, terminaríamos o programa com o filme “Transe” de Teresa Villaverde mas, devido à violência extrema das suas imagens, optámos por não o mostrar. Vínhamos optando por mostrar outro filme sobre a mesma temática (os tráficos de seres humanos, operados por máfias, sobretudo localizadas no Portugal rural) – “Noite Escura” de João Canijo – mas também este causou algum choque, pelo que temos optado por acabar o programa em torno de temas anteriormente tratados, variando muitas vezes o filme que inserimos (como “Lisboetas”, de Sérgio Treffaut, sobre imigrantes, ou “Ainda há pastores?”, de Jorge Pelicano, sobre a extinção de modos de vida rural em Portugal e que permite interessantes paralelos quanto à Bulgária). Apenas algumas notas finais quanto à bibliografia. Não se trata de uma bibliografia sobre cinema, mas na qual o cinema é pretexto para a apresentação de remissões em direção a visões sócio-antropológicas de Portugal, que passam também pelo questionamento histórico. Se já mencionámos (por causa do título) os textos de João Mário Grilo, não é demais mencionarmos o de Paulo Filipe Monteiro (que ajuda a desmontar a “nação” a propósito do discurso cinematográfico), o de Margarida Calafate Ribeiro (essencial para “A Costa dos Murmúrios” dado que não só inclui um capítulo sobre o livro, como enfatiza o papel da mulher na necessária “descolonização mental” de Portugal), o de José Gil (a noção de “não-inscrição” serve-nos, aqui, sobretudo para percebermos a invisibilidade voluntária e coletiva dos emigrantes portugueses em França, corolário da “inscrição” adestrada dos mecanismos do poder do Salazarismo na corporeidade das pessoas sob a forma de um medo que é necessário ao “cidadão honrado”, como integrador de um “nevoeiro” de incapacidade crítica perante o convencionalismo) e o texto de Foucault (uma vez que o capítulo sobre o dispositivo panóptico é essencial para entender “Lá Fora”). O texto de Sousa Santos já foi analisado no capítulo anterior na perspetiva em que, aqui, também o cinema português ajuda a desmontar ilusionismos pomposos. C) Programa de Cultura Portuguesa Contemporânea 96 No nosso curso de “Cultura Portuguesa Contemporânea” 199 toma-se como “referencial fenomenológico, arqueológico e desconstrutivo” o corpo “enquanto circunstância” que é constituída por “redes de significação”. Trata-se de construir um diálogo com as atmosferas culturais presentes entre os criadores portugueses contemporâneos a partir do espaço do corpo como sendo significativo, isto é, uma rede onde se cruzam discursos, na medida em que esse “corpo-corporeidade” supõe, por um lado, processos de adestramento cultural próprios aos modos como Foucault descreve a modernidade, mas também permite olhar para a criação artística como escultura de resistência que parte do corpo para questionar o modo como este é identificativamente fechado e enclausurado, ou seja, a criação artística é um espaço de resistência que expõe poderes de convenção normativa: já lá voltamos. Quanto aos objetivos, há uma aposta na interculturalidade, no diálogo e na apresentação de uma versão do saber que não é vertical (ou seja, que não aposta na unidimensionalidade de um critério de verdade para se fazer ouvir) e numa versão de poder que não é unívoca (isto é, remete para um processo de aprendizagem que é multifocal e descentrado). Ainda, na transversalidade dos saberes, no carácter “inter” – e “trans” – nacional dos fluxos culturais, no rigor teórico e comunicativo, tentando, a parir de uma perspetiva crítica, ajudar à pluralidade axiológica e à construção de sensibilidades estéticas que não sejam patrimoniais enquanto universos de descoberta e chegada: o mundo cultural como espaço de encruzilhadas. Talvez não haja muito a acrescentar em termos de metodologia ao que foi dito a propósito do programa de cinema (sendo fundamentais a “moderação” de diálogos e a “mobilização” de referências). Contudo, enfatiza-se a construção de um espaço/tempo de aula que é idiossincrático em relação a hábitos culturais de canonização: dialogar, portanto, mobilizando saberes, construindo pontes para saberes adicionados como suplementos, entrada em parcerias de sensibilidades, estabelecimento de paralelismos e construção de analogias. Sendo os processos de avaliação semelhantes aos usados no curso de cinema, do ponto de vista dos conteúdos o corpo institui-se (numa primeira parte que é mais teórica e para a qual se criou um guia de leitura disponível em rede) como processo crítico de um ser no mundo que questiona, a partir da sua circunstância, as práticas 199 Francisco Nazareth (2008), “Singluaridade e “Abysmo”: A Obsessão com o Corpo na Cultura Portuguesa Contemporânea”, (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em anexo: anexo 4. 97 sociais que sobre ele – e por ele – se insinuam. É assim que ele é pensado como referencial temático para as práticas de criação portuguesa contemporânea, dado que surge visto numa espécie de conjunto de círculos concêntricos onde esse “retalho” é o culminar de uma reflexão sobre – também – a identidade e o território (conceito usado aqui em sentido deleuziano). Existem assim vários discursos relativos a estes dois referenciais que se insinuam no e pelo corpo, sendo também verdade que, do ponto de vista das práticas artísticas como dissidências críticas, ele, corpo, se ergue posteriormente como alternância provocatória e dimensão de alteridade em relação a estratégias de adestramento: é assim que ele ajuda a esculpir a criação como arte de denúncia inscrita no mundo como dissonância. Os discursos que o corpo ajuda a criar e as suas reflexões críticas sobre o posicionamento no mundo dependem, primeiro, de uma reflexão sobre identidade e território. Sem nos alongarmos muito, a reflexão sobre os prismas identitários e nacionais de Portugal e sobre a existência ou não de uma cultura portuguesa leva depois a uma visão do conceito de “inscrição”, mas numa leitura deste em relação ao corpo que supõe o modo como ele é herdeiro de Deleuze e Foucault a partir de uma temática que surge em Kafka. Nesta senda, a arqueologia da produção social do corpo leva-nos da máquina moderna que inscreve em nós poderes e saberes200 até à instituição nietzscheana de um corpo como espaço de resistência, na linha de Foucault, e de palco dissonante, na linha de Deleuze, como uma espécie de “corpo sem órgãos” inscrito no mundo como crítica. Além disto, passa-se depois para um corpo que carrega toda uma simbólica política de escultura social da diferença como espaço de criação de sentidos. Assim, a cultura é uma ferramenta de expressão que funciona como suspeita a contracorrente do real (de certa forma, a criação cultural inscreve contra a não-inscrição mediante o corpo como expressividade. O corpo torna-se o referencial a partir do qual se faz a análise das paisagens da criação portuguesa no sentido da ideia de um “corpo de combate” 201 constituído por “feixes” emancipatórios de nomadismo ganhando uma espécie de forma de “obra de arte” esculpida com a vida, imanente e processualista em múltiplas inscrições ou “mil palcos”). O corpo é, por isso, o referencial a partir do qual se faz a análise das paisagens da criação portuguesa no sentido da luta afirmativa em que se ergue para lá 200 Leitura de Gil em relação à “Colónia Penitenciária” de Kafka: José Gil (1997: 103/12), Metamorfoses do Corpo, Lisboa: Relógio d’Água. 201 São ideias que uso em “apontamentos” para as aulas que estão disponibilizados em rede mas, como não estão editados, não vale a pena citar aqui. 98 do investimento social que o educa, escreve, contextualiza, treina: a criação é por aqui desafio à corporeidade estandardizada. No segundo momento dos conteúdos, e começando pela fotografia, faz-se uma análise da obra de dois fotógrafos contemporâneos bastante diversos. Em Jorge Molder 202 trabalha-se a indagação em torno da fragmentação da identidade, com referências que tanto podem ser estendidas ao modernismo literário (nomeadamente