COSMOS:NAVEGAR
NINA
ORTHOF
COSMOS:NAVEGAR
IdA/PPG-Artes Visuais | Poéticas Contemporâneas
orientação cardeal: Profª Drª Karina Dias
lampejos por Nina Orthof
1º de abril de 2016
15º45’56.22’’S 47º52’13.58’’O
P
L
A
N
O
C A R T AS
lugar
10
IGNIÇÃO
lugar
15
COORDENADAS
lugar
140
BIBLIOTECA
lugar
144
DISTÂNCIAS IMAGINÁRIAS
lampejo 1 [partida]
lampejo 2 [ar como imensidão]
lugar
lugar
19
36
lugar
lugar
61
104
lampejo 5 [mágica e ilusionismo] lugar
lampejo 6 [compasso]
lugar
111
128
ÓRBITAS
lampejo 3 [hangar]
lampejo 4 [científica ficção]
MEDIDAS IMPOSSÍVEIS
DESACOPLAR
lampejo 7 [elegante errância]
lugar
130
Dedico este livro às minhas avós,
que escreveram cadernos de viagem
e histórias entre a Rua Terezina e a
Nebulosa Petrópolis.
C A R T A S
CARTAS
Cartas distribuídas sobre o feltro verde musgo. Em
outra sala de jogos, um senhor desenha seu próprio
baralho.
Jogador; refém; enigma; relógio solar; calendário
lunar; bordas arredondadas; furacão; episódios;
correio pneumático; estações; Hubble; ímã; cruzeiro;
bobo; compasso; espuma; protótipo; fitas; fóssil;
espadas.
O sol intercalado com a lua, muda durante aquele
dia. A lua, intercalada com o sol, muda a cada sete
dias. A luz de um determina a estação do outro.
Ambos giram. O traslado do sol nos orienta o tempo
de um dia. A lua muda e nos orienta o mês. A terra
roda e as costas golpeiam o lago.
Apalpo o bolso e encontro um caderno escrito à
lápis, algumas notações ainda legíveis. Enquanto
o caderno que cabe na palma da minha mão seca,
escrevo.
Reconheço e agradeço, publicamente, às instituições burocráticas necessárias. Principalmente,
lugar
10
agradeço alegre e afetuosamente às pessoas queridas que participam do percurso e do projeto desta
dissertação. Com as quais rumei outros caminhos,
onde me perdi em mar aberto e deserto estrelado.
um brinde!
lugar
11
1
lugar
12
RESUMO
Procurando combinar os cadernos de viagem e
a escrita, o trabalho reflete sobre a minha prática
artística - em movimento, na imobilidade e no entremeio. Em percursos terrestres, aquáticos, no espaço
sideral ou no próprio trabalho. O texto levanta
reflexões poéticas acerca de conceitos como: imensidão, navegar e cosmos. Estilo de escrita, formato
e conteúdo foram considerados para configurar uma
estrutura que constitua outra dimensão do trabalho
artístico. Os trabalhos podem ser encontrados no
seguinte endereço eletrônico: www.ninaorthof.com
Palavras-Chave: Cosmos; Navegar; Poética; Processo; Vídeo; Distâncias imaginárias; Medidas impossíveis; Órbitas; Desacoplar; Viagem.
ABSTRACT
As it merges travel journeys and writing, this work
reflects upon my artistic practice – in movement, in
stillness, in between – either on terrestrial, aquatic
or outer space courses and in the artwork itself. The
text brings about poetic reflections on: wideness,
navigation and cosmos. Writing style, format and
content is aimed to structure yet another dimension to the artistic work.Works can be found on the
following webpage: www.ninaorthof.com
Keywords: Cosmos; Navigation; Poetics; Process;
Video; Imaginary distance; Impossible measures;
Orbits; Detach; Travel.
IGNIÇÃO
IGNIÇÃO
Agora que da modernidade e de suas fúlgidas
construções – de sujeito e de estado – restam fragmentos flutuantes; agora que as bússolas e as velhas
rotas depuseram suas pretensões; agora que não há
mais mensurações utilizáveis nem metas preestabelecidas onde ancorar, o sentido da presença humana
no mundo reaparece em sua natureza originária.
Inscrita na própria viagem. (Mauro Maldonato, A subversão
do ser, p.189)
Uma letra após a outra, as palavras para existirem
precisam caminhar. Quem escreve move os dedos
de uma tecla à outra ou arrasta o grafite no papel.
As viagens começam e terminam pequenas, partem
daqui para acolá.
O traslado de dedos desenha no espaço órbitas
fugidias, pausas inconstantes e a pulsação de quem
escreve. Em algum momento não é mais possível
distinguir se o dedo indica a ideia, se o lápis cria
paisagem ou se o ímpeto da navegação convoca a
todos os anteriores.
lugar
16
IGNIÇÃO
Aperto um pouco os olhos e as frases que acabo de
escrever se modificam em linhas pretas e lacunas
razoavelmente constantes. Percorro esses meridianos e percebo um pequeno caderno com latitude e
longitude. Esse é um caderno-mapa com anotações
à beira-mundo.
São histórias, percursos, trabalhos e lampejos.
Meditações sobre processos, projetos e pensamentos que transformam-se na própria escrita onde se
desembainha uma letra após a outra.
lugar
17
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S
PAR T ID A
A R CO M O I M E N S I DÃ O
lugar
18
LAMPEJO 1
PA R T I D A
Navega em um lago que não existia, em uma cidade
que foi inventada. (Chico Amaral; projeto de apresentação da galeria Paradigma em Barcelona – faz
referência ao barco que levava o mesmo nome e era
velejado em Brasília pela autora).
Noite. Do outro lado da janela, luz vermelha acende
e apaga. Sinaliza para as naves aéreas o limite inventado da terra. O vermelho surge e se dissipa em
noite, embala. A luz percorre entre os vapores do
mundo. A oscilação luminosa permite os traslados
entre o espaço interno e o espaço externo. Ressoa
como uma cosmografia que se desmancha. O sangue procura a superfície das veias, o vento frio entra
e suspende as vestes, a pequena gravidade invade e
destapa o tempo.
