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Cosmos : navegar

COSMOS:NAVEGAR NINA ORTHOF COSMOS:NAVEGAR IdA/PPG-Artes Visuais | Poéticas Contemporâneas orientação cardeal: Profª Drª Karina Dias lampejos por Nina Orthof 1º de abril de 2016 15º45’56.22’’S 47º52’13.58’’O P L A N O C A R T AS lugar 10 IGNIÇÃO lugar 15 COORDENADAS lugar 140 BIBLIOTECA lugar 144 DISTÂNCIAS IMAGINÁRIAS lampejo 1 [partida] lampejo 2 [ar como imensidão] lugar lugar 19 36 lugar lugar 61 104 lampejo 5 [mágica e ilusionismo] lugar lampejo 6 [compasso] lugar 111 128 ÓRBITAS lampejo 3 [hangar] lampejo 4 [científica ficção] MEDIDAS IMPOSSÍVEIS DESACOPLAR lampejo 7 [elegante errância] lugar 130 Dedico este livro às minhas avós, que escreveram cadernos de viagem e histórias entre a Rua Terezina e a Nebulosa Petrópolis. C A R T A S CARTAS Cartas distribuídas sobre o feltro verde musgo. Em outra sala de jogos, um senhor desenha seu próprio baralho. Jogador; refém; enigma; relógio solar; calendário lunar; bordas arredondadas; furacão; episódios; correio pneumático; estações; Hubble; ímã; cruzeiro; bobo; compasso; espuma; protótipo; fitas; fóssil; espadas. O sol intercalado com a lua, muda durante aquele dia. A lua, intercalada com o sol, muda a cada sete dias. A luz de um determina a estação do outro. Ambos giram. O traslado do sol nos orienta o tempo de um dia. A lua muda e nos orienta o mês. A terra roda e as costas golpeiam o lago. Apalpo o bolso e encontro um caderno escrito à lápis, algumas notações ainda legíveis. Enquanto o caderno que cabe na palma da minha mão seca, escrevo. Reconheço e agradeço, publicamente, às instituições burocráticas necessárias. Principalmente, lugar 10 agradeço alegre e afetuosamente às pessoas queridas que participam do percurso e do projeto desta dissertação. Com as quais rumei outros caminhos, onde me perdi em mar aberto e deserto estrelado. um brinde! lugar 11 1 lugar 12 RESUMO Procurando combinar os cadernos de viagem e a escrita, o trabalho reflete sobre a minha prática artística - em movimento, na imobilidade e no entremeio. Em percursos terrestres, aquáticos, no espaço sideral ou no próprio trabalho. O texto levanta reflexões poéticas acerca de conceitos como: imensidão, navegar e cosmos. Estilo de escrita, formato e conteúdo foram considerados para configurar uma estrutura que constitua outra dimensão do trabalho artístico. Os trabalhos podem ser encontrados no seguinte endereço eletrônico: www.ninaorthof.com Palavras-Chave: Cosmos; Navegar; Poética; Processo; Vídeo; Distâncias imaginárias; Medidas impossíveis; Órbitas; Desacoplar; Viagem. ABSTRACT As it merges travel journeys and writing, this work reflects upon my artistic practice – in movement, in stillness, in between – either on terrestrial, aquatic or outer space courses and in the artwork itself. The text brings about poetic reflections on: wideness, navigation and cosmos. Writing style, format and content is aimed to structure yet another dimension to the artistic work.Works can be found on the following webpage: www.ninaorthof.com Keywords: Cosmos; Navigation; Poetics; Process; Video; Imaginary distance; Impossible measures; Orbits; Detach; Travel. IGNIÇÃO IGNIÇÃO Agora que da modernidade e de suas fúlgidas construções – de sujeito e de estado – restam fragmentos flutuantes; agora que as bússolas e as velhas rotas depuseram suas pretensões; agora que não há mais mensurações utilizáveis nem metas preestabelecidas onde ancorar, o sentido da presença humana no mundo reaparece em sua natureza originária. Inscrita na própria viagem. (Mauro Maldonato, A subversão do ser, p.189) Uma letra após a outra, as palavras para existirem precisam caminhar. Quem escreve move os dedos de uma tecla à outra ou arrasta o grafite no papel. As viagens começam e terminam pequenas, partem daqui para acolá. O traslado de dedos desenha no espaço órbitas fugidias, pausas inconstantes e a pulsação de quem escreve. Em algum momento não é mais possível distinguir se o dedo indica a ideia, se o lápis cria paisagem ou se o ímpeto da navegação convoca a todos os anteriores. lugar 16 IGNIÇÃO Aperto um pouco os olhos e as frases que acabo de escrever se modificam em linhas pretas e lacunas razoavelmente constantes. Percorro esses meridianos e percebo um pequeno caderno com latitude e longitude. Esse é um caderno-mapa com anotações à beira-mundo. São histórias, percursos, trabalhos e lampejos. Meditações sobre processos, projetos e pensamentos que transformam-se na própria escrita onde se desembainha uma letra após a outra. lugar 17 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S PAR T ID A A R CO M O I M E N S I DÃ O lugar 18 LAMPEJO 1 PA R T I D A Navega em um lago que não existia, em uma cidade que foi inventada. (Chico Amaral; projeto de apresentação da galeria Paradigma em Barcelona – faz referência ao barco que levava o mesmo nome e era velejado em Brasília pela autora). Noite. Do outro lado da janela, luz vermelha acende e apaga. Sinaliza para as naves aéreas o limite inventado da terra. O vermelho surge e se dissipa em noite, embala. A luz percorre entre os vapores do mundo. A oscilação luminosa permite os traslados entre o espaço interno e o espaço externo. Ressoa como uma cosmografia que se desmancha. O sangue procura a superfície das veias, o vento frio entra e suspende as vestes, a pequena gravidade invade e destapa o tempo. Acelero rumo aos navegantes celestes e me infiltro em suas rotas, sequestro seus portos. Navegantes celestes não sabem, estou em fluxo com eles. Margeio rotas de viajantes anteriores e dos que estão lugar 19 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 1 [ PA R T I D A ] por vir. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é dele que saem e se irradiam todos os lugares possíveis (Michel Foucault, O corpo heterotópico, as heterotopias, p.14). Dentro do barco observo um antigo espetáculo, a terra firme emerge à pleno oceano. Um vento passa. Escuto os navios apitarem, os vapores rondarem a enseada, mesclam-se à neblina matinal. Sons, ruídos, catracas, cabos e cordas. Sinais, despedidas, movimentos ariscos, saudade e neblina. lugar 20 2 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 1 [ PA R T I D A ] O mar está bonito, amplo. Amanhã se desdobrará em oceano. Hoje, ainda não. Amanhã, amanhã... palavra precisa, móvel, portátil e imensa; morada de todos os sonhos. Navegar torna-se viável graças à existência desse lugar-amanhã, localizado no próprio devir. Para começar, é a noite que nos oferece generosamente os caminhos. Navegar aqui não se faz pela visão, mas, pelo olfato, tato, paladar e a escuta. A visão atualiza os sentidos em uma imagem que escapa, desacopla, vagueia e retorna. Os olhos abertos como escotilhas para acolher os corpos celestes. Esses que entram pelo olho direito e são lançados simultaneamente pelo olho esquerdo. As pestanas seladas como manto. Deixar que a visão não solucione o mundo tampouco enfraqueça sua imagem vertiginosa por um breve e fresco momento. Atrás dos olhos escondidos o mundo reverbera livremente e a gravidade, imensa correnteza, coloca cada coisa em algum lugar. Não distante dos primeiros cientistas que se lugar 24 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 1 [ PA R T I D A ] dispunham a observar, anotar e transformar o que haviam compreendido em ferramentas e mecanismos mentais. Procuro navegar próximo às suas rotas, estas, que despontam da escala humana. Este caderno-mapa se apresenta em quatro instâncias, sete lampejos e alguns lugares. lugar 25 3 Trabalho com vídeo. Essa palavra [vídeo] resolvia a maior parte das questões: ¬ Você grava eventos também? ¬ Sim. Conversa sossega e o fluxo cotidiano é retomado. O vídeo é muito importante. Mais importante ainda era a corpulência da câmera. Desejei aquele objeto. Botões, anéis, lentes-lunetas e seus maravilhosos ruídos. Algo da ordem da mecânica e engrenagem me encantava para lá. Iguaria analógica. lugar 27 4 lugar 28 lugar 29 lugar 30 lugar 31 lugar 32 lugar 33 lugar 34 a câmera. Quando seguro a câmera meu corpo se transforma e, imediatamente, estou em outra posição. O instante se bifurca, ganha uma ramificação ali e estou no mundo a partir de outro lugar. O corpo se molda porque a câmera é um objeto que, em sua dureza, me dobra. Não qualquer câmera, a câmera certa. O corpo se encaixa no mundo e o pensamento se afia a partir dessa câmera. Assim, navego junto aos luthiers, os mestres de cutelaria e os exímios espadachins. As coisas precisam da têmpera adequada para existir nesse planeta. lugar 35 LAMPEJO 2 AR COMO IMENSIDÃO Imensidões são lugares, dispositivos, gatilhos, catapultas que me iniciam desde que tenho memória. Respiração. A maré dentro da barriga, o corpo solto sobre ela. Um morno flutuar no espaço. respirar; nenhuma preocupação. Primeira imensidão; um murmúrio tátil. Ao redor da barriga, abaixo do céu, acima da terra. No interior, separados por fina membrana; no exterior, também. Caminhar separados e unidos pelo ar. lugar 36 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] A I R TA L K It’s sad that the air is the only thing we share. No matter how close we get to each other, there is always air between us. It’s also nice that we share the air. No matter how far apart we are, The air links us. É triste como o ar é a única coisa que compartilhamos. Não importa o quanto nos aproximamos, Sempre existe ar entre nós. também é agradável que compartilhamos o ar. Não importa o quão distante estivermos, O ar nos conecta. Yoko Ono, Air Talk, 1967 lugar 37 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] A curiosidade sobre a terra firme é propulsão da expedição. A firmeza é uma ilha, um continente (grande ilha) ou um planeta (ilha maior ainda). Sinal de esperança por oferecer a possibilidade do repouso, de baixar a guarda, descansar do movimento. A glória da preguiça. Espreguiçar e tornar-se imóvel, oscilar entre ambos. Deixar de nos sentirmos esmagados por ambas imensidões azuis. Não é fácil esticar o céu da terra. Separamos, dividimos, assim organizamos o que é uno. Criamos atlas, viramos Atlas. lugar 38 5 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] lugar 39 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] lugar 40 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] lugar 41 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Um jovem cadáver surge na ilha, sua tez azulando... Azul é também a cor da morte. Estamos cercados de uma outra imensidão. A morte é azul antes de escurecer. Como as águas profundas que são azuis em superfície e se anuviam a cada légua submersa. O azul do céu diurno enoitece em passagem para cosmos. Azul e preto rondam esse planeta. esses rompe-cabeças milenares. Primeiro, circunvagar. Não me refiro mais às embarcações, mas ao movimento-ar que acompanha o humano em todas as instâncias, até à última. Vamos para fora da estratosfera, para as profundezas das águas. O ar nos acompanha em portáteis compartimentos para viagem, quase