Beckett), como à interrogação sobre o ser contemporâneo quando confrontado com a sua solidão. Por seu lado, o trabalho de Nuno Cera – mais especificamente “Cimêncio” (mas não só) o que permite uma interligação com o filme “Lá Fora” – tem um maior pendor antropológico e sociológico já que, sendo acompanhado por texto, surge como denúncia direcionada para o esvaziamento cívico do espaço público que, em razão da disseminação de um bem-estar sanitário, rompeu com a capacidade de discurso crítico em nome de uma materialidade desértica e descarnada: clausura dos corpos. No campo da pintura, o enfoque discursivo cai na obra de Julião Sarmento e na de Paula Rego no que estas têm de postura analítica sobre o universo feminino. Se, em Sarmento, o confinamento corporal passa pelo auto-investimento sensual de um silêncio que é retraído em relação a um quotidiano repressivo quanto a qualquer libido desviante para com normas de uma religiosidade aparentemente secularizada, a obra de Paula Rego não pode ser vista sem ter em conta a perversidade iconoclasta com que denuncia o paternalismo inscrito no quotidiano pelo “nevoeiro” salazarista. Nesse sentido, o corpo grotesco da domesticidade assume um grito de denúncia quando exposto em imagem devedora de um paradoxal surrealismo realista, que nos mostra aquilo que o conluio de poderes convencionais (estado e igreja) sempre escondeu. Esta questão tem sequência quando se fala de dança. Na realidade, se Olga Roriz tenta – em muito do que faz – reler o texto clássico expondo-o à luz de problemáticas contemporâneas e, por esse processo, torná-lo atual (além de usar referências desconcertantes que desmascaram os nossos moralismos, mas apropriando-as de fora do panorama mais canónico das culturas ditas ocidentais 203), já Vera Mantero é bastante direta no seu uso de referências filosóficas (Deleuze é um caso explícito) para as encenar como questionamento social. 202 Sobretudo através de recolhas dos alunos: é isso que se tenta fazer nos vários prismas da criação contemporânea. 203 O que é visível no trabalho “Os Olhos de Gulay Kabbar”. 99 A parte musical relacionada com o “hip-hop” é, em geral, a que os alunos mais gostam de trabalhar, até porque envolve um tipo de discurso cujas referências urbanas são suas e, desta forma, mais fáceis em termos de reapropriação 204. Em tal contexto, a moda ganha preferência acrescentada e a ligação entre corpo e mercado (que é óbvia) permite também uma abertura crítica, proposta por alguns projetos portugueses menos visíveis comercialmente, de um ponto de vista dos desafios ao convencionalismo. Por outro lado, sendo a arquitetura uma arte que mexe com o espaço – altera-o e redefine-o do ponto de vista (literal) da paisagem – é óbvio que a própria maneira como o espaço identitário do “nacional” tem vindo a ser transformado a este nível, surge como um questionamento que pode ser uniformizador, mas também irónico, paródico e crítico, sobretudo em relação à maneira como, a partir daí, se redimensionam os sentidos dos (e para os) corpos e gestos: e a arquitetura faz isso porque recoloca o movimento em função da sua inserção no diálogo que ele estabelece com o território. Este foi, aliás, sempre um enfoque muito interessante de ver no modo como os alunos se posicionam perante ele, ou seja, de que forma os trabalhos de intervenção urbana de arquitetos portugueses (como, por exemplo, Álvaro Siza Vieira ou Eduardo Souto Moura) os levaram a colocar o espaço como uma utilização diversa da cultura e do seu processo de naturalização semântica (como linguagem, portanto) territorializada. Em sequência, o teatro e a performance205 entram, não tanto porque seja importante saber nomes de grupos ou peças, mas pelo modo como essas formas de criação mexem também elas com o corpo e o espaço, desafiando dicotomias pré-estabelecidas em dualismos modernos como sejam o de ator e espetador. A intervenção do binómio gesto/palavra, e o seu jogo com o olhar, com a “desterritorialização” do cenário para dentro da sua consequente “reterritorialização” como paisagem (qualquer uma), 204 Tendo esta segunda parte do programa sido sempre sujeita a um esforço de recensão – que envolve recolhas feitas em casa (cuja promoção nem sempre tem sucesso porque os alunos se sentem mais confortáveis com modelos diretivos e a promoção da investigação autónoma é, para muitos, incómoda) – houve mesmo um ano (com a presença de um bom grupo, que perdeu a vergonha, desafiou a dimensão da autoridade e teve espírito de iniciativa) em que os alunos resolveram fazer uma base de dados (infelizmente nunca completada) sobre cultura portuguesa contemporânea, na qual os autores que constam do programa foram também abordados, mas apenas entre outros, ou seja, fez-se uma recolha sobre fotografia, pintura, escultura, dança, etc., que foi apresentada pelos próprios alunos em aula com a presença do professor apenas como monitor social das diferenças e corretor dos usos linguísticos feitos durante as apresentações. Neste contexto, a área destinada ao “hip-hop” foi alargada ao campo mais vasto das “culturas urbanas”, o que permitiu, por exemplo, a inclusão de uma excelente apresentação de uma aluna sobre a identidade do “graffitti” em Portugal. 205 E o jogo de diluição de fronteiras que estas criações fazem em relação a outras artes: lembremos, por exemplo, o trabalho de Helena Almeida em torno do diálogo da instalação com a performance e a fotografia. 100 permite um enfoque no quotidiano como cena e a sua consequente subversão enquanto código estratégico de adestramento normalizado. Nesta perspetiva, o teatro e a performance surgem – precisamente no sentido do enfoque do programa – como esculturas de vida por subversão do poder da norma206. Não nos querendo estender muito em comentários pelas “bibliografia” e “cibergrafia”207, faremos apenas alguns comentários breves. A presença de textos de Foucault e Deleuze parece-nos clara (porque são textos para a elaboração dos programas e não forçosamente para consulta dos alunos) a partir do que foi dito sobre os conteúdos. A “arqueologia” aparece em diálogo com o texto de Thomas Kuhn, exatamente quando se trata de insistir perante os alunos no facto de o acesso à cultura não depender necessariamente de linearidades cumulativas nem de finalidades reveladoras (reiteramos: uma perspetiva anti-positivista e não teleológica), podendo ser “paradigmático”: funcionar por saltos, errâncias, isto é, em linguagem deleuziana, por nomadismo. Os textos de José Gil sobre o corpo entram em diálogo com Foucault e Deleuze e proporcionam a leitura da ideia de criação artística como inscrição resistente. Paul Virilio surge pela necessidade de colocar em diálogo as ideias de velocidade e paisagem: parece-nos importante, por exemplo, a nível da fotografia de Nuno Cera. O texto de Nathalie Crohn Schmitt é específico para a problematização da ideia de palco como separação e para a diluição da ideia de performance no quotidiano. Quanto aos textos sobre Las Vegas e sobre Los Angeles, são específicos para a arquitetura e a problemática da naturalização paisagística. A “cibergrafia” cumpre um propósito fundamental: disponibilizar aos alunos uma rede tão atual quanto possível de críticos, curadores, criadores e analistas que refletem em Portugal sobre questões diretamente relacionadas com as temáticas dos programa. D) Programa de Literaturas Africanas 206 Foi, aliás, interessante a presença na Bulgária de uma criadora portuguesa de teatro físico (ligada aos projetos “O Ato” e “Transparências”) que veio apresentar uma oficina em língua portuguesa (na altura, projeto que se estendeu a uma cooperação com o Leitorado de Belgrado, e com o grupo de teatro aí elaborado e que se chama “Teatro da Cidade Branca”); infelizmente, talvez por medo, a oficina não teve o impacto necessário e a adesão de alunos, apesar da publicidade, foi escassa. 207 As referências destes aparecem (completas) nos programas em anexo. 