Acelero rumo aos navegantes celestes e me infiltro
em suas rotas, sequestro seus portos. Navegantes
celestes não sabem, estou em fluxo com eles. Margeio rotas de viajantes anteriores e dos que estão
lugar
19
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 1 [ PA R T I D A ]
por vir. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não
tem lugar, mas é dele que saem e se irradiam todos
os lugares possíveis (Michel Foucault, O corpo heterotópico,
as heterotopias, p.14). Dentro do barco observo um antigo espetáculo, a terra firme emerge à pleno oceano.
Um vento passa.
Escuto os navios apitarem, os vapores rondarem
a enseada, mesclam-se à neblina matinal. Sons,
ruídos, catracas, cabos e cordas. Sinais, despedidas,
movimentos ariscos, saudade e neblina.
lugar
20
2
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 1 [ PA R T I D A ]
O mar está bonito, amplo. Amanhã se desdobrará
em oceano. Hoje, ainda não. Amanhã, amanhã...
palavra precisa, móvel, portátil e imensa; morada de
todos os sonhos. Navegar torna-se viável graças à
existência desse lugar-amanhã, localizado no próprio
devir.
Para começar, é a noite que nos oferece generosamente os caminhos. Navegar aqui não se faz pela
visão, mas, pelo olfato, tato, paladar e a escuta. A
visão atualiza os sentidos em uma imagem que escapa, desacopla, vagueia e retorna. Os olhos abertos
como escotilhas para acolher os corpos celestes.
Esses que entram pelo olho direito e são lançados
simultaneamente pelo olho esquerdo.
As pestanas seladas como manto. Deixar que a visão
não solucione o mundo tampouco enfraqueça sua
imagem vertiginosa por um breve e fresco momento. Atrás dos olhos escondidos o mundo reverbera
livremente e a gravidade, imensa correnteza, coloca
cada coisa em algum lugar.
Não distante dos primeiros cientistas que se
lugar
24
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 1 [ PA R T I D A ]
dispunham a observar, anotar e transformar o que
haviam compreendido em ferramentas e mecanismos mentais. Procuro navegar próximo às suas
rotas, estas, que despontam da escala humana. Este
caderno-mapa se apresenta em quatro instâncias,
sete lampejos e alguns lugares.
lugar
25
3
Trabalho com vídeo. Essa palavra [vídeo] resolvia a
maior parte das questões:
¬ Você grava eventos também?
¬ Sim.
Conversa sossega e o fluxo cotidiano é retomado.
O vídeo é muito importante. Mais importante ainda
era a corpulência da câmera. Desejei aquele objeto.
Botões, anéis, lentes-lunetas e seus maravilhosos
ruídos. Algo da ordem da mecânica e engrenagem
me encantava para lá. Iguaria analógica.
lugar
27
4
lugar
28
lugar
29
lugar
30
lugar
31
lugar
32
lugar
33
lugar
34
a câmera.
Quando seguro a câmera meu corpo se transforma
e, imediatamente, estou em outra posição. O instante se bifurca, ganha uma ramificação ali e estou
no mundo a partir de outro lugar. O corpo se molda
porque a câmera é um objeto que, em sua dureza,
me dobra. Não qualquer câmera, a câmera certa.
O corpo se encaixa no mundo e o pensamento se
afia a partir dessa câmera. Assim, navego junto aos
luthiers, os mestres de cutelaria e os exímios espadachins. As coisas precisam da têmpera adequada
para existir nesse planeta.
lugar
35
LAMPEJO 2
AR COMO IMENSIDÃO
Imensidões são lugares, dispositivos, gatilhos, catapultas que me iniciam desde que tenho memória.
Respiração. A maré dentro da barriga, o corpo solto
sobre ela. Um morno flutuar no espaço.
respirar; nenhuma preocupação.
Primeira imensidão; um murmúrio tátil. Ao redor da
barriga, abaixo do céu, acima da terra. No interior,
separados por fina membrana; no exterior, também.
Caminhar separados e unidos pelo ar.
lugar
36
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
A I R TA L K
It’s sad that the air is the only
thing we share.
No matter how close we get to each other,
there is always air between us.
It’s also nice that we share the air.
No matter how far apart we are,
The air links us.
É triste como o ar é
a única coisa que compartilhamos.
Não importa o quanto nos aproximamos,
Sempre existe ar entre nós.
também é agradável que compartilhamos o ar.
Não importa o quão distante estivermos,
O ar nos conecta.
Yoko Ono, Air Talk, 1967
lugar
37
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
A curiosidade sobre a terra firme é propulsão da
expedição. A firmeza é uma ilha, um continente (grande ilha) ou um planeta (ilha maior ainda).
Sinal de esperança por oferecer a possibilidade do
repouso, de baixar a guarda, descansar do movimento. A glória da preguiça. Espreguiçar e tornar-se
imóvel, oscilar entre ambos. Deixar de nos sentirmos
esmagados por ambas imensidões azuis. Não é fácil
esticar o céu da terra. Separamos, dividimos, assim
organizamos o que é uno. Criamos atlas, viramos
Atlas.
lugar
38
5
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
lugar
39
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
lugar
40
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
lugar
41
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Um jovem cadáver surge na ilha, sua tez azulando...
Azul é também a cor da morte. Estamos cercados
de uma outra imensidão. A morte é azul antes de
escurecer. Como as águas profundas que são azuis
em superfície e se anuviam a cada légua submersa.
O azul do céu diurno enoitece em passagem para
cosmos. Azul e preto rondam esse planeta.
esses rompe-cabeças milenares.
Primeiro, circunvagar.
Não me refiro mais às embarcações, mas ao movimento-ar que acompanha o humano em todas
as instâncias, até à última. Vamos para fora da
estratosfera, para as profundezas das águas. O ar
nos acompanha em portáteis compartimentos para
viagem, quase sempre cilíndricos. Respirar todos os
dias, a vida inteira e, ao aterrissar na própria sombra,
despir-se de mundo com um derradeiro suspiro.
Afinal, quem morre ao dar seu último respiro? Com
certeza não somos seres celestes (como os pássaros), seríamos seres aéreos?
Pássaros. Restos de bandeiras e o vento que paneja
o triângulo branco. Céu: 180º; vertical. Continente:
lugar
42
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
à deriva; em suspensão. Água sustenta terra. Terra
acolhe olhar. Nenhum sal; nenhum peixe. Distâncias
imprecisas. Rajadas ensurdecedoras. Lago murmurante. Vento afoito. Vento bestial. Vento caolho.
