UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PEDRO AUGUSTO PEREIRA GONÇALVES
UMA ALEGRIA ANUNCIADA: O FIM DO MUNDO COMO FIM DO COMPLEXO
COLONIALISTA
CURITIBA
2024
PEDRO AUGUSTO PEREIRA GONÇALVES
UMA ALEGRIA ANUNCIADA: O FIM DO MUNDO COMO FIM DO COMPLEXO
COLONIALISTA
Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Filosofia, no Setor de
Ciências
Humanas,
na
Universidade Federal do Paraná, como
requisito parcial à obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
Orientador:
Prof.
Antonio Valentim.
CURITIBA
2024
Dr.
Marco
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SISTEMA DE BIBLIOTECAS – BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS HUMANAS
Gonçalves, Pedro Augusto Pereira
Uma alegria anunciada : o fim do mundo como fim do complexo
colonialista. / Pedro Augusto Pereira Gonçalves. – Curitiba, 2024.
1 recurso on-line : PDF.
Tese – (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de
Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Valentim.
1. Fanon, Frantz, 1925-1961. 2. Fim do mundo. 3. Imperialismo.
4. Alegria. I. Valentim, Marco Antonio, 1978-. II. Universidade Federal
do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título.
Bibliotecária : Fernanda Emanoéla Nogueira Dias CRB-9/1607
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO FILOSOFIA 40001016039P7
ATA Nº019.2024
ATA DE SESSÃO PÚBLICA DE DEFESA DE DOUTORADO PARA A OBTENÇÃO DO
GRAU DE DOUTOR EM FILOSOFIA
No dia cinco de julho de dois mil e vinte e quatro às 10:00 horas, na sala Ambiente remoto (Google Meet)., Ambiente remoto
(Google Meet)., foram instaladas as atividades pertinentes ao rito de defesa de tese do doutorando PEDRO AUGUSTO PEREIRA
GONÇALVES, intitulada: Uma alegria anunciada: o fim do mundo como fim do complexo colonialista, sob orientação do Prof.
Dr. MARCO ANTONIO VALENTIM. A Banca Examinadora, designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação FILOSOFIA
da Universidade Federal do Paraná, foi constituída pelos seguintes Membros: MARCO ANTONIO VALENTIM (UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ), DEBORA CRISTINA DE ARAUJO (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO), WANDERSON
FLOR NASCIMENTO (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA), GISELLE MOURA SCHNORR (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ
-), IVO PEREIRA DE QUEIROZ (UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ). A presidência iniciou os ritos definidos
pelo Colegiado do Programa e, após exarados os pareceres dos membros do comitê examinador e da respectiva contra
argumentação, ocorreu a leitura do parecer final da banca examinadora, que decidiu pela APROVAÇÃO. Este resultado deverá ser
homologado pelo Colegiado do programa, mediante o atendimento de todas as indicações e correções solicitadas pela banca
dentro dos prazos regimentais definidos pelo programa. A outorga de título de doutor está condicionada ao atendimento de todos os
requisitos e prazos determinados no regimento do Programa de Pós-Graduação. Nada mais havendo a tratar a presidência deu por
encerrada a sessão, da qual eu, MARCO ANTONIO VALENTIM, lavrei a presente ata, que vai assinada por mim e pelos demais
membros da Comissão Examinadora.
Observações: "Após a deliberação, a banca examinadora decidiu pela aprovação do candidato no exame de doutorado. A
bancaressalta a excelência da tese apresentada e recomenda a sua publicação editorial em forma de livro. A banca também
recomenda aindicação da tese para os prêmios ANPOF e Capes de melhor tese de doutorado em filosofia."
CURITIBA, 05 de Julho de 2024.
Assinatura Eletrônica
05/07/2024 14:20:08.0
MARCO ANTONIO VALENTIM
Presidente da Banca Examinadora
Assinatura Eletrônica
06/07/2024 09:12:32.0
DEBORA CRISTINA DE ARAUJO
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO)
Assinatura Eletrônica
06/07/2024 01:00:51.0
WANDERSON FLOR NASCIMENTO
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA)
Assinatura Eletrônica
09/07/2024 15:44:05.0
GISELLE MOURA SCHNORR
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ -)
Assinatura Eletrônica
11/07/2024 16:04:11.0
IVO PEREIRA DE QUEIROZ
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO
PARANÁ)
Rua Dr. Faivre, 405, 6º andar - CURITIBA - Paraná - Brasil
CEP 80060-140 - Tel: (41) 3360-5048 - E-mail: pgfilos@ufpr.br
Documento assinado eletronicamente de acordo com o disposto na legislação federal Decreto 8539 de 08 de outubro de 2015.
Gerado e autenticado pelo SIGA-UFPR, com a seguinte identificação única: 378403
Para autenticar este documento/assinatura, acesse https://siga.ufpr.br/siga/visitante/autenticacaoassinaturas.jsp
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO FILOSOFIA 40001016039P7
TERMO DE APROVAÇÃO
Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação FILOSOFIA da Universidade
Federal do Paraná foram convocados para realizar a arguição da tese de Doutorado de PEDRO AUGUSTO PEREIRA
GONÇALVES intitulada: Uma alegria anunciada: o fim do mundo como fim do complexo colonialista, sob orientação do Prof.
Dr. MARCO ANTONIO VALENTIM, que após terem inquirido o aluno e realizada a avaliação do trabalho, são de parecer pela sua
APROVAÇÃO no rito de defesa.
A outorga do título de doutor está sujeita à homologação pelo colegiado, ao atendimento de todas as indicações e correções
solicitadas pela banca e ao pleno atendimento das demandas regimentais do Programa de Pós-Graduação.
CURITIBA, 05 de Julho de 2024.
Assinatura Eletrônica
05/07/2024 14:20:08.0
MARCO ANTONIO VALENTIM
Presidente da Banca Examinadora
Assinatura Eletrônica
06/07/2024 09:12:32.0
DEBORA CRISTINA DE ARAUJO
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO)
Assinatura Eletrônica
06/07/2024 01:00:51.0
WANDERSON FLOR NASCIMENTO
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA)
Assinatura Eletrônica
09/07/2024 15:44:05.0
GISELLE MOURA SCHNORR
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ -)
Assinatura Eletrônica
11/07/2024 16:04:11.0
IVO PEREIRA DE QUEIROZ
Avaliador Externo (UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO
PARANÁ)
Rua Dr. Faivre, 405, 6º andar - CURITIBA - Paraná - Brasil
CEP 80060-140 - Tel: (41) 3360-5048 - E-mail: pgfilos@ufpr.br
Documento assinado eletronicamente de acordo com o disposto na legislação federal Decreto 8539 de 08 de outubro de 2015.
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Bença!
À Lucilene Soares - Randa Ashanti - e ao
Grupo de Teatro Nuspartus – porque
sonhamos as sementes do Baobá.
Axé!
AGRADECIMENTOS
Agô àquelas que vieram antes de nós!
Bênça!
Chegamos, enfim, ao resultado de alguns anos dedicados ao estudo
acadêmico de filosofia. Dedicação que se enredou por muitas vozes, abraços,
sentimentos, alegrias, dificuldades, além de todos e demais sentimentos que nos
movem, diariamente. Esta tese é o resultado de tudo isso, dos encontros e dos
desejos de coisas boas. Resultado completamente coletivo, ainda que sob
responsabilidade de um autor sempre estudante. Agradeço a todas as pessoas
que, em algum momento, pensaram em mim e no processo dos estudos.
Àquelas que perguntavam como andava a tese, quando seria a defesa, quando
chegaríamos ao fim... É chegado este momento de celebrar. Esta tese é nossa!
Passo aos agradecimentos nominais, tendo no sentimento que são tantas
as pessoas e entes envolvidos nesse tempo-já que é tarefa impossível citá-las
em completude. A mim é uma injustiça irreparável, mas lembrem-se: é fruto de
tudo isso, nosso e em conjunto. Então, muito obrigado!
Obrigado as minhas três mães: a que me teve, a do Céu do meu Orí, e
muito especialmente a que me cria e me ensina o valor da alegria: Marlene. Só
sou porque vocês me trouxeram aqui. A todo o sacrifício, a todas as alegrias, a
todo o amor na sua força mais alegre e bonita: muito obrigado!
Obrigado aos meus irmãos Raphaela e Gabriel. Sem vocês a vida seria
menos alegre, triste demais. Amo vocês!
Obrigado ao meu companheiro de vida que anda comigo, que
aprendemos juntos os caminhos do cuidado e do amor. Newton, a você todos os
meus amores e alívios. Te amo!
Obrigado às bichas que não dão sossego (ainda bem): Feppo Bueno, Fê
Nascimento, Arian Borges, Eduardo Malandrinha Luiz, Leah Ribeiro e Marcelo
Endo, além da Katlyn Kéty. Aqui é um lugar seguro!
Obrigado às amigas que, vibrando juntas, tentamos erguer um mundo
novo: Lucilene Soares, a quem esta tese é dedicada. Laize Guazina, por mostrar
que a filosofia é bonita, Lenne Cristenson, Mariana Conceição, Fabíola Mota,
Camila Borges, Stael Madureira, Nayara Marques, Aline Di Giuseppe, Aline Ilha,
Izis Dellatre, Aline Dias, Ghenifer Morais, Luciana Rodrigues, Jana Queiroz,
Janine Mathias, Clara e Alice Barbi, Cris Oliveira, Vanessa Vieira, Nicoli Scotti,
Larissa Maris, Talita Andrade, Scheila Amorim, Tereza Oliveira, Mara Santos,
Kamylla Santos, Renato Cani, André Daniel, Danilo Faria, Luiz Thiago Dantas,
Andrei Carvalho e Fred Pedrosa! Amo vocês! Obrigado pelos pensamentos
bons!
Obrigado à nossa família de Axé e aos encantados que nos dão caminhos
bons e alegres: Okê Oxóssi! Saravá Cabocla Indaiá! Sarará Caboclo ArrancaToco! Saravá Oxóssi Caçador da Mata Virgem! Saravá Caboclo Caçador!
Saravá Seu Zé do Morro! Saravá Seu Meia-Noite! Saravá toda nossa Banda!
Bença, Mãe Silvana Borelli, Bença, Ekedi Niceia Ribeiro, e Bença, meus irmãos
de um barco poderoso em meu coração: Maicon Marinho, Diogo Mello, Jurinã
Oromi, minha madrinha Gizele Santini e meu padrinho-pai Erisson Cordeiro da
Luz!
Obrigado, Ana Rivera, Maria Claudia Gorges, Patrícia Teixeira e Michel
Alves pela alegria de compartir a vida Ch’ixi com vocês!
Obrigado às colegas da Educação de Jovens e Adultos do SESI Paraná:
Amanda Krauss, Marina Perbiche, Rosilene Silva, Jaqueline França, Helen
Barros, Anthoni Sobierai, João Cenoura, João Lee e Maurício Bisetto!
Obrigado, Professora Débora Araújo e Professor Wanderson Flor do
Nascimento pelos comentários muito generosos e atentos na ocasião do exame
de qualificação e na banca da defesa. A presença de vocês foi pedra-sílex!
Obrigado às demais pessoas que compuseram a banca, que
pacientemente leram este trabalho e fizeram dele algo bom, e da defesa uma
alegria emocionada: Professora Giselle Schnorr e o nosso mais velho, Professor
Ivo Queiroz. Que sorte contar com vocês!
Obrigado, querido e grande Marco Antonio Valentim, pela paciência e
generosidade de andar comigo nos caminhos da filosofia desde 2015,
Oríentando tudo que faço. Axé!
Obrigado, Universidade Federal do Paraná, por todo o apoio necessário
para trilhar os caminhos acadêmicos da filosofia. Obrigado ao povo brasileiro
que, por meio do seu trabalho, coloca de pé nossa Universidade!
Obrigado às pessoas que virão!
AXÉ!
VII
Homenagem a Pavel Kohout
Que te devolvam a alma
Homem do nosso tempo.
Pede isso a Deus
Ou às coisas que acreditas
À terra, às águas, à noite
Desmedida,
Uiva se quiseres,
Ao teu próprio ventre
Se é ele quem comanda
A tua vida, não importa,
Pede à mulher
Àquela que foi noiva
À que se fez amiga,
Abre a tua boca, ulula
Pede à chuva
Ruge
Como se tivesses no peito
Uma enorme ferida
Escancara a tua boca
Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.
VIII
Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.
Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.
Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.
Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.
Hilda Hilst
Poema aos homens do nosso tempo
(1974)
RESUMO
Esta tese de doutorado investiga em que medida as contribuições do
pensamento de Frantz Fanon, a partir do seu conceito de complexo colonialista,
compreendem uma estrutura de mundo que precisa acabar. Este mundo tal qual
o conhecemos é capaz de se apresentar senão como infernal àqueles humanos
e não humanos, "condenados da terra" por sua "infelicidade ontológica" (Fanon)
predicada pelo pensamento filosófico moderno. A esta “perspectiva objetiva”
(Danowski e Viveiros de Castro), mobiliza-se uma miríade de pensamentos que
visa a sua destruição. Neste ínterim, este estudo pretende mostrar como o
pensamento de autoras e autores como Suzanne Roussi-Césaire, Silvia Rivera
Cusicanqui, Lélia González, Denise Ferreira da Silva, Antônio Bispo dos Santos,
Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Malcom Ferdinand caminham, sob diferentes
vieses, advogando em favor de outros mundos plurais, a partir da leitura dos
argumentos radicais de Fanon. Toma-se, assim, as contribuições dessas
autorias como pressupostos de "escrevivências" (Conceição Evaristo) que,
cientes
dos
traumas
coloniais,
tendem
ao
questionamento
sobre
a
universalidade auto e sobredeterminada, a intercorrência dos dispositivos da
racialidade (Carneiro) como motor do discurso moderno para, em os
combatendo, rumar à alegria do acontecimento da vida. Incorporam e subsidiam
a tese algumas imagens que representam os argumentos desenvolvidos. Como
resultado, a tese propõe um breve ensaio sobre a alegria como forma de
impulsionar as ações, práticas ou especulativas, para a construção de novos
mundos.
Palavras-chave: Fim do mundo, Filosofia Anticolonial, Complexo Colonialista,
Alegria.
ABSTRACT
This thesis investigates the extent in which the contributions of Frantz Fanon's
thought, based on his concept of the colonialist complex, comprehend as a world
structure that needs to end. This world as we know it is capable of presenting
itself as nothing but infernal to those humans and non-humans, the "condemned
of the earth" for their "ontological unhappiness" (Fanon) predicated by modern
philosophical thought. To this "objective perspective" (Danowski and Viveiros de
Castro), a myriad of thoughts is mobilized aiming for its destruction. Meanwhile,
this study aims to show how the thoughts of authors such as Suzanne RoussiCésaire, Silvia Rivera Cusicanqui, Lélia González, Denise Ferreira da Silva,
Antônio Bispo dos Santos, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, and Malcom
Ferdinand advocate for other plural worlds from different perspectives, based on
the radical arguments of Fanon. Thus, the contributions of these authors are
taken as assumptions of "escrevivências" (Conceição Evaristo) that, aware of
colonial traumas, tend to question the self and over-determined universality, the
occurrence of raciality devices (Carneiro) as the engine of modern discourse to,
in combating them, move towards the joy of life's events. Some images
representing the developed arguments are incorporated and subsidize the thesis.
As a result, the thesis proposes a brief essay on joy as a way to drive actions,
whether practical or speculative, for the construction of new worlds.
Key-words: The end of the world, Anticolonial Philosophy, Colonialist Complex,
Joy.
SUMÁRIO
UM PREFÁCIO PARA UM FIM DE UM MUNDO ....................................................... 14
FIGURA 1 – La Maison Dieu ..................................................................................... 30
CAPÍTULO 1 – DAS NOSSAS INTENÇÕES OU “PRA COMEÇAR A ESCREVER DE
NOVO PELO FIM”. .................................................................................................... 31
1.1 A IV Conferência Nacional da Promoção do problema racial ................. 32
1.2 Por uma questão a ser perseguida ......................................................... 35
1.3 Um direito à escrita como um direito da vida .......................................... 39
1.4 Caminhos para uma encruzilhada de fazer outros Mundos .................... 44
FIGURA 2 – Tuíra Kayapó e o Terçado .................................................................... 47
CAPÍTULO 2 – UMA LUZ PARA “O DRAMA DA TERRA” ....................................... 48
2.1 Suzanne Roussi Césaire: um surrealismo milagroso ............................. 48
2.2 O movimento da Négritude ..................................................................... 48
2.3 Um apagamento ensurdecedor .............................................................. 51
2.4 Os milagres ainda por acontecer ............................................................ 57
FIGURA 3 – Suzanne Roussi-Césaire ...................................................................... 58
CAPÍTULO 3 - O GUERREIRO-SÍLEX ....................................................................... 59
3.1 Quando a prática clínica sustenta o compromisso revolucionário .......... 60
3.2 A radicalidade da proposta libertária: um fim de mundo para um novo
mundo possível............................................................................................. 71
3.3 O complexo colonialista, o colonialismo interno e suas arapucas .......... 75
3.4 Interditar a interdição .............................................................................. 85
3.5 Fanon diante das suas remarcadas contradições .................................. 89
FIGURA 4 – Sílex ou Pederneira – a pedra da primeira arte .................................. 98
CAPÍTULO 4 – UMA GIRA PELOS MUNDOS ........................................................... 99
4.1 Lélia Gonzalez: intelectual da práxis amefricana .................................. 101
4.1.1 Lélia por quê? ................................................................................ 102
4.1.2 O manifesto da língua pela rasteira da Amefricanidade ................. 104
4.2 Silvia Cusicanqui e a cosmopolítica Ch’ixi: “vivir bien, no mejor”:......... 109
4.2.1 A proposta de uma epistemologia Ch’ixi ........................................ 111
4.2.2 A ideia Ch’ixi também é outra que humana .................................... 115
4.3 Denise Ferreira da Silva: a poética negro-feminista para destruir o Homo
Modernus .................................................................................................... 118
4.3.1 Os pilares ontoespistemológicos modernos ................................... 122
4.3.2 O contragolpe da Poética Negra Feminista: liberar a imaginação do
Entendimento .......................................................................................... 129
4.4 Dos Outros de que fomos tornados aos Demais que podemos ser ...... 134
FIGURA 6 – Blue Marble – a primeira foto da Terra em sua orientação original 135
PEQUENO ENSAIO PARA UMA ALEGRIA ............................................................ 136
FIGURA 7 –Jaider Esbell - A contínua energia da vida ........................................ 142
EPÍLOGO ................................................................................................................. 143
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 145
FIGURA 8 – Asase Ye Duru .................................................................................... 156
Parir o fim do mundo .............................................................................................. 157
14
UM PREFÁCIO PARA UM FIM DE UM MUNDO
O fim do mundo é um tema aparentemente interminável – pelo
menos, é claro, até que ele aconteça.
Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro
O fim do mundo não é algo que vá acontecer de uma hora pra outra.
É algo constante.
Daniel Lafayette, o Lafa, via Twitter (@UltraLafa)
Atento
aos sinais, quando
perguntei às cartas,
no
final dos
acontecimentos de 2019, como se passaria o ano de 2020, foi-me orientado, logo
de saída no jogo, o arcano maior XVI, A Torre. Podem ser muitas as
interpretações, e com doses pertinentes de especulação, sabemos que o arcano
nos
apresenta
um
cenário
de
destruição
em
acontecimento,
um
desmoronamento de certezas que estavam solidificadas em alicerces que
julgávamos firmes, um edifício do conhecimento em ruínas, se quisermos.
Todavia, ancorado no estudo conduzido por Alejandro Jodorowsky e Marianne
Costa chamado O Caminho do Tarot (2016), li que, para além dos colapsos, o
arcano XVI pode representar, também, a “abertura, emergência daquilo que
estava confinado [...] A mensagem desta carta é de um grande alívio espiritual”
(Jodorowsky; Costa, 2016, p. 239). Ainda, quando A Torre fala, podemos ouvir:
Desprezando-me, isolando-me, crendo defender um território
interior que só pertencia a mim, o que era eu na escuridão dessa
torre? Mestre do quê? De que aparência, de que falsa identidade?
Não passava do ar rarefeito de uma escuridão egoísta”
(Jodorowsky; Costa, 2016, p. 243).