101 O Programa de “Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa”208 tem, através do seu conceito organizador, o propósito específico de questionar, de um ponto de vista que é pós-colonial e transnacional, ideias provenientes de visões heroicas e ufanistas do mundo português, como as que saem de leituras solenes das descobertas e dos “Lusíadas”, por exemplo. Pretende apontar diretamente ao caráter paradoxal do colonialismo português e ao caráter – também específico – do universo pós-colonial que se exprime em língua portuguesa. O estatuto ambíguo destas questões torna-se claro, a nosso ver, mediante a utilização do conceito de fronteira, exatamente no seu estatuto de paradoxo, de ambiguidade, de mestiçagem: estar na fronteira, ou habitá-la, é não pertencer a nenhum dos lados que ela supostamente divide e isso envolve, claramente, uma situação híbrida. Mas vamos por partes. Gostaria de chamar a atenção, logo no preâmbulo, para a ideia de “limiar” desenvolvida enquanto ambivalência; ela permite desmontar a ideia de “origens” absolutas e, consequentemente, de “alteridades” totalizadas (heranças positivistas e de visões românticas do discurso). O que é chave aqui é a ideia de “matização”, pois permite209 mostrar que o desenraizamento cultural já não é um drama mas, em sociedades marcadas por diásporas, tornou-se condição. É por isso que a analítica do programa se mostra “devedora” do pós-colonial. Desta forma, os objetivos do programa apontam para o que chamamos de “cânone subalterno”. Não só se pretende – relacionando com as diásporas – mostrar que a fronteira210 é sobretudo uma condição contemporânea, como apresentar nesta as peculiaridades do mundo de língua portuguesa como não sendo as mesmas que o “pós-colonial” anglófono, dado o pioneirismo de Gilberto Freyre, apesar dos seus essencialismos idealistas, no uso do conceito de mestiçagem e dado o cariz singular 208 Francisco Nazareth (2007) “O Pensamento de Fronteira nas Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa: Os Casos de José Eduardo Agualusa e Mia Couto” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em anexo: anexo 5. 209 E Mia Couto faz isso muito bem pela criação de neologismos e pela utilização de parábolas onde faz confluir espaços e tempos diversos que aí se diluem; José Eduardo Agualusa utiliza processos diferentes, não tão ligados à língua mas, isso sim, a uma irrupção da magia que confunde a fronteira entre o real e o imaginário: o seu texto remete, a nosso ver, para a ideia de que o real, podendo ser mais incrível que a ficção, desmascara a ideia de solidez e permite pensar numa transumância completa, na qual os dualismos habituais, como por exemplo a oposição entre o belo e o grotesco, o europeu e o africano, deixam de fazer sentido, assumindo, então, a ambivalência. 210 Mais do que qualquer coisa de estático: é assim que alguns alunos abordam o programa; apetece-me aqui citar algo de um episódico surgido num texto escrito numa recensão e do qual já não disponho. Uma aluna escreveu que veio estudar literaturas africanas porque eram “exóticas”, vinham de um mundo desconhecido e, em espírito de irreverência, tinha decidido inscrever-se no curso contra uma afirmação da sua avó que, quando soube da existência deste programa, tinha zombado dizendo que não sabia que os macacos também escreviam (!). 102 do colonialismo português que, sendo “semi-periférico”, conforme Boaventura Sousa Santos, era visto como africano na Europa (o colonizador “incompetente”) e europeu em África (uma espécie de europeu de “segunda”, como se tornou óbvio mais tarde com as teses raciais brasileiras da linha de Oliveira Viana, contestadas por Gilberto Freyre, que lamentavam ter sido o Brasil colonizado por gente tão pouco “civilizada”). Este sentido de uma identidade em trânsito é marcante no modo como as obras indicadas para a leitura, de Agualusa, mostram personagens cuja errância se torna consequência dos imprevistos e rumos tomados pela existência e na maneira como, em Mia Couto, além das próprias consequências ontológicas do jogo entre a história, a geografia e a identidade, se mostra o efeito que tudo isso tem na reinvenção da língua, ou seja, no “português corta-mato”. Para evidenciar as versatilidades do texto, selecionámos, para cada um dos autores, um romance, um conjunto de contos e um outro de crónicas211, mas não desdobraremos aqui os conteúdos das aulas por falta de espaço. Concentrar-nos-emos, no plano dos conteúdos, numa melhor definição do conceito de fronteira como o entendemos enquanto desafio aos modos de pensar saídos de currículos tradicionais. Em termos metodológicos, é significativa a ideia, que sempre enfatizámos, de uma intervenção ativa que suporia uma leitura prévia para que houvesse um debate interativo que pudesse ser moderado. Contudo, esse sentido de orientação do diálogo foi quase sempre impossível de desenvolver nas aulas – que muitas vezes ficam condenadas a ser expositivas – dado que os alunos não leem as obras antes. Como o volume de leituras para outras cadeiras é maior e existe, em relação a elas, um medo maior do professor e da sua severidade, as literaturas africanas (consideradas, subconscientemente, menos sérias, mais lúdicas, mais “exóticas” e, portanto, uma literatura “menor”, além de o estatuto da cadeira ser opcional) são relegadas para um estatuto de inferiorização, o que é ainda reafirmado pelo facto de estes textos estarem escondidos no confim “inferior” do armário da biblioteca. Tal mentalidade integra uma sujeição naturalizada quotidianamente como norma não dita212. 211 As referências encontram-se no programa em anexo. Basta uma visita ao museu de arte “estrangeira” de Sófia para se ver como está presente a estrutura de linha platónica da “escada” que nos conduz desde a arte “primitiva” – nomeadamente a africana e a asiática, dispostas em verdadeiro espírito hegeliano e onde existe (graças às históricas boas relações da União Indiana de Nehru com o Bloco Soviético) uma das melhores coleções de arte sacra cristã portuguesa, proveniente de Goa e evidente, do ponto de vista imagético, como representação mestiça – até ao cume da “civilização”, a Europa e o ocidente, claro está, bem junto ao topo e perto de uma clarabóia retangular (de sentido obviamente moderno, depurado) por onde entra a luz. 212 103 Sobre a avaliação, apenas reiteramos que o processo foi sujeito a alterações porque houve necessidade de evitar plágios em trabalhos e, por conseguinte, passou-se ao modelo de avaliação sumativa com exame de consulta que posteriormente é defendido na oral. Como os alunos não leem as obras213 previamente, o que se tenta fazer durante as aulas é incentivar à participação interrogativa e à construção de um diário de bordo ou memória descritiva de cada aula, que serve como ponto de ligação e de questionamento para a aula posterior. É em tal âmbito que grande parte dos alunos se atém ao valor da palavra escrita que, para eles, tem o estatuto solene de um registo e ganha um valor “civilizacional” maior que a prática oral, uma vez que esta remete para um espaço cultural que, inconscientemente, é considerado menor. Recordemos que nos Balcãs a nação está fortemente ligada à diferenciação linguística, em espírito herderiano, e esta faz-se mediante a solenização sumptuosa da gramática descritiva em detrimento do espaço oral que, muitas vezes, é menosprezado como dialeto, havendo uma significativa solenização fonética do modo como se fala na capital e, portanto, no centro. Quanto aos conteúdos, sem alongamentos às obras dos autores, porque é que a ideia de fronteira desafia leituras teleológicas, positivistas, lineares e românticas da cultura e da literatura portuguesas, enquanto subversão do cânone tradicional? Ela fá-lo porque ela é subalterna, pós-hierárquica, pós-vertical, desconstrutiva, errante e não autoritária. Para o mostrar, começamos normalmente o programa de trabalho através de duas metáforas de modo a reposicionarmos os contextos perante os alunos. E essas metáforas são as da oposição entre o turista e o viajante. O subtexto que pretendemos mostrar é que o turismo supõe uma permanência do efeito “retangular” (ou quadrado) da modernidade214. De certa forma, enquanto o turismo compra lugares com as pessoas lá dentro (e Agualusa menciona isso mesmo num dos textos do programa 215), não procurando a surpresa e apenas a confirmação do “pré-texto”, a viagem é já em si nomadismo como processo de transformação, mudança, imprevisibilidade e desconstrução do tal enquadramento estereotipado. Mia Couto menciona isso, aliás, 213 É evidente que se pode ser mais drástico a este nível. Contudo, no contexto búlgaro, a localização do Leitor é delicada porque ele precisa de negociar permanentemente a sua posição dentro de um sistema que não o vê como um par, mas como um objeto exótico (supostamente típico) que existe como um exemplar etnográfico de uma língua e de uma cultura. Este sentido essencialista joga também com a necessidade de se chamar público para actividades culturais, por exemplo, e acirrar o nível de pressão sobre o aspeto das leituras consistiria em alienar público necessário em contexto de escassez. 