Água tateando o barco; tranquilidade. Primeira
instrução: Trasladar a testa suavemente; localizar o
quadrante em que se escuta o som do vento ressoar em ambas orelhas; notar o ponto cardeal que
registra as circunstâncias almejadas. Caso não saiba
exatamente qual som procurar, basta colocar um
copo de circunferência suficiente para abraçar sua
orelha, o som produzido aí é similar ao que estamos
buscando nessa pequena viagem ao olho do vento.
O olho do vento é uma expressão utilizada por
velejadores referente à direção do vento. É curioso
notar que ele não descende dos céus, tampouco se
origina do subterrâneo. Logo, basta girar a cabeça
acompanhando o cinturão do mundo e quando o
som abafado do vento circundar ambas orelhas, o
olho do vento está engatado adiante.
Nesse momento, podemos direcionar a proa do
barco ou o coração no peito para lá e, por mais forte
que o vento esteja, as velas se aquietarão nesse
lugar
43
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
momento, reverenciando sua presença diante do
olho do vento.
Nos encontramos. Ele me olha por uma duração
de duas ou três bigornas. O barco estaciona em
posição Lago Profundo. LONGITUDE: submerso e
distraído; LATITUDE: aproximação e deslocamento.
Estou satisfeita. A busca do vento pela escuta é
encantadora porque o âmbito que se cria ali é o
mesmo do olhar para a fogueira. Latência do espaço
e respiração sintonizadas. Em um instante, espreitar
a imensidão.
É importante aterrissar; é favorável não tocar o chão.
lugar
44
6
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
lugar
45
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
lugar
46
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
lugar
47
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Manhã.
Empurrar o barco para a água. Ignorar a insistência
das pessoas relatarem o óbvio, não há vento. Empurrar o barco para a água. Deitar na proa do barco
e remar com os braços para longe do píer. Barco
como casa para o devir. A possibilidade de descansar em suspensão. Uma variação da rede que, amarrada entre dois portos, suspende o voo. O barco,
desatado sobre água, ensina a navegar. Velejando,
aprendi a estar à deriva. Estado bambo do tempo.
O barco arrastado pela superfície da água em velocidade mínima. Uma pequeníssima navegação. Barco
enquanto sistema de suspensão, enquanto não
consigo entrar em uma nave espacial e experimentar
a gravidade zero e reconhecer outros movimentos
mínimos. Envelopar-se na vela e observar a água.
Soltar ambos. 4 da manhã. Noite e dia coabitam.
lugar
48
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Voltar para a terra. Continuar a expirar e inspirar lentamente. Pés sobre o chão. Pés menos firmes devido
ao balanço da água. Perceber o ar passando entre
as vestes e o corpo. Transpor o horizonte do globo
da terra para os globos dos olhos. Não suspender
a respiração lenta, ralentar ainda mais. Sentir o ar
debaixo dos pés. Voltar a flutuar. Embarcar.
lugar
49
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
E depois, de tempos em tempos, a gaivota branca,
a que é como um príncipe do mar, vem voar perto
de Lalla, traça grandes círculos acima das dunas,
como se a houvesse reconhecido. Lalla lhe faz sinais
com os braços, tenta chamá-la, procura todos os
nomes, na esperança de dizer o verdadeiro, aquele
que, talvez, lhe devolva sua forma primitiva, que
fará aparecer no meio da espuma o príncipe do mar
de cabelos de luz, de olhos brilhantes como chamas.
- Souleiman! Moumine! Daniel!
Mas a grande gaivota branca continua a girar no
céu, na direção do mar, roçando as ondas com a
ponta da asa, seu olho duro fixo na silhueta de Lalla,
sem responder. Por vezes, porque está um pouco
despeitada, Lalla corre atrás das gaivotas, agitando
os braços, e grita nomes ao acaso, para irritar aquele que é o príncipe do mar:
- Frangos! Pardais! Pombinhos!
lugar
50
E até:
- Gaviões! Abutres! Porque são pássaros de que as
gaivotas não gostam. Mas ele, o pássaro branco,
que não tem nome, continua seu voo muito lento,
indiferente, afasta-se ao longo da margem, plano no
vento leste, e por mais que Lalla corra na areia dura
da praia, não consegue alcançá-lo.
Ele se vai, desliza no meio dos outros pássaros ao
longo da espuma, ele se vai, logo não são mais que
imperceptíveis pontos que se fundem no azul do
céu e do mar. (Le Clézio, Deserto, p. 146).
Assim como Lalla no deserto, encontrar e perder sumariamente um senso de fraternidade na imensidão
animal. Percebo que não posso ser amiga da imensidão e, ao mesmo tempo, não posso abandoná-la
(ela não me abandona). Existe uma ética selvagem e
Albert Camus é certeiro ao escrever, a intimidade de
dois adversários, e não o abandono de dois amigos (A. Camus, A Esperança do Mundo, p. 51). Continuamos
criando mapas e atlas, sonhando outras ilhas-planeta
e cruzando miragens no deserto negro.
lugar
51
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
A partir da Terra observamos o cosmos, dele buscamos a Terra entre desenhos oculares. O que são os
olhos senão pequenos satélites que inscrevem no
mundo órbitas infinitas, horizontes resplandecentes.
Nota-se a harmonia inaugurada entre o devir dos
planetas. Acordo entre corpos celestes.
Éter.
Associado ao signo do divino e afasta-se da condição mundana. Seria por sua invisibilidade? O
tremor da terra é invisível, assim como as forças que
atritam as placas tectônicas, atiçam areias movediças
e os tsunamis. Seria diferente do ar que podemos
perceber no movimento primário da respiração? Ou
no vento, detectável a partir de árvores, nuvens e
poeira?
Não me afasta do pensamento que o ar é uma
imensidão invisível, movida pelo invisível, de natureza invisível e detectável mediante sua impressão
lugar
52
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
no mundo. Mergulhamos a fundo nos oceanos ou
dobramos a estratosfera. Levamos o ar conosco, em
pequenos compartimentos, em nossas cascas de tartaruga. O ar é nossa morada no mundo? O que nos
conecta ao mundo não é a terra, mas o ar. Somos
seres aéreos? Descubro em enciclopédias médicas
que mais da metade do corpo humano é composto
por oxigênio. Seres aéreos.