A Torre como aquela lareira diante da qual Descartes especulava seu
solipcismo para erigir ciências, talvez. A grande sensação ainda não
experimentada de um fim da vida concreto, tendo em vista os imensos privilégios
e colonizações espirituais que nos entorpecem os “sentimentos do mundo” do
fim dos tempos, estava para se intensificar de modo acachapante. Isto, porque,
por bastante tempo, como nos escreve Maria Lucia Macari e Karine Szuchman,
foi
15
como se a nossa capacidade de fazer utopias, imaginar mais além,
sonhar com algo completamente diferente do que vivemos,
estivesse sufocada pela presença hegemônica do neoliberalismocolonial em todos os âmbitos de nossas vidas. Mesmo que sem
perceber – e
justamente
por
isso –, é
como
se
silenciosamente aceitássemos que o neoliberalismo-colonial
chegou para ficar. Continuamos jogando e alimentando as suas
regras, escrevendo histórias e a História com as suas
cores reluzentes: ficções cotidianas pintadas com os matizes
neoliberais-coloniais. (Macari, Szuchman, 2023, p. 3).
Nesses tempos atuais de neoliberalismo colonial1, uma espécie de
maldição ou “retorno cármico” - para nos mostrar que, se antes, tínhamos como
promessa sermos o país do futuro, nosso passado continua aqui a nos mostrar
que muitas dívidas ainda não estão saldadas -, se abateu sob nossas
privilegiadas cabeças, mais escancaradamente no país desde, pelo menos,
2013. Ano em que aconteceram no Brasil os eventos que ficaram conhecidos
pelas “marchas de junho”.
Ainda
que
sejam
diversas
as
interpretações,
como
qualquer
acontecimento, podemos considerar que as manifestações que tomaram as
ruas, inicialmente foram articuladas por um coletivo de ativistas que
pressionavam o não aumento de R$0,20 na passagem do transporte coletivo, na
cidade de São Paulo. Ato contínuo, o movimento ganhou proporções muito
maiores, pois sofreram a cooptação pelas grandes mídias e movimentos
aparentemente apartidários, mas que se mostravam defensores de ideias
conservadoras e antidemocráticas. Assim, aproveitando o momento de
insatisfação geral e difusa de grande parte da população do país, infundiram
bandeiras que culminariam em uma crise política e um período eleitoral posterior
bastante extenuante, além de outros tantos efeitos nocivos à história recente e
aos povos de um Brasil ainda jovem no que toca sua experiência dita
democrática. Este início caótico do atual cenário sufocante em que vivíamos se
intensificou com o resultado eleitoral para ocupar a cadeira da chefia do
Trata-se de um neoliberalismo colonial porque as políticas que fazem ressurgir o liberalismo
nos tempos atuais, que são aliadas à degradação dos direitos sociais historicamente
conquistados, só podem acontecer nas estratégias colonialistas de domínio e controle de uns
muitos por uns poucos. Como sugeriu Wanderson Flor do Nascimento, não se trata de uma
qualificação situacional, em que adjetivando “colonial” ao neoliberalismo figuraria mera questão
retórica ou inadvertida, abrindo-se margem para possíveis questionamentos se haveria algum
tipo de neoliberalismo que não fosse colonial. Ao contrário disso, enfim, trata-se de uma
vinculação tacitamente explícita.
1
16
executivo federal, em 28 de outubro de 2018 – tudo isso temperado com muitos
desconfortos e indignações cotidianas. Ataques, descréditos, violências
simbólicas e concretas, enfim.
Contudo, na passagem de 2019 para 2020, na ocasião em que
perguntava às cartas como se dariam os próximos meses do novo ano, desabou
sobre nós uma infinidade de novas desgraças, até então irremediáveis: um vírus
mortal, formas de governo municipal-estadual-federal-infernal e cada vez mais
fortalecido e coeso, mentiras e enganações proferidas pelos porta-vozes do
desejo de multiplicar dinheiro à custa de vidas precarizadas, enfim, todo um
sentimento de fim de mundo. Naquele período, mais horror nas notícias, imagens
de desespero de todo o tipo, rifas para ajudar amigos que estavam perdendo
tudo, lives solidárias, pessoas muito queridas partindo e outras tantas em
sofrimento mental.
Essa sensação muito inédita ao mesmo tempo que muito tardia (pelos
privilégios e colonizações espirituais que já mencionamos) de que o fim era
naquele mesmo instante, se estendeu e repetiu-se de modo terrivelmente real
pelos intermináveis dias entre as primeiras semanas de março de 2020, até
começar a ser diminuído, no dia 17 de janeiro de 2021. Na ocasião, Mônica
Calazans, enfermeira negra que trabalha no Sistema Único de Saúde, foi a
primeira brasileira a receber a primeira dose da vacina contra o vírus Sars-Cov2, na cidade de São Paulo, um dia inesquecível entre tantos outros que poderiam
sequer ser motivo de termos que nos lembrar. Mas é preciso lembrar não só do
que testemunhamos enquanto vivíamos aqueles tempos. Foi preciso aprender e
reconhecer, dolorosamente - apesar da história dos vencedores insistir em
apagar - que vários fins de mundo já aconteceram a várias outras gentes (não
humanas e humanas). Ora, desde que o colonialismo, o maior empreendimento
europeu para fora dos seus domínios geográficos, estendeu-se por outros
mundos, tornados mesmo outros e passíveis, aos seus produtores, de serem
dominados e usados para alimentar as sanhas do velho mundo, o fim já tinha se
tornado uma infeliz realidade concreta.
Todas essas desgraças, em maior ou menor grau, podem ser
relacionadas à uma certa, digamos, espiritualidade ontológica que tantos outros
(humanos e mais que humanos) já experimentaram desde os tempos em que
recebemos o mau agouro da colonização que inauguraram o “novo mundo”,
17
portanto. Então, se a carta revelada no jogo representava uma ruína de um lado,
de outro, como um ideal de possibilidade, emergindo direto dos seus escombros,
pode também “trata[r]-se de uma assunção. [...] A criação de um ser novo [que]
se anuncia, o que se concretizará em A Estrela (Arcano maior XVII)”
(Jodorowsky; Costa, 2016 p. 241). Nada mais fanoniano, para nós.
Mas, antes de tal abertura para talvez a criação da novidade prometida, a
partir de um fortalecimento do que já está posto como possibilidade de um novo
por meio dos pensamentos plurais, é preciso falar dos escombros de um
determinado jeito de fazer mundo que nos abarcou e nos custou inúmeras
mortes, sejam elas espirituais, corpóreas, estéticas e políticas. Com isso, o fim
de mundo a que nos proporemos a pensar não é um que diagnostica, na medida
em que lamenta, o que vai acontecer como resultado da promessa moderna de
que o humano Homem seria capaz de elevar-se acima da natureza e comandála, o que está a conduzir-nos para um cenário ainda pior, em que o aquecimento
global já passa a ser chamado de ebulição. Apesar de considerarmos os
escombros e falar, em alguma medida, a partir deles, é preciso seguir. Antes,
porém, vale nos lembrarmos de um alerta...
O vaticínio que põe fim a este mundo pode, entre tantas evidências a que
temos contato, também ser atestada mediante o contato e as palavras de Davi
Kopenawa e Bruce Albert, em A queda do céu. O capítulo que encerra a segunda
parte do livro chamado de “O ouro canibal” centra-se sobre o tema dos metais,
sua origem e função cosmológicas, sua extração inadvertida pelos brancos e as
consequências dela não somente aos Yanomami, mas para “o mundo inteiro”,
pois, nas palavras de Davi Kopenawa,
por mais vastos que sejam a terra e o céu, suas fumaças [dos metais]
acabam por se dispersar em todas as direções e todos são atingidos
por elas: os humanos, os animais, a floresta. É verdade. Até as árvores
ficam doentes (Kopenawa, 2015, p. 370).
Sendo resquícios, “fragmentos do céu antigo”, os metais foram
escondidos por Omama no fundo da terra, pois são muito maléficos e exalam
fumaças de epidemia xawara. Além, sustentam o novo céu feito pelo demiurgo
Yanomami após o cataclismo do primeiro tempo. Uma vez alcançados pelas
intensas escavações dos garimpeiros e mineradores que agem como tatu-
18
canastras, os xamãs não poderão atuar junto aos xapiri na diplomacia xamânica
“de guerrilha” que mantém este novo céu de pé, sustentado.
No capítulo em questão, é possível perceber, enfaticamente, o que vem
se passando longo do livro, a saber, a tarefa de Davi em advertir os brancos,
ensiná-los, lembrá-los do que pode (re)acontecer caso as ações expropriadoras
não cessem: o céu vai cair e, assim como tem sido difícil a vida e a existência
dos povos da floresta diante do seu extermínio causado pela ação dos napë,
“nem mesmo [eles] os brancos vão sobrevier” (Kopenawa, 2015, p. 372).
Davi parece já saber de alguns dos efeitos da retirada dos metais nas
terras outras, uma vez que, depois da extração de todo o metal, a terra fica fria
(friável), tal como nos países dos brancos europeus pós-revoluções industriais:
“onde o solo é vazio, faz muito frio, as nuvens são baixas e quase não se vê o
sol. Deve ser o caso das terras distantes de onde os ancestrais dos brancos já
extraíram todo o minério” (Kopenawa, 2015, p. 360). Omama é o pai dos minérios
e se apresenta como uma montanha de ferro subterrânea. São como raízes do
metal e, sem elas, a terra começa a tremer, rachar e desabar sobre os pés. A
floresta, entretanto, (ainda) não é uma terra friável e nem sofre com terremotos,
pois é ela o centro do mundo Yanomami, mas nos lugares mais distantes e frios,
eles ocorrem justamente por essa falta de “sustentação”.
O desastre ambiental extrativista e expropriante, sobretudo encarado a
partir de sua verdadeira identidade, ou seja, como crime(s), acontece ainda nos
territórios Yanomami e não muito longe dele. Lembremo-nos, brevemente, do
que ocorre às populações indígenas desde os primeiros mau-encontros até dias
correntes...
Num anuário bizarro, ainda que sucinto, rememoramos que, desde os
primeiros contatos no início do século XVI passando pelas expedições genocidas
dos bandeirantes, a devassa da terra pela conquista de ouro e diamantes, seja
durante os anos de chumbo em que militares golpistas devassavam a floresta
amazônica repetindo aquela sanha bandeirante do assassinato de gentes
humanas e não humanas; seja nas regiões dos megalomaníacos projetos
desenvolvimentistas do governo Lula-Dilma (Belo Monte no rio Xingu, Santo
Antônio e Jirau no rio Madeira, Teles Pires e São Manoel no rio Teles Pires e
outras); seja na Lama da Samarco, Vale e BHP Billinton que promoveu o
engolfamento dos territórios em Mariana, Minas Gerais, no dia 5 de novembro
19
de 2015, com sua repetição monstruosa, desta vez em Brumadinho, em 25 de
janeiro de 2019, considerado o maior acidente de trabalho no país; que fez o Rio
Doce, o Watu, “mergulhar em si” (Krenak, 2022, p. 24); seja pela omissão
proposital com que o governo federal, liderado sob milícias evangélicas, lidou
com os Yanomami mais recentemente, seja por tudo isso e por muito mais, nos
resta o espantoso, ao notar a profecia xamãnica de Davi que advertiu e acabou
por se realizar nas terras de seus parentes Krenak que hoje se lamentam: “Watu
é Kwen”, ou “O rio morreu”:
Se os brancos começarem a arrancar o pai do metal das profundezas
do chão com seus grandes tratores, como espíritos tatu-canastra, logo
só restarão pedras, cascalho e areia. Ele ficará cada vez mais frágil e
acabaremos todos caindo para debaixo da terra. É o que vai ocorrer se
atingirem o lugar em que mora Xiwãripo, o ser do caos, que, no primeiro
tempo, transformou nossos ancestrais em forasteiros. O solo, que não
é nada grosso, vai começar a rachar. A chuva não vai mais parar de
cair e as águas vão começar a transbordar de suas rachaduras. Então,
muitos de nós serão lançados à escuridão do mundo subterrâneo e se
afogarão nas águas do seu grande rio, Moto uri u. Escavando tanto, os
brancos vão acabar até arrancado as raízes do céu, que também são
sustentadas pelo metal de Omama. Então ele vai se romper novamente
e seremos aniquilados, até o último. Esses pensamentos me
atormentam muito. Por isso levo em mim as palavras de Omama para
defender nossa floresta. Os brancos não pensam nessas coisas. Se o
fizessem, não arrancariam da terra tudo o que podem, sem se
preocupar. É para acabar com isso que quero fazer com que eles
ouçam as palavras que os xapiri me deram no tempo do sonho.
(Kopenawa, 2015, p. 361).
Trata-se, por parte daqueles que consideram as vidas outras como
recursos, de ódio aos rios, ódio à terra, ódio a tudo o que não represente ordem
e progresso. Trata-se de um dos mecanismos mais evidentes da Plantationceno
(Ferdinand, 2022): o Racismo Ambiental, que pode ser definido como:
O conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus
governos, que aceitam a degradação ambiental e humana, com a
justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização
implícita da inferioridade de determinados segmentos da população
afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores,
trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do
crescimento econômico e a quem é imputado o sacrifício em prol de
um benefício para os demais (Herculano, 2006).
Assim, alguns dos problemas que se apresentam às comunidades
indígenas, sobretudo quando saqueadas de seus potenciais cosmológicos e
20
muitos outros, são perpassados pelas questões raciais que sumarizam a sua
exclusão que deslegitima, oprime, explora e aniquila, degradando-as muitas
vezes a partir de suposições filosóficas e ambientais abstratas e mesmo alheias
à sua espiritualidade, levadas a cabo com interesses coloniais e econômicos.
Contra esse torpor assassino, o que vemos n’A Queda do Céu é uma
verdadeira ação cosmopolítica para conscientização dos brancos, numa
pedagogia da lembrança que pretende opor-se ao esquecimento banco além de
um alerta forte: o céu vai cai novamente e ninguém escapará. Logo, as palavras
de um xamã Yanomami revelam “todo um processo político-cultural de
adaptação criativa que gera as condições de possibilidade de um campo de
negociação interétnica onde o discurso colonial possa ser contornado ou
subvertido” (Albert, 1995, p. 4), principalmente quando ultrapassam a dicotomia
sobre o pensamento ambiental, a saber, a proteção ou a exploração2. Essa
“reformulação estratégica do xamanismo nativo em linguagem ecopolítica”
(Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 103) soma-se, portanto, à diplomacia do
xamã. É um terceiro nível de ação, portanto. Entretanto, num mundo onde tudo
possui agência espiritual, o mero discurso ambiental de proteção não cabe:
a impossibilidade de redução do meio ambiente a quantidades de
energia e de recursos, numa total separação entre ambiente e
sociedade, torna-se evidente quando lançamos sobre estes a
compreensão de que são históricos e culturais, assumindo valores
distintos em cada contexto e em cada situação. Significa dizer que o
valor que a natureza e o ambiente tem para comunidades como as
indígenas, quilombolas e ribeirinhas, certamente não é o mesmo que
neles encontram as empresas hidroelétricas ou as que cultivam
monoculturas de eucalipto. (Paes e Silva, 2011).
A cosmopolítica de que nos falam Déborah Danowski e Eduardo Viveiros
de Castro (2014)3 é, então, o pano de fundo para as relações que se traduzem
Cf. Bruce Albert: “de fato, esses dois discursos sobre a Natureza têm, no fundo, premissas
comuns que são radicalmente antagônicas às concepções indígenas. Exploração ou
preservação da Natureza remetem ao mesmo pressuposto de uma Natureza-objeto, reificada
enquanto instância separada da sociedade e a ela subjugada. Ora, nada mais estranho que esta
separação e este antropocentrismo para as cosmologias das sociedades amazônicas, que fazem
do universo uma totalidade social regida por um complexo sistema de intercâmbios simbólicos
entre sujeitos humanos e não-humanos, sistema do qual o xamanismo é a pedra de toque”
(Albert, 1995, p. 19).
2
“Quando um índio interage com um existente de “outra espécie” – o que, repetimos, inclui os
membros de outros coletivos que nós chamaríamos de “humanos” -, ele sabe que está tratando
com uma entidade que é humana em seu próprio departamento. Assim se dá então que toda
3
21
no enfrentamento com o povo da mercadoria e da política e que implicam uma
concepção outra da vida, uma vez que, diante das estratégias da vida deste
povo, “a política é outra coisa” (Kopenawa, 2015, p. 390).
Não é um lamento, portanto, que engana os menos avisados numa
maquiagem sustentável e demais tendências falaciosas e perniciosas. Não é,
também, uma política clássica que governa os recursos e faz gerência de crises
do capital, tampouco é uma vida insistente em se fazer por meio de
metabolismos espirituais de outrem. Esta política, no limite, revela um fim de
mundo que imagina o fim de um aparato filosófico e, portanto, ideológico, que a
todo tempo estimula os mecanismos que sustentam os próprios colapsos que
ele mesmo produz pela perpetuação da tecnologia colonial, por meio do espírito
ontológico moderno. Assim, não estamos somados ao coro dos que agora
sofrerão o que sempre infringiram e tampouco queremos adiar o fim deste mundo
para que os sofrimentos sejam levados adiante. Afinal, como nos lembra Ailton
Krenak: “quando dizemos mundo pensamos logo neste, em incessante disputa
instaurada por uma gestão que deu metástase: o do capitalismo – que alguns já
chamam de capitaloceno” (Krenak, 2022, p. 32). Perspectiva justa, se pensamos
que não são todos os que, diante da lei, são formalmente considerados
humanos, as causas dos colapsos societais e ambientais a que estamos já mais
acostumados. O antropos do caos e das catástrofes é demasiado sacerdote do
capitalismo colonial, este que é tão falado, tão batido, mas tão presente.
É preciso, então, reafirmar esse fim, porque, como dissemos, a
espiritualidade ontológica canônica, a qual vimos tentando compreender desde
a metade do curso de graduação em filosofia, tem se mostrado como um alicerce
para os fins a que temos notícia, e que produz um viés pessimista de que, talvez,
não haja saída. Esse viés pessimista nos é estimulado, então, por um tipo de
pulsão de ir morrendo, que só pode ser barrado caso este mundo acabe de vez,
colapse em sua força autodestrutiva, mas que não nos leve junto pois, sabemos:
há espiritualidades cosmo-ontológicas divergentes a esse impulso para o
abismo, em que os agentes que compartilham a vida e uma certa condição de
interação transespecífica nos mundos ameríndios é uma intriga internacional, uma negociação
diplomática ou uma operação de guerra que deve ser conduzida com a máxima circunspecção”
(Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 96).
22
humanidade estão implicados pela alegria momentânea de estarem vivos,
estejam onde estiverem.
Se, talvez, fomos ensinados a nos acostumar com a ideia de que “o futuro
a Deus pertence” e, com essa ideia, nos isentamos de uma atuação mais direta
na construção coletiva e compartilhada de futuro, é mais que necessário pensar
em outras direções. Não se trata, então, de um controle do porvir - o que,
sabemos, já nos conduziu onde estamos – mas, sim, que tipo de ação nos é
requerida para fazer com que o porvir aconteça. Com seria possível fazer e
pensar um fim para este mundo que interdita o futuro, despreza o passado e
adjudica o presente sempre ao que Davi Kopenawa (2015) chama de o “povo da
mercadoria”, para, em oposição, que a vida seja afirmada, em todas as suas
dimensões de alegria? Se, então,
estamos diante de um “’fim do mundo” no sentido de mundo humano,
o fim como resultado de um processo de desvitalização ontológica do
ambiente (devastação ou artificialização integrais do planeta), com
efeitos “desumanizadores” sobre os sobreviventes (Danowski; Viveiros
de Castro, 2014, p. 61),
e se este mundo é o porta-voz dos fins, como acabar de vez com ele para que
outros possam existir?
Sendo este mundo pós-colonial, portanto, “uma perspectiva objetiva”
(Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 33), uma vez que seus condenados
padecem das piores catástrofes contra a vida em todas as suas dimensões a
nós conhecíveis fomentadas pelo capitalismo, a tese aqui defendida é a de que,
para pensarmos e, portanto, fazemos possibilidades de saída, é preciso
vislumbrar os escombros e falar a partir deles, escombros estes que podem nos
oferecer um ponto de partida, a partir do pensamento anticolonial.