214 A ideia de “quadro mundial” em Heidegger. 215 José Eduardo Agualusa (2000: 37) A Substância do Amor, (Lisboa: Dom Quixote). 104 através de expressões como “sonhambulante” e “pensageiro”, ou seja, na nossa leitura, aquele que se mestiça no movimento do sonho e na viagem do pensamento. Nesse sentido, se a viagem é um desafio ao dualismo entre o “eu” e o “outro”, ao contrário do turismo em que se permanece “fora” e “dentro” de retângulos (mencionámos, já, a este propósito, em aula, o filme “Babel” 216, onde esta metáfora da separação é nítida), a viagem é um convite à cultura de fronteira exatamente no sentido da mistura, do estar “entre” lugares, em estatuto de ambiguidade, de negociação que envolve um processo de tradução cultural em plena zona de contacto. Nesses contextos, supera-se o calculismo e o essencialismo em direção à contradição, à perplexidade, ao múltiplo. A viagem constitui, desta forma, a partir do imaginário de cada um217, um intróito existencial. Ela mostra-se subversiva porque é uma proposta de mistura e contaminação, de articulação entre espaços considerados mutuamente exclusivos, como os centros e as periferias. É neste contexto que os conceitos de “mestiçagem” de Freyre e do estar entre “Próspero” e “Caliban” de Sousa Santos se tornam chaves, porque, se Freyre ajudou a explicar as especificidades contextuais do colonialismo no Brasil (apesar de ele idealizar a lascívia patriarcal do seu “português”) como sendo contingentes em relação aos modelos anglófonos, Sousa Santos mostrou que a posição não central que Portugal ocupou no principal momento colonial da Europa (o século XIX) condicionou fortemente o próprio colonialismo português e o mundo pós-colonial saído deste como sendo um mundo de jogos de espelhos onde a ambiguidade é fundamental ao entendimento. O mundo aí criado foi sempre mulato, sempre “cafrializado”, um mundo visto como impuro pela Europa central, incompetente como colonizador e levado ao paroxismo carnavalesco quando as elites mentalmente colonizadas pelos modelos norte-americanos (no Brasil) se lamentavam da herança de “atraso luso”. O atraso perante a “régua” europeia 218, causa da nossa própria cultura de fronteira, transladou-se para as sociedades coloniais, do Brasil à África e à Ásia, e aí se multiplicou em diversas dobras e barroquismos. É curioso, nesse sentido, que Mia Couto remeta – a propósito dos seus usos da 216 Alejandro González Iñárritu, Babel (2006). Estas primeiras aulas, de cariz fortemente interrogativo e crítico, geram sempre bastante espanto pela descoberta, dentro de cada um, do “exótico” visto como impensado. 218 Compreende-se por aqui a ligação desta visão sobre o colonialismo português com a de Sousa Santos apresentada no capítulo anterior sobre a questão da nação em Portugal. Aliás, ele apresenta relatos de viajantes europeus que – na época do “Grand Tour”, ou seja, no mesmo momento em que descobriam o exotismo oriental do “turco cruel” nos Balcãs e nos haréns de Istambul – viam os portugueses como sujos, desorganizados, feios, escuros, lascivos e bárbaros. 217 105 mestiçagem, do viajante entre identidades, do dinamismo miscigenado que encontra nele mesmo – a sua filiação literária ao escritor brasileiro João Guimarães Rosa que, segundo ele, foi também, no modo como inventou uma escrita ambígua e um português “anfíbio”, um tradutor entre os mundos do texto e da palavra. Sousa Santos fala assim de um colonialismo híbrido, não por ser melhor ou pior, mas pela necessidade de negociar a identidade em condições adversas 219. Habitou a fronteira desde muito cedo, fez-se mulato e misturou-se, tornando-se uma espécie de “europeu deficiente” perante a imaginação central que nos definia entre o excesso do que não tinha (um idílio exótico) e a necessidade do que pretendia (uma espécie de selvajaria a necessitar que a regimentassem). Se os portugueses são debochados, possuem o excesso do erotismo, logo, uma espécie de sensualidade pouco civilizada; mas, por outro lado, esta era a visão que os portugueses tinham das mulheres que encontravam no “novo mundo” e, por isso, o seu estatuto intermédio de mestiçagem é que define o seu ser de fronteira enquanto “colonizador colonizado”. Parece-nos claro que este conceito ajuda a perceber a alteridade deste programa de literaturas africanas em relação às visões do “peito ilustre lusitano” que referimos no capítulo anterior e um breve olhar à bibliografia ajuda a cimentar esse diálogo crítico. Não querendo adiantar mais sobre Eduardo Lourenço (o título do livro ajuda a perceber que no nosso programa se pretende mostrar o “fim” do “mito”) e Sousa Santos, mencionado amiúde, António Sousa Ribeiro surge porque é daqueles intelectuais que, no mundo de língua portuguesa, melhor ajuda a perceber o conceito de fronteira como desmontagem de autoritarismos idílicos. O seu texto citado, ajuda a perceber que as identidades fixas e absolutas são, de facto, mitos porque, na realidade, os seres humanos são abertos a fluxos assim como os viajantes ao imprevisto. Só a fronteira permite perceber um modo de comunicação marcado pela “debilidade das hierarquias”220. Mencionemos, também, a este propósito, Miguel Vale de Almeida que nos fala do “Atlântico pardo” (exatamente por diferenciação em relação ao “negro” anglófono de Paul Gilroy), já que ele nos mostra que – no contexto das analíticas póscoloniais – o colonialismo português foi “anacrónico” e “excêntrico”, sendo também paradoxal, já que foi muitas vezes feito por mestiços de África em adenda aos subalternos da Europa. Foi também o mais longo porque perpetuado pelo delírio salazarista. Para Vale de Almeida é essa subalternidade do colonialismo português 219 220 Por exemplo, a falta de gente ou de planificação central. Ver a bibliografia do programa em anexo: Sousa Ribeiro (2001: 470). 