sempre cilíndricos. Respirar todos os dias, a vida inteira e, ao aterrissar na própria sombra, despir-se de mundo com um derradeiro suspiro. Afinal, quem morre ao dar seu último respiro? Com certeza não somos seres celestes (como os pássaros), seríamos seres aéreos? Pássaros. Restos de bandeiras e o vento que paneja o triângulo branco. Céu: 180º; vertical. Continente: lugar 42 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] à deriva; em suspensão. Água sustenta terra. Terra acolhe olhar. Nenhum sal; nenhum peixe. Distâncias imprecisas. Rajadas ensurdecedoras. Lago murmurante. Vento afoito. Vento bestial. Vento caolho. Água tateando o barco; tranquilidade. Primeira instrução: Trasladar a testa suavemente; localizar o quadrante em que se escuta o som do vento ressoar em ambas orelhas; notar o ponto cardeal que registra as circunstâncias almejadas. Caso não saiba exatamente qual som procurar, basta colocar um copo de circunferência suficiente para abraçar sua orelha, o som produzido aí é similar ao que estamos buscando nessa pequena viagem ao olho do vento. O olho do vento é uma expressão utilizada por velejadores referente à direção do vento. É curioso notar que ele não descende dos céus, tampouco se origina do subterrâneo. Logo, basta girar a cabeça acompanhando o cinturão do mundo e quando o som abafado do vento circundar ambas orelhas, o olho do vento está engatado adiante. Nesse momento, podemos direcionar a proa do barco ou o coração no peito para lá e, por mais forte que o vento esteja, as velas se aquietarão nesse lugar 43 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] momento, reverenciando sua presença diante do olho do vento. Nos encontramos. Ele me olha por uma duração de duas ou três bigornas. O barco estaciona em posição Lago Profundo. LONGITUDE: submerso e distraído; LATITUDE: aproximação e deslocamento. Estou satisfeita. A busca do vento pela escuta é encantadora porque o âmbito que se cria ali é o mesmo do olhar para a fogueira. Latência do espaço e respiração sintonizadas. Em um instante, espreitar a imensidão. É importante aterrissar; é favorável não tocar o chão. lugar 44 6 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] lugar 45 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] lugar 46 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] lugar 47 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Manhã. Empurrar o barco para a água. Ignorar a insistência das pessoas relatarem o óbvio, não há vento. Empurrar o barco para a água. Deitar na proa do barco e remar com os braços para longe do píer. Barco como casa para o devir. A possibilidade de descansar em suspensão. Uma variação da rede que, amarrada entre dois portos, suspende o voo. O barco, desatado sobre água, ensina a navegar. Velejando, aprendi a estar à deriva. Estado bambo do tempo. O barco arrastado pela superfície da água em velocidade mínima. Uma pequeníssima navegação. Barco enquanto sistema de suspensão, enquanto não consigo entrar em uma nave espacial e experimentar a gravidade zero e reconhecer outros movimentos mínimos. Envelopar-se na vela e observar a água. Soltar ambos. 4 da manhã. Noite e dia coabitam. lugar 48 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Voltar para a terra. Continuar a expirar e inspirar lentamente. Pés sobre o chão. Pés menos firmes devido ao balanço da água. Perceber o ar passando entre as vestes e o corpo. Transpor o horizonte do globo da terra para os globos dos olhos. Não suspender a respiração lenta, ralentar ainda mais. Sentir o ar debaixo dos pés. Voltar a flutuar. Embarcar. lugar 49 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] E depois, de tempos em tempos, a gaivota branca, a que é como um príncipe do mar, vem voar perto de Lalla, traça grandes círculos acima das dunas, como se a houvesse reconhecido. Lalla lhe faz sinais com os braços, tenta chamá-la, procura todos os nomes, na esperança de dizer o verdadeiro, aquele que, talvez, lhe devolva sua forma primitiva, que fará aparecer no meio da espuma o príncipe do mar de cabelos de luz, de olhos brilhantes como chamas. - Souleiman! Moumine! Daniel! Mas a grande gaivota branca continua a girar no céu, na direção do mar, roçando as ondas com a ponta da asa, seu olho duro fixo na silhueta de Lalla, sem responder. Por vezes, porque está um pouco despeitada, Lalla corre atrás das gaivotas, agitando os braços, e grita nomes ao acaso, para irritar aquele que é o príncipe do mar: - Frangos! Pardais! Pombinhos! lugar 50 E até: - Gaviões! Abutres! Porque são pássaros de que as gaivotas não gostam. Mas ele, o pássaro branco, que não tem nome, continua seu voo muito lento, indiferente, afasta-se ao longo da margem, plano no vento leste, e por mais que Lalla corra na areia dura da praia, não consegue alcançá-lo. Ele se vai, desliza no meio dos outros pássaros ao longo da espuma, ele se vai, logo não são mais que imperceptíveis pontos que se fundem no azul do céu e do mar. (Le Clézio, Deserto, p. 146). Assim como Lalla no deserto, encontrar e perder sumariamente um senso de fraternidade na imensidão animal. Percebo que não posso ser amiga da imensidão e, ao mesmo tempo, não posso abandoná-la (ela não me abandona). Existe uma ética selvagem e Albert Camus é certeiro ao escrever, a intimidade de dois adversários, e não o abandono de dois amigos (A. Camus, A Esperança do Mundo, p. 51). Continuamos criando mapas e atlas, sonhando outras ilhas-planeta e cruzando miragens no deserto negro. lugar 51 