Ergo um braço, ao final dele, uma laranja na palma
da minha mão. Arrasto a laranja sobre o céu até
encaixá-la sobre o sol, eclipse. Bebo seu suco mais
tarde. Em época onde o universo é imenso, não
somos o centro e a natureza nos ultrapassa claramente, enaltecemos o pior sentido dos signos de
duração e tamanho. O universo é grande demais,
logo, sou insignificante. Essas afirmações que insistem desconsideram a força do devaneio e a própria
esperança do mundo.
Talvez a navegação tenha surgido após a invenção
do tempo. Aqui há perigo. Navegação e porto nasceram gêmeos?
importam as distâncias?
lugar
53
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Abro os olhos novamente, o céu está sem estrelas.
Parece uma casa sem teto. Percebo o cosmos mais
próximo, escuro, poderoso, amedrontador, esperançoso. O cosmos se fez jardim.
Existe um arranjo cósmico nesse sentido, não somos
menores ou maiores que a lua, somos do mesmo
tamanho, maiores e menores. Somos ao mesmo
tempo e nos desdobramos simultaneamente em inúmeros lugares. Perceber o mundo é navegar junto
ao cosmos. COSMOS : NAVEGAR
Próximo à Marte, olhando a sombra deslizar para
trás da Terra consecutivamente. Farol-Terra. Pensar a
viagem ao cosmos é pensar a face mais sombreada
das viagens. A nave que segue para descobrir as
profundezas do cosmos é sustentada pela sombra
das estrelas. Uma ideia de distância entre a nave e o
farol-Terra coordena a navegação.
Escutar “Terra a vista”! e notar a redoma apoiada
sobre o negrume.
lugar
54
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Trajetos.
As imensidões: desertos, oceanos, florestas e o
espaço sideral são motivadores de reflexões e
pensamentos. O cosmos como imensidade que
contém todas as outras imensidões é particularmente instigante. Um espaço onde precisa-se inventar
quase tudo para iniciar sua investigação. Roupas,
alimento, veículos, ética, etc. Como é misterioso e
presente, basta elevar os olhos. Por ser longínquo,
nos acompanha e por ser antigo, nos situa.
Agora, uma anedota:
Certa vez um homem do futuro encontrou um
homem do passado. O viajante do tempo contou ao
homem do século XIX:
- De onde eu venho, viajamos em aviões que são
máquinas que nos fazem atravessar o planeta inteiro
em um dia. As viagens de navio que demoram seis
meses, com os aviões demoram cerca de três horas.
- E o que vocês fazem com o resto do tempo que
sobrou?
lugar
55
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Fim da anedota.
Essa é uma piada que me foi contada repetidas
vezes durante a infância. Ao final, meu avô soltava
gaitadas em alto e bom som. Para mim, ressoava... difícil. Mais adiante, ele sacava sua máquina
Olympus automática de filme, comprada em certa
ocasião no Japão (essa é outra história), e tirava uma
foto. Sempre em plano geral, para todos caberem
na foto. Nós três e o espaço ao redor.
Não sei o que fazemos com o tempo que nos resta.
O durante tem se esvaído, o entrementes é curto e
o deslocamento deixa de fazer parte da viagem. A
viagem pode desaparecer?
Aqui há
perigo.
Nunca consegui rir dessa piada porque ela me
apavorava.
Mais tarde, comecei a exercitar o que seria uma
célebre frase para mim: “vou ali”. “Ali para onde”?
(célebre resposta). Ali, sair. Ali era o percurso. Eram
lugar
56
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
ensaios íntimos e solitários sobre a viagem. Precisava demorar-me por ali, estar a caminho de lugar
algum.
O fim era mesmo o começo. Descobria então que
os viajantes têm um pensamento rodopiante, como
os chineses, basta observar uma partida de xiangqi (xadrez chinês). Somente um povo espiralado
poderia elaborar um jogo assim, onde, para alcançar
seu objetivo, uma construção de movimentos não
cartesianos precisa ser arquitetada. Sair em busca de
algo, como um caçador que se depara com o meio
do caminho e percebe que esqueceu sua arma de
propósito. Assim, desata certas metas e faz furos no
ordinário.
Trinta minutos de caminhadas por dia são recomendados.
- Eu te levo.
- Outro dia.
lugar
57
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
Outra anedota:
Antônia era o nome da governanta que trabalhava
na casa desse mesmo avô. Certa vez, compraram
uma passagem de avião para que ela pudesse visitar
seus parentes, sentido Nordeste. Ao voltar, meu avô
foi buscá-la no aeroporto e lhe perguntou o que ela
tinha achado de voar.
¬ Voar?!
Sim. - respondeu o avô - Você viajou de avião, o que
achou?
Voar?! - Repetia Antônia sem acreditar nas palavras
que ela mesma proferia - Pensei que estava vendo
umas formiguinhas lá no chão, eram casas e carros?
¬ Ai, minha nossa senhora!
Antônia foi ao espaço aeronáutico ou viajou por uma
estrada cheia de formigas? Ambos. Não é fácil viajar
de maneira distinta da qual Antônia viajou. Não é fácil viajar; é muito fácil viajar. A viagem que se deseja
como o fogo que consome e é consumido pelo ar.
Imensidões em auto (e alta) combustão, acontecem
antes da partida, simultânea e irreverente. Ali, onde
o tempo se perde.
lugar
58
D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ]
A imensidão atrás de nossas retinas conta histórias sobre o que somos e o que não somos. Nela
reconhecemos algo nosso, talvez uma lembrança
do fogo dos fogos. Um pouco desconfortável tanto
quanto a gravidade que nos impede de alçar voo. É
tão reconfortante saber que a gravidade nos permite
colocar os pés no chão.
Vaguear o chão e dissipar a superfície do mundo.
No filme Relatos Selvagens (Damián Szifron, 2014), assistimos pequenos contos sobre o momento em que a
besta rompe o esquadrinhar do mundo e torce todas as linhas. Algo da mesma ordem do movimento
dos terremotos, tsunamis, movimentos tectônicos,
furacões e sonhos. Quem pode segurar os sonhos?
Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque
enquanto os homens dormiam, a terra se movia
espaços e tempos afora. Quando despertavam, os
habitantes olhavam um novo rosto da paisagem e
sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia dos sonhos (Mia Couto, Crença dos
habitantes de Matimati. Terra Sonâmbula, p. 1).
lugar
59
Ó R B I TA S
HANGAR
CIENTÍFICA FICÇÃO
LAMPEJO 3
HANGAR
O essencial: Não se perder e não perder o que, de
si mesmo, dorme no mundo. (A. Camus, A Esperança
do Mundo, p. 28). Tampouco evitar, taciturnamente, a
deriva.
lugar
61
7
8
9
lugar
64
10
lugar
65
11
12
lugar
67
lugar
68
13
14
lugar
69
15
16
17
lugar
70
18
lugar
71
lugar
72
19
lugar
73
20
21
lugar
74
22
23
lugar
76
24
lugar
77
25
lugar
78
26
lugar
79
27
lugar
80
28
lugar
81
lugar
82
29
30
lugar
83
lugar
84
31
32
lugar
85
33
lugar
86
34
lugar
87
lugar
88
35
36
lugar
89
lugar
90
37
38
lugar
91
39
lugar
92
40
lugar
93
lugar
94
41
lugar
95
42
43
lugar
96
lugar
97
44
45
lugar
98
46
lugar
99
47
lugar
100
48
lugar
101
49
lugar
102
50
lugar
103
51
lugar
104
52
lugar
105
LAMPEJO 4
CIENTÍFICA FICÇÃO
No fundo, a organização do universo é um assunto
de galões militares, e o informe assusta (precisamente) porque não sabemos se havemos de lhe dar
ordens ou obedecer.
Mas falemos ainda, Bloom, da ironia que muito
aplicaremos. De que forma a catástrofe traz perturbações ao velho método de aplicar uma distância ao
mundo? (Gonçalo Tavares, Uma viagem à Índia, No 24)
lugar
106
53
Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ]
I grew up in a world held together with string and
brown paper and sealing wax. And that’s
how
it was. I slowly realized that this is the underlying
condition of the world and there’s nothing I like
more then, for example, there’s been a near disaster at NASA and they say “If it hadn’t been for the
chewing gum...”
Eu cresci em um mundo que se mantinha coeso com
barbante e papel marrom e cera para lacre. E assim
era. Aos poucos, descobri que essa é a condição
subjacente do mundo e não há nada que eu goste
mais do que quando, por exemplo, quase houve
um desastre na NASA e eles dizem “Se não fosse
por aquele chiclete...”
lugar
108
Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ]
Richard Wentworth faz emergir o sabor de um
universo urbano e primitivo. Tudo parte de um
ajambrado de matérias, garatujas sobre papel que
se transformam em ideias subversivas, medíocres ou
revolucionárias. Mescla entre o ruído do mundo e
aquilo que surge entre devaneio e pensamento.
Aqui há
sorte.
A gravidade nunca me pareceu muito natural. Olho
para cima, especialmente em dias em que a lua
surge em céu de brigadeiro. Uma brisa vagueia a
face lunar, a fragilidade do ar que envolve o planeta
salta ao coração.
Parque de diversões; um brinquedo: Kamikaze. A
cada giro, uma intensidade de aceleração. A cada
aceleração, o corpo adere mais ao brinquedo. Ao
me dar conta do movimento orbital do planeta, o
mesmo efeito ocorre. A gravidade torna-se voraz
e agarra com mais força do que nunca. Caio para
dentro do mundo.
lugar
109
Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ]
Submergiu Atlântida ou foram os navegantes que
recuaram seus veleiros e, sem se dar conta que o
mundo era esférico, viram o oceano devorar uma
cidade?
*
lugar
110
Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ]
Estudiosos traçam mapas e tentam domesticar o selvagem com certas linhas imaginárias. Não é o mundo que tentam esquadrinhar, é o pensamento sobre
o mundo. A besta não tem interesse em ser esquadrinhada e descarta sumariamente tais medidas.
lugar
111
MEDIDAS IMPOSSÍVEIS
MÁGICA E ILUSIONISMO
COMPASSO
lugar
112
LAMPEJO 5
MÁGICA E ILUSIONISMO
Sally’s contribution is the Hubble telescope. (Paul Shepard, The Cultivated Wilderness – Or, What is Landscape?, p.50)
Cinema: o equipamento, a fórmula dos frames por
segundo são parte de uma instrumentaria para o
propósito da ilusão da imagem em movimento. O
filme pode suscitar mágica nas perguntas e a imaginação de quem assiste.
Enquanto isso, Santos Dumont caminha, degrau
após degrau em direção ao topo de seu modesto
observatório. Diferente do sultão indiano Jai Singh
que criou o observatório mais suntuoso e elaborado
de seu século. Uma pequena escada de madeira e
um sistema complexo de aferições. Ambos miravam
as estrelas. Um precisava da matéria para imaginar, o
outro, do ar para navegar.
lugar
113
54
lugar
114
lugar
115
lugar
116
lugar
117
55
lugar
118
lugar
119
lugar
120
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
Estou assistindo um programa sobre a criação do
cosmos, do ponto de vista científico. Escuto o jargão
“somos feitos de poeira de estrelas”, para além disso esses corpos celestes não compõe mais do que
4% do universo. O resto? Matéria e energia escura.
Escuridão. Estamos no início das grandes navegações. Ao invés de constar nos mapas do século XIII
“aqui há dragões” (do latim, Hic Sunt Dracones), as
ciências exatas (esse nome ainda procede?) chamam
de escuridão. Escuridão é mistério.
Quão bonito me parece esse momento da ciência
na qual a escuridão é reconhecida como sua parte
fundamental. Utopia noturna. Reconhecer as coisas
pelas sombras, ecos e tangentes. Como o vento nos
ensina a buscá-lo.
lugar
121
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
N.O.: GEONAUTA: 1. designa àquele que percorre a superfície da Terra; 2. Que está em relação às
profundezas e ao cosmos; 3. Desenvolve conhecimentos sobre a navegação na superfície da Terra;
4. Viajante terrestre; 5. Não necessita de mapa ou
gps para seu percurso, vale-se de observações e
devaneios para entrar em movimento, preguiça ou
ambos.
lugar
122
56
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
Em 1992, Evgeny Alexandrovich Gvozdev prepara
seu barco para circunvagar o globo. 12 pés, construído na varanda de seu apartamento. Sem gps ou
mapas.