106 que explica, por exemplo, que a construção identitária do Brasil tenha uma relação muito próxima com África: uma familiaridade baseada no trânsito “pardo” e na sobrevivência no Brasil de fortes tradições africanas. Uma última referência bibliográfica para Homi Bhabha a propósito do seu texto citado na bibliografia e apenas por curiosidade. Ao falar de ambivalência, de estar “entre” e do jogo entre estereótipo e estigma, pensamos que Bhabha, caso possa ser estendido como ferramenta analítica dos contextos pós-coloniais para os contextos pós-imperiais mais latos, nos ajudaria a perceber os processos de “auto-colonização” de que já falámos. Na realidade, a sua utilização comentada do psicanalista Frantz Fanon ajuda a perceber que o estigma incorpora a marca do estereótipo de modo ambivalente porque, no mesmo momento em que rejeita, aspira. De certa forma, a ambivalência entre o desejo e a repulsa é uma marca não só das heranças coloniais (“pele negra, máscaras brancas”) como das heranças inerentes aos imperialismos cognitivos (em que Walter Mignolo nos ajudaria, porque explica a permanência da lógica da colonialidade para além das colonizações), uma vez que a “imaginação do centro” e a “auto-colonização” são também misturas entre o desespero de “não ser como” e o desejo de “parecer com”. Contudo, esta análise, que seria também importante num alargamento do conceito de fronteira, é demasiado longa para aqui. E) Programa de Poesia Contemporânea Portuguesa Quanto ao programa de “Poesia Contemporânea Portuguesa” 221, ele joga também com uma crítica em relação a processos de análise linear ou de busca de um qualquer “telos” essencialista e finalista. É evidente que os programas de Cultura e Literaturas Africanas contêm uma grelha que depois é desdobrada de modo analítico. Mas ela não se supõe verdadeira e não se assume como sendo mais do que uma convenção epistémica e discursiva possível. Antes de mais, apenas uma idiossincrasia deste programa: ele resulta da realização de um curso eletrónico orientado por Luís Carmelo222. Contudo, ele é depois redimensionado em função da prática docente do nosso contexto e das finalidades para ele já enunciadas. Como se diz no preâmbulo, tendo em conta a finalidade geral do trabalho já mencionada, pretende-se aqui ver o 221 Francisco Nazareth (2008) “Escavar Camadas no Presente: A Poesia Contemporânea Portuguesa Enquanto Espaço e Mundividência” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em anexo: anexo 6. 222 Um dos cursos fornecidos em rede pela plataforma virtual do Instituto Camões. 107 literário como dimensão discursiva do presente em que as “porosidades” culturais são transversais a outras áreas de criação e remetem para “sintomatologias” do espaço e do tempo. A “arte poética” é, desta forma, mergulho no presente da cultura, da contemporaneidade e da internacionalização de contaminações, jogando aí em tensão com tradições, passados míticos e dimensões imaginárias e arquetípicas do mar, do exílio e da partida. É por isso que no plano dos objetivos se pretende abrir da sensibilidade poética para a identidade em tensão entre o global e o local, mobilizando (e contaminando) referências que os alunos tenham de outras áreas. Nesse processo é fundamental a combinatória transversal, de modo a beber, em outros registos culturais, espaços que, pelo registo criativo223, por um lado consolidam algumas referências e, por outro, integram-nas, de modo desmontável, num espaço reflexivo autónomo (onde as referências construídas criativamente vão levar a um texto estranho, outro, prático, intercultural e derivado, em casuística problemática, para um além dos critérios de autoridade que, muitas vezes sem perceberem, os alunos vão pondo em causa). Este avança dados de “cariz axiológico, cognitivo e textual”, que surgem combinados num registo de resistência ao cânone que é já próprio dos estudos culturais. A metodologia explica melhor esta questão, já que os alunos são incitados a criar, a escrever, a meditar e a desconstruir – por uma nova reconstrução (já deles: autónoma) – os textos de partida, apercebendo-se aí de um processo de descoberta que os desloca na direção das suas próprias sombras interiores. Normalmente cada aula supõe um tema organizador que se desdobra por um conjunto de questões iniciais, nas quais não se trata de “dissecar” poesia, mas de levantar temas acentuadamente do presente, integrando neles registos culturais de carácter rizomático (a expressão de Deleuze para as redes) como inserções contextuais ou motes que animam à descoberta. Os alunos dispõem de uma pequena antologia de poetas portugueses atuais (que aparecem citados no programa, tais como Ana Luísa Amaral, Rui Pires Cabral, Vasco Gato ou Carlos Poças Falcão, por exemplo: uma lista completa seria exaustiva) e, tendo em conta a temática de cada sessão, escolhem o poema que acham mais adequado ao espelhamento da problemática levantada (pode, por vezes, ser o mesmo de outras sessões: a polissemia é um convite). Em processo de integração no seu “nicho cultural próprio”, os alunos fazem uma pequena reflexão sobre o poema que escolheram e debatem-no em aula com o professor e com os colegas: sucede muitas 223 E o programa pode ser visto também como um programa de escrita criativa: já lá chegaremos. 108 vezes que dois alunos escolheram o mesmo poema por razões diferentes, o que é interessantíssimo, dado que – muitas vezes de forma desconfortável (o autoritarismo permite comodidade em relação ao ocultar da nossa sombra: a autonomia não) – isso suscita um confronto dialogante com a singularidade. Em seguida, essa escolha fica registada em “diário de bordo” (o mesmo sistema que usamos para o exame de consulta em outras disciplinas) em função do tema organizador, passando-se depois para um espaço de “escrita criativa” no qual a “reescrita dos próprios poemas” leva ao encontro com dois aspetos fundamentais: a surpresa (o texto escrito, fixado, “autorizado” em edição, ao entrar em elisão, mostra que não tem carácter rígido, isto é, apresenta, para pasmo, a possibilidade de o seu critério de verdade ser fluido e fugidio) e o desconforto (a aura do novo texto é outra, isto é, a “identidade” – fixa em registo e confrontada com outras à volta – torna-se problemática, sujeita a contestação, espaço esse que é o da incerteza já que leva ao assumir de uma responsabilidade perante o que é dito no mesmo momento em que esse “dito” é ainda processo de auto compreensão; ou seja, diz-se para se tentar entender, levando à ideia de que o ajustamento perante “verdades outras” é necessário aos nossos próprios processos de auto-construção como seres no mundo). Em outro momento, após a leitura coletiva dos “textos novos”, em que a surpresa e o assombro são “espaços chave” e em que a “tempestade cerebral” em torno dos novos objetos poéticos surgidos procedeu à metamorfose dos alunos numa espécie de “poetas em causa própria” (e em “casa” própria, já que se trata de uma apropriação linguística e cultural), os alunos serão levados a registar essa reflexão “pós-poética” em metadiscurso, pois é uma hermenêutica em causa própria (e em casa). O que é curioso – e o que marca muito os exames finais – é que, aos poucos, mediante o texto poético, estas reflexões vão permitindo aos alunos construir os seus próprios monumentos (que, como é óbvio, são também apócrifos, mas, por outro lado, evidências de singularidades plurais) que, no final, se transformam na sua própria grelha ou rede de significações, dado que, no exame, são confrontados com um texto opinativo sobre estéticas poéticas contemporâneas e são convidados a posicionar-se criticamente perante elas. Assim, a chave de leitura inicial (que é no fundo uma pluralidade, como veremos nos conteúdos), vai sendo substituída aos poucos pelas chaves transversais, que constituirão um texto outro. 