Se o mundo é essa tal perspectiva objetiva, se este nosso mundo foi
construído senão por violências e espoliações de trabalhos de outrem a quem
dificilmente haverá formas de reparação, se a todo momento nos são expostas
as razões pelas quais este mundo precisa acabar, antes que ele acabe com os
potenciais mundos que resistem bravamente a este etnocídio moderno, quem
são esses nós que somos chamados a reafirmar a vida, mesmo diante do fim
iminente do mundo pelas pandemias, conflitos agrários, extinções em massa,
limpezas étnicas e colapsos climáticos que um tipo de humanidade, a dos
23
modernos e seu vício incessante de consumo de outrem, soube fabricar com
excelência? Podemos dizer que, além de terranos, ideia lançada por Bruno
Latour e que expressaria, se bem pensada, uma certa condição de aliança entre
entidades que não são necessariamente da espécie humana (Fausto, 2013, p.
169) e, portanto, agora, despossuídos de uma promessa de importância
ontológica que fora construída por uma filosofia que os elevava à condição de
Senhores do reino onto-epistemológico moderno, somos um produto de tais,
para falar com Fanon, infelicidades ontológicas. Contra ela, contra tudo o que a
produz, somos estas pessoas humanas e entidades mais que humanas que não
estamos unificadas num
interesse universal humano positivo, porque existe uma diversidade de
alinhamentos políticos dos diversos povos ou “culturas” mundiais com
muitos outros actantes e povos não-humanos [...] contra os
autointitulados porta-vozes do Universal. O multiverso, o estado antenômico ou pré-cósmico de fundo, permanece não unificado, tanto do
lado da humanidade como do mundo. Toda unificação está (sob um
modo que poderíamos chamar e multiplamente hipotético) no futuro, e
dependerá da capacidade de negociação uma vez declarada a guerra,
a “guerra de mundos” como chamou Latour em outro texto (Danowski;
Viveiros de Castro, 2014, p.121, grifos dos autores).
O que nos é caro, a esta múltipla comunidade de agentes, é a chance de
poder, com alegria, vivermos em estado de maior comunhão de tranquilidade; o
que, desde o começo do século XVI, nos parece impossível. Para além de nós,
para além de uma simples experiência onírica de fantasias utópicas sem
compromisso, sonhar uma necessária
disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de
diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de
autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na
sua interação com o mundo e com as outras pessoas (Krenak, 2019,
p. 52-53),
porque é no sonho que encontramos a maleabilidade necessária para viver e
tomar decisões, tecendo vias de possibilidades de sermos comuns. Não se trata,
portanto, de uma vida isolada, sonhando em solipcismo, anti-humanista que
ataque o seu sentido mais caro, a saber, a vida (neste caso, de toda a
comunidade envolvida nela, menos, é claro, daqueles que a fazem cessar de
forma cruel). É necessário sonhar e acordar, agir em alianças, pois constituímos
aquilo que os filósofos Stefano Harney e Fred Moten entendem por subcomuns
24
do iluminismo [undercommons of enlightenment] (Harney; Moten 2013, p. 26) e,
assim, somos convocadas e convocados a articular o fim para este mundo, como
alternativa única para repensar o que é essa humanidade que nos constituiu
senão como aquilo que chamamos4 de exclusiva, ou seja
questionar quem participa dessa humanidade, de forma a rever as
bases ontológicas, epistêmicas e éticas que têm nos guiado até aqui,
torna-se parte fundamental dessa reflexão sobre o fim do mundo e,
principalmente, sobre que mundo queremos habitar (Macari,
Szuchman, 2023, p. 10).
Trata-se, então, de continuarmos a fabular, ou melhor, “a reflorestar o
imaginário”, como nos chama à tarefa Antônio Bispo. Cumprir a promessa
anunciada por Fanon e que nos foi exortada por Aimé Césaire em seu poema
matriarcal da Négritude: acabar com este mundo projetado e erigido pelos pilares
coloniais antes que ele acabe com a gente.
Essas noções até aqui apresentadas compõem, por aproximação, a ideia
de Frantz Fanon sobre um novo humanismo, pois o caminho que é aberto por
essa noção permite que interditemos “o futuro hipotecado”, lançando mão que
humanidades outras que humanas, outras que branca e outras que modernas
possam proliferar. Ou este mundo acaba ou ele acabará, de vez, com a
possibilidade mesma de repensá-lo. Seja pela luta conjugada com uma
“pedagogia do sonho” da qual nos inspira Davi Kopenawa (2015), seja por uma
utopia, seja por uma especulação filosófica que costura esta tese, seja pela
insistente lembrança de que, a despeito do fim, como canta Caetano Veloso,
estamos “vivos, muito vivos, vivos, vivos”: certamente é por uma insistência pela
reflexão filosófica no que ela pode de melhor. Pelo diálogo honesto e
sensivelmente compreensível das humanidades radicais, pois outras que
moderna além, evidentemente, da dignidade de viver, posto que estamos aqui,
ainda.
Até agora, nos parece que esse lamento pelo fim deste mundo - que é
proferido pelos discursos resignados ancorados nos tristes pactos de um quase
oxímoro do desenvolvimento sustentável, este que coloca como tarefa a ser
realizada pelas pessoas comuns e não pelas grandes corporações neocoloniais
- não passa de uma denegação da pulsão de morte que a violência colonial
4
Gonçalves (2018a).
25
desenvolve como motor do seu expediente. Nos parece ser um grito
desesperado de uma humanidade exclusiva que sabendo que vai morrer do
próprio veneno, se agarra ao que ainda resta do seu narcisismo patológico e
delega a responsabilidade para se manter viva pelo constante uso do trabalho
dos outros. Afinal, foi isso que veio e que chama de empreendedorismo, certo?
Então, por que não chamarmos a morte para o jogo? Morte como fim “de
tudo isso que está aí” ou o fim do mundo como morte a isso... Se o nosso
passado está diante dos olhos e o nosso futuro montado sob nossas costas e
nos premendo à frente (como nos ensina a filosofia dos povos Aymara) 5, talvez
não seja tão necessário assim que deixemos tantas pegadas por aí com a
intenção de nos perpetuarmos, pois a memória pressuporia fazer sobreviver o
chamado por uma humanidade plural, e não reproduzirmos essa vontade de nos
eternizarmos dominando e controlando outras vidas – o que aprendemos quando
fomos colonizadas e colonizados pela conhecida noção de trabalho dos manuais
de sociologia: transformar a natureza para que o trabalho nos transforme.
Devemos, então, na fabulação de outros caminhos e encruzas, abandonar
o que aprendemos nas lições do capitalismo colonial que atrapalha a comunhão
cosmopolítica ao sermos catequizadas e catequizados pelo espírito desejoso e
insaciável da mercadoria. O corpo, o sangue e o espírito do capital foram
alimentados por fins de mundos pré-modernos a partir da sua vida transformada
em trabalho escravizado, o corpo seviciado e a natureza, em seu amplo aspecto
de compreensão, decepada, com vias de concretar e asfaltar um destino
teleológico de que todos os que sobraram deveriam convergir à esta humanidade
exclusiva, para merecer a dignidade da vida e seu direito funesto a um habitar
colonial:
A escravização de homens e mulheres, a exploração da natureza, a
conquista das terras e dos povos autóctones, por um lado, e os
desmatamentos, a exploração dos recursos minerais e dos solos, por
outro, não formam duas realidades distintas, e sim contituem
elementos de um mesmo projeto colonial. A colonização europeia das
Américas é apenas outro nome da imposição de uma maneira singular,
violenta e destruidora de habitar a Terra (Ferdinand, 2022, p. 56).
5
A isto voltaremos, mais adiante.
26
Tal convergência, esse “habitar colonial” de que nos fala Malcom
Ferdinand, nos parece de fácil acesso pela celebração de bens culturais e
educacionais pensados para reforçar essa ontologia espiritual, esse ethos da
morte que, bem disfarçado, resultam currículos eurocentrados e epistemicidas,
festivais étnicos em que só a cultura branca é destacada, celebrações da
consciência negra em que apenas brancos falam e tocam, em imensos
supermercados atacadistas que nos vendem alimentos ultraprocessados na
medida em que estacionam carros cada vez maiores convertidos em SUVs, em
farmácias a cada esquina que nos medicam e nos embotam, nas varandas dos
apartamentos gourmet enfeitadas com bandeiras do Brasil, nos carros de
aplicativo que nos apartam de compartilhar mobilidade pública e que fabricam
trabalhadores-fantasmas, no embranquecimento dos gratilovers que abundam
nos terreiros e apostam na emulação de rituais xamânicos numa autoafirmação
narcísica até mesmo cômica, nos simbolismos de carteirada daqueles vocêsabe-com-quem-está-falando, toda essa afirmação de um progresso e ordem,
essa “violência da condição tóxica [que] recobriu o mundo” (Ferdinand, 2022, p.
133) com seus venenos, garimpos, grilagens, ecocídios e assassinatos de
viventes não humanos, dessa segregação em nome de uma experiência de
consumo exclusiva, de um último respiro que pretende nos distinguir
qualitativamente, mas que escondem imensos danos a essa teia da vida, enfim,
toda essa desgraça. Logo, trazer a morte para o jogo não é nada menos que
reconhecer que, insistindo nesses mecanismos distintivos, teleológicos, nessa
promessa de modernidade, estaremos todos mortos em vida, sem sequer
alcançarmos a possibilidade de pensar o lugar da morte para mundos outros.
Mas, seria pertinente escolhermos qual morte queremos morrer. Eis uma
tarefa importante. Aliás, esse deveria ser um direito. Morte em vida que nos
arrasta para uma apatia covarde ou uma morte que seja compatível com ser
encantada e encantado pela possibilidade de continuar vibrando, tornados,
agora sim, outras entidades, na comunicação constante e presente entre um
passado ancestral e sua atualização no futuro da vida? Morte como um
apagamento, um esquecimento e uma terrível reatualização genocida, ou morte
como possibilidade de viver outramente? Como construiremos o fim de um
mundo para que possamos morrer de outro jeito, em mundos outros? Ou melhor,
como pensarmos em coletividade “uma experiência tão radical que nos leve além
27
da ideia de finitude” (Krenak, 2022, p. 43)? Poderemos começar a responder tais
perguntas, se com mais atenção, nos inspirarmos desta vez no acontecimento
do Arcano XIII - sem nome, mas comumente relacionado à Morte, “quando uma
revolução é desejada, o arcano XIII a enseja com uma rapidez radical, que pode
provocar um grande alívio” (Jodorowsky; Costa, 2016, p. 221) Almejar o fim, a
impermanência deste mundo, portanto. Outra pista, àqueles que ainda têm
dúvidas, pode ser tirada do comentário que o psicanalista Jurandir Freire Costa
faz ao prefaciar o incontornável livro de Neusa Santos Souza, Tornar-se negro,
de 1983 e reeditado, recentemente, em 2021. No texto de Jurandir, é possível
lermos:
Todo ideal identificatório do negro converte-se dessa maneira, num
ideal de retorno ao passado, no qual ele poderia ter sido branco, ou na
projeção de um futuro, em que seu corpo e identidade negros deverão
desaparecer. Não é difícil imaginar o ciclo entrópico, a direção
mortífera imprimida nesse ideal. [...] Seu projeto é o de, no futuro,
deixar de existir; sua aspiração é a de não ser ou não ter sido (Costa,
2021, p. 29).
Essa alienação produzida pelo ideal projeta, portanto, para o futuro, um
fim de mundo, não apenas para as pessoas negras (como é o foco da
argumentação de Jurandir inspirado por Neusa), mas a todas as pessoas
racializadas e aos entes não humanos ou mais que humanos. Se lermos o
antropoceno (ou seus nomes mais acurados como capitaloceno, plantationceno,
etc) enquanto realização máxima desse ideal kantiano de uma Humanidade
exclusivista - pois aniquila tudo o que toca, posto que visa reinar sobre a
exterioridade como uma forma de superá-la, de inscrever-se fora dela,
protegendo-se no conforto dos muros da interioridade de sua mente, e faz isso
à custa de escravização daquilo que considera ser meros “recursos naturais” –
se é assim, portanto, o grande argumento giraria em torno de um fim radical para
esse mecanismo de dominação que aprisiona e interdita as condições objetivas
e materiais, além das espirituais e ontológicas, de produzir outros mundos. Tratase de lutar para não desaparecer enquanto aquele ideal nos toca e nos
transforma em seu arremedo, mas sim, de criar condições de possibilidade para
que outros mundos possam existir coabitando o que restar, ainda, do produto da
tragédia moderna que, talvez, consigamos fazer parar. Afinal de contas, ainda é
preciso pensar e garantir certa “perspectiva objetiva” e a morte, como aquela
28
primeira opção, deve ser evitada sob pena de não existir sequer outros modos
de escolhermos morrer.
O fim do mundo, em suma, é uma necessidade explícita de revolução e
superação daqueles escombros coloniais para que a vida possa ser vivida de
maneira peremptória e radicalmente mais alegre. Contrária a uma ideia
pessimista de que não há saída, o fim do mundo, pelo menos aqui, ganha uma
dimensão da alegria.
Alegria cuja condição para acontecimento é uma
emancipação da dominação colonial [que] não pode ser pensada
unicamente como uma mudança da relação de humanos com
humanos. Ela implica também uma transformação da relação colonial
com as paisagens e com os não humanos, inclusive em suas formas
escravagistas (Ferdinand, 2022, p. 198).
Combater as condições insuportáveis que nos colocam diante da morte e
que vai nos matando, também, a capacidade de imaginar. Imaginar vida, dias
seguintes e saídas às quase aporias sociais e históricas assentadas nessa base
que teima em diferenciar pessoas de pessoas, pessoas de animais, animais de
animais. O destino, assim, será lógico: o fim do mundo, entendido como um fim
coletivo. Catastrófico e escatológico com inundações de fogo e outras tantas e
tamanhas tragédias. A isto, infelizmente, vamos nos acostumando, mas não
deveríamos, como já cantava Marina Colasanti. Contudo, é este fim de mundo
que nos é mandatório imaginar, mais uma vez, contra tudo isso que está posto.
Fabular outros e demais modos, outras e demais formas de fazer viver. A vida
como um compromisso coletivo, portanto. A vida como uma espécie de alívio. A
vida, compartilhada e reconhecida entre todos, como alegria.
Nossas mãos pálidas para anunciar o fim do mundo, como nos interpela
Drummond, é para sabermos que as mãos já não podem, sob risco de se
perpetuarem em manchas de sangue, sustentar a estrutura que descrevemos.
Caras pálidas e mãos pálidas que morrem com este mundo. Contra isso, mãos
coloridas, mãos de cor, caras sem máscaras brancas, corpos em movimento
para, numa espécie de dança, andarmos juntas e juntos, com nossas absolutas
diferenças conosco e com os demais. Observarmos aquilo que nos conta Neusa
Souza no sensível e bonito ensaio O estrangeiro: nossa condição, a saber:
29
Pudesse este [sujeito] acolher o efêmero, admitir a transitoriedade de
todas as coisas, abraçar o nômade em sua transição fugaz, pudesse o
sujeito dizer sim ao estrangeiro, esse passageiro da diferença, e o
estranho haveria de se conjugar, não com inquietude, desalento, dor e
medo, paixões tristes, mas aliar-se com a alegria do novo, com
afirmação do múltiplo, afirmação trágica do plural, do diferente. Só
assim o estranho viria a se definir como afirmação alegre da diferença,
verdadeiro antídoto contra toda forma de racismo. O racismo é essa
peste, olhar odioso que afeta o Outro, visada de ódio e intolerância
àquilo que funda sua diferença. Ódio e intolerância ao Outro, o racismo
é essa maneira funesta de pensar e agir, fruto de uma vontade
totalitária em seu duplo afã de extirpar do Outro o seu modo de gozo
e, ao mesmo tempo, de lhe impor o nosso. Contra o racismo de todas
as cores, de todos os sexos, de todas as crenças, de todas as línguas,
de todas as culturas, de todos os países, contra esse horror, que nos
valha o estrangeiro – o estrangeiro de toda parte, o estrangeiro do
exterior e do interior de nós mesmos (Souza, 2021, p. 129-130).
Assim, diante do exposto, “não estamos aqui para simplesmente constatar
que o mundo já acabou, está acabando ou vai acabar. Há muitos mundos no
Mundo” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 157, grifo dos autores). Então,
o que nos convoca é que
falar do fim do mundo é falar na necessidade de imaginar, antes
que um novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um
novo povo; o povo que falta. Um povo que creia no mundo que ele
deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele (Danowski;
Viveiros de Castro, 2014, p. 159, grifo dos autores).
Essa reflexão nos parece menos um devaneio que uma urgência. E é a
ela que devotamos as páginas a seguir, pois nas leituras, conversas e
experiências que tivemos, é ainda possível tentar. Com certa alegria realista, é
chegada a hora de começar, como nos sugere Jota Mombaça e Musa Michelle
Mattiuzzi, em sua Carta à leitora preta do fim dos tempos6: “002. A destruição
como experimento de um processo anticolonial; a destruição do mundo que
conhecemos como possibilidade de imaginação política”. Porque “não podemos
nos render à narrativa de fim de mundo que tem nos assombrado, porque ela
serve para nos fazer desistir dos nossos sonhos” (Krenak, 2022, p. 37).
Eis a tarefa que nos guia, aqui.
Precisamos nos tornar outramente.
6
Texto que abre o livro de Denise Ferreira da Silva, A dívida Impagável (2019).
30
FIGURA 1 – La Maison Dieu
FONTE: Ben-Dov (2017, p.200).
31
CAPÍTULO 1 – DAS NOSSAS INTENÇÕES OU “PRA COMEÇAR A
ESCREVER DE NOVO PELO FIM”.
71.
Le seule chose au monde qui vaille la peine de commencer:
La Fin du monde parbleu.
Aimé Césaire7
Que todos vivam o grande conclave que é a Terra. O grande
conselho que é a Terra.
Beatriz Nascimento, em “Orí”, de 1989.
Esta tese é povoada de acontecimentos os quais ressoam por todo o
texto, numa espécie de ponto de partida para as reflexões que aqui se farão
presentes, como uma tentativa, dissemos, de imaginar um fim para este mundo
animando mundos outros, ainda que, por enquanto, especulativos. Uma tese que
tenta pensar o acontecimento, portanto, que em suas múltiplas possibilidades,
em seus múltiplos desdobramentos. Com os limites que temos, tenta dar conta
da articulação de reflexões que convergem os muitos anos de leituras, conversas
e, acima de tudo, sentimentos sobre este mundo. À cada acontecimento que aqui
é apresentado pelas leituras, reflexões, passagens e imagens, uma forma de
estender e tentar compreender seus efeitos numa rede, ora mais confusa, ora
menos, de fazer filosofia. Passada esta situação à leitora e ao leitor, sempre que
o efeito parecer confuso em demasia, para além dos óbvios limites teóricos e
argumentativos de qualquer texto e sua autoria, vale a ressalva de ter por
horizonte uma ou várias formas de acontecimentos.
O que pode um acontecimento?
Excerto do poema Cahier d’un retour au pays natal. Conforme tradução de Lilian Pestre de
Almeida (Césaire, 2012, p.42-43):
7
71.
A única coisa no mundo que vale a pena começar:
O Fim do mundo ora essa
32
1.1 A IV Conferência Nacional da Promoção do problema racial
Em maio de 2018, em Brasília, tive a oportunidade, enquanto
representante do poder público, de estar junto à delegação do Paraná na IV
Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, promovida pelo então
Ministério dos Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Promoção da
Igualdade Racial e a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial. Durante a solenidade de abertura, o auditório do Centro Internacional de
Convenções do Brasil pôde presenciar uma cena que ecoaria pelos demais dias
do
evento:
a
disputa
pela
representatividade
das
identidades
que,
aparentemente, seriam contempladas ali.
Aparentemente, porque foram chamadas ao palco algumas pessoas
representantes de diversos segmentos como, por exemplo, os povos ciganos, as
pessoas com deficiência, as pessoas negras, povos ribeirinhos, as pessoas de
religiões de matriz africana e servidores governamentais que, na ocasião,
estavam dando a cara da nova turma. Turma essa que, a pouco, havia se
alastrado pelos gabinetes e repartições do governo federal sob o signo do exvice-presidente Michel Temer. A ex-presidenta Dilma Rousseff havia sofrido um
impeachment que, já à época, estava sob suspeitas de se tratar de um golpe
político-midiático. Hoje, como sabemos, este golpe se confirmou após sua
absolvição das supostas improbidades vinculadas às famosas "pedaladas
fiscais". Enfim, aliado a isso, tínhamos o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva,
preso há pouco mais de um mês do evento pelos arautos da República de
Curitiba, sucursal mais poderosa da operação Lava-Jato.