“E os problemas, Sr. Gvozdev”? Que respondia
sem titubeios, “Barco grande, grandes problemas,
barco pequeno, pequenos problemas”. Sr. Gvozdev
é GEONAUTA, sabe ler as pistas do globo terrestre,
enquanto as estrelas tracionam sua rotas.
lugar
124
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
lugar
125
57
Ciência, reconheces agora que se sua luminosa
estrada era pavimentada por homens brancos e
ricos (ou seus protegidos)? O resto, às sombras: a
mágica, os ilusionistas e os loucos. As bruxas não
existiam antes de serem nomeadas bruxas. Será que
agora, depois de apontarem a fogueira à mãe de
Johannes Kepler, retornam luz à mágica e escuridão
à ciência? Agora que começamos a perder o medo
do desconhecido e transformamo-nos em utopia,
força e desígnio de aventura. Sem se permitir tolo, a
ignorância se instaura.
lugar
126
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
Mensus eram coelos,
Nunc terrae metior umbras.
Mens coelistis erat,
Corporis umbra jacet.
Eu costumava medir os céus,
Mas agora meço as sombras da terra.
Embora minha alma fosse dos céus,
A sombra do meu corpo aqui jaz.
(poema de Johannes Kepler inscrito em sua lápide, vide: James A.
Connor, A bruxa de Kepler – A descoberta cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e o julgamento
por heresia de sua mãe p.351).
lugar
127
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
Mágica e ilusionismo; uma distinção e uma aproximação:
O Bobo Ilusionista, é aquele que distorce imagens,
encripta informações e narrativas, disfarça coelhos,
retira moedas de nossas orelhas, serra mulheres
ao meio e desaparece diante dos nossos olhos.
É aquele que por um Toque encontra o céu com
a terra. Ele é o Ilusionista, que utiliza a ciência e
outras formas de conhecimento da natureza para
criar ilusões. Que golpeia nosso olhar para vermos o
que não poderia ser visto (Cecilia Mori, Cabine da mentira:
bobeiras em trânsito para a arte contemporânea, 2015).
E se os super-heróis de roupas estranhas e capas
fossem viajantes? Capa que protege do sol e do
frio, signo emblemático do forasteiro. Herói, aquele
que soluciona problemas de maneira extraordinária.
Talvez os super-heróis sejam super porque tem outro
ponto de vista sobre as questões daquele lugar.
Logo, é capaz de encontrar outras soluções e até
novas perguntas.
E os mágicos? Seriam forasteiros esses mesmos forasteiros? Talvez a junção entre super-herói e mágica
lugar
128
Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]
conjecturam os mesmos magos, deuses e semi-deuses das histórias que ouvimos.
Não fazemos o mesmo com satélites? Colocamos de
outro ponto de vista (espacial) para compreender e
obter novas informações sobre onde vivemos?
As florestas tropicais guardam respostas às perguntas que ainda faremos (Ditado Suriname) e a mágica,
também. Devaneio científico. Assim, da escuridão
nasce a mágica.
lugar
129
LAMPEJO 6
COMPASSO
E ainda, essas longas noites de trem nas quais se
pode falar consigo mesmo e se preparar para viver,
de si para si, e a paciência admirável de retomar
ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. (A.
Camus, A Esperança do Mundo, p. 64).
(...) Olha para todos os lados mas tenta evitar olhar
para cima pois alguém lhe dissera que os humanos
só participam nos acontecimentos abaixo do nível
dos olhos, e esta expressão – abaixo dos olhos –
torna-se tão forte como a velha expressão - abaixo
ou acima, do nível do mar. (Gonçalo Tavares, Uma viagem à
Índia, p. 37).
Os corpos celestes continuaram a percorrer suas
órbitas enquanto os meridianos eram arrastados, de
um lado para o outro, por nós.
lugar
130
DESACOPLAR
ELEGANTE ERRÂNCIA
lugar
131
LAMPEJO 7
ELEGANTE ERRÂNCIA
Talvez nunca tivesse sentido tanto o seu acordo
com o mundo, sua marcha em harmonia com a do
sol. Naquela hora em que a noite transbordava de
estrelas, seus gestos se desenhavam sobre a grande
face muda do céu. Se ele mexe o braço, desenha
o espaço que separa o astro brilhante daquele que
parece desaparecer por instantes, e carrega em
seu impulso feixes de estrelas, rastros de nuvens.
Da mesma forma, a água do céu agitada por seu
braço e, em torno dele, a cidade como um manto
de conchas resplandecentes. (A. Camus, A Esperança do
Mundo, p. 52).
A partir da luneta microcósmica, observo a pele a
fundo, além, no âmbito ultra minúsculo, depois dos
átomos até encontrar negra massa de energia. A
imensidão noturna é o sangue do cosmos. Somos
feitos na escuridão?
lugar
132
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
A partir do sol, dos satélites e dos faróis, inventamos
a distância. Criamos botes salva-vidas para o mar,
para o espaço. Enxergamos tudo com olho-visão,
medidor de distâncias? A distância nos faz percorrer
o desconhecido que está dentro do infinito?
Medidas, pesos, precisões, conversões são muito
importantes. Realocando-as para onde não fazem
sentido prático ou econômico.
Feitos à matéria imensa, sem limite, circunscritos
debaixo do céu e acima da terra. Florestas, cosmos,
desertos, oceanos devoram humanos de maneira
similar, por excesso ou escassez que faz eclodir o
fino equilíbrio de estar aqui. Exigem uma escuta
firme e atenta. Lapidam e devolvem o compasso de
cada um.
As imensidões comungam de um padrão-chave: ser
maior do que a habilidade humana de abraçar seu
perímetro, enlaçar, dominar. Selvagens imensidões.
Característica última e primeira desses lugares que
reconhecemos por sermos irmãos do mesmo sopro
sideral ao qual não podemos retomar por nos aventurarmos a sair rastejando do oceano em busca de
terra firme.
lugar
133
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
Qual terra é firme?
Somos seres portuários. A cada ilha de terra, satélites e planetas. Navegamos, cosmologicamente,
errantes, habitantes do planeta Terra, GEONAUTAS.
A particularidade de cada imensidão.
O resultado de morrer afogado ou assolado por
terra é o mesmo, a morte. Não se morre mais ou
menos. Assim é com as descobertas, através da dor
e sacrifício ou do prazer e deleite, sem retroação.
No oceano enxergo uma massa milenar que se
comprime e se alastra, se funde e escapa da morte.