109 Penso que teremos já tecido algumas considerações sobre a avaliação na análise da metodologia224 e, por isso, passaremos a uma análise dos conteúdos que, como é óbvio, não necessitam de qualquer análise cumulativa linear, assim como os temas e os autores a eles ligados surgem apenas como sugestões225. Assim, falamos de estilhaços do “presente” porque nele se trata de uma existência agudamente marcada pela ausência de referências estáveis e muitos poetas fazem uma reflexão formal sobre isso. Assim, a melancolia, muitas vezes em conjunto com o agudo sentimento de anonimato urbano, surge combinada com uma ideia de destino que é herança de um peso tradicional, mas misturado com o esgotamento metafísico e salvador que balizava a vida ontológica de um certo passado. Tal processo, inerente às crises contemporâneas das grandes narrativas, remete para uma certa desorientação (formal por orfandade canónica e temática por orfandade de sentido), mas também para um narcisismo paradoxal, baseado num quotidiano de artifícios, cujos indícios nos surgem no texto poético pela integração das linguagens eletrónicas e seus dispositivos. Há também a sensação da diluição, em que a incompletude da identidade pode ser entrevista. A cidade é paisagem quase permanente e ubíqua nestes “novíssimos” poetas. É marcada por rotinas, assume uma atmosfera de cinzentismo e tem um tom de carência trivial, banal, de um tempo em ruínas. Estabelece-se pois uma estética de “vasos comunicantes” em que a forma poética bebe estratégias e imaginários em outras criações e trânsitos onde se insinuam ligações de poder e saber que são ironizadas e deslocadas, remetendo, por isso, para a crise dos modelos canónicos de explicação. Há todo um conjunto de geografias da incerteza, que marca esta poéticas viscerais, instalando-se na subjetividade pelo seu questionar de modelos rígidos, mas também por não ser capaz de pôr outros no seu lugar: o vazio real e a simulação transfiguram-se em queixumes que o discurso deixa entrever, pois no mesmo passo em que se privilegia a ausência de linearidade, instalase uma presença ôntica que, não aceitando apriorismos literários, se sente como que abandonada a um absurdo paradoxal que funciona por canibalização de critérios e ditirambos piadéticos. 224 Este programa ajuda a consolidar o que se disse sobre a combinação entre o “formativo” e o “sumativo”, dado que, sendo o exame final de consulta, supõe materiais de aula que são singulares e não obedecem a qualquer processo monolítico, desde que o rigor exista a nível das citações e da coerência de perspetiva. 225 Exceção feita, e questionável, ao tema onde se inclui o poeta AlBerto, dado que se trata de uma tese nossa. 110 Neste contexto, inclinamo-nos para falar de “microrrealismo”: uma escrita que se assume como menor, que não pretende dizer o ser, que se instala nas pequenas coisas, na insignificância, e em que o texto assume uma confessionalidade precária, um nicho discursivo (paralelo ao confinamento do corpo que vimos no programa de cultura, mas também por nostalgia de tempos mais imaginários que vividos, mais em torno de “vates” míticos e cinemáticos que reais) que é imanência claustrofóbica a um presente no qual o texto é procura, deriva e, com isso, uma espécie de resistência que funciona por testemunho. Neste plano, parece-nos importante mencionar a figura de AlBerto. Tendemos, numa tese que não impomos, a pensar que o seu “vitalismo” desintelectualizado, dando à deriva o estatuto de condição formal do texto por incorporação de um quotidiano feroz, violento, e por uma sensação de ausência de futuro que é próxima do niilismo “punk”, é marca de alguma geração posterior, mesmo a nível ficcional226. O romantismo transformado em raiva e a dilaceração que nega metadiscursos e instala no texto o “rock”, a droga, o sexo, a decadência e a velocidade, surgem como um transe desbragado de um Rimbaud lusitano pósmoderno227 marcado pela solidão, pela doença, pelo abandono. Mas essa esfinge, cujo discurso desarmado se encenou até à desaparição 228, era irónica, ébria, ácida, angústia de uma sombra irreconciliável e vertigem que é impossível hoje não vislumbrar em muitos dos que traçam o filão por ele deixado (como, por exemplo, Rui Pires Cabral ou Vasco Gato). Na impossibilidade do sentido, por vezes o texto poético busca (com uma certa consciência do grotesco) o revivalismo paródico de géneros, não sem uma nostalgia “neo” (barroca, ou romântica) envolvida numa intertextualidade com o filão do tempo, das tradições, e uma gargalhada, já que a “coqueterie” se torna adiamento performativo da ausência229. De facto, quando mergulha no mundo, a arte desmascarao como convenção e artifício; aliás, uma das consciências que este registo poético tem é a da dificuldade de encontrar algo que seja “natural” ou “real”, termos esses que são sempre objetos de suspensão. Nisso, ele passeia-se muito por questões que são levantadas a nível do texto social e antropológico, quer a interrogação seja mais 226 Os casos de Miguel Esteves Cardoso e Pedro Paixão. Ao acabar de escrever isto, tenho dúvidas se aceito esta designação. Contudo, toda a escrita é interrogação e, por vezes, busca paródica de uma confirmação de nós mesmos. 228 Tão bem captada nas fotografias de Paulo Nozolino, que sempre deram capa aos seus livros e que mergulham a sua poética num jogo de diluição de fronteiras em relação à imagem e à performance. 229 Nestas interrogações, a poesia não deixa de se passear por estratégias de mistura com o código de outros géneros de citação, deriva ou reinvenção. 227 111 política (pelo levantamento de questões ligadas ao poder da “multidão” conforme a sua elaboração em Paolo Virno e posterior trabalho de Antonio Negri) quer seja mais ligada à globalização da exclusão em contextos de mobilidade tecnológica (conforme aos estudos de urbanismo, por exemplo de Saskia Sassen), quer seja ainda em torno da impassibilidade do “momento esfíngico” da arte e da performance social do distanciamento (Mario Perniola) ou do simulacro como diferimento permanente da origem (Jean Baudrillard). A nova poesia portuguesa – como Luís Carmelo mostra na sua escrita230 – está consciente destas questões, embora não engajada nelas nos termos do mesmo discurso. Contudo, há a consciência dos dizeres contemporâneos como podendo ser circunstanciais, dado, por exemplo, a presença de estratégias de mercado que, ao rentabilizarem o valor do artístico, esvaziam o seu potencial crítico. Trata-se de aprender o incerto que erra entre o tempo e a geografia, o abandono e a fuga, a autobiografia, o trânsito e a dissipação. Parece por vezes que estamos perante um catastrofismo que o texto insinua como sendo da ordem da alucinação, mas que se torna descontínuo como intrínseco à velocidade que condiz com uma perda de referências, com uma espécie de queixume que parece exigir uma reaprendizagem da lentidão perante um mundo de atomizações: como se as rotinas nos incitassem a redefinir o antigo/moderno “flâneur” como criatividade inacabada, por cumprir, e em que a combinação de registos – por um certo superficialismo – sugere a amnésia e o apagamento. Nesse contexto, a ideia de prótese é fundamental já que a presença do “virtual”, do “hipertexto”, mostra o caráter ausente de um corporal confinado que aponta para o platonismo dos “ciberamantes”, não-lineares, não situados, mas também não “celebratórios” e vivenciados como fugas em deriva. Esta excursão mostra de que forma estas temáticas se cruzam, já que elas têm em comum o apontar do texto poético para um aqui e agora. Remetem para referências bibliográficas que nem sempre são da ordem do literário, já que o próprio Luís Carmelo faz uma remissão constante para fora dessa “órbita”. Apresentemos apenas algumas frases sobre textos escolhidos. Com Marc Augé, tentámos uma referência ao “não-lugar” como esse impessoal e incaracterístico contemporâneo que podendo ser “todos os lados” não é “lado nenhum”. Douglas Rushkoff, por exemplo, fala na “coerção” de muitas estratégias usadas pelo mercado para nos despersonalizar e nos reconstruir como consumidores. O texto de Fernando Pinto do Amaral (ele próprio apresentado como poeta na antologia) é já uma meditação antiga sobre a 230 Ver a bibliografia do programa em anexo. 