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] A partir da Terra observamos o cosmos, dele buscamos a Terra entre desenhos oculares. O que são os olhos senão pequenos satélites que inscrevem no mundo órbitas infinitas, horizontes resplandecentes. Nota-se a harmonia inaugurada entre o devir dos planetas. Acordo entre corpos celestes. Éter. Associado ao signo do divino e afasta-se da condição mundana. Seria por sua invisibilidade? O tremor da terra é invisível, assim como as forças que atritam as placas tectônicas, atiçam areias movediças e os tsunamis. Seria diferente do ar que podemos perceber no movimento primário da respiração? Ou no vento, detectável a partir de árvores, nuvens e poeira? Não me afasta do pensamento que o ar é uma imensidão invisível, movida pelo invisível, de natureza invisível e detectável mediante sua impressão lugar 52 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] no mundo. Mergulhamos a fundo nos oceanos ou dobramos a estratosfera. Levamos o ar conosco, em pequenos compartimentos, em nossas cascas de tartaruga. O ar é nossa morada no mundo? O que nos conecta ao mundo não é a terra, mas o ar. Somos seres aéreos? Descubro em enciclopédias médicas que mais da metade do corpo humano é composto por oxigênio. Seres aéreos. Ergo um braço, ao final dele, uma laranja na palma da minha mão. Arrasto a laranja sobre o céu até encaixá-la sobre o sol, eclipse. Bebo seu suco mais tarde. Em época onde o universo é imenso, não somos o centro e a natureza nos ultrapassa claramente, enaltecemos o pior sentido dos signos de duração e tamanho. O universo é grande demais, logo, sou insignificante. Essas afirmações que insistem desconsideram a força do devaneio e a própria esperança do mundo. Talvez a navegação tenha surgido após a invenção do tempo. Aqui há perigo. Navegação e porto nasceram gêmeos? importam as distâncias? lugar 53 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Abro os olhos novamente, o céu está sem estrelas. Parece uma casa sem teto. Percebo o cosmos mais próximo, escuro, poderoso, amedrontador, esperançoso. O cosmos se fez jardim. Existe um arranjo cósmico nesse sentido, não somos menores ou maiores que a lua, somos do mesmo tamanho, maiores e menores. Somos ao mesmo tempo e nos desdobramos simultaneamente em inúmeros lugares. Perceber o mundo é navegar junto ao cosmos. COSMOS : NAVEGAR Próximo à Marte, olhando a sombra deslizar para trás da Terra consecutivamente. Farol-Terra. Pensar a viagem ao cosmos é pensar a face mais sombreada das viagens. A nave que segue para descobrir as profundezas do cosmos é sustentada pela sombra das estrelas. Uma ideia de distância entre a nave e o farol-Terra coordena a navegação. Escutar “Terra a vista”! e notar a redoma apoiada sobre o negrume. lugar 54 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Trajetos. As imensidões: desertos, oceanos, florestas e o espaço sideral são motivadores de reflexões e pensamentos. O cosmos como imensidade que contém todas as outras imensidões é particularmente instigante. Um espaço onde precisa-se inventar quase tudo para iniciar sua investigação. Roupas, alimento, veículos, ética, etc. Como é misterioso e presente, basta elevar os olhos. Por ser longínquo, nos acompanha e por ser antigo, nos situa. Agora, uma anedota: Certa vez um homem do futuro encontrou um homem do passado. O viajante do tempo contou ao homem do século XIX: - De onde eu venho, viajamos em aviões que são máquinas que nos fazem atravessar o planeta inteiro em um dia. As viagens de navio que demoram seis meses, com os aviões demoram cerca de três horas. - E o que vocês fazem com o resto do tempo que sobrou? lugar 55 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Fim da anedota. Essa é uma piada que me foi contada repetidas vezes durante a infância. Ao final, meu avô soltava gaitadas em alto e bom som. Para mim, ressoava... difícil. Mais adiante, ele sacava sua máquina Olympus automática de filme, comprada em certa ocasião no Japão (essa é outra história), e tirava uma foto. Sempre em plano geral, para todos caberem na foto. Nós três e o espaço ao redor. Não sei o que fazemos com o tempo que nos resta. O durante tem se esvaído, o entrementes é curto e o deslocamento deixa de fazer parte da viagem. A viagem pode desaparecer? Aqui há perigo. Nunca consegui rir dessa piada porque ela me apavorava. Mais tarde, comecei a exercitar o que seria uma célebre frase para mim: “vou ali”. “Ali para onde”? (célebre resposta). Ali, sair. Ali era o percurso. Eram lugar 56 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] ensaios íntimos e solitários sobre a viagem. Precisava demorar-me por ali, estar a caminho de lugar algum. O fim era mesmo o começo. Descobria então que os viajantes têm um pensamento rodopiante, como os chineses, basta observar uma partida de xiangqi (xadrez chinês). Somente um povo espiralado poderia elaborar um jogo assim, onde, para alcançar seu objetivo, uma construção de movimentos não cartesianos precisa ser arquitetada. Sair em busca de algo, como um caçador que se depara com o meio do caminho e percebe que esqueceu sua arma de propósito. Assim, desata certas metas e faz furos no ordinário. Trinta minutos de caminhadas por dia são recomendados. - Eu te levo. - Outro dia. lugar 57 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] Outra anedota: Antônia era o nome da governanta que trabalhava na casa desse mesmo avô. Certa vez, compraram uma passagem de avião para que ela pudesse visitar seus parentes, sentido Nordeste. Ao voltar, meu avô foi buscá-la no aeroporto e lhe perguntou o que ela tinha achado de voar. ¬ Voar?! Sim. - respondeu o avô - Você viajou de avião, o que achou? Voar?! - Repetia Antônia sem acreditar nas palavras que ela mesma proferia - Pensei que estava vendo umas formiguinhas lá no chão, eram casas e carros? ¬ Ai, minha nossa senhora! Antônia foi ao espaço aeronáutico ou viajou por uma estrada cheia de formigas? Ambos. Não é fácil viajar de maneira distinta da qual Antônia viajou. Não é fácil viajar; é muito fácil viajar. A viagem que se deseja como o fogo que consome e é consumido pelo ar. Imensidões em auto (e alta) combustão, acontecem antes da partida, simultânea e irreverente. Ali, onde o tempo se perde. lugar 58 D I S TÂ N C I A S I M A G I N Á R I A S | L A M P E J O 2 [ A R C O M O I M E N S I D Ã O ] A imensidão atrás de nossas retinas conta histórias sobre o que somos e o que não somos. Nela reconhecemos algo nosso, talvez uma lembrança do fogo dos fogos. Um pouco desconfortável tanto quanto a gravidade que nos impede de alçar voo. É tão reconfortante saber que a gravidade nos permite colocar os pés no chão. Vaguear o chão e dissipar a superfície do mundo. No filme Relatos Selvagens (Damián Szifron, 2014), assistimos pequenos contos sobre o momento em que a besta rompe o esquadrinhar do mundo e torce todas as linhas. Algo da mesma ordem do movimento dos terremotos, tsunamis, movimentos tectônicos, furacões e sonhos. Quem pode segurar os sonhos? Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam um novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia dos sonhos (Mia Couto, Crença dos habitantes de Matimati. Terra Sonâmbula, p. 1). lugar 59 Ó R B I TA S HANGAR CIENTÍFICA FICÇÃO LAMPEJO 3 HANGAR O essencial: Não se perder e não perder o que, de si mesmo, dorme no mundo. (A. Camus, A Esperança do Mundo, p. 28). Tampouco evitar, taciturnamente, a deriva. lugar 61 7 8 9 lugar 64 10 lugar 65 11 12 lugar 67 lugar 68 13 14 lugar 69 15 16 17 lugar 70 18 lugar 71 lugar 72 19 lugar 73 20 21 lugar 74 22 23 lugar 76 24 lugar 77 25 lugar 78 26 lugar 79 27 lugar 80 28 lugar 81 lugar 82 29 30 lugar 83 lugar 84 31 32 lugar 85 33 lugar 86 34 lugar 87 lugar 88 35 36 lugar 89 lugar 90 37 38 lugar 91 39 lugar 92 40 lugar 93 lugar 94 41 lugar 95 42 43 lugar 96 lugar 97 44 45 lugar 98 46 lugar 99 47 lugar 100 48 lugar 101 49 lugar 102 50 lugar 103 51 lugar 104 52 lugar 105 LAMPEJO 4 CIENTÍFICA FICÇÃO No fundo, a organização do universo é um assunto de galões militares, e o informe assusta (precisamente) porque não sabemos se havemos de lhe dar ordens ou obedecer. Mas falemos ainda, Bloom, da ironia que muito aplicaremos. De que forma a catástrofe traz perturbações ao velho método de aplicar uma distância ao mundo? (Gonçalo Tavares, Uma viagem à Índia, No 24) lugar 106 53 Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ] I grew up in a world held together with string and brown paper and sealing wax. And that’s how it was. I slowly realized that this is the underlying condition of the world and there’s nothing I like more then, for example, there’s been a near disaster at NASA and they say “If it hadn’t been for the chewing gum...” Eu cresci em um mundo que se mantinha coeso com barbante e papel marrom e cera para lacre. E assim era. Aos poucos, descobri que essa é a condição subjacente do mundo e não há nada que eu goste mais do que quando, por exemplo, quase houve um desastre na NASA e eles dizem “Se não fosse por aquele chiclete...” lugar 108 Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ] Richard Wentworth faz emergir o sabor de um universo urbano e primitivo. Tudo parte de um ajambrado de matérias, garatujas sobre papel que se transformam em ideias subversivas, medíocres ou revolucionárias. Mescla entre o ruído do mundo e aquilo que surge entre devaneio e pensamento. Aqui há sorte. A gravidade nunca me pareceu muito natural. Olho para cima, especialmente em dias em que a lua surge em céu de brigadeiro. Uma brisa vagueia a face lunar, a fragilidade do ar que envolve o planeta salta ao coração. Parque de diversões; um brinquedo: Kamikaze. A cada giro, uma intensidade de aceleração. A cada aceleração, o corpo adere mais ao brinquedo. Ao me dar conta do movimento orbital do planeta, o mesmo efeito ocorre. A gravidade torna-se voraz e agarra com mais força do que nunca. Caio para dentro do mundo. lugar 109 Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ] Submergiu Atlântida ou foram os navegantes que recuaram seus veleiros e, sem se dar conta que o mundo era esférico, viram o oceano devorar uma cidade? * lugar 110 Ó R B I TA S | L A M P E J O 4 [ C I E N T Í F I C A F I C Ç Ã O ] Estudiosos traçam mapas e tentam domesticar o selvagem com certas linhas imaginárias. Não é o mundo que tentam esquadrinhar, é o pensamento sobre o mundo. A besta não tem interesse em ser esquadrinhada e descarta sumariamente tais medidas. lugar 111 MEDIDAS IMPOSSÍVEIS MÁGICA E ILUSIONISMO COMPASSO lugar 112 LAMPEJO 5 MÁGICA E ILUSIONISMO Sally’s contribution is the Hubble telescope. (Paul Shepard, The Cultivated Wilderness – Or, What is Landscape?, p.50) Cinema: o equipamento, a fórmula dos frames por segundo são parte de uma instrumentaria para o propósito da ilusão da imagem em movimento. O filme pode suscitar mágica nas perguntas e a imaginação de quem assiste. Enquanto isso, Santos Dumont caminha, degrau após degrau em direção ao topo de seu modesto observatório. Diferente do sultão indiano Jai Singh que criou o observatório mais suntuoso e elaborado de seu século. Uma pequena escada de madeira e um sistema complexo de aferições. Ambos miravam as estrelas. Um precisava da matéria para imaginar, o outro, do ar para navegar. lugar 113 54 lugar 114 lugar 115 lugar 116 lugar 117 55 lugar 118 lugar 119 lugar 120 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ] Estou assistindo um programa sobre a criação do cosmos, do ponto de vista científico. Escuto o jargão “somos feitos de poeira de estrelas”, para além disso esses corpos celestes não compõe mais do que 4% do universo. O resto? Matéria e energia escura. Escuridão. Estamos no início das grandes navegações. Ao invés de constar nos mapas do século XIII “aqui há dragões” (do latim, Hic Sunt Dracones), as ciências exatas (esse nome ainda procede?) chamam de escuridão. Escuridão é mistério. Quão bonito me parece esse momento da ciência na qual a escuridão é reconhecida como sua parte fundamental. Utopia noturna. Reconhecer as coisas pelas sombras, ecos e tangentes. Como o vento nos ensina a buscá-lo. lugar 121 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ]  N.O.: GEONAUTA: 1. designa àquele que percorre a superfície da Terra; 2. Que está em relação às profundezas e ao cosmos; 3. Desenvolve conhecimentos sobre a navegação na superfície da Terra; 4. Viajante terrestre; 5. Não necessita de mapa ou gps para seu percurso, vale-se de observações e devaneios para entrar em movimento, preguiça ou ambos. lugar 122 56 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ] Em 1992, Evgeny Alexandrovich Gvozdev prepara seu barco para circunvagar o globo. 12 pés, construído na varanda de seu apartamento. Sem gps ou mapas. “E os problemas, Sr. Gvozdev”? Que respondia sem titubeios, “Barco grande, grandes problemas, barco pequeno, pequenos problemas”. Sr. Gvozdev é GEONAUTA, sabe ler as pistas do globo terrestre, enquanto as estrelas tracionam sua rotas. lugar 124 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ] lugar 125 57 Ciência, reconheces agora que se sua luminosa estrada era pavimentada por homens brancos e ricos (ou seus protegidos)? O resto, às sombras: a mágica, os ilusionistas e os loucos. As bruxas não existiam antes de serem nomeadas bruxas. Será que agora, depois de apontarem a fogueira à mãe de Johannes Kepler, retornam luz à mágica e escuridão à ciência? Agora que começamos a perder o medo do desconhecido e transformamo-nos em utopia, força e desígnio de aventura. Sem se permitir tolo, a ignorância se instaura. lugar 126 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ] Mensus eram coelos, Nunc terrae metior umbras. Mens coelistis erat, Corporis umbra jacet. Eu costumava medir os céus, Mas agora meço as sombras da terra. Embora minha alma fosse dos céus, A sombra do meu corpo aqui jaz. (poema de Johannes Kepler inscrito em sua lápide, vide: James A. Connor, A bruxa de Kepler – A descoberta cósmica por um astrônomo em meio a guerras religiosas, intrigas políticas e o julgamento por heresia de sua mãe p.351). lugar 127 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ] Mágica e ilusionismo; uma distinção e uma aproximação: O Bobo Ilusionista, é aquele que distorce imagens, encripta informações e narrativas, disfarça coelhos, retira moedas de nossas orelhas, serra mulheres ao meio e desaparece diante dos nossos olhos. É aquele que por um Toque encontra o céu com a terra. Ele é o Ilusionista, que utiliza a ciência e outras formas de conhecimento da natureza para criar ilusões. Que golpeia nosso olhar para vermos o que não poderia ser visto (Cecilia Mori, Cabine da mentira: bobeiras em trânsito para a arte contemporânea, 2015). E se os super-heróis de roupas estranhas e capas fossem viajantes? Capa que protege do sol e do frio, signo emblemático do forasteiro. Herói, aquele que soluciona problemas de maneira extraordinária. Talvez os super-heróis sejam super porque tem outro ponto de vista sobre as questões daquele lugar. Logo, é capaz de encontrar outras soluções e até novas perguntas. E os mágicos? Seriam forasteiros esses mesmos forasteiros? Talvez a junção entre super-herói e mágica lugar 128 Ó R B I TA S | L A M P E J O 5 [ M Á G I C A E I L U S I O N I S M O ] conjecturam os mesmos magos, deuses e semi-deuses das histórias que ouvimos. Não fazemos o mesmo com satélites? Colocamos de outro ponto de vista (espacial) para compreender e obter novas informações sobre onde vivemos? As florestas tropicais guardam respostas às perguntas que ainda faremos (Ditado Suriname) e a mágica, também. Devaneio científico. Assim, da escuridão nasce a mágica. lugar 129 LAMPEJO 6 COMPASSO E ainda, essas longas noites de trem nas quais se pode falar consigo mesmo e se preparar para viver, de si para si, e a paciência admirável de retomar ideias, apanhá-las em sua fuga, e ainda avançar. (A. Camus, A Esperança do Mundo, p. 64). (...) Olha para todos os lados mas tenta evitar olhar para cima pois alguém lhe dissera que os humanos só participam nos acontecimentos abaixo do nível dos olhos, e esta expressão – abaixo dos olhos – torna-se tão forte como a velha expressão - abaixo ou acima, do nível do mar. (Gonçalo Tavares, Uma viagem à Índia, p. 37). Os corpos celestes continuaram a percorrer suas órbitas enquanto os meridianos eram arrastados, de um lado para o outro, por nós. lugar 130 DESACOPLAR ELEGANTE ERRÂNCIA lugar 131 LAMPEJO 7 ELEGANTE ERRÂNCIA Talvez nunca tivesse sentido tanto o seu acordo com o mundo, sua marcha em harmonia com a do sol. Naquela hora em que a noite transbordava de estrelas, seus gestos se desenhavam sobre a grande face muda do céu. Se ele mexe o braço, desenha o espaço que separa o astro brilhante daquele que parece desaparecer por instantes, e carrega em seu impulso feixes de estrelas, rastros de nuvens. Da mesma forma, a água do céu agitada por seu braço e, em torno dele, a cidade como um manto de conchas resplandecentes. (A. Camus, A Esperança do Mundo, p. 52). A partir da luneta microcósmica, observo a pele a fundo, além, no âmbito ultra minúsculo, depois dos átomos até encontrar negra massa de energia. A imensidão noturna é o sangue do cosmos. Somos feitos na escuridão? lugar 132 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] A partir do sol, dos satélites e dos faróis, inventamos a distância. Criamos botes salva-vidas para o mar, para o espaço. Enxergamos tudo com olho-visão, medidor de distâncias? A distância nos faz percorrer o desconhecido que está dentro do infinito? Medidas, pesos, precisões, conversões são muito importantes. Realocando-as para onde não fazem sentido prático ou econômico. Feitos à matéria imensa, sem limite, circunscritos debaixo do céu e acima da terra. Florestas, cosmos, desertos, oceanos devoram humanos de maneira similar, por excesso ou escassez que faz eclodir o fino equilíbrio de estar aqui. Exigem uma escuta firme e atenta. Lapidam e devolvem o compasso de cada um. As imensidões comungam de um padrão-chave: ser maior do que a habilidade humana de abraçar seu perímetro, enlaçar, dominar. Selvagens imensidões. Característica última e primeira desses lugares que reconhecemos por sermos irmãos do mesmo sopro sideral ao qual não podemos retomar por nos aventurarmos a sair rastejando do oceano em busca de terra firme. lugar 133 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] Qual terra é firme? Somos seres portuários. A cada ilha de terra, satélites e planetas. Navegamos, cosmologicamente, errantes, habitantes do planeta Terra, GEONAUTAS.  A particularidade de cada imensidão. O resultado de morrer afogado ou assolado por terra é o mesmo, a morte. Não se morre mais ou menos. Assim é com as descobertas, através da dor e sacrifício ou do prazer e deleite, sem retroação. No oceano enxergo uma massa milenar que se comprime e se alastra, se funde e escapa da morte. A morte olha para o oceano, enfia a coifa no mar que não se lembra do que foi nem imagina o que será. Camuflagem em constante oscilação, no mar a eternidade surge e a imensidão é inaugurada porque tempo e espaço se misturam em composição misteriosa, em paisagem marítima. Sempre olho para o olho do vento. Quando ele devolve o olhar, já não posso fazer mais nada. lugar 134 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] Olhar para o vento é ir de encontro ao deserto e ao oceano. O tempo se desfaz porque todos os tempos se abrem não havendo mais diferença entre o passado e futuro. Esgotada a diferença, as fronteiras minguam, naturalmente. O espírito enxerga as imensidões. Feito à têmpera do fogo. Enquanto isso, a astronauta sente falta do vento percorrendo-lhe os cabelos. No espaço não venta. As estrelas! Generosas (ou vaidosas) que são, não nos exigem posições desconfortáveis, nem força demasiada para contemplá-las. Pedem um lugar amplo e, do corpo, pedem repouso: Deitar por inteiro ao solo; acoplar-se à Terra da cabeça aos pés; aproximar-se imediatamente às estrelas; esperar o cosmos borbulhar agradavelmente atrás das orelhas; Nos saudamos em longo e saudoso abraço. As estrelas são minhas irmãs. Após esse exercício rotineiro, concluo que as distâncias não resistem e desabam. Somos feitos de ar, o ar que comunga seres vivos desse planeta. “A ponte pende com leveza e força sobre o rio. A ponte lugar 135 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] não apenas liga margens previamente existentes. É somente na travessia da ponte que as margens surgem como margens. "A ponte as deixa repousar de maneira própria uma frente à outra. Pela ponte, um lado se separa do outro. As margens também não se estendem ao longo do rio como traçados indiferentes da terra firme. Com as margens, a ponte trás para o rio as dimensões do terreno retraída em cada margem (...) a ponte reúne integrando a terra como paisagem em torno do rio”. (Martin Heidegger, Ensaios e conferências: construir, habitar, pensar, p.131). Somos seres-ponte. Em nós habita o vazio, o céu, a terra e o que habita entre ambos. Distâncias e tempo são invenções desnecessárias. Alguns afirmam que somente o relógio gigante na Kramgasse conta o tempo verdadeiro, que ele mesmo está imóvel. Outros destacam que mesmo o relógio gigante está em movimento quando visto do rio Aare, ou de uma nuvem. (Alan Lightman, Os Sonhos de Einstein, p. 55). Dedicados a olhar o céu, conhecer os corpos celestes que em sua maioria se revelavam a noite. O portal para outros mundos se apresentava noturno. lugar 136 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] Astrônomos antigos observavam o cosmos, em exercício de grande imaginação para reconhecer o que estava adiante, precisavam atravessar e desbravar a escuridão imensa. Corpos celestes desvanecendo-se ao longo do caminho para olhar o que estava entre um vazio ontológico e outro. Encontraram as estrelas. Mortal como sou, sei que nasci para viver apenas um dia; mas, quando sigo a densa multidão de estrelas no seu movimento circular, os meus pés deixam de tocar na Terra (Cláudio Ptolomeu de Alexandria, c. 100-170 d.C). lugar 137 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] We take heart in ourselves for being a conglomerate of things that don’t necessarily work out. We are temporal and fragile, but we get a strength from being mended and repaired. That in-between of existence... Nos reorganizamos em nós mesmos por sermos um conglomerado de coisas que não necessariamente dão certo. Somos temporais e frágeis, mas nós temos uma certa força por sermos remendados e reparados. Esse entremeio da existência… Kiki Smith (http://bombmagazine.org/article/1909/barbara-bloom) lugar 138 lugar 139 58 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] Tumbleweed : às vezes confundido com as bolas de feno do faroeste, é uma planta da família do espinafre. Ao atingir a maturidade, desprende-se da raiz e, impulsionado pelo vento, desloca-se deserto a fora. Solta suas sementes enquanto vagueia, seca enquanto viaja e dissolve em deserto. O vento trás os pequenos cambaleantes, canta e se corporifica ali. Estrutura mínima, estranha e discreta para uma elegante errância. Ninho rodopiante, conhecedor de desertos e habitante de imaginários. A casa que tomba se desfaz esfarrapada. Gentis espíritos do mundo. Imensidões passageiras. Cambaleante arbusto, cambaleia noite adentro. Diferente dos deuses que vivem aprisionados em sua própria eternidade, somos livres para errar o mundo e navegar as estrelas porque estamos aqui apenas por um instante. lugar 140 Ó R B I TA S | L A M P E J O 7 [ E L E G A N T E E R R Â N C I A ] lugar 141 COORDENADAS 1 - Tradicional batismo cerimonial de um navio (http://america.pink/ ceremonial-ship-launching_905180.html em 24/02/2016) 2 - Nina Orthof, AERO/PORTO, vídeo, 2014 3 - Galileo Galilei, Siderius Nuncius, 1610 4 - Nina Orthof, Invisível detectável, impressão sobre acetato, 2014 5 - Nina Orthof, QAP (permaneço na escuta), vídeo, 2014 6 - Nina Orthof, Pequeníssimas navegações, vídeo, 2013 7 - James Turrel, Crater’s eye, 19798 - Yoko Ono, Blue Room Event, 1966 9 - Sigurdur Gudmundsson, Sem título, 1976 10 - Sigurdur Gudmundsson, Molecule, 1979 11 - Yana Tamayo, Eclipses (Ocupações), 2007 12 - Antonio Dias, Anywhere is my land, 1968 13 - Dennis Oppenheim, Whirlpool (Eye of the storm), 1973 14 - Mapa de navegação utilizada pela autora em 2005 15 - Kirsten Pieroth, Marconi waiting for a message to arrive from England, 2009 16 - Kirsten Pieroth, Electromagnetic waves surrounding Marconi's countryside home, 2009 17 - Kirsten Pieroth, Marconi outside his laboratory, 2009 18 - Walter de Maria, Lightning Field, 1977 19 - Ilustração de Neuville e Édouard Riou para a edição de 1971 do livro “20.000 Léguas submarinas”, de Jules Verne lugar 142 20 - Registro do correio pneumático da República Tcheca que operava em 1901 21 - Roman Ondak, Measuring the universe, 2007 22 - Galileo Galilei, Dimostrazioni Intorno Alle Macchie Solari e Loro Accidenti Rome, 1613 23 - Benjamin Patterson, Questionnaire, 1968 24 - Bas Jan Ader, In search of the miraculous, 1975 25 - Juan Manuel Echavarría, La Bandeja de Bolívar, 1999 26 - Alice Aycock, Simple network of underground wells and tunnels, 1975 27 - Bas Jan Ader, Thoughts unsaid, then forgotten, 1973 28 - Lais Myrrha, Onde nunca anoitece, 2009 29 - Júlia Milward, Quadrado de Centro, 2012-2016 30 - Francis Alÿs, Sometimes making something leads to nothing, 1997 31 - Hipátia de Alexandria: matemática e filósofa neoplatônica, nascida aproximadamente em 355 e assassinada em 415 (pintura em madeira) 32 - Mayana Redin, Cosmografias, 2014 33 - Walter de Maria, Earth room, 1968 34 - Francis Alÿs, Turista, Mexico City, 1994 35 - Marco do Meridiano em Greenwich 36 - John Cage, Atlas eclipticalis, 1961 37 - Walter de Maria, Walk around the box, 1961 38 - Walter de Maria, Three circles and two lines in the desert, 1969 lugar 143 39 - Registro da mesa onde autora escreve o texto, 2016 40 - Registro do evento astronômico “Super lua” pela autora em Brasília, 2015 41 - Mapa de navegação da Polinésia feito de bambu e conchas. Indica esquematicamente as direções dos ventos, ressacas e ilhas 42 - Página com traços equidistantes 43 - Registro do “Dirigível Nº 2” que perde sustentação e choca-se com as árvores em 11 de Maio de 1899. Note Santos Dumont preso entre os galhos 44 - Jeanne Baret (1740-1807), primeira mulher a circunavegar o globo a bordo da expedição francesa de Louis Antoine de Bougainville, vestida como Jean Baret. 45 - Karina Dias, Le petit pont, video, 2004 46 - Nina Orthof, Notações marítimas 1, fotografia, 2015 47 - Nina Orthof, Notações marítimas 2, fotografia, 2015 48 - Nina Orthof, Notações marítimas 3, fotografia, 2015 49 - Nina Orthof, Notações marítimas 4, fotografia, 2015 50 - Nina Orthof, Notações marítimas 5, fotografia, 2015 51 - Nina Orthof, Notações marítimas 6, fotografia, 2015 52 - Nina Orthof, Notações marítimas 7, fotografia, 2015 53 - Richard Wentworth, Statement, 2009 54 - Nina Orthof, Velocidade da luz, video, 2015 55 - Nina Orthof, Aferir A, Aferir B, Aferir C (tríptico), 2014 56 - Vagamundo: Poéticas nômades (coletivo do qual a autora participa), Coordenadas escuras (página nº. 5 do livro de artista lugar 144 GRANdTOUR), 2015. 57 - Evgeny Alexandrovich Gvozdev (1933 -2009) em sua varanda, onde construiu seu veleiro para circunvagar o globo em 1992 58 - George Steves, Giant, 1956 lugar 145 BIBLIOTECA lugar 146 BIBLIOTECA « ABBOT, Edwin A. 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