A morte olha para o oceano, enfia a coifa no mar
que não se lembra do que foi nem imagina o que
será. Camuflagem em constante oscilação, no mar
a eternidade surge e a imensidão é inaugurada
porque tempo e espaço se misturam em composição misteriosa, em paisagem marítima. Sempre olho
para o olho do vento. Quando ele devolve o olhar,
já não posso fazer mais nada.
lugar
134
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
Olhar para o vento é ir de encontro ao deserto e ao
oceano. O tempo se desfaz porque todos os tempos se abrem não havendo mais diferença entre o
passado e futuro. Esgotada a diferença, as fronteiras
minguam, naturalmente. O espírito enxerga as imensidões. Feito à têmpera do fogo. Enquanto isso, a
astronauta sente falta do vento percorrendo-lhe os
cabelos. No espaço não venta.
As estrelas!
Generosas (ou vaidosas) que são, não nos exigem
posições desconfortáveis, nem força demasiada para
contemplá-las. Pedem um lugar amplo e, do corpo,
pedem repouso:
Deitar por inteiro ao solo; acoplar-se à Terra da
cabeça aos pés; aproximar-se imediatamente às
estrelas; esperar o cosmos borbulhar agradavelmente atrás das orelhas; Nos saudamos em longo e
saudoso abraço. As estrelas são minhas irmãs.
Após esse exercício rotineiro, concluo que as distâncias não resistem e desabam. Somos feitos de ar, o
ar que comunga seres vivos desse planeta. “A ponte
pende com leveza e força sobre o rio. A ponte
lugar
135
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
não apenas liga margens previamente existentes.
É somente na travessia da ponte que as margens
surgem como margens. "A ponte as deixa repousar
de maneira própria uma frente à outra. Pela ponte,
um lado se separa do outro. As margens também
não se estendem ao longo do rio como traçados indiferentes da terra firme. Com as margens, a ponte
trás para o rio as dimensões do terreno retraída em
cada margem (...) a ponte reúne integrando a terra
como paisagem em torno do rio”. (Martin Heidegger,
Ensaios e conferências: construir, habitar, pensar, p.131). Somos
seres-ponte. Em nós habita o vazio, o céu, a terra e
o que habita entre ambos. Distâncias e tempo são
invenções desnecessárias.
Alguns afirmam que somente o relógio gigante
na Kramgasse conta o tempo verdadeiro, que ele
mesmo está imóvel. Outros destacam que mesmo o
relógio gigante está em movimento quando visto do
rio Aare, ou de uma nuvem. (Alan Lightman, Os Sonhos de
Einstein, p. 55).
Dedicados a olhar o céu, conhecer os corpos celestes que em sua maioria se revelavam a noite. O
portal para outros mundos se apresentava noturno.
lugar
136
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
Astrônomos antigos observavam o cosmos, em exercício de grande imaginação para reconhecer o que
estava adiante, precisavam atravessar e desbravar a
escuridão imensa.
Corpos celestes desvanecendo-se ao longo do
caminho para olhar o que estava entre um vazio
ontológico e outro. Encontraram as estrelas. Mortal
como sou, sei que nasci para viver apenas um dia;
mas, quando sigo a densa multidão de estrelas no
seu movimento circular, os meus pés deixam de tocar na Terra (Cláudio Ptolomeu de Alexandria, c. 100-170 d.C).
lugar
137
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
We take heart in ourselves for being a conglomerate
of things that don’t necessarily work out. We are
temporal and fragile, but we get a strength from
being mended and repaired. That in-between of
existence...
Nos reorganizamos em nós mesmos por sermos um
conglomerado de coisas que não necessariamente dão certo. Somos temporais e frágeis, mas nós
temos uma certa força por sermos remendados e
reparados. Esse entremeio da existência…
Kiki Smith
(http://bombmagazine.org/article/1909/barbara-bloom)
lugar
138
lugar
139
58
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
Tumbleweed
: às vezes confundido com as bolas de feno do faroeste, é uma planta da família do espinafre. Ao atingir
a maturidade, desprende-se da raiz e, impulsionado
pelo vento, desloca-se deserto a fora. Solta suas
sementes enquanto vagueia, seca enquanto viaja e
dissolve em deserto.
O vento trás os pequenos cambaleantes, canta e se
corporifica ali. Estrutura mínima, estranha e discreta para uma elegante errância. Ninho rodopiante,
conhecedor de desertos e habitante de imaginários.
A casa que tomba se desfaz esfarrapada. Gentis
espíritos do mundo. Imensidões passageiras.
Cambaleante arbusto, cambaleia noite adentro. Diferente dos deuses que vivem aprisionados em sua
própria eternidade, somos livres para errar o mundo
e navegar as estrelas porque estamos aqui apenas
por um instante.
lugar
140
Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ]
lugar
141
COORDENADAS
1 - Tradicional batismo cerimonial de um navio (http://america.pink/
ceremonial-ship-launching_905180.html em 24/02/2016)
2 - Nina Orthof, AERO/PORTO, vídeo, 2014
3 - Galileo Galilei, Siderius Nuncius, 1610
4 - Nina Orthof, Invisível detectável, impressão sobre acetato, 2014
5 - Nina Orthof, QAP (permaneço na escuta), vídeo, 2014
6 - Nina Orthof, Pequeníssimas navegações, vídeo, 2013
7 - James Turrel, Crater’s eye, 19798 - Yoko Ono, Blue Room Event, 1966
9 - Sigurdur Gudmundsson, Sem título, 1976
10 - Sigurdur Gudmundsson, Molecule, 1979
11 - Yana Tamayo, Eclipses (Ocupações), 2007
12 - Antonio Dias, Anywhere is my land, 1968
13 - Dennis Oppenheim, Whirlpool (Eye of the storm), 1973
14 - Mapa de navegação utilizada pela autora em 2005
15 - Kirsten Pieroth, Marconi waiting for a message to arrive from
England, 2009
16 - Kirsten Pieroth, Electromagnetic waves surrounding Marconi's
countryside home, 2009
17 - Kirsten Pieroth, Marconi outside his laboratory, 2009
18 - Walter de Maria, Lightning Field, 1977
19 - Ilustração de Neuville e Édouard Riou para a edição de 1971
do livro “20.000 Léguas submarinas”, de Jules Verne
lugar
142
20 - Registro do correio pneumático da República Tcheca que
operava em 1901
21 - Roman Ondak, Measuring the universe, 2007
22 - Galileo Galilei, Dimostrazioni Intorno Alle Macchie Solari e Loro
Accidenti Rome, 1613
23 - Benjamin Patterson, Questionnaire, 1968
24 - Bas Jan Ader, In search of the miraculous, 1975
25 - Juan Manuel Echavarría, La Bandeja de Bolívar, 1999
26 - Alice Aycock, Simple network of underground wells and
tunnels, 1975
27 - Bas Jan Ader, Thoughts unsaid, then forgotten, 1973
28 - Lais Myrrha, Onde nunca anoitece, 2009
29 - Júlia Milward, Quadrado de Centro, 2012-2016
30 - Francis Alÿs, Sometimes making something leads to nothing,
1997
31 - Hipátia de Alexandria: matemática e filósofa neoplatônica,
nascida aproximadamente em 355 e assassinada em 415 (pintura
em madeira)
32 - Mayana Redin, Cosmografias, 2014
33 - Walter de Maria, Earth room, 1968
34 - Francis Alÿs, Turista, Mexico City, 1994
35 - Marco do Meridiano em Greenwich
36 - John Cage, Atlas eclipticalis, 1961
37 - Walter de Maria, Walk around the box, 1961
38 - Walter de Maria, Three circles and two lines in the desert, 1969
lugar
143
39 - Registro da mesa onde autora escreve o texto, 2016
40 - Registro do evento astronômico “Super lua” pela autora em
Brasília, 2015
41 - Mapa de navegação da Polinésia feito de bambu e conchas.