112 contemporaneidade literária. Leonel Moura vem traçando percursos escritos sobre as nossas formas de vida em termos de desaparição precária. F) Programa de Pensamento Contemporâneo Português Por fim, quanto ao nosso programa de “Pensamento Contemporâneo Português” 231, ele ocupa o último lugar desta apresentação, dado que ele tem um estatuto ambíguo. Na realidade, como o currículo dos alunos de Filologia Portuguesa supõe uma cadeira obrigatória de “Introdução à Filosofia”, para a qual nunca houve professor, o Leitor foi “convidado” a lecioná-la mas, para tal, resolveu – como condição apresentada para a elaboração do programa – conciliar a obrigatória abordagem da tradição filosófica ocidental com uma integração, não só no âmbito português, mas também no da finalidade já apresentada para o projeto de trabalho delineado. Assim, embora o programa tenha um pendor mais canónico, ele não abandona a “problematização crítica”, já que escolhemos um tema organizador que permite não só desmascarar ficções de sentido grandioso na tradição ocidental, como, ainda, integrar o pensamento feito em Portugal (questionando aí, também, mitologias providencialistas) nessa linha quimérica que o ocidente traçou como inerência utópica e que passa também pelo modo como foi entendida a “longa marcha” do progresso, numa leitura que é devedora da ideia de Nietzsche sobre o historicismo, por via do desmascaramento deste como ilusão em Foucault. Assim, a nível dos objetivos, pretende-se mostrar o contacto da “singularização” portuguesa contemporânea com os seus “correlativos” internacionais pela sua integração em “linhas de força” que têm um cariz “histórico”, mas problematizando a “tradição” – por contingências da obrigatoriedade do programa – em função da atualidade que constrói “suplementos” culturais críticos no universo dos alunos, mediante o diálogo com o seu contexto. Pretende-se dar “pertinência” atual às temáticas apresentadas, não num sentido de fechamento num passado amorfo, mas atirando o texto reflexivo para o seio do atual como poder crítico “aglutinador” quanto a competências “reflexivas” num “uso” diverso da língua. 231 Francisco Nazareth (2010) “Lugares de “Nenhures”: Utopismo, Imaginação e Mitologia no Pensamento Contemporâneo Português” (Sófia: Universidade Sveti Kliment Ohridski, Programa), em anexo: anexo 7. 113 O texto filosófico (quando apresentado em trabalho de aula, é-o em função do diálogo, sendo curto, sucinto e enfático, correspondendo ao modelo da pequena citação) é um mote de debate, pois supõe o exercício do pensar e o levantamento de linhas de força em construção argumentativa que leva à consequente elaboração de um “diário de bordo”. Este será matéria, assim como as leituras feitas (poucas, muitas vezes apenas extratos existentes em rede, já que a bibliografia sobre filosofia existente na biblioteca da Filologia Portuguesa é escassa), do exame de consulta para o qual os alunos levam materiais e que, dado o tipo de registo pessoal que incita, supõe a devida singularização do pensar que é também objeto de defesa oral. A nível dos conteúdos, a nossa análise concentra-se aqui no conceito essencial, não o reelaborando em função dos autores, dado que isso suporia um desdobramento extenso dos conteúdos de aula. Os conceitos de “utopia” e “utopismo” que usamos neste programa passeiam-se pelo questionamento das diversas ilusões arquetípicas com as quais a tradição ocidental se essencializou, primeiro, e se racionalizou de modo subjetivado, depois, ou seja, na modernidade, sendo supostamente questionada não só a nível do vitalismo nietzscheano, e da abertura ao pulsional feita por Freud, mas também pela crítica da ligação entre progresso e técnica surgida no mundo do “pós-guerra”. A reflexão portuguesa faz as suas específicas apropriações dessas temáticas, mas redefinindo-as em função de uma influência histórica forte da igreja e de um clericalismo que assumiu o valor de discurso de estado com o salazarismo. Posteriormente, há uma integração do pensar nas linhas de força da reflexão ocidental e o mundo que se abriu após Abril de 74 é fundamental para isso. Contudo, sem entrarmos nos autores e centrando-nos no utopismo, na utopia e na relativização do progresso, vemo-los como filões que sempre marcaram a reflexão ocidental. Essas “essências”, essas “substâncias” esses lugares de “nenhures”, essas visões do “bem”, esses “impérios” (no caso português, o “quinto”) – fossem eles escatológicos, racionais, ou as duas coisas – sempre marcaram a ideia de uma reforma da natureza humana (que nunca se soube muito bem o que era, mas que sempre se tentou definir) à luz de um qualquer predicado quimérico de adestramento em que mais tarde entrou a tecnologia com os seus dispositivos. Tendo o horror da morte em massa criado (posteriormente à descoberta “vital” da nossa infatigável tensão entre construção e destruição) o sinal “distópico” contrário, passou-se depois para reflexões que vieram desmascarar, no nosso mundo contemporâneo, o estatuto desses determinismos como convenções. Dessa forma, abre-se para um pensamento que se 114 vê como inconclusivo e que questiona formas de poder e saber que nos são coercivas como artifícios normalizadores que nada têm de natural. Na realidade, a ideia de que o mundo muda “naturalmente” para melhor pela ação humana, a ideia de que o progresso é inevitável, a ideia de que existe uma linha que nos levará a um qualquer tipo de terra prometida (o céu, a ditadura do proletariado, o império, a eternidade, etc.) é construída ao longo da história da cultura e surge comprometida sempre que confrontada com o seu lado castrador, e destrutivo (é possível, por exemplo, ver que hoje se cria exclusão em função da quimera do mercado livre: as essências mantêm-se vivas nos discursos que circulam). A ideia de que anularemos a história pela descoberta do sentido e que, por isso, nos reconciliaremos com o tempo, de certa forma anulando-o, não é nova. Ela existiu em discursos antigos e permanece entre nós232. Simplesmente ela ganha formas subtis e o mais simples objeto do quotidiano está carregado de utopismo: veja-se como um simples anúncio a um telemóvel nos promete um progresso em relação a algo melhor do que o que temos agora. Ora, é esta fé no sentido da “régua”, este sonho essencialista, esta subjetivação racional antropocêntrica e moderna, que se caracteriza nos autores do programa, em diálogo com a crítica que é feita pela presença dos pensadores da “suspeita” e, no caso português, por exemplo, com Viriato Soromenho-Marques, Eduardo Lourenço ou José Bragança de Miranda. Para tornar mais clara esta crítica questionadora à ideia utopista de progresso (esse salto que anularia o tempo por uma espécie de escatologia onde se inclui – apesar de secularizado – o “olho cosmológico” da modernidade) apenas alguns comentários sobre a bibliografia. O texto de Soromenho-Marques que aparece citado é um conjunto de ensaios onde se questiona a forma como uma certa modernidade saída da fé na razão (que o iluminismo construiu) foi capaz de tornar monstruosa a técnica e atropelar o planeta em termos ecológicos. O texto de José Bragança de Miranda tem como subtítulo “linguagem e violência na cultura contemporânea” e contém, entre outras, uma meditação sobre a omnipresença do terror e outra em que ao conceito de “atualidade” se juntam as problemáticas do presente e da história em diálogo com Foucault. O texto de Fernando Gil pode em 232 Os políticos em campanha, para se fazerem ouvir, usam muitas vezes a dicotomia retórica do “eu” ou o “caos”. Contudo, também se pode dizer que o desafio a este tipo de perspetiva pode ser visto olhando discursos anteriores ao platonismo, vendo no anular do tempo algo próximo ao monismo em Parménides e na aceitação da fugacidade e fluidez incomportável do mesmo algo vizinho ao que se encontra no conceito de mudança em Heraclito. 