Antes de prosseguirmos, um ponto importante do acontecimento da tese:
ela é resultado das experiências que se desdobraram e ainda se desdobram,
principalmente na cidade de Curitiba. Casa do pretenso pedacinho da Europa no
Brasil, que carrega em suas esquinas planejadas (diga-se) do centro da cidade
a simbologia do movimento paranista, este com seus ideais de progresso,
trabalho, civilização e futuro que, como aponta André Daniel,
abre um panorama de elementos e ideais que recriam sentidos que se
revelaram nos discursos totalitaristas do século XX, como o nazismo,
o fascismo, o autoritarismo (Daniel, 2020, p. 79);
33
esta mesma cidade que, aos olhos de Dalton Trevisan, “sem pinheiro ou céu
azul, pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar – esta Curitiba, e não a outra
para inglês ver [...]” (Trevisan, 1999, p. 9), é o lugar de formulação das ideias
aqui expressas.
A mesma cidade que diante dos acontecimentos recentes da história da
narrativa política do país - que se arrogou ao deprimente lugar da República de
Curitiba - sediou uma das mais expressivas devassas ao que se poderia esperar
dos ideais e promessas de um regime democrático e jurídico: o palco da
montagem grotesca da peça da Lava-Jato, operação que perseguiu, jurídica e
politicamente, figuras importantes para um certo ideal de justiça social e que
representavam o pior pesadelo aos defensores ferrenhos do espírito lavajatistaparanista: explicitamente conservador, declarada e orgulhosamente branco,
esteticamente hipertrofiado, mentirosamente patriótico e definitivamente
violento. A mesma cidade que vê atualizada uma certa república oligárquica,
que vê proliferar células neonazistas, que se coloriu de um verde e amarelo
insuportáveis, é a cidade em que há, também, formas de resistir e pressionar
pela sua ressignificação. Assim, a ideia de fim de mundo que tentamos expressar
neste estudo pode (e deve) ser entendida como uma tentativa de pôr fim à ideia
mesma de um mundo curitibano inspirada nas resistências aqui presentes.
Curitiba como um símbolo do que o Brasil deve ser, esse fim teleológico para o
povo brasileiro, é esta finalidade que precisa acabar. É aqui, em primeiro lugar,
que pensamos o acontecimento de um fim a que aludimos e, como resposta,
tentamos articular. Aqui, de Curitiba.
Voltemos à IV CONAPIR: a cerimonialista do ato, então, convidou sua
audiência a se postar em respeito para a execução do hino nacional brasileiro.
Ao soar a música gravada nos alto-falantes do espaço e suas primeiras notas da
melodia conduzida pelos sopros da orquestra, foi possível ouvir com nossos pés
grudados ao chão do auditório, uma pulsação que diferia do andamento
quaternário da música cívica. O que ouvíamos, então, para depois conseguirmos
ver, foi, logo após a intensa manifestação contra o então governo Temer e a
prisão injusta de Lula, um grupo com diversas lideranças indígenas reunidas,
marchando pelo corredor que dividia os lados da plateia, desde a porta de
34
entrada até o palco. Este grupo, que agregava em si diferentes povos, não havia
sido convidado à mesa de abertura, aparentemente esquecidos pelo protocolo
cerimonialista e, ao perceberem isso, articularam-se rapidamente em sua em
caminhada marchada, com batidas dos seus pés demarcando território.
Ocuparam, pois, o espaço, ovacionados por parte da plateia que estava
entendendo o que se passava e outras tantas pessoas preocupadas em
esconjurar o novo governo como todo tipo de palavras de ordem, gritos de guerra
e hashtags.
Dali em diante, a IV CONAPIR, as políticas públicas de promoção da
igualdade racial às quais participava ativamente na sua construção local, os
modos de perceber a luta e a resistência das diversas pessoas no Brasil, as
formas de entrar em contato com saberes, a forma de pensar filosofia e de pôr
em marcha o conhecimento articulado ao compromisso de libertação, tomou
outro sentido pela situação concreta e vivida no território super disputado das
políticas públicas, com todas as suas idiossincrasias e “simpatias-sem-vínculo”
(Ferdinand, 2022). A cena vivida, as batidas sentidas na abertura oficial da
Conferência, o “esquecimento” dos povos indígenas representados em sua
multiplicidade ali no espaço institucional-estatal, a perda da inocência sobre o
jogo político em sua estrutura macrodiscursiva da gestão da coisa pública, a luta
pela garantia de direitos dos povos historicamente excluídos como o fim mesmo
da nossa presença ali: tudo isso, com suas contradições, oclusões, aberturas e
incômodos dos mais diversos, a todo tempo trazido à memória sob o ato de
ocupação pelos indígenas durante a abertura da maior conferência de promoção
da igualdade racial do país, a quarta da história recente, foi o que nunca mais
deixou de ressoar, ainda que implicitamente, quando, em qualquer ocasião, se
discute a ideia de justiça social. Pelo menos para mim. Se a luta não é coletiva,
se não há solidariedade, como podemos avançar? Esta pergunta ainda martela...
Esta tentativa de experimentar uma tese de doutoramento em filosofia
nasce, então, não apenas de uma questão acadêmica acerca do problema da
universalidade exclusiva que desenvolvemos durante a pesquisa para o término
da graduação em filosofia, em 2015, e no mestrado em filosofia, concluído em
2018. Nasce, também, das observações e intervenções, todas práticas, as quais
ainda nos chegam a todo o tempo. Seja durante a vida cotidiana e principalmente
por ela, seja pela experiência vivida na construção de políticas de cultura, direitos
35
e infância e seus desafios históricos da qual também fiz parte ativamente, de
2017 a 2021, em Almirante Tamandaré, um dos municípios mais subalternizados
e empobrecidos do Paraná, seja durante o percurso nos grupos de estudos e
eventos acadêmicos cada vez mais abertos a outros mundos possíveis, seja ao
longo dos encontros e tensionamentos diversos, seja compartilhando a casa de
Axé que cuida do meu Orí, seja coabitando o mundo com todos os seres nele
implicados: a todo momento somos conclamadas e conclamados a pensar em
que medida mantemos o nosso endosso a este mundo ou nos recusamos a fazêlo.
O que se pretende com este estudo, mais do que o cumprimento
regulamentar de um protocolo acadêmico – aliás, importante para nós, para
nossa comunidade e para a produção de ciência – é mover horizontes possíveis
que, de certa maneira, contribuam para o fim deste mundo como o conhecemos.
São esforços no sentido de tentar oferecer uma coalizão possível, a partir da
filosofia e o que ela ainda pode promover, para tanto. Sobre quais termos,
problemas e, sobretudo, sobre quais fins se tensionam para este mundo é o que
se tentará articular nas páginas seguintes, que foram escritas a partir de certo
esforço intelectual e que apontam para uma tentativa possível de ser alcançada:
uma restituição, como nos diz Juliana Fausto, da “política que nos é devida”
(Fausto, 2022, p. 1). Não em termos abstratos de uma filosofia política – o que
certamente não é sobre o que se anuncia nesta dívida, mas mobilizadas e
mobilizados em já fazer com que tudo viva, mais no sentido da política enquanto
prática cosmológica e não como uma espécie de controle/gestão deletério. E da
melhor maneira que seja possível a se comprometer.
1.2 Por uma questão a ser perseguida
Colocada em experimento neste trabalho, então, está uma ideia que a
perpassa de fio a pavio: seria possível antever, num primeiro momento, nos
escritos de algumas autoras e alguns autores e seus pensamentos anticoloniais
– mas, principalmente, ao ampliarmos a consulta aos “arquivos-Fanon”8
Como aponta Ivo Queiroz: “O termo arquivos-Fanon refere-se aos discursos que tecem a
narrativa contida nas obras selecionadas para esta pesquisa, quais sejam: Pele negra, máscaras
8
36
(Queiroz, 2013, p. 27) levando em consideração os recém traduzidos escritos
psiquiátricos e escritos políticos9 - a possibilidade de promover a “restituição da
promessa” de um novo humanismo materializado pela dissolução completa do
complexo colonialista [l’ensemble colonialiste] e seus mecanismos de alienação
inerentes ao colonialismo interno? Trata-se, então, da investigação sobre em
que condições existe a possibilidade da dissolução, ainda que neste momento
especulativa, do atual cenário que conhecemos e suas artimanhas e arapucas
coloniais pelas inúmeras páginas da história do pensamento moderno sob a
imagem do fim do mundo.
Em primeiro lugar, pretendemos localizar nos arquivos-Fanon as menções
a este complexo colonialista, seus mecanismos e, sobremaneira, a possibilidade
de uma emancipação pela equação dialética da luta anticolonial (por princípio)
que conduzirá ao mundo pós-colonial (este, sim, como uma promessa a ser
realizada).
As noções de colonialidade do poder, do saber etc. (Quijano, 2005) tão
visitadas atualmente e que muitas vezes são tomadas com ar de novidade, já
estariam postuladas na noção de complexo colonialista, em Fanon. Logo, essa
noção fanoniana ajudaria, antes, a descrever um princípio de "colonialismo
interno" que já mostraria toda a estrutura colonial a se combater efetivamente,
numa espécie de defesa de um cessar-mundo, este que, objetivamente, se
arregimenta sob as bases do complexo. O desenvolvimento da noção deste
complexo colonialista em Fanon - que teria influências diretas da crítica do
brancas; Sociología de uma revolución: Os condenados da terra; Em defesa da revolução
africana” (Queiroz, 2013, p. 27).
É possível notar que o mercado editorial brasileiro, nos recentes anos, vem publicando
traduções inéditas para textos até então pouco conhecidos de Frantz Fanon, na medida em que
reedita algumas de suas obras mais conhecidas, como é o caso da recente edição de Pele
Negra, Máscaras Brancas e Em defesa da revolução africana. Também é bom salientar que o
campo de comentários sobre o autor vem florescendo inclusive com a possibilidade de já haver
certa fortuna crítica de comentários que propõe leituras particulares do pensamento de Fanon,
mostrando que existem “fanonismos” diversos, com suas questões próprias e que, ainda que
tardiamente, promovem o autor a nada menos do que é: um filósofo implicado em questões
candentes para seu tempo e que, por meio de suas reflexões, inspiram muitos outros trabalhos
em vias de promover um novo mundo, uma possibilidade de transformar o que temos. Importante
demais este momento em que mais pessoas conseguem ter acesso ao pensamento fanoniano.
Suas veredas e problemas internos e os efeitos deste processo ressoam nesta tese. Para uma
consulta detalhada sobre os “fanonismos” e suas implicações, ver o trabalho de um dos principais
comentadores brasileiros do autor, cf. Deivison Faustino (2022).
9
37
movimento da Négritude ao denunciar suas artimanhas - poderia ser alvo de
futuros aprofundamentos do autor.
Contudo, pela urgência da luta anticolonial africana, pela morte precoce
de Fanon e pela posterior “falência” das revoluções ao não superarem os
nacionalismos capitalistas estatais e coloniais, não se foi possível dar cabo a
este sistema-mundo onde é constantemente perpetuado o “colonialismo interno”
como lógica de dominação, justamente por passarem do paradigma
revolucionário ao reformista – escopo mesmo da gerência política da
modernidade e seu discurso empresarial, ao reafirmar a humanidade para caber
na ontoepistemologia moderna, como aponta Denise Ferreira da Silva (2007,
2014, 2019, 2020) e, portanto, falhando em seu expediente pretensamente
emancipatório.
Para este percurso, pretendemos mapear os pressupostos mais gerais do
de uma determinada economia de conceitos vinculada ao pensamento
anticolonial da primeira metade do séc. XX, especialmente nos arquivos-Fanon,
mas também em escritos outros que o inspiraram a “sair da grande noite”
colonial, especialmente pela inspiração do pensamento de Suzanne RoussiCésaire. Passado essa primeira tarefa e, depois, a imersão dos arquivos-Fanon,
restaria, em segundo lugar, verificar em Silvia Cusicanqui e Lélia Gonzalez como
haveria a restituição dessa promessa pós-colonial apontando para a articulação
de uma possibilidade de fazer a luta e a resistência cosmopolítica.
Esta parece ser radicalizada em Denise Ferreira da Silva, ao propor a
poética negra feminista assumida na integralidade da ideia do excesso da das
Ding – “a coisa” hegeliana que extrapola a representação da separabilidade
kantiana e propõe um mundo em que tudo conflui ao-mesmo- tempo-agora num
cosmo, num abismo de possibilidade, um continuum de mundo não separado
pela consciência elevada ao supremo da razão por Hegel, assim como por
Heidegger, com sua noção de Subjectum (Silva, 2019). Talvez resida aí o maior
desafio: mobilizar uma atitude revolucionária ao abandonar o primado políticojurídico – muito arraigado às nossas subjetividades ainda modernas, e rumar a
uma possibilidade ilimitada de vida, sem perder, contudo, a intencionalidade da
luta. Voltarmo-nos à uma postura afinada com as proposições, segundo Antônio
Bispo dos Santos (2016, 2023), contracoloniais que, vinculadas à vida e à
experiência dos povos que sempre resistiram aos ataques colonialistas e
38
etnocidas, asseguram um novo dia senão através da luta numa “aliança
cosmológica, mesmo falando línguas diferentes” (Santos, 2018, p. 2).
Com isso, o que nos é caro e interessaria no argumento é reforçar a tese
de como as heranças teóricas de Fanon o fizeram “guerreiro-sílex10”, este que
legou ao pensamento filosófico revolucionário uma postura de enfrentamento
radical das estruturas de dominação e subjugação do “homem pelo homem” e,
por vibrações de sua poética, ajudou a inspirar a possibilidade de outra política,
cosmológica e necessariamente múltipla, ao seu turno. Assim, seu pensamento,
se torcido a realizar aquilo que não houve tempo de ser feito pelas contingências
históricas, levaria a uma contundente reprimenda à noção de essencialismo
ontológico e de luta, às disputas narrativas pelas identidades e a
compartimentação do mundo em estruturas de estados-nacionais com sua
explícita herança colonial. Lendo seus escritos, assim, talvez consigamos
responder à pergunta feita por Wanderson Flor do Nascimento, na ocasião da
qualificação da tese, em julho de 2022, quando ele nos fez pensar: “como Fanon
caminharia conosco pela IV CONAPIR?...
O que seria, então, a proposição fanoniana que, certa maneira, perfaz a
não desenvolvida ideia de novo humanismo? Nada menos que - e acima de tudo,
uma possibilidade (talvez anárquica em seu destino) de superação das relações
de poder e a igualdade em potência e ato entre os entes do mundo. A luta pela
Terra encampada por seus condenados, ao fim, seria a mãe de todas as lutas como nos interpela o movimento dos povos indígenas no Brasil por seu direito à
vida que, antes de patriarcados pátrios, abriria uma possibilidade à diplomacia
das fronteiras rumo à realização de uma mátria cosmológica11. Como quer
Imagem mobilizada por Aimé Césaire, um dos mestres de Fanon. Exortou a figura do seu exaluno no poema Par tous mots guerrier-silex, como tendo a capacidade, tal qual a rocha sílex,
de, numa fricção, alastrar incêndios que sacodem as estruturas colonialistas e entortar seus
ferros e grilhões. Lembremo-nos da poética fanoniana: “Nós pretendemos aquecer a carcaça do
homem e deixá-lo livre. Talvez assim cheguemos a este resultado: o Homem mantendo o fogo
por autocombustão” (FANON, 2008, p. 27). Para tanto, há de se cumprir com sua exigência mais
aguda: a dissolução das formas de manutenção das opressões, sejam elas quais forem. Como
aponta Césaire, desta feita no texto em que o homenageia após sua morte, Fanon foi aquele
“que desperta e aquele que alenta, aquele que chama o homem a cumprir sua tarefa, a se realizar
mediante o exercício de seu próprio pensamento” (Césaire, 2017a, p. 197, tradução nossa).
Sobre o poema citado, cf. Césaire (2017b, p. 231-233).
10
Devo essa formulação a uma conversa que tive com Camila dos Santos da Silva, do povo
Kaingang e colega das Ciências Sociais, na ocasião de nosso encontro para discutir políticas
culturais, em 2022. O seu relato e postura combativa sempre presente em nossos encontros
ecoam neste trabalho de ponta a ponta.
11
39
Achille Mbembe (2017), o paciente fanoniano, paciente deste novo mundo, “é o
paciente do futuro” e, de nossa parte, o seu pensamento filosófico anuncia uma
promessa de mundo pós-colonial, de fato, ao se comprometer como uma espécie
de profilaxia aos espíritos e mentes colonizadas. Profilaxia esta que se constitui
como um novo ideal de vida por meio do engajamento. Para nós, conhecer
Fanon é pensar em um outro mundo possível. Diante então desta espécie de
antecipação do nosso itinerário, passemos à tentativa de promovê-lo.
1.3 Um direito à escrita como um direito da vida
Antes, porém, se faz necessário, para nós, pensar que a escrita deste
texto, ainda que em certa medida preso às regras e convenções acadêmicas de
costurar uma pesquisa de doutoramento, exprime uma postura em aliança com
coletividades de pensamentos que visam, não apenas escrever sobre si, numa
espécie de narrativa autocentrada a qual a filosofia canônica está por muito
tempo acostumada, mas, a partir das observações de mundo, possam
minimamente oferecer um contraponto a ele. É por isso que, para nós, esta tese
pode também ser entendida como uma costura de escrevivências. Assim, se a
nossa leitora e nosso leitor julgarem necessário, podemos inscrever este
conceito como uma espécie de procedimento metodológico.
Ou seja, a metodologia de pesquisa, nesta tese, está em evidenciar textos
nos quais a possibilidade de pluralizar mundos seja possível, com vistas ao
combate irrestrito à fome do capital pela morte de tudo que não se alie a ele e
ao seu inerente fatalismo que, como nos aponta Mark Fisher, “só poderá ser
combatido seriamente pela emergência de um sujeito político novo (e coletivo)”
(Fisher, 2020, p. 89, grifo nosso). Logo, figura-se como um critério metodológico
aqui que tentará ser articulado a partir das observações de mundo que fazem os
seres em luta para que ele se torne mais justo e plural.
A criação conceitual da escrevivência então, surge na poderosa literatura
de Conceição Evaristo. O conceito condensa três atos, a saber: escrever, ver e
viver. Nada mais consoante com a proposta que visa oferecer um contraponto
às formas de produzir exclusão e perpetuar relações de poder estritamente
40
hegemônicas e autoritárias. Assim, segundo Conceição, a escrevivência pode
ser entendida quando
surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo
vivido. [...] Pode-se dizer que os textos femininos negros, para além
de um sentido estético, buscam semantizar um outro movimento,
aquele que abriga todas as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita,
como direito, assim como se toma o lugar da vida (Evaristo, 2005, p. 67, grifos da autora).
A escrita como um dos direitos comuns da vida. Talvez esta ideia esteja
no coração das filosofias que nunca se acovardaram ao enfrentar seus
problemas encarnados. Isso quer dizer que, se a filosofia quando definida a partir
de suas múltiplas possibilidades, mas que, por excelência, tenta sistematizar
alguma ideia e transformá-la em algo que poderia ser relevante às pessoas,
cumpre mal ou bem um papel de sacudi-las de algum jeito. Provoca nessas
pessoas uma espécie de deslocamento de terreno que, às vezes cede
completamente, às vezes apenas trepida. Aquilo que mobiliza o corpo, as
sensações, as contradições e as possibilidades de produzir o pensamento – às
vezes ritmado, às vezes sincopado, às vezes descompassado - faz parte do
perigoso e arriscado jogo de mobilizar paisagens, histórias, inspirações,
sentimentos em vias de, talvez, oferecer algum sentido para esta experiência do
comum a qual chamamos vida, e que compartilhamos entre humanos e
entidades mais que humanas – como as montanhas, os rios, os espíritos, os
encantados e os mares, os animais, por exemplo. Assim, um texto escrevivido
é, segundo Cristiane Côrtes:
Uma forma de preservar o narrador que lê a própria língua de forma
particular e ao mesmo tempo coletiva. Suas experiências pessoais são
convertidas numa perspectiva comunitária. O seu discurso sabota o
oficial porque cria um devir mais justo e coerente com o povo que quer
representar. Essa narrativa une experiência à linguagem para resgatar
o passado ou vivificar a memória. Esse resgate possui uma dimensão
política conectada a uma ideia de coletivo, que foge da representação
e da interiorização da história individual, e dialoga com o silêncio
transgressor na medida em que insiste na resistência do povo
silenciado e na persistência em cravar no campo da escrita essa lacuna
existente pela ausência da representatividade (Côrtes, 2018, p. 56,
grifos nossos).
É por isso que, antes de pensar uma escrevivência autocentrada
unicamente nas experiências individuais, conceder a mais que devida, digamos,
41
“cidadania filosófica” a este conceito tão poderoso traz ao nosso campo uma
possibilidade de construção coletiva de outros mundos que não sejam estes que
estamos assujeitadas e assujeitados pela ampla gama de violências possíveis,
inclusive as violências filosóficas. E este nos parece ser o expediente das
pensadoras e dos pensadores que, diante do racismo virulento e das
expropriações colonialistas, sustentam uma postura que, avessa ao status quo
e a uma certa defesa arraigada do que possa ser um cânone filosófico, partilhe
outras e novas possibilidades de vida sem querer submetê-la a algum tipo de
domínio ou controle. Seguindo essa ideia, Conceição nos exorta, ao se contrapor
à ideia de Clarice Lispector de que a escrita é uma forma de dominar o mundo,
e ainda mais, de somente circunscrever experiências pessoas em detrimento
das coletivas, dizendo que
por isso, nunca pensaria a Escrevivência como possibilidade de
domínio do mundo. Mas como uma pulsação antiga, que corre em
mim por perceber um mundo esfacelado, desde antes, desde
sempre. E o que seria escrever nesse mundo? O que escrever,
como escrever, para que e para quem escrever? Escrevivência,
antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se
inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas,
que o mundo desconsidera. Escrevivência não está para a
abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida.
Um mundo que busco apreender, para que eu possa, nele, me
autoinscrever, mas, com a justa compreensão de que a letra não é
só minha. (Evaristo, 2020, p. 35, grifos nossos).
Neste exercício da comunalidade da vida, “o perigo ao escrever é não
fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa
vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão” (Anzaldúa, 2000, p.
233). Trata-se, de saída, em mobilizar um poder, ou, como quer Octavia Butler
(2017), começar a escrever sobre o ele, pois ainda é algo que se partilha muito
pouco. Escrever, ver e viver, artesania do pensamento que, pedindo licença para
contribuir, nunca deixa de entrar.
Mas, entrar de que maneira? Entrar como? O esforço aqui mobilizado
pretende, com as devidas proporções, apontar alguns dos caminhos pelos quais
pode ser possível requerer uma agenda descolonizatória do pensamento
filosófico. Até hoje tem nos parecido que este compromisso, apesar de todos os
louváveis esforços, apresenta-se mais retórico que, de fato, propositivo. Logo, é
perfeitamente possível - e até esperada - uma atitude cética quando se escuta
42
falar da possibilidade de descolonizar o que quer que seja, pois, até os dias
atuais, a proposta tem sido pouco concreta, haja visto os terrores incessantes
cotidianos. Contudo, como aponta o filósofo camaronês Ernest Marie Mbomda
(2019), ao invés de nos perguntarmos em quais termos essa possibilidade
descolonizatória seria efetiva,
poder-se-ia também, para atenuar essa aparente incredulidade,
reformular[mos] a mesma questão da seguinte forma: quais são as
condições de pensabilidade [pensabilité] ou de possibilidade de uma
real descolonização do conhecimento em filosofia? Com essa
reformulação, ao enfatizar as condições para uma descolonização da
filosofia, o ceticismo deixa uma porta aberta para a possibilidade de um
exame construtivo do que se apresenta como práticas de
descolonização do conhecimento (Mbonda, 2019, p. 300, grifos do
autor, tradução nossa).
Face à impossibilidade, portanto, de entrar em contato com a
profundidade do pensamento anticolonial e seus desdobramentos, sem levar em
consideração suas escrevivências e suas condições de pensabilidade que
mobilizam seus textos em total compasso com sua luta contracolonial, logo, uma
das consequências desse itinerário é abandonar uma leitura apenas interna a
qualquer texto. Esse jeito de se enredar, ou seja, numa conhecida estratégia da
leitura estrutural de textos, nos foi exaustivamente estimulada nos primeiros
anos dos estudos acadêmicos em filosofia. É um método interessante para
revelar os corações dos pensamentos e das escolas, matizes e períodos
históricos distintos entre si. Contudo, o mesmo método dificulta uma compressão
mais alargada das consequências espirituais, cosmológicas e políticas dos
efeitos de produção de mundo que os mesmos pensamentos provocaram e
insistem em provocar. E, diante disso, apenas nos é exigida, como condição de
possibilidade e pensabilidade de vida, saltar para fora das quatro linhas dessas
constituições e costurá-las com tantos outros contextos implicados na feitura
mesma desse mundo em produção.
Trata-se de considerar, assim, a
complexidade de eventos que os geraram, a partir dos olhares que temos, em
conjunto com outros tantos.
E, antes que os defensores da tradição filosófica ofereçam objeções e
desencorajem “contaminações” da biografia dos estudantes nas pesquisas
acadêmicas, sob a acusação de que trazer “aspectos da militância” ou “paixões”
nada tem a ver com objetivos filosóficos estritos, Grada Kilomba os adverte:
43
como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho
acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito
científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual
intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva
demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito emocional”; “muito
específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários
funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim
que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos
discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante,
enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma.
(Kilomba, 2020, p. 35-36).
Diante de tudo isso, dizemos, novamente, que a escrita é um direito da vida e,
se a vida está refletida na filosofia ou melhor, ela se faz senão junto com a vida,
tudo que é dela nos interessa. Bom, passada esta espécie de justificação ainda
necessária aos leitores que oferecem contrapontos a este tipo de fazer filosofia,
voltemos.
Restituir a leitura filosófica pelo que ela pode ter de mais interessante:
vincular mundo ao pensamento, dar-lhe um corpo ou, melhor, aliar músculo ao
conceito (ao invés de substituir um pelo outro). Recusar, enfaticamente, uma
postura que Bispo dos Santos denomina cosmofóbica (Santos, 2021, 2023), esta
que pretende afastar do pensamento, por meio de uma educação
domesticadora, a criatividade especulativa, a múltipla agência e as implicações
compartilhadas para a construção coletiva da vida. Tal expediente filosófico
deveria ocupar nosso trabalho especulativo para exigir do nosso campo e da
confessada paixão que a ele devotamos, o seu melhor: a possibilidade de
transformar e fortalecer a vida por meio do pensamento, o fazendo trepidar e,
nas melhores tentativas, sucumbir de vez, escrevivendo e permitindo que a vida
seja, por princípio, algo a se celebrar e a se defender, se reinventar e se lutar
para fazer acontecer para todos (todos no sentido mais abrangente possível).
Em alegria.
Restituir a vida e o seu princípio que a anima - elã e compromisso para
nós, acaso e indiferença para tantos, mas sobretudo Axé para nós. Axé que Sueli
Carneiro (2023, p. 303), ao louvar seu amigo poeta Arnaldo Xavier, bonitamente
chamou de Axébedoria. Esta que vivemos com desde os primeiros passos de
quem nos antecedeu e que insiste em nos lembrar: é para todas e para todos, e
cabe a nós que recebemos, levar adiante. Esta tarefa faz parte daquela política
que nos é devida, também. Nesse sentido, este esforço se soma à ideia de que,
44
cuidando uns dos outros, cuidamos de nós, sujeitos-alvo de um mundo atual que
nos extirpa a alegria de viver. Defendendo a ideia da comunalidade enquanto
construção coletiva deste fim de mundo, acreditamos, como nos aponta
novamente Sueli Carneiro, que
o momento da inflexão vem, então, do reconhecimento de que,
embora diversos, estamos sujeitos ao dispositivo da racialidade:
isso impulsiona a nossa resistência e reorganiza os sentidos da
existência. Esse processo é mediado pelas contradições do
pertencimento racial, a identificação da luta como único caminho
possível de redenção individual e coletiva para o segmento oprimido
e de que isso não é conjuntural, mas parte integrante da vida,
condição necessária para ser e permanecer, condição
emancipatória da vida no plano individual e coletivo. Por isso tem
que ser feito e refeito todos os dias, porque as contradições estão
presentes no cotidiano de cada um e de todos. O racismo não
descansa. Por isso mesmo, a luta tem que ser permanente,
contínua (Carneiro, 2023, p. 340, grifos da autora).
É a isto, portanto, que nos vincularemos.
1.4 Caminhos para uma encruzilhada de fazer outros Mundos
Ao apontar os limites da produção de conhecimentos pretensamente
universais, especialmente quando estes não se consideram como um sistema
de dominação racial e geopoliticamente justificados, os estudos anticoloniais
apresentam tanto críticas quanto alternativas para transformar e ocupar a
disputa pela sua produção e legitimação. Para tanto, fazem emergir pessoas
subalternas, historicamente excluídas, marginalizadas e colonizadas que, por
meio de suas escrevivências lutam por uma fissura nas narrativas, saberes e
subjetividades até então hegemônicas.
Diante da ainda necessária crítica à empresa colonial (Césaire, 1978) e
sua supremacia branca (Mills, 2006) inerente, a possibilidade de ampliar os
limites da própria ideia de filosofia comprometida pela manutenção da vida –
sobretudo ao forjar um alargamento do conceito de humanidade frente à crítica
ao humanismo moderno, se faz tarefa urgente, e especular em quais termos isso
seria possível um procedimento filosófico inadiável.
A partir da nossa hipótese interpretativa sobre o pensamento racial
kantiano desenvolvida no estudo do mestrado, nos foi possível pensar como o
regime colonial ontológico de produção de conhecimento se inscreveu e ainda
45
se sustenta no interior discursivo da supremacia moderna. A consequência deste
expediente colonizatório produziu inúmeras formas de sujeição e subalternidade,
principalmente por negar a produção de saberes e pensamentos próprios, que
na maioria das vezes, oferece um mundo invertido pela lógica eurocêntrica, por
isso mesmo um mundo do “desatino insuportável” (Clastres, 2014). O que
mobilizamos agora sobre o estatuto de construção ontológica dos subalternos
pós-coloniais diante de seu excesso ontoepistemológicos (Silva, 2019). Ou seja,
uma vez que a ontologia humanamente moderna é exclusiva e exclusivista,
principalmente à luz do Humanismo da Aufklärung, como tensionar – e se é
possível o fazê-lo – pelo menos uma humanidade “à medida do mundo” (Césaire,
1978, p. 63)?
Assim, uma pergunta cara ao nosso itinerário, vinculada à grande primeira
questão, será: filosoficamente, é possível identificar uma noção de humanidade
que se almejou construir nos escritos anticoloniais aqui a analisados? E uma
segunda questão, coextensiva à primeira: se sim, até que ponto suas
consequências políticas e estéticas alargaram o próprio conceito de humanidade
que outrora foi concebido exclusivamente? Para tentar responder nossas
inquietações filosóficas, iremos a) apresentar algumas noções da crítica
anticolonial proposta por Suzanne Roussi-Césaire e Frantz Fanon entorno do
complexo colonialista e seus mecanismos, além de pensar que este complexo
representa um mundo que precisa acabar; b) identificar como o legado destes
escritos anticoloniais fanonianos influenciaram na construção
teórica do
pensamento contemporâneo sobre o que pode ser pensado para humanidades
outras que habitem mundos outros, em Lélia Gonzalez, Silvia Rivera Cusicanqui
e Denise Ferreira da Silva, e c) relacionar as teses propostas pelos escritos
anticoloniais para a construção da ideia de uma filosofia que, de fato, promova o
rompimento das tristezas coloniais, vinculado ao mundo como conhecemos pelo menos ao que fomos acostumados pelo espírito filosófico moderno que,
apesar de suas grandes diferenças, carrega em si um desejo de domínio do
conhecimento que só logrou êxito a partir do trabalho escravizado nas colônias
ameríndias, africanas e asiáticas; para, então, pensar uma alegria da vida
enquanto um acontecimento.
Para tanto, os próximos dois capítulos apresentarão os caminhos pelos
quais se desenvolverá a primeira grande crítica ao aparato colonial por meio do
46
pensamento de Suzanne Roussi-Césaire e o movimento da Négritude e, depois,
a explosão filosófica de Frantz Fanon e sua radicalidade anticolonialista. A partir
dos seus escritos, trataremos de verificar em quais caminhos suas proposições
dão conta de estabelecer uma potente crítica ao sistema colonial em vigência,
concomitantemente à mobilização de uma estratégia de valorização da
subjetividade das pessoas colonizadas, ainda que em sua gênese. Esta
valorização logrará êxito na radicalidade de uma postura anticolonial posterior,
mas que já então anunciada, provoca reflexões acerca dos malefícios da
expropriação colonial na vida dos colonizados.
Assim, ao escrutínio dos arquivos-Fanon, mostraremos como este
pensador tão fundamental para as ciências humanas atuais, concebe um projeto
filosófico que é eminentemente revolucionário. Isso porque seu pensamento
propõe tanto do ponto de vista da luta concreta pela qual se implicou, mas
também do ponto de vista pela luta especulativa, uma perspectivação do jogo
moderno que fomentou as múltiplas formas de opressão no seio do capitalismo
imperialista.
Passada a oportunidade de ver mais de perto como Fanon pensou uma
revolução tal que advogue um fim para este mundo como o conhecemos,
pretendemos desenvolver como os ecos de suas proposições chegam em
projetos filosóficos que tentam atualizar seus pressupostos na medida em que
há o refinamento (ou, talvez, o embrutecimento total) das formas de
neocolonialismo que nunca abandonou o dispositivo do racismo, do sexismo e
do colonialismo interno. Procederemos essa tentativa de analisar o cenário a
partir das contribuições escrevividas de Lélia Gonzalez, Silvia Rivera Cusicanqui
e Denise Ferreira da Silva.
Ao fim, esta tese tenta reunir, numa espécie de ensaio para a alegria, um
projeto que, se bem executado, pretende mostrar o quanto isso pode ser possível
a partir daquele princípio como quem deseja, afirmativamente, a própria chance
de estar aqui, coletivamente. As pessoas que leem o texto estão convidadas
para pensar conjuntamente se foi possível realizar tal empreitada e se vale a
pena se engajarem nas proposições aqui apresentadas, levando-as adiante.
Seguimos.
47
FIGURA 2 – Tuíra Kayapó e o Terçado
FONTE: Paulo Jares (1989)
48
CAPÍTULO 2 – UMA LUZ PARA “O DRAMA DA TERRA”
2.1 Suzanne Roussi-Césaire: um surrealismo milagroso
Dedicamos este pequeno capítulo ao pensamento de Suzanne RoussiCésaire que, em seu nome antes da marca do casamento com Aimé Césaire,
carregava uma outra, Roussi, desta feita de um verbo que queima [fr. roussir],
de forma permanente, a imagem de uma construção ontológica. Queimadura
provocada por meio das expressões literárias que extraem da arte o seu
potencial revolucionário; que oferece condições para que o pensamento seja
libertado das tragédias da sub-representação e das amarras de uma triste
dependência. Queimadura também que legiferou a poesia atlântica mais
conhecida de Aimé Césaire, mas que, por motivos também da estrutura colonial
e seu machismo, restaram por muito apagadas.
2.2 O movimento da Négritude
Ao descer12 aos confins do sentimento e do inconsciente a fim de
transfigurar, ressignificar e desmistificar as construções coloniais racistas que
viam nas pessoas negras uma sub-humanidade, o movimento da Négritude
contou com a produção bastante estimada, ainda que em certa medida
marginalizada. Seu nome, uma subversão que positiva o insulto contido na
expressão francesa nègre, que designa pejorativamente uma pessoa de cor
(com todos os predicados a ela atribuídos pelas teorias racistas), acrescido do
sufixo tude que, de origem latina, designa o estado ou qualidade de algo. Logo,
essa qualidade positivada daquilo que se atribui outrora como pura negatividade
torna-se uma das perspectivas estéticas, políticas e filosóficas mais
Sobre este ponto devo mencionar a clareza fundamental com que o professor Maicon Reus
Engler abordou esta tópica e seus desdobramentos não só para o platonismo, como para uma
ideia geral de filosofia, na ocasião do curso ministrado por ele sobre A República, durante o
primeiro semestre de 2020, no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPR.
12
49
contundentes no enfrentamento das artimanhas colonialistas racistas. Assim,
conforme René Depestre13,
era a primeira vez na América que uma palavra de sentido pejorativo e
ofensivo, na sua origem, perdia, aos olhos do oprimido, sua acepção
injuriosa, para, como um bumerangue, voltar à cabeça do opressor,
assumindo, repentinamente, uma função de reparação e de justiça
(Depestre, 1980, p. 33).
O termo négritude encontrou a sua primeira ocorrência provavelmente nos
rascunhos da primeira versão de um poema capital para o movimento, a saber:
o Cahier d’un retour au pays natal [Diário de um retorno ao país natal] de Aimé
Césaire. Considerado o “poema matriarcal da negritude” (Almeida, 2012), a obra
composta pelo poeta e político martinicano ao longo de, pelo menos, 17 anos
(desde sua primeira versão em 1939 até sua versão definitiva em 1956),
influenciou definitivamente a perspectiva de valorização das características
aparentemente comuns entre pessoas negras que, pelo advento da diáspora e
seus crimes, se espalharam ao longo de todo o planeta.
Depestre considera que o movimento é muito devedor da efervescência
das ideias estéticas anticoloniais que tiverem florescimento a partir do encontro
de algumas pessoas, em Paris, no início do século XX:
O movimento martiniquense, guadalupeano, guianense, da negritude,
mais ou menos contemporâneo ao renascimento haitiano, que
começou em 1928 com Ainsi parla l’oncle e La Revue indigène, é uma
vanguarda que, entretanto, não recobre o do Haiti. A negritude se
formou organicamente em Paris, onde seus criadores faziam seus
estudos superiores: Étienne Léro, Jules Monnerot, René Ménil, Aimé
Césaire, Léon Damas, Léonard Sainville, Aristide Maugée, os irmãos
Achille (o único haitiano do grupo antilhano era o Dr. Sajous, originário
de Cayes, Haiti) aos quais se juntaram, dois anos depois, os
estudantes africanos Léopold Sedar Senghor, Osmane Socé, Birago
Diop, todos os três do Senegal. Em seus primeiros momentos – e
talvez até sua dispersão pela guerra, em 1939 – este foi um grupo
ideologicamente muito heterogêneo no qual figuravam um marxismo
de estrita obediência como o de René Ménil e um Jules Monnerot que
faria depois uma evolução diametralmente diferente. Esses jovens
intelectuais organizaram (além da Revue du munde noir, publicação
bilingüe, com Andrée Nardal e Sajous, que teve a colaboração de Jean
René Depestre, poeta e literato haitiano, amigo de Aimé Césaire e figura muito importante para
o pensamento literário do caribe, redige um texto, em 1980, intitulado Bom dia e adeus à
negritude. Este texto, vinculado ao comparatismo literário interamericano, revisita a história do
movimento Négritude na medida em que apresenta uma crítica importante a ele. Depestre, ao
se afastar de seus ideais, rumou em direção a outros movimentos, como é o caso do Antillanité
proposto por Édouard Glissant, por exemplo.
13
50
Price-Mars, Alain Locke, Claude McKay, Félix Éboué, René Maran)
duas publicações efêmeras: Légitime défense (1932), L’Étudiant noir
(1934). Com armas desiguais fornecidas pelo marxismo, pelo
surrealismo e pelo freudismo, sem contar o recurso à etnologia de
Frobenius, Delafosse, Georges Hardy, Robert Delavignette, Théodore
Monod, essas revistas abriram fogo de artilharia pesada, tanto sobre o
mundo capitalista cristão e burguês quanto sobre a opressão colonial
e o racismo (Depedtre, 1980, p. 31).
Mais precisamente, em 1934 com a edição da revista L’Étudiant noir, que
além de Aimé Césaire contava com a coedição dos poetas e políticos Léopold
Sédar Senghor e Léon Damas – do Senegal e da Guiana Francesa,
respectivamente – o movimento se estendeu por vários anos constituindo-se
como difusor de seus ideais emancipatórios que vinculavam uma ideia de
valorização positiva da identidade negra com suas estéticas e, enfim, políticas.
Tratou-se, então, de estabelecer uma via em que houvesse a
desmistificação, subversão e afirmação da negritude enquanto estratégia para
fazer nascer uma identidade positiva, que não mais vê a sua humanidade
limitada e interditada. O que esteve a combater,
em suma, [foi] a religião cristã, o destino fatal, a ciência e a política –
toda a tradição humanista europeia – [que] se dão a mão para justificar
a exclusão do negro da humanidade. E o excluído aceita sua exclusão,
convencido do fundamento do discurso do outro” (Almeida, 2012, p.
127).
Como Lélia Gonzalez (1988) bem nos informou, o que está em franca
recursa é o suposto-saber enunciativo que constrói e sustenta a existência
menorizada das pessoas racializadas – especialmente negras – a partir da tara
racista da dominação sexualizante de seus corpos, e da captura sádica de seus
espíritos, por meio das estratégias colonizatórias que vão muito além da mera
ocupação geográfica. Trata-se, em suma, de uma colonização territorial do
complexo mente-corpo-espírito das pessoas que, vítimas de uma trama colonial
racista e genocida, têm um intenso trabalho de buscar caminhos outros para uma
afirmação da vida, em última instância.
Entretanto, voltemos a esse cenário que, no desenvolvimento e nos
espólios da Segunda Guerra Mundial tensionava – inspirado de forma
confessional no processo de independência do Haiti, em 1º de janeiro de 1804,
a construção de um novo mundo. A revista Tropiques constituiu como um
51
importante veículo de circulação das ideias antilhanas, além de Aimé Césaire,
René Ménil e Aristide Maugée (literatos martinicanos) encontrou na figura de
Suzanne Roussi-Césaire sua maior articuladora, especialmente com outro
movimento estético caro à esta turma mais centro-atlântica: o Surrealismo.
2.3 Um apagamento ensurdecedor
Num importante artigo, Rosânia Oliveira do Nascimento (2016) restitui a
figura de Suzanne que restou apagada por muitos anos. Conforme a autora,
diante do fato de Suzanne ter sido obliterada pela fama de seu companheiro
Aimé, (fortemente causado pelo machismo histórico ainda vigente), é imperativo
o reconhecimento de sua participação não só no movimento surrealista em
diáspora, mas no pensamento de seu cônjuge no que toca às intenções
libertárias do movimento de origem francesa do começo do século XX – o
surrealismo, alicerçando o “humanismo à medida do mundo” como advogava
seu companheiro:
Apesar de notarmos uma mulher, uma estudante ativista da Diáspora
Negra, há ainda lacunas sobre a produção literária desta martinicana e
[...] persistem indagações inaudíveis: como uma pensadora da
relevância Suzanne Roussi-Césaire passou despercebida pelos
críticos do Movimento Négritude? Dada a sua importância como editora
e co-fundadora de duas prestigiadas revistas entre as décadas de 1920
a 1940, qual a razão da sua pouca produção? E, por que parou de
escrever no auge de suas reflexões? (Nascimento, 2016, p. 16).
Reforçando este coro, no belo posfácio que integra os artigos e ensaios
de Suzanne Roussi-Césaire recentemente traduzidos no Brasil (Papéis
Selvagens, 2021), Lilian Pestre de Almeida aponta que a pensadora não
somente influenciou o movimento, mas determinou muito de seus rumos. A
propósito do comentário que tece sobre a evidência desta “apropriação” a partir
do ensaio de Suzanne, a saber, “Alain e a estética”, datado de julho de 1941,
Almeida nos interpela ao dizer que
o conhecimento das diferentes versões do Cahier, este poema “móvil”
entre todos, permite-nos afirmar sem qualquer dúvida que é o poeta
Aimé que desenvolve o texto escrito e publicado pela sua mulher em
1941. Isso nos faz descobrir que, se Suzanne, nas suas epígrafes ou
fechos de textos, retoma Césaire, este, igualmente, retoma textos de
52
sua mulher, quer seja desenvolvendo-os, quer resumindo-os. Aliás,
não é o único a fazê-lo” (Almeida, 2021, p. 93).
E, não menos que isso: a autora, que é uma das principais estudiosas e
tradutoras de Aimé Césaire, considera que os hiatos e a interrupção da intensa,
mas curta produção intelectual e artística de Suzanne, se deve à sua saúde frágil
que ainda era conciliada com a criação de seus seis filhos tidos com Aimé, além
de seu intenso trabalho docente numa das principais instituições de ensino da
Martinica, inclusive tendo sido professora de Fanon. Logo, uma justiça é devida
a Suzanne que, ao estruturar o movimento da Négritude, forneceu as bases para
que se pudesse tensionar o seu projeto de libertação.
Quais são os elementos que se podem antever em sua obra, pelo menos
as que tivemos acesso? Ressaltamos três neste trabalho, mas certamente
podem ser elencados muitos mais.
Como primeiro elemento, podemos destacar uma ideia muito particular de
humanidade. Sobre este ponto, é possível mapear tal ideia a partir do ensaio que
ela escreve, em abril de 1941 intitulado “Leo Frobenius e o problema das
civilizações”. Evocando o pensamento do referido antropólogo alemão14 e seu
conceito de Paideuma, a saber, um princípio que se inscreveria na dinâmica
cultural de qualquer sociedade de modo a permitir que se movimente como um
organismo vivo, Suzanne postulará:
Não, o homem não cria a civilização; não, a civilização não é obra do
homem.
O homem, ao contrário, é instrumento da civilização, um simples meio
de expressão de uma potência orgânica que o ultrapassa infinitamente.
O homem não age, é agido, movido por uma força anterior à
humanidade, uma força que se confunde com a própria força vital, a
Paideuma fundamental” (Roussi-Césaire, 2021, p. 27).
Leo Frobenius foi um etnólogo que, durante seu trabalho nos primeiros anos do século XX,
circulou por territórios africanos coletando suas mitologias e ficando reconhecido por isso, além
de que teria incentivado revoluções dos súditos muçulmanos do império britânico, todas
malfadadas (Riva; Biocca, 2016). Frobenius também foi entusiasta pela existência da Atlantis
africana, esta que teria lançado as bases dos elementos culturais do continente. A partir da sua
pretensa valorização do território africano, é exortado pelo movimento da Négritude por sua
importância ao estudar a “morfologia das culturas”. Conforme Suzanne, esta “que não é nem
história primitiva, nem pré-história, nem história moderna. Ela não acumula fatos e datas. Não é
também arqueologia – não é tampouco etnologia, etnografia – Não – O que ela quer é estudar
‘o ser orgânico’ da civilização. Civilização esta que é concebida como ‘entidade metafísica’”
(Roussi-Cesáire, 2021, p. 28).
14
53
Este argumento pouco ortodoxo15, especialmente às ciências do político,
se vinculará, a partir do pensamento de Suzanne, a um destino comum, a saber:
o enfrentamento dos “problemas imediatos dos quais é impossível escapar sem
covardia” (Roussi-Césaire, 2021, p. 32), uma vez que
parece que a humanidade euramericana teria sido tomada no século
XIX por uma verdadeira loucura da ciência, pela técnica, por máquinas,
cujo resultado foi o pensamento imperialista criador da economia
mundial e do cerco do globo. Essa verdadeira loucura de poder e de
dominação que transtorna a humanidade, em catástrofes tão terríveis
quanto as guerras de 1914 e 1939, é o sintoma de uma nova irrupção
da Paideuma. Irrupções de que não podemos ainda ter plena
consciência e cujo sentido real ainda permanece oculto para nós. Está
aí o drama da terra. Quanto ao papel do homem, ele é o de se preparar
para viver esse futuro outro, é o de se deixar mover pelo Real, sem
perder esse sentido da piedade, esse sentido da conquista, esse
sentido do destino que é sua herança única, inestimável (RoussiCésaire, 2021, p. 32).
Esta ideia de uma humanidade vinculada a um princípio global não tanto
ativo e que apresenta os sintomas de seu tempo, conferiria uma espécie de dupla
situação: o acirramento das dinâmicas sociais pelas disputas promovidas na
égide da técnica moderna, ao passo que, a partir dela, se exige com bastante
coragem, uma contraposição em vias de entender o real drama da terra, ainda
inacessível, mas que conclama a uma superação da “verdadeira loucura de
poder e dominação que transforma a humanidade”.
Curioso notar, ainda neste primeiro elemento, um aspecto central, a
saber: restituir ao campo da arte o poder de ser o local de remissão desta
humanidade problemática. Sobre isso, Suzanne, em outro artigo datado de julho
de 1941, intitulado “Alain e a estética” aponta:
Em todo caso, em todas as artes, o velho horizonte se amplia e recua
para além do concebível. A mais bela ambição do homem, conhecer o
inconhecível, realiza-se. A arte é o único caminho de acesso, atual,
para esse outro mundo, atraente. Esse é o poder que é delegado ao
artista. Estamos no direito de esperar dele todos os milagres. [...] A
uma nova consciência do mundo, uma nova consciência do humano
corresponde um jogo novo, esplêndido (Roussi-Césaire, 2021, p. 41,
grifos nossos).
Que podemos, sem hesitar, ver em Fanon a sua recusa. Basta lembrarmo-nos que um dos
seus princípios mais caros é a noção em torno do conceito de “sociogenia” e o sociodiagnóstico
da situação colonial: “a Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa à
influência humana. É pelo homem que a Sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos
daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício” (Fanon, 2008, p. 28).
15
54
Neste passo, ao lermos a passagem acima, entramos em contato com
uma espécie de alívio que só pode advir da arte. Sobre este ponto, vale a pena
sugerir que, ancoradas e ancorados neste milagre que nos é permitido esperar
dos artistas, há um horizonte possível que vai de encontro a um “cosmocídio” de
que nos fala o filósofo Dénètem Touam Bona (2020). A este verdadeiro inferno,
aquele que mata qualquer possibilidade de vivermos de forma encantada e
ampliada, podemos pensar uma alternativa coletiva e poética que tenda a ver os
acontecimentos dos mundos que poderemos criar como saídas, como
capacidade de evitarmos a pobre morte do fim do mundo como consequência
última do capitalismo tardio, filho feio do plantatioceno. Segundo Bona, como
uma urgência artística, a cosmopoética
é a forma primeira da ecologia: uma ecologia dos sentidos e da
imagine-ação pela qual pajés, ngangas, mães de santo, bruxas
neopagças e outros mestres do invisível estabelecem um diálogo
obscuro, tecido de metáforas, com o conjunto de tudo que vibra (Bona,
2020, p. 11).
Se trazemos Suzanne aqui como uma inspiração não só para Fanon,
como veremos a seguir, mas animando toda a tese, especialmente diante deste
argumento da arte ser um dos caminhos possíveis para a construção de
viabilidades contrárias ao fim de mundo empobrecido pela cosmovisão moderna,
vibramos na proposta coletiva, novamente, de resistências pela amplidão do
pensamento especulativo, filosófico-artístico, não só dos artistas, mas também
das pessoas que sabem mover as vibrações do mundo. Assim, pode ser ainda
possível, ir adiante. Mas, voltemos aos dois últimos elementos que destacamos
do pensamento de Suzanne.
O segundo, resta, ao contrário do que se possa pretender, numa recusa
a um certo viés essencialista de passado – justamente o que muito se apontaria
pelos detratores do movimento Négritude, inclusive os próprios Fanon e
Depestre16.
16 Depestre chega a considerar que, no núcleo desta crítica, pode se encontrar o que chama de
uma metafísica somática, pois apresenta um paradoxo. Segundo ele, “longe de formar uma
consciência contra as violências do subdesenvolvimento, a negritude dissolve seus negros e
seus negro-africanos num essencialismo perfeitamente inofensivo para o sistema que subtrai
aos homens e mulheres a sua identidade. Hoje os "negrólogos" da negritude a apresentam como
uma concepção de mundo que, nas sociedades americanas ou africanas, seria exclusiva dos
55
Sobre essa recusa, desta vez no ensaio intitulado “Mal-estar de uma
civilização”, de abril de 1942, Suzanne se opõe tenazmente aos mecanismos de
assimilação colonial que estacionariam a criatividade estética dos colonizados
diante da superioridade de seus opressores. Deste modo, a solução, que passa
por uma reflexão necessariamente estética e pelo viés da cultura, conduziria a
uma legitimidade da ação. Nos termos de Suzanne,
Não se trata de uma volta atrás, da ressureição de um passado
africano que aprendemos a conhecer e a respeitar. Trata-se, ao
contrário, de uma mobilização de todas as formas vivas misturadas
nesta terra onde a raça é o resultado da combinação mais contínua;
trata-se de tomar consciência do formidável acúmulo de energias
diversas que até aqui encerramos em nós mesmos. Devemos agora
empregá-las em sua plenitude, sem desvio e sem falsificação. Pior
para aqueles que nos julgam sonhadores.
A mais perturbadora realidade é a nossa.
Agiremos.
Essa terra, a nossa, só pode ser o que queremos que seja. (RoussiCésaire, 2021, p. 57).
O segundo elemento aparece na importância incontornável de Suzanne
neste cenário a partir de suas contribuições e conexões com o Surrealismo
proposto por André Breton.
Como é sabido, este foi um movimento de
vanguarda francesa que, no início dos anos da década de 1920, a partir do
Manifesto Surrealista de autoria de Breton, pretendeu subverter o enrijecimento
que se anunciava ao mundo depois de séculos de tradição europeia da
racionalidade e da sua ordenação pragmática que desaguou nos escândalos das
guerras europeias de 1919 e 1938. O legado desta tradição se exacerbou nas
guerras e inúmeras formas de opressão que, por sua crueldade e
desenvolvimento técnico, se voltaram contra a Europa e exterminaram milhares
dos seus. Frente a isso, o movimento propunha uma libertação da representação
de suas amarras racionalistas na medida em que deixava fluir, numa espécie de
negros, independentemente da posição que eles ocupam na produção, na propriedade e na
distribuição de bens materiais e espirituais. De fato, trata-se de uma Weltanschauung de origem
anti-racista que, recuperada pelo neocolonialismo, tenta na sombra do movimento e reforçandose em sofismas, manter os negros oprimidos distantes das determinações que devem fecundar
suas lutas de libertação. A negritude, de movimento de contestação literária e artística que foi,
no princípio, à ideologia de Estado em que se tornou, não é, entretanto, um fenômeno de geração
espontânea. A negritude tem um passado: ela é, por certo, estreitamente tributária da história e
das estruturas sociais formadas pelo escândalo americano do tráfico negreiro e o do regime da
plantation” (Depestre, 1980, p. 2, grifos do autor).
56
associação livre, o pensamento e a tentativa de, então, representá-lo
esteticamente.
Nada mais candente a um movimento que estava motivado a erigir um
mundo novo a partir da valorização de aspectos brutalmente reprimidos pelo
sistema colonial. Assim, certamente ao influenciar seus entusiastas pela
Négritude e explicitamente a Suzanne, é possível estabelecer que na
interlocução entre os autores dos trópicos e os surrealistas europeus, um projeto
de superação do colonialismo foi gestado. Assim, a pensadora, desta vez no
ensaio intitulado “1943: o surrealismo e nós”, de outubro de 1943, considera que
assim é a atividade surrealista, uma atividade total: a única que pode
libertar o homem, revelando-lhe seu inconsciente, uma das que
ajudarão a libertar os povos, esclarecendo os mitos cegos que os
conduziram até aqui. [...] Portanto, longe de contradizer, ou de atenuar,
ou de desviar nosso sentimento revolucionário da vida, o surrealismo
o apoia. Ele alimenta em nós uma força impaciente, mantendo sem fim
o exército maciço das negações (Roussi-Césaire, 2021, p. 62).
O terceiro e último elemento a se destacar, coextensivo ao segundo, está
na oportunidade devida de reconhecer o papel central das mulheres na produção
da luta, do conhecimento e da especulação libertária por meio do viés surrealista,
neste caso. Pareceria necessário dizer isso, cumprindo uma prerrogativa formal
e meramente inclusiva requerida nos tempos atuais. Contudo, não é o caso deste
argumento. Lembremo-nos de Angela Davis que disse17: “quando a mulher
negra se movimenta, toda a estrutura sociedade se movimenta com ela”. Nada
menos que isso, além de uma “justiça epistêmica” da qual nos fala Wanderson
Flor do Nascimento (2023), deve ser atribuída a Suzanne Roussi-Césaire, que,
se não foi a mais influente pensadora do surrealismo no contexto da 2ª Guerra,
figura como uma das principais, como aponta Penelope Rosemont, editora da
antologia sobre a participação das mulheres no movimento:
Muitas vezes, é difícil e às vezes impossível identificar as influências
particulares de indivíduos. Aqui, eu simplesmente sugiro que os
principais desenvolvimentos do pensamento surrealista durante a
Segunda Guerra Mundial – particularmente no que diz respeito à
emancipação das mulheres, a relação entre a humanidade e a
natureza, a importância da cultura popular e uma apreciação mais
profunda das culturas negras, nativas americanas e outras do Terceiro
Mundo – foram o resultado, em grande medida, da influência
17
Em sua conferência na UFBA, em Salvador, em julho de 2017.
57
cumulativa e crescente de mulheres e participantes do Terceiro Mundo
no Movimento Surrealista (Rosemont, 1998, p. 124, tradução nossa).
2.4 Os milagres ainda por acontecer
Após percorrer - ainda que de forma breve, até mesmo porque os textos a
que temos acesso são pequenos em sua quantidade pelas razões já apontadas
acima -, as contribuições de Suzanne Roussi-Césaire ao movimento Négritude,
estas que certamente somam em mais monta, devem ser melhor aprofundadas
posteriormente por novas pesquisas.
Mesmo assim, por suas inestimáveis contribuições não só ao referido
movimento da Négritude, mas ao desmantelamento do mundo colonial, Suzanne
nos ensina – assim como ensinou a seu aluno Fanon - que não é exigida apenas
uma certa reparação (ainda que totalmente irrealizável) da opressão sofrida e,
menos ainda, uma busca incessante a uma identidade perdida – mesmo que a
própria noção de identidade exerça um papel fundamental pela retomada da
subjetividade colonizada enquanto partícipe da humanidade global. Mas tratarse-á da possibilidade de desvelar as estruturas opressoras que o mantiveram,
por séculos, nos mais terríveis açoites às testemunhas de sua história.
Tratar-se-á de uma promessa de um futuro, não mais hipotecado como
nos interpela Fanon, mas de todas os milagres, como quer Suzanne
sustentando-se na arte e na cultura em vias de construir um mundo novo.
58
FIGURA 3 – Suzanne Roussi-Césaire
FONTE: madinin-art.net/11-aout-2015-le-centenaire-de-suzanne-roussi/
59
CAPÍTULO 3 - O GUERREIRO-SÍLEX
D’une intelligence aiguë, intensément vivant, doté d’un sombre
humour, il expliquait, bouffonnait, interpellait, imitait, racontait : il
rendait présent tout ce qu’il évoquait.
Simone de Beauvoir18
O projeto filosófico de Frantz Fanon é profundo, posto que radical. É a
partir do nosso encontro com ele e seu pensamento que as motivações aqui se
desenvolveram. As suas considerações que se tornaram referenciais
incontornáveis para todas as pessoas que investigam os efeitos do racismo nas
subjetividades é uma parte importante de sua proposta, mas não é a única. Este
aspecto central e certamente mais conhecido de seu pensamento, a saber, a
desalienação das pessoas negras, participa de um projeto maior; um projeto
revolucionário que, em termos gerais e muito próprios, “deve tender ao
universalismo inerente à condição humana” (Fanon, 2008, p. 28). Pelo menos é
o que podemos antever como horizonte em sua obra mais famosa, Pele Negra,
Máscaras Brancas, de 1951.
A ambição de Fanon se desdobra numa espécie de tentativa limite: uma
que seja fundamentada totalmente em sua prática, que pode subverter a própria
filosofia calcada em uma tradição exclusivista, uma vez que “se é em nome da
inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, é também
em seu nome que muitas vezes se decide seu extermínio” (Fanon, 2008, p. 43).
De saída, o alvo torna-se o mapeamento das estruturas alienantes que foram
perpetradas por ideias mistificadoras com seu substrato filosófico-colonial. Não
à toa que, na obra em questão, a palavra “mistificação” e “alienação” pipocam
na efervescência do seu projeto de emancipação completa das amarras
opressoras. Mais uma vez, o que deve ser feito é proceder à jornada para
uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida,
uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico
Assim foi que, em La force des choses, Simone de Beauvoir (2014, p. 359) definiu Fanon. Uma
possível tradução seria: “De uma inteligência aguda, intensamente viva, dotada de humor ácido,
explicava, brincava, desafiava, imitava, contava: tornava presente tudo o que evocava”.
18
60
ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do
benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos” (Fanon,
2008, p. 26).
Novamente a tópica de descer aos confins da sujeição reaparece, para
dela, ressurgir uma outra possibilidade de inventar a vida. E essa descida
compreende desvelar os conflitos psíquicos que são palco da alienação mais
forte das pessoas nas situações em que se deparam com a diminuição de sua
existência.
3.1 Quando a prática clínica sustenta o compromisso revolucionário
Renato Nogueira, em sua apresentação à edição brasileira dos Escritos
Psiquiátricos, recentemente traduzida e publicada no país, considera, a partir da
ideia fanoniana de mundo dividido, que
a colonização divide o mundo em duas partes: em uma, vive o
colonizador, a régua, o cânone, a imagem da humanidade, o branco;
em outra, o inverso, o negativo. Se Fanon nos fala da revolução e ficou
bastante conhecido por esse discurso, ele ressalva que nenhuma
revolução pode acontecer sem a descolonização do pensamento. Ele
seria, pois, um precursor daquilo que hoje chamamos de
desintoxicação das subjetividades colonizadas (Nogueira, 2020, p. 17).
Por meio de sua prática clínica nos contextos em que se apresentavam
intensos dramas colonialistas, tanto da parte dos nativos quanto da parte dos
mantenedores desta estrutura de dominação, Fanon mobilizou seus esforços
para mostrar que a alienação da liberdade produz os mais diversos sofrimentos
psíquicos. Numa contribuição deveras importante para a época, a perspectiva
sociogênica trazia a novidade até então inaudita no tratamento das
psicopatologias que outrora eram atribuídas tanto às questões orgânicas, quanto
(e de forma racista) a uma vinculação presumida inerente entre problemas
mentais, numa espécie de herança lombrosiana – inclusive esta última forma de
psiquiatria tendo sido comumente adotada para justamente reforçar os contextos
coloniais. Logo, para tentar mapear a extensão e a profundidade do pensamento
fanoniano, é necessário passar em revista aos seus escritos psiquiátricos que,
no seio da revolução argelina, determinou uma prática clínica que se recusou
61
pela manutenção dos sistemas de alienação. Em Fanon, trata-se de verificar,
nessas condições, o que Jean Khalfa considera ser o paradigma do
“constitucionalismo” em etnopsiquiatria colonial, “que enxerga diferenças ou
deficiências raciais nesses traços da cultura”19. Traços da cultura, a bem dizer,
assentados nas bases colonialistas de um discurso dominante que moldará as
subjetividades de maneira profunda, sendo “uma questão que atravessará toda
a obra posterior de Fanon, quer como psiquiatra, político ou pensador da
alienação” (Cherki, 2022, p. 52-53).
Esta importante questão é vislumbrada no ensaio “A socioterapia numa
ala de homens muçulmanos: dificuldades metodológicas” escrito em parceria
com Jacques Azoulay, em 1954, e publicado na revista L’Information
Psychiatrique. Nele, ambos se questionam:
em razão de qual desvio de julgamento pudemos crer possível uma
socioterapia de inspiração ocidental numa ala de alienados
muçulmanos? Como seria possível uma análise estrutural se
colocávamos entre parênteses os contextos geográficos, históricos,
culturais e sociais? (Fanon; Azoulay, [1954] 2020, p. 182).
Esta posição que, segundo os autores, é “desprovida de objetividade”,
poderia indicar, se não problematizada a tempo, a vinculação da prática clínica
a um estilo de psiquiatria ocidental:
Reflexivamente, o psiquiatra adota a política de assimilação. O
autóctone não tem necessidade de ser compreendido em sua
originalidade cultural. O esforço tem de ser feito pelo “nativo”, que tem
todo o interesse em se assemelhar ao tipo de homem quem lhe é
proposto. A assimilação neste caso, não implica reciprocidade de
perspectivas. Há toda uma cultura que deve desaparecer em benefício
de outra” (Fanon; Azoulay, [1954] 2020, p. 182).
Logo, segundo o comentário que oferece aos textos psiquiátricos de
Fanon, Khalfa considera que “o interesse desse problema de medicina legal é
revelar que na sociedade colonial não há contrato social compartilhado, não há
a adesão do indivíduo a um todo social e jurídico” (Khalfa, 2020, p. 50) e, ainda,
que
19
Cf. nota à página 201 dos “Escritos Psiquiátricos” de Fanon.
62
a ideologia de uma patologia mental e de um caráter naturalmente
ligados a uma raça, por mais espontânea que tivesse parecido, não
passava de um dispositivo destinado a mascarar essa contradição. Sob
a capa da ciência, a naturalização da doença mental com base racial
significava, na realidade, transformar em norma natural certa estrutura
cultural importada da Europa” (Khalfa, 2020, p. 50).
O que Fanon está a requirir é uma prática clínica que, em momento algum,
pode ser desvinculada politicamente dos ideais de cura que, por sua vez, estão
eminentemente vinculadas à cura do colonialismo enquanto estrutura que
mantém as “patologias da liberdade”.
Segundo Khalfa,
a doença mental nunca é vista como uma forma extrema de
liberdade, mas antes como uma ‘patologia da liberdade’, expressão
que Fanon utiliza em vários textos, referindo-se a [Henry] Ey, que,
por sua vez, o havia tomado de empréstimo de um artigo epônimo
de Günter Anders (Khalfa, 2020, p. 38).
Interessante notar que Henry Ey, por vezes interlocutor referenciado de Fanon
em seus escritos psiquiátricos foi, além de também psiquiatra, um filósofo que
considerava a psicanálise reconhecida na França não pela medicina, mas pelas
propostas surrealistas. (cf. Aversa, 2018, p. 128). Não é pouco notar isso, dada
a influência explícita desta corrente estética no movimento da Négritude e no
pensamento de Suzanne Roussi-Césaire - como vimos-, e como esta, por sua
vez, ecoa, ainda que criticamente, no pensamento fanoniano. No fim das contas,
ao que tudo indica, Fanon reuniria em sua proposta todos os elementos que
apontassem para um certo grau de liberdade em sua forma mais aberta: seja
pela psicanálise, seja pela sua atuação dramatúrgica ainda pouco conhecida,
seja pela sua proposta clínica, seja pela sua própria prática revolucionária.
Vejamos mais.
Estudando a cultura, o contexto, e as formas de ver o mundo dos
colonizados, Fanon foi capaz de identificar que as doenças mentais em
contextos de violência podem ser caracterizadas como tal e que, somente uma
intervenção radical neste cenário poderia conduzir à cura. É o que aponta Khalfa
ao dizer que
as formas que as doenças mentais tomam são determinadas pela
estrutura das relações de que o indivíduo é capaz, ou incapaz, de
63
participar, portanto, por fatores ‘externos’, nem orgânico nem
psíquicos, mas institucionais e sociais (Khalfa, 2020, p. 30).
Tal é uma das naturezas fundamentais dos sofrimentos psíquicos aos
quais Fanon investigava que, em Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952, no
maior capítulo da obra que desvelou mais esta máscara branca, a saber, a
psicopatologia racista, ele diz:
Qual nossa proposição? Simplesmente esta: quando os pretos
abordam o mundo branco, há uma certa ação sensibilizante. Se a
estrutura psíquica se revela frágil, tem-se um desmoronamento do ego.
O negro cessa de se comportar como um indivíduo acional. O sentido
de sua ação estará no Outro (sob a forma do branco), pois só o Outro
pode valorizá-lo. No plano ético, ou seja, valorização de si (Fanon,
2008, p. 136, grifo do autor).
Logo, os transtornos mentais que também são somados às taras sexistas
sobre o corpo negro só são passíveis de cura, para Fanon, se se investiga sua
origem social e suas implicações. Talvez aqui caiba uma reflexão sobre o corpo.
O capítulo mencionado, a saber, “O preto e a psicopatologia”, é
absolutamente necessário para entender como a sexualização das pessoas
racializadas configura-se como uma projeção das taras recalcadas pelos valores
civilizatórios brancos. Filosófica e sistematicamente, eles reduzem o corpo à
morada do sórdido e do proibido que enxerga apenas “um membro: o negro foi
eclipsado. Virado membro. Ele é pênis” (Fanon, 2008, p. 146), passando pelas
sevícias da escravização, a sua delimitação pela frenologia, chegando até a
hiperssexualização das mulheres amefricanas. Este recalque, que pode ser
facilmente atribuído como um dos efeitos da gênese da canônica separação
cartesiana entre res extensa e res cogitans, acaba por desembocar, no limite
colonizatório, numa situação tão dramática que para o corpo negro e indígena,
racializados, inferiorizados pela epidermização, só resta ser exterminado. É o
que Faustino (2022) vai considerar quando
ao encerrar reificadamente o colonizado nos fetiches próprios, que não
pode ver em si, o branco turva a própria visão no véu das relações
raciais. Mais que isso, ao tomar contato com esses elementos seus
projetados no outro, assusta-se (ou se atrai) em um jogo
sadomasoquista (Faustino, 2022, p. 72).
64
Interessante notar que este recalcamento do corpo, muito “estimulado” pela
tradição filosófica moderna, faz também com que este ciclo infernal da
denegação - este mecanismo psíquico que resiste em negar aquilo que deseja
e que acaba, ora ou outra, escapando no discurso - atue na sociedade como um
todo: os corpos são “duros”, não se manifestam, pois, como analisou Foucault
(1987), são tornados “dóceis”. Administra-se e condiciona-se o corpo e tudo que
vem dele é visto como animalizado, tendo que ser reprimido, portanto – tornado
racional. Os efeitos são imensos para a história20 e passam desde as religiões
que usam o espírito racional e “escolhem esperar” em detrimento às
manifestações da espiritualidade que só existem em função do corpo; a dança
marcada, treinada em detrimento às danças populares; o silêncio nos auditórios
de concerto em detrimento ao “feitiço decente” (Sandroni, 2001) do samba e dos
bailes funks; o ascetismo em detrimento à experiência de conhecer o próprio
corpo e toda a sorte de silêncios corporais em contraposição ao grito do corpo...
O corpo como tabu. A mente como purificação. Não é de se espantar que grande
parte do nosso adoecimento contemporâneo e o mais grave de tudo, o genocídio
das pessoas racializadas, se deve à esta recusa do corpo, este apagamento,
esta forma de neutralizá-lo, fazê-lo sumir. O corpo como uma ameaça. É por isso
que Fanon não só o evoca em diversas parte de sua obra, como faz dele o seu
leitmotiv: “Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!” (Fanon,
2018, p. 191).
Neste cenário, a discussão fanoniana do corpo passa necessariamente
por sua apropriação detida da filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty21. Sem
nos estendermos muito a este respeito que é largamente comentado pela fortuna
crítica fanoniana, bastaria dizer que o corpo assume um lugar político que não
pode ser mais objetificável, como quis os mecanismos de controle colonial e
20
Para uma das análises definitivas sobre esta questão, recomendamos os textos de Lélia
Gonzalez, além da análise propostas por Fanon sobre a “nova dialética do corpo e do mundo”
(Fanon, 1976, p. 41) na experiência vivida da luta revolucionária. Também, indicamos o
comentário sobre este aspecto do pensamento de Fanon – o corpo quando se torna o lugar da
luta na formulação de uma cultura nacional - cf. De Oto (2013).
Cf. Cardim ao comentar o estatuto do corpo na filosofia de Merleau-Ponty, “longe de ser um
obstáculo à nossa liberdade, o corpo é a própria condição da liberdade. A liberdade do ser
humano se ‘apoia’ em seu ‘envolvimento universal’ (Fenomenologia da Percepção, 607). O ser
humano pode arrancar-se de suas rotinas habituais para dar-se um futuro novo” (Cardim, 2009,
p. 118).
21
65
moderno como um todo. Ao contrário, evidencia-se um corpo-sujeito, que se
coloca no mundo a partir da consciência e da sua agência subjetiva. Assim, o
que está em jogo é o compreender em sua filogenia enquanto um mecanismo
biológico, somado à sua ontogenia, enquanto um complexo de relações
subjetivas e psíquicas. Como resultado desta operação, Fanon aponta à uma
existência sociogênica que é atravessada pela consciência política. Ela está
expressa na materialidade da história e da própria subjetividade enquanto uma
coletividade (Fanon, 2018, p. 28). A concepção que se ancora nesta sociogenia
é a condição de possibilidade da cura dos sofrimentos psíquicos causados
sobretudo pelo racismo colonial22, além de ser caminho para uma revolução
necessária que coloque fim às estruturas colonialistas.
A adoção deste princípio pode ser lida num artigo23 escrito em parceria
com Charles Geronimi, em 1959, e publicado na revista La Tunisie Médicale:
assiste-se na internação a uma autêntica coisificação do conflito. E,
portanto, do paciente. [...] Não se pode escotomizar por muito tempo o
fato de que a situação conflitiva é a conclusão da dialética ininterrupta
do sujeito e do mundo. Insiste-se sistematicamente no evento e
minimiza-se a história. Não se trata objetivamente da biografia, da
anamnese, mas da história do sujeito, na medida em que ela contém,
no plano das interrogações sucessivas, o conflito e os elementos de
sua superação (Fanon; Geronimi, [1959] 2020, p. 96).
Aqui, não se trata apenas de investigar as causalidades orgânicas e
psíquicas das doenças mentais, mas, sim, aliadas às estruturas sociais que as
fomentam. Tal “conclusão da dialética” corresponde, pois, a uma causalidade
necessária entre os acontecimentos sociais e os seus desdobramentos; neste
caso, na incidência de conflitos psíquicos que se desenvolvem a partir dos
contextos de negação da vida. Neste ambiente e em todos os quais onde há a
presença da diminuição da potência da vida manifesta na subjetividade, a prática
É por isso que Fanon indica uma crítica ao que considera ser uma “generalidade abstrata” no
texto anticolonial de Albert Memmi (1977), pois faltaria a ele uma análise detida das evidências
sociais específicas tanto a uma proposta que combata o colonialismo, mas principalmente que
conduza à cura. Segundo Fanon no artigo intitulado “Escuta, homem branco!, de Richard Wright”,
de 1959, “essas observações, em geral, não estão erradas, mas sua generalidade – sem falar
de sua banalidade – impede que sejam penetrantes; parecem abstratas, sem relação direta com
o concreto” (Fanon, [1959] 2021b, p. 125).
22
A saber: “A internação diurna na psiquiatria: valor e limites (2). Considerações doutrinárias”
(Fanon; Geronimi, 2020).
23
66
clínica é, portanto, essencialmente política, pois eminentemente dialética: devese considerar como fundamentais as dinâmicas societais envolvidas na medida
em que se recusa a perpetuação de mecanismos coloniais, como a psiquiatria
ocidental ou etnopsiquiatria colonial, por exemplo. É por isso que,
necessariamente, esta prática clínica requer uma demolição das estruturas
físicas dos hospícios que mais reproduzem as estruturas de confinamento da
subjetividade que as liberta: “o que é preciso, em todo caso, é evitar a todo custo
a criação desses monstros que são os hospitais psiquiátricos clássicos” (Fanon;
Geronimi [1959] 2020, p. 100). Os hospícios como uma das imagens deste
mundo que precisa acabar24.
Outra evidência do rompimento com os estigmas clínicos racistas que
podem ser identificados nos discursos médico-científicos ocidentais, Fanon,
desta feita em parceria com Raymond Lacaton, já em 1955, num breve relatório
apresentado no Congresso de Médicos Alienistas e Neurologistas da França e
de Países de Língua Francesa, chamado “Condutas confessionais na África no
Norte (1)”, mostra como a psiquiatria forense é um braço fundamental dos
sistemas de opressão colonial. Rebatendo a tese de que haveria um traço de
personalidade comum aos muçulmanos, a saber, a propensão à mentira, Fanon
e Lacaton mostram que, antes, essa pressuposição só faz sentido numa
perspectiva racista. Lembremo-nos, mais uma vez: todo o aparato para atacar a
moralidade das pessoas colonizadas era empregado. Neste texto pequeno, mas
muito poderoso, os autores interpelam a psiquiatria colonial ao subverter a tese
de que o primitivismo do autóctone o faria mentir de maneira sistemática quando,
na verdade, trata-se de uma resistência a endossar uma espécie de contrato
social colonial estipulado pelos dominadores:
Pode-se assim, dizer que o norte-africano é mentiroso. É uma ideia
admitida amplamente. Todo magistrado, todo policial, todo empregador
será capaz de oferecer inúmeros e convincentes exemplos (o norteafricano, além do mais, é preguiçoso, trapaceiro etc). Mas será que
Neste passo, não há como não lembrarmos do inimaginável sofrimento e descaso acontecidos
no país, especialmente na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, que Daniela Arbex descreveu
em seu livro que adjetiva o que se passava nas políticas públicas de assistência e saúde mental:
um Holocausto Brasileiro. 60 mil pessoas, majoritariamente negras, foram mandadas para este
campo de concentração em saúde mental chamado assustadoramente de Hospital Colônia e lá
padeceram dos piores “tratamentos” dispensados aos enjeitados da sociedade da época. Depois
disso, foram mortas pelo descaso institucional. Para rememorar este horrendo (e muitas vezes
esquecido) episódio da história do país, mas que precisa ser lembrado sempre, cf. Arbex (2013).
24
67
essa simplificação permite encontrar a verdade inatingível? Essa
orquestração da mentira, que descrevemos brevemente, exige uma
compreensão mais profunda (Fanon; Lacaton, [1955] 2020, p. 239).
A saída para uma intervenção libertária é estar imerso no povo, em sua
cultura, os conhecer melhor e participar das dinâmicas societais deste “regime
ontológico” que, muitas vezes, é desconhecido por muitos e tacitamente
desprezado pelos operadores coloniais. Este texto é ainda mais importante se
pensarmos que a psiquiatria forense com seu ranço lombrosiano continua a
informar o aparato da justiça, especialmente a brasileira, sendo um eficaz
instrumento para a manutenção do espírito colonial no país.
A título de ilustração, ainda que mórbida, basta lembrarmo-nos que, em
2020, na cidade de Curitiba, uma juíza da 1ª Vara Criminal condenou um cidadão
negro, Nathan da Paz, à época com 42 anos, com o seguinte parecer:
“Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de
forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com
os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que
deve ser valorada negativamente.” 25 [Grifo nosso]. Nina Rodrigues com seu As
raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de 1894, se regozijaria
vendo a realização, 124 anos após a publicação do seu texto, do seu projeto
jurídico pensado para o país e baseado nas diferenças das raças. Nada mais
deprimente, para nós.
Toda essa estrutura que aprisiona a liberdade, como podemos antever,
que a reduz a um mero privilégio de uns poucos representa, para Fanon, “uma
teoria da inumanidade” (Fanon, [1952] 2021a, p. 37). Esta ideia nasce de sua
análise da situação de pessoas norte-africanas que emigraram para a França
nos contextos da guerra, mas que, se hipostasiadas para todas as situações nas
quais são requeridas um apequenamento da condição humana e sua
subjetividade, é certo encontrar os seus pressupostos. É o que Fanon vai
desenvolver no poderoso ensaio “A síndrome norte-africana”, publicado na
revista Esprit, no mesmo ano da publicação de Pele Negra..., em 1952 e que
25
Mais detalhes deste absurdo jurídico contemporâneo, um dos inúmeros que abundam neste
país, ver:
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/08/4867956-juiza-diz-que--emrazao-de-sua-raca---homem-negro-e--seguramente--criminoso.html
68
integra a obra póstuma Por uma revolução africana. Na análise que oferece,
nosso pensador aponta, como uma das teses desta teoria:
Ameaçado em sua afetividade,
Ameaçado em sua atividade social,
Ameaçado em sua cidadania,
o norte-africano reúne todas as condições que fazem um homem
adoecer.
Sem família, sem amor, sem relações humanas, sem comunhão com
a coletividade, o primeiro encontro consigo mesmo se dará de modo
neurótico, patológico. Ele vai sentir-se esgotado, sem vida, num corpo
a corpo com a morte, uma morte aquém da morte, uma morte em vida
[...] (Fanon, 2021a, p. 49, grifo nosso).
A morte em vida a entendemos como o esforço contínuo de sujeição aos
mecanismos de opressão que muitas vezes é operado na estrutura do Estado
neoliberal colonialista. Este que formalmente assegura direitos sociais, mas que,
confrontado com a materialidade da vida, tacitamente os transforma em
privilégios de poucos e mercadoria para muitos, como dissemos. O genocídio da
população negra e indígena no Brasil, em marcha quando escrevemos estas
linhas26, faz da morte do corpo apenas o ato final de uma morte já anunciada na
recusa pelo direito de viver que ainda reproduz as estruturas colonialistas
desveladas por Fanon, o que nos faz, tristemente constar, e parafraseando
Bruno Latour, jamais fomos pós-modernos e muito menos pós-coloniais:
O colonizado, igual a todos os homens dos países subdesenvolvidos e
os deserdados de todas as regiões do mundo, percebe a vida não
como florescimento ou desenvolvimento de uma fecundidade
essencial, mas como uma luta permanente contra uma morte
atmosférica. Essa morte próxima se materializa na fome endêmica, no
desemprego, nas epidemias, no complexo de inferioridade e na
ausência de futuro. Essas ameaças ativas e esses obstáculos à
existência do colonizado conferem à sua vida uma sensação de morte
incompleta (Fanon, 1976, p. 103-104, tradução nossa).
As escrevemos na semana em que garimpeiros invadem as terras yanomami Arakaça tendo
reduzido a aldeia a cinzas e desaparecido todos os seus pertencentes, após as denúncias dos
indígenas pelo estupro seguido de morte de uma adolescente de 12 anos, além das evidências
que contam sobre uma mulher e uma criança de apenas 3 anos terem sido jogadas em um rio.
Escrevemos estas linhas na semana em que Jhonathan Ribeiro de Almeida, de 18 anos, foi
assassinado com um tiro a queima-roupas por forças policiais no Rio de Janeiro. Escrevemos
estas linhas às vésperas de completar 1 ano da maior chacina em uma comunidade, também no
Rio de Janeiro. Certamente, muitos outros casos acontecerão até terminarmos o texto e não
pararão após sua conclusão. Para além da proposta revolucionária de construir um mundo outro
a que esta tese tenta investigar seus fundamentos para colocá-las em marcha, não sabemos
mais o que imaginar.
26
69
Constantemente remetemos esse ponto aqui, uma vez que, no fim das
contas, este texto está mobilizado pela tentativa de percorrer os caminhos pelo
alargamento definitivo do encantamento da vida enquanto possibilidade de que
todos os entes possam, enfim, viver em alegria. Se o colapso da vida e do
mundo perpetrado pelo colonialismo, e reatualizado cotidianamente, desemboca
no colapso da subjetividade ao patologizá-la, o que se tem a fazer é nada menos
que a destruição completa destas condições para, daí, emergir possibilidades de
novos mundos, uma nova vida conduzida à desalienação, à reintegração social,
à cura e, sobretudo, à liberdade. Isto posto, vale reiterar a proposta de Fanon
por uma outra situação, que já estava expressa e afirmada em sua importante
carta de demissão ao governador-geral da Argélia colonial, em 1956, que, dada
a impossibilidade de um compromisso com a restituição das humanidades
depostas pelo colonialismo, resta apenas considerar que:
a função de uma estrutura social é constituir instituições permeadas
pela preocupação com o homem. Uma sociedade que encurrale seus
membros em soluções de desespero é uma sociedade inviável, uma
sociedade que deve ser substituída (Fanon, 2021a, p. 94).
Para Achille Mbembe (2017), o pensamento de Fanon materializa-se na
possibilidade da recusa irrestrita ao que considera ser inerente às políticas da
inimizade, a saber, o “princípio de destruição”. Quer seja, tudo o que vem sendo
levado a cabo por um “Estado-corporação” (Silva, 2020) que subjuga o seu povo,
lhes retirando conquistas históricas em detrimento dos interesses corporativos e
financeiros do capital, este que atualiza as formas de colonização numa espécie
de ancestralidade pérfida do imperialismo mercantilista. Por isso, o pós-colonial
jamais aconteceu. O mundo para muitos entes ainda é demasiado colonial.
Em Fanon, encontraríamos, segundo Mbembe, em resposta a este
cenário agônico, uma forma de resistir revolucionariamente, uma vez que seu
pensamento é sustentado pelo princípio de vida,
cujas considerações acerca da destruição e da violência, por um lado,
e do processo de cura e do desejo de uma vida sem fim, por outro,
constituem a base de sua teoria de descolonização radical (Mbembe,
2017, p. 154).
70
É por este caminho, portanto, que seguiremos a trilha fanoniana rumo a
este novo total tentando mapear os modos como ele o delimita, os problemas
internos e, especialmente, em como reacender as possibilidades de intervenção
revolucionária que, diante do necessário fim do mundo, se incline a um outro
possível:
Para Fanon, a cultura é a festa da imaginação produzida pela luta. Ela
é ritmada pela transmutação de figuras picarescas, pelo ressurgir de
narrações épicas, por um imenso trabalho sobre os objetos e as
formas. [...] Através da dança, do canto melódico, o colonizado
reestrutura sua percepção. O mundo perde o seu caráter maldito, e
estão reunidas as condições para o inevitável confronto. Só há luta, se
levar, necessariamente, ao estilhaçar de velhas sedimentações
culturais. Esta luta é um trabalho coletivo organizado. Pretende
claramente reverter a história. O paciente fanoniano tenta regressar à
origem do futuro (Mbembe, 2017, p. 188).
Ao comentar o afrofuturismo como este apontamento para algo que seja
além do túmulo da humanidade, Mbembe ainda diz que:
À condição terrestre substituir-se-á assim a condição cósmica, a cena
de reconciliação entre o humano, o animal, o vegetal, o orgânico, o
mineral, e todas as outras forças do vivente, quer sejam solares,
noturnas ou astrais (Mbembe, 2017, p. 216).
Reconciliação, ou rememoração, como nos lembra Davi Kopenawa, pelo
menos para um tipo de humanidade, já que muitas delas, o que se poderia
pressupor desta partilha no mundo, nunca precisaram fazer, pois se veem neste
complexo político cósmico, lidando com as dinâmicas relacionais e relacionadas
à cosmopolítica:
Emergirão então, numa relativa clareza, requisitos, se não de uma
possível universalidade, pelo menos de uma ideia de Terra como aquilo
que nos é comum, a nossa condição comum. (Mbembe, 2017, p. 249).
O sentido, talvez, é o mesmo cantado por Caetano Veloso; àquele da
mensagem do índio que virá impávido, apaixonado, tranquilo e infalível para
dizer aquilo que esteve por muito tempo oculto, apesar de óbvio. O coro,
portanto, deve ser compartilhado.
71
3.2 A radicalidade da proposta libertária: um fim de mundo para um novo mundo
possível
À essa partilha do comum é exigida a superação da fixidez identitária
concretada como essencial que só aumenta as disputas narrativas pelo direito
de quem pode, no limite, viver mais ou menos que, ao invés de, no cerne do
problema, assegurar o mesmo direito a todas as formas de existir, e que
continuam reproduzindo as cenas lamentáveis da CONAPIR, por exemplo.
Minimamente, trata-se de uma atitude que corrobora com um exercício da vida
solidária, ou seja: que respeite uma prerrogativa universal que se deve pôr fim a
tudo o que impede a vida compartilhada ser o que pode ser. Sobre isso, Deivison
Faustino (2022) aponta que:
Se foi o branco que criou o negro [nègre] ao recusar-se a reconhecêlo como humano, o horizonte da luta anticolonial não é o fechamento
identitário, mas a sua superação. [...] Isso não significa renunciar ao
repertório cultural próprio, em um movimento de negação de si; ao
contrário, na luta anticolonial, a valorização da cultura particular tem
função fundamental. O problema é se esquecer de seu caráter
dinâmico, aberto e contraditório, tomando-se como ente autônomo e
essencialista (Faustino, 2022, p. 35).
Quando há um apego a esse princípio essencialista, se tem a reafirmação
quase monolítica de identidades, fermentando um jogo discursivo de poder que
vai autorizar, afinal de contas, quem pode falar – e se pode, em que
circunstâncias; além de quem se deve, obrigatoriamente calar. Evoca-se o
argumento de autoridade do “lugar de fala” de modo a reduzir o próprio campo
do debate em vias de uma pluralidade cosmo-etno-política que, em momento
algum, visa desconsiderar os infortúnios históricos sofridos pelas pessoas
oprimidas. Pelo contrário! Entretanto, este cenário, se não conduzido numa
perspectiva solidária, pode recair “[n]uma situação neurótica, na qual sou
obrigado a escolher uma solução insana, conflitante, alimentada por
fantasmagorias, antagônica, desumana enfim” (Fanon, 2008, p. 166).
Essa neurose reforça, assim, o sistema de exclusão que funciona, a
contento, tal como foi criado: faz-se o Eu na medida direta em que se faz e
distancia-se do Outro; e por contraste, exclui o último para reafirma-se. Talvez
72
essa recusa seja uma das razões que fizeram Fanon afastar-se da concepção
de Négritude proposta por Aimé Césaire ou melhor, as razões pelas quais seu
discípulo levou adiante a proposta original, espremendo dela os princípios que o
ajudariam na sua proposta revolucionária. Nesse sentido, Rabaka considera:
A concepção de descolonização de Fanon, o que Hansen (1977)
denominou “descolonização revolucionária”, é inescrutável sem
vinculá-la ao pensamento de Césaire em seu Discurso sobre o
colonialismo. A ênfase de Césaire não apenas na descolonização, mas
na autodeterminação e a consciência africana foram apropriadas por
Fanon que, por sua vez, as sintetizou contrastanto aos conceitos
anticoloniais (incluindo as críticas de Sartre ao capitalismo e ao
colonialismo), e então, corajosamente, as levou ao extremo. [...]
aprofundou dialeticamente e desenvolveu discursivamente sua(s)
dimensão(ões) revolucionária(s). (Rabaka, 2015, p. 177, grifos do
autor, tradução nossa).
Neste caso, é exigida a superação a esta vinculação essencialista. Caso
contrário, apresenta-se um jogo perigoso e estrategicamente ruim, além de “uma
dificuldade teórica e política para se estabelecer uma relação dialética entre a
identidade e a diferença em um projeto anti-imperialista e emancipatório”
(Faustino, 2021b, p. 22), uma vez que perpetua a dinâmica por excelência
moderna e ocidental de humanidade, e é constantemente cooptado pela
insistência e reforço das diferenças tornadas irreversíveis pela força do capital.
Lembremo-nos do velho adágio: o que insiste em excluir pela divisão, intenta à
dominação.
Contra essa cooptação que vem tomando os espaços de decisão política
e o debate público em torno de verbas, direitos, pertencimentos e ocupações,
diante disso, talvez o verdadeiro sentido da intervenção deveria ser proliferar as
múltiplas agências, as formas de habitar e fazer mundos outros que cindidos por
compartimentações coloniais, como diz Fanon, e, acima de tudo, rumar a uma
noção mais solidária de vida em comum, a exemplo de uma “pedagogia
revolucionária” (Fanon, 2021b, p. 44) em sua exigência mais aguda.
Em 1957, num artigo para o El Moudjahid intitulado “Uma revolução
democrática”, tal pedagogia apresenta-se como exemplo de uma “síntese
dinâmica criadora entre as aspirações do Eu cultural nacional e o espírito
moderno em sua universalidade” (Fanon, 2021b, p. 64). Ainda sobre esta
pedagogia, desta feita expressa no livro Ano V da revolução argelina, de 1959,
73
Fanon considera que “à pedagogia revolucionária da luta de Libertação, deve
seguir normalmente uma pedagogia revolucionária de construção do Nacional”
(Fanon, 1976, p. 76, tradução nossa). Esta pedagogia coloca em marcha uma
realização dialética, portanto revolucionária, de mundo: na percepção, na língua,
na consciência, no corpo, na subjetividade e na ontologia de um povo, ainda que
sob os limites de uma nação. Contudo, essa ideia é transformada, já em 1961,
depois de verificar os limites críticos deste nacionalismo pela ação de uma
burguesia racista, uma vez que se torna imperativo barrar suas concepções,
conforme podemos ler em Os condenados da Terra:
chegando ao poder em nome de um nacionalismo estreito, em nome
da raça, a burguesia, a despeito de declarações belas na forma mas
totalmente vazias de conteúdo, manejando com completa
irresponsabilidade frases que saem em linha reta dos tratados de moral
ou de filosofia política da Europa, provará a sua incapacidade de fazer
triunfar um catecismo humanista mínimo. [...] A burguesia ocidental,
embora fundamentalmente racista, consegue, na maioria das vezes,
mascarar esse racismo multiplicando os matizes, o que lhe permite
conservar intacta a sua proclamação da eminente dignidade humana
(Fanon, 2015, p. 190-191).
Com isso, não queremos dizer que os esforços até agora empreendidos
pela afirmação do que outrora foi produzido para ser constantemente negado
são inúteis. Pelo contrário. Os avanços sociais, espirituais e subjetivos das ações
afirmativas e das pessoas que lutaram e ainda lutam, fazem parte da sempre
urgente e importante iniciativa pela restituição da vida. Não nos esqueçamos que
Fanon está contra uma exacerbação rígida do nacionalismo e da mumificação
da cultura, como podemos ler no seu ensaio “Racismo e cultura”, de 1956:
A cultura encapsulada, vegetativa é revalorizada depois da
dominação estrangeira. Ela não é repensada, retomada,
dinamizada a partir de dentro. É reivindicada. E essa revalorização,
de início não estruturada, verbal, recobre atitudes paradoxais. [...]
Essa redescoberta, essa valorização absoluta de aspecto quase
irreal, objetivamente indefensável, reveste-se de uma importância
subjetiva incomparável (Fanon, 2021a, p. 82-83).
É por isso que “liberar a cultura, revigorá-la mediante sua reapropriação –
é fundamental para a libertação do colonizado e do próprio colonizador”, como
aponta a biógrafa de Fanon, Alice Cherki (2022, p. 137), ao comentar este ponto.
A etapa nacional do reconhecimento, para o autor, é a uma forma de aproximar
74
um povo acostumado à cristalização cultural às possibilidades da novidade.
Assim, esta etapa não pode ser pulada, uma vez que “visa uma redistribuição
fundamental das relações entre os homens” (Fanon, 2015, p. 281).
Mas, se ainda temos que batalhar todos os dias, incessantemente,
mostrando a toda prova que vidas outras importam e despendendo com isso
tamanha energia e desgaste, movendo esforços para mostrar que, se levado a
cabo, este humanismo deveria ser hipostasiado a todas as pessoas, não seria a
hora de subverter esta luta pela destruição total daquilo que a produz, de uma
vez por todas? Se temos que continuar lutando a todo o tempo, sempre
recorrendo aos velhos argumentos, não teria Fanon algo a mais a nos ensinar
desta pedagogia profundamente revolucionária?
Num breve comentário acerca de tal pedagogia27, parece ser o caso da
recepção de nosso filósofo e sua explícita influência pelo no campo pedagógico
à letra do patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Em sua proposta de uma
Educação como prática da liberdade, texto de 1967, Freire descreve como a
sociedade brasileira, ainda apegada em sua herança colonial, é incapaz de uma
experiência democrática: “o que nos importa afirmar é que, com essa política de
colonização, com seus moldes exageradamente tutelares, não poderíamos ter
tido experiências democráticas” (Freire, 1980, p. 75).
Logo, se faz necessária uma pedagogia que, com seu projeto libertário e
afinado com os contextos dos oprimidos, os liberam do desejo de tornarem-se
opressores na medida em que, pelo desenvolvimento de uma consciência crítica
e a recusa de uma educação bancária, transformam o mundo, requerendo dele
uma humanidade completa, sua “vocação ontológica e histórica de ser mais”
(Freire, 2005, p. 59). Outro ponto a se salientar, na verve anticolonial freireana,
é seu encontro com Amílcar Cabral que, assim como Fanon, foi um
revolucionário pela causa da independência de Guiné Bissau e Cabo Verde.
Sobre isso, basta ver o importante texto Cartas à Guiné Bissau, em que Freire
defende que, diante da educação colonial herdada, ela “deve ser radicalmente
transformada e não simplesmente reformada” (Freire, 1977, p. 94).
Ainda que, confessadamente, careça de toda a atenção exigida à envergadura de Paulo Freire
não só para o contexto educacional brasileiro, mas mundial, como sugeriu a professora Giselle
Schnorr, na ocasião da sua arguição na defesa desta tese, a quem, novamente, aproveito para
agradecer e celebrar a sua importância em construir mundos novos e, se possivelmente,
freireanos...
27
75
Mas, voltemos... Não seria o caso de dissolver aquilo que torna a
humanidade ontologicamente realizável em seu caráter moderno? Interromper,
de vez, os mecanismos ontoepistêmicos de justificação coloniais? Não se
trataria, como quer Mbembe (2017), vincularmos a uma “ética do passante” em
que as fronteiras não sejam mais barreiras, senão lugares em que justamente
poderemos restituir cosmopolíticas da amizade? Ou, como pensamos, uma
alegria da vida?
O passo, então, no amplo cenário das disputas, nas dificuldades das
múltiplas pautas, ainda está na corda bamba, mas se faz por uma travessia mais
que necessária, pois requer uma reestruturação radical do mundo, o que Fanon
nos ajuda a fazer:
passar por cima deste drama absurdo que os outros montaram ao
redor de mim, afastar estes dois termos que são igualmente
inaceitáveis e, através de uma particularidade humana, tender ao
universal (Fanon, 2008, p. 166).
Resta saber, então, em quais termos esse universal é realizável e se é
possível prescindir dele em nome de uma diminuição valorativa da humanidade
em seu caráter metafísico.
3.3 O complexo colonialista, o colonialismo interno e suas arapucas
Na compilação póstuma de “Por uma revolução africana”, é possível
presumir, no artigo do El Moudjahid, de 1957, a saber, “Argélia diante dos
torturadores franceses” a noção de complexo colonialista [l’ensemble
colonialiste] que, o pesquisador Muryatan Barbosa (2020) considera ser uma
configuração. Vejamos.
Esta noção de complexo colonialista seria vista, aos olhos de Fanon,
como um sistema de dispositivos a serviço da dominação completa dos corpos
e territórios colonizados. Entretanto, pela natureza concisa, especialmente dos
artigos presentes no El Moudjahid, Fanon não teria desenvolvido as implicações
deste sistema neste texto, mas que, aos leitores e leitoras atentas de seus
arquivos, seria possível vislumbrar sua capilaridade corrosiva, que, “em suma,
[é] algo cuja origem foi o colonialismo, mas que existe para além deste. É parte
76
de uma estrutura contínua de relações sócio-psíquicas” (Barbosa, 2020, p. 363).
Assim, de modo primaz, Barbosa aponta um lapso importante da primeira
tradução portuguesa, em 1980, em torno desta noção de sistema. Segundo o
autor, ao traduzir l’ensemble por “todo”, Isabel Pascoal não teria captado
a riqueza da frase seguinte em que Fanon diz que o objetivo da
revolução argelina não seria apenas promover a independência. Para
ele, não se trata, tão somente, de destruir o “todo colonialista”. Tratase de destruir à estrutural colonialista – a configuração colonialista –
que se consolida com o colonialismo, mas que continua a existir para
além dele (Barbosa, 2020, p. 429).
Justamente, na recente publicação brasileira (Zahar, 2021a) em que se
retraduziu a obra, a passagem em questão toma a forma desta noção de
estrutura: “na verdade, a atitude das tropas francesas na Argélia se situa numa
estrutura de dominação policial, racismo sistemático e desumanização realizada
de maneira racional. A tortura é inerente ao todo da estrutura colonialista”
(Fanon, [1957] 2021a, p. 107)28. Isso indicaria, portanto, duas questões deveras
importante tanto para o pensamento de Fanon quanto para o fanonismo em
geral. A primeira, mais interna ao seu pensamento, é justamente posicionar o
colonialismo como uma espécie de Weltanschauung que, ao longo de seu
desenvolvimento pela modernidade imperialista, foi aprimorando técnicas de
dominação senão por meio do rebaixamento da condição de humanidade das
pessoas por ele subjugadas, que “faze[em] surgir do homem uma fera” (Fanon,
[1957] 2021a, p. 33); numa estratégia de “cultivar racionalmente a selvageria,
matar o homem para fazer surgir dele um animal feroz” (Fanon, [1957] 2021a, p.
33).
Em segundo lugar, desta vez importante para os desdobramentos
possíveis de seu pensamento na história das lutas revolucionárias, Fanon teria
antecipado, como aponta Faustino ao prefaciar a edição brasileira em questão,
a própria noção desenvolvida por Aníbal Quijano, quando este aborda o sistemamundo colonial em seu mais famoso texto que advoga em torno da noção de
colonialidade. Segundo Faustino (2022),
Cf. original: “En réalité, l’attitude des troupes françaises em Algérie se situe dans une structure
de domination policière, de racisme systématique, de déshumanisation poursuivie de façon