Indica esquematicamente as direções dos ventos, ressacas e ilhas
42 - Página com traços equidistantes
43 - Registro do “Dirigível Nº 2” que perde sustentação e choca-se
com as árvores em 11 de Maio de 1899. Note Santos Dumont
preso entre os galhos
44 - Jeanne Baret (1740-1807), primeira mulher a circunavegar o
globo a bordo da expedição francesa de Louis Antoine de Bougainville, vestida como Jean Baret.
45 - Karina Dias, Le petit pont, video, 2004
46 - Nina Orthof, Notações marítimas 1, fotografia, 2015
47 - Nina Orthof, Notações marítimas 2, fotografia, 2015
48 - Nina Orthof, Notações marítimas 3, fotografia, 2015
49 - Nina Orthof, Notações marítimas 4, fotografia, 2015
50 - Nina Orthof, Notações marítimas 5, fotografia, 2015
51 - Nina Orthof, Notações marítimas 6, fotografia, 2015
52 - Nina Orthof, Notações marítimas 7, fotografia, 2015
53 - Richard Wentworth, Statement, 2009
54 - Nina Orthof, Velocidade da luz, video, 2015
55 - Nina Orthof, Aferir A, Aferir B, Aferir C (tríptico), 2014
56 - Vagamundo: Poéticas nômades (coletivo do qual a autora
participa), Coordenadas escuras (página nº. 5 do livro de artista
lugar
144
GRANdTOUR), 2015.
57 - Evgeny Alexandrovich Gvozdev (1933 -2009) em sua varanda,
onde construiu seu veleiro para circunvagar o globo em 1992
58 - George Steves, Giant, 1956
lugar
145
BIBLIOTECA
lugar
146
BIBLIOTECA
« ABBOT, Edwin A. Flatland: A romance of many
dimensions. The Project Gutenberg, Ebook #201,
2008 (última atualização: 1/11/2013).
« BERGREEN, Lawrence. Over the edge of the world
– Magellan’s terrifying circumnavigation of the globe.
HarperCollins e-books, Nova York, 2003.
« CALVINO, Italo. Palomar. Companhia das Letras,
São Paulo, 1990.
« CAMUS, Albert. A Esperança do Mundo – Cadernos (1935-37). Hedra, São Paulo, 2014.
« CÓRTAZAR, Julio. Todos os fogos o fogo. Editora
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1969.
« COWAN, James. O Sonho do Cartógrafo – Meditações de Fra Mauro na corte de Veneza do século
XVI. Roxo, Rio de Janeiro, 1999.
« DEGUY, Michel. Reabertura após obras. Editora
Unicamp, Campinas, 2010.
lugar
147
« BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da
Vontade – Ensaio sobre a imaginação das forças.
Martins Fonte, São Paulo, 2008.
« FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. N-1 Edições, São Paulo, 2013.
« JOHNSTONE, Stephen. Everyday – Documents
of Contemporary Art. Whitechapel e The MIT Press,
Londres, 2008.
« KEROUAC, Jack. O mar é meu irmão & outros
escritos. L&PM Editores, Porto Alegre, 2014.
« KNECHTEL, John. AIR. The MIT Press, Boston,
2010.
« LEVINE, Robert. A Geography of Time – The Misadventures of a Social Psychologist, or How Every
Culture Keeps Time Just a Little Bit Differently. Basic
Books, Nova York, 1997.
« LIGHTMAN, Alan. Sonhos de Einstein. Companhia
de Bolso, São Paulo, 2014.
lugar
148
« MAISTRE, Xavier. Viagem em volta do meu quarto.
Hedra, São Paulo, 2009.
« MALDONATO, Mauro. A Subversão do Ser – Identidade, Mundo, Tempo, Espaço: Fenomenologia de
uma Mutação. SESC, São Paulo, 2014.
« MESQUITA, Ivo. Viajantes Contemporâneos. Pinacoteca do Estado, São Paulo, 2012.
« ONFRAY, Michel. A potência de existir – Manifesto
hedonista. WMFMartinsfontes, São Paulo, 2010.
« ONFRAY, Michel. Teoria da Viagem – Poética da
Geografia. L&PM, São Paulo, 2009.
« MERLEAU-PONTY, Maurice. A Prosa do Mundo.
Cosac
Naif, São Paulo, 2007.
« RIDLEY, Glynis. The Discovery of Jeanne Baret – A
story of Science, the high seas and the first women
to circumnavigate the globe. Crown Publishers, New
York, 2010.
lugar
149
« SHEPHEARD, Paul. The Cultivated Wilderness
– Or, What is Landscape? The MIT Press, Boston,
2001.
« STEVENSON, Robert Louis. Treasure Island. Penguin Books, Nova York, 1994.
« TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia – Melancolia Contemporânea (um itinerário). Leya, São
Paulo, 2010.
« WENDERS, Wim. A Lógica das imagens. Edições
70 LTDA, Lisboa, 2010.
lugar
150
lugar
151