115 parte ser lido como uma meditação epistemológica sobre o valor do conhecimento de um ponto de vista que inclui a relação entre a evidência, a convicção e a construção. Tentámos por aqui (e fazendo uma síntese ou resumo do que fica dito) apresentar, em diálogo crítico com o que viera de trás, o seguinte: um projeto de trabalho assente numa demonstração das linhas de força da contemporaneidade portuguesa, que passa por uma desmistificação de nacionalismos pomposos; um olhar sobre o cinema como desocultando uma país que muitas vezes desaparece das narrativas celebradoras; um olhar sobre a cultura como estando integrada no momento presente de um ocidente contraditório, como interrogação sobre si mesmo, movimentando, por isso, linhas de força que são, em grande parte, transnacionais; um olhar sobre testemunhos literários “outros” que, a partir do que foi o “império”, escrevem “de volta” mostrando que, se por um lado o “português” nada tem de heroico (como quisera ver a narrativa salazarista), o espaço “pós-colonial” que com ele dialoga vem dizendo como se constrói na língua portuguesa uma idiossincrasia intensamente ambígua; um olhar sobre poéticas do presente que demonstram, a partir de imaginários urbanos, fenómenos de melancolia que são, enquanto espaços singulares de confrontação, modos contemporâneos de dizer que não escapam às linguagens do presente; um olhar sobre as convenções do pensamento ocidental como não sendo mais do que fábulas, muitas vezes perigosas, que marcaram a nossa reflexão sobre a condição contemporânea e às quais o pensamento feito em Portugal não é obviamente imune. Esta excursão é uma excursão de resistência lateral. Pretende mostrar que, nos jogos da verdade, a construção de “objetos outros”, ao desmontar estatutos de convenção, não se pretende necessariamente mais sólida que eles enquanto dispositivo discursivo. Ela é mais uma forma, entre outras, de construção de prismas, apenas não se pretendendo monumental nem tentando apresentar-se, em registo apócrifo, como única. Conclusão Tentámos, mediante o que fica dito, e na senda da demonstração da monumentalidade apócrifa, traçar uma linha que liga a análise do discurso em Foucault ao nacionalismo. Passa depois à nossa noção de currículo oculto, remetendo em seguida para a historiografia búlgara e seus valores, assim como para a sua crítica. Entra em seguida na recuperação axiológica dos valores filogenéticos da monumentalidade apócrifa búlgara mediante a sua recapitulação ontogenética em currículos de literatura e 116 “civilização” portuguesas. Apresenta suspeitas sobre a ideia de nação em Portugal entre historiadores, antropólogos e sociólogos que remetem certos tópicos para delírios derivados da narrativa de poder salazarista. Vai depois na direção da apresentação de programas que, entrando em diálogo resistente com o que fica apresentado – e tentando dar uma imagem contemporânea e arejada de Portugal e da sua cultura como estando integrados em circuitos transnacionais de referência que nada têm de exclusivista – mostram que é possível ver vários outros espaços portugueses – e de língua portuguesa - que andam afastados dos discursos da grandiloquência exaltadora e delirante. Com o que fica dito, fomos tentando demonstrar o seguinte: 1 – O trabalho de Foucault é essencial para se perceber que não existe uma adequação absoluta entre linguagem e real, no sentido de uma verdade positiva e cumulativa. 2 – A história não é uma marcha linear de qualquer tipo de espírito essencial ou primordial, que permaneceria incólume e substancial: tal metafísica suporia algo de anterior ao tempo. 3 – O sujeito não é algo estável e exterior aos discursos que o formam: ele é crivado por espaços de enunciação que se referem a contextos espaciais e temporais e que o fazem falar dentro deles. 4 – Esses discursos que o formam são regimes de verdade, estabelecidos na relação entre dispositivos de poder e configurações de saber. 5 – O nacionalismo desdobra-se desta forma, no contexto da modernidade industrializada e capitalista, mediante uma disseminação tecnológica e propagandeada da escrita e de combinatórias entre a “ilustração” e o romantismo, que enformam currículos ocultos inerentes à escolarização normativa. 6 – A autointerpretação histórica e literária da mitologia de coesão búlgara passa por aqui como máquina mitológica de reconversão da retórica nacional em discurso hegemónico. 7 – Mesmo na Bulgária existem discursos divergentes que resistem a este modelo e que o mostram como uma forma “auto-colonizada” de lidar com uma suposta “treva” otomana, mediante a criação de um registo solene (monumental) e indiscutível (apesar de apócrifo). 8 – As leituras curriculares de Portugal, da literatura portuguesa e da “civilização” portuguesa recapitulam na ontogenia dos alunos um horizonte de expectativas que é dogmático e que encaixa de forma acrítica na sua filogenia histórica e literária nacional. 9 – Para encontrar um tal conjunto discursivo de arcaísmos rústicos, imperiais e solenes sobre o peito ilustre lusitano é preciso, em Portugal, regressar ao registo salazarista. 10 – Em Portugal a nação é tudo menos um referente absoluto e consensual, apesar da longevidade do espaço territorial. 11 - A 117 construção da nação é, quando muito, da ordem do processual e ver Portugal como um destino mítico é da ordem do psicanalítico e da ilusão que o imagina como centro. 12 – É possível apresentar uma versão divergente sobre Portugal, os portugueses e mesmo o modo como os espaços pós-imperiais e pós-coloniais estão a lidar com a língua e com as culturas que nela se expressam; a serenidade divergente em diálogo resistente com a solenidade delirante é, por isso, um convite a uma visão aberta sobre espaços e tempos em transformação permanente. Os pontos aqui apresentados não constituem de modo algum um fechamento, mas um convite à continuação do filão por eles abertos, já que levantam bastantes questões. Até onde vai o desejo de mudança dos alunos, isto é, onde começa a sua capacidade para pôr em causa a solenidade escrita e central em nome de uma divergência oral e periférica, enquanto metáforas da colocação do saber em circulação? Quais são os referenciais da monumentalidade apócrifa búlgara que se aproximam dos vizinhos balcânicos, nomeadamente em espaços da antiga Jugoslávia, e em quais diferem, sobretudo tendo em conta que as experiências contemporâneas são por demais diferentes? Em que aspetos a visão de Portugal como arauto civilizacional não constituirá uma sublimação do inconsciente coletivo imperial marcado por ideias imperiais irredentistas e herdeiras das mitologias de perenidade criadas pelo século XIX e a sua máquina de reprodução de imaginários? De que forma insistir em mostrar visões divergentes de Portugal, dos portugueses e da sua criação literária e cultural que desconstruam complexos passadistas e fechados? Pontos a ter em conta numa investigação e num trabalho de campo, nomeadamente exercendo as funções de Leitor de Língua e Cultura Portuguesas, que queremos, como é óbvio, continuar. Tendo, aliás, a motivação principal deste trabalho sido de ordem profissional, nomeadamente ligada ao ensino de cultura portuguesa para estrangeiros, o escopo a ela ligado cresceu bastante tendo em conta, não só a experiência docente, mas toda uma cartografia de aprendizagens que constitui a experiência de vida docente – e não só, uma vez que remete para um diário interior de viagens e, ainda, para apontamentos, imagens e leituras a elas ligados – no estrangeiro, nomeadamente numa região tão específica como são os Balcãs e num lugar – ainda mais específico – como aquele que a Bulgária ocupa, enquanto espaço e território, dentro da dinâmica geral da região, o que, como se torna claro a partir da abordagem efetuada, os currículos de aprendizagem literária e historiográfica refletem (sendo também clara a resistência a isso). Estamos, por isso, em crer que este trabalho é apenas um primeiro 118 momento motivacional de um “trabalho em progresso” que remeterá para sintomáticas narratologias referentes à nação enquanto espaço discursivo de cariz antropológico, sociológico e historiográfico, construído a partir do olhar que vem de fora e é incorporado e interiorizado como próprio, imaginativamente central e “autocolonizado”. Estamos convictos, aliás, que os Balcãs e a Ibéria possuem essa matriz de regiões de fronteira onde eventuais ambiguidades podem crescer de modo curioso: talvez como uma “Eurásia” e uma “Afropa” em diálogo “semi-periférico” que gostaremos de continuar a explorar enquanto filões intelectuais. Referências Citadas Agualusa, José Eduardo (2000) A Substância do Amor, Lisboa: Dom Quixote. Albuquerque, José Lindomar (2010), “As Fronteiras Ibero-Americanas na Obra de Sérgio Buarque de Holanda”, Análise Social Vol. XIV (195), Lisboa: I.C.S.U.L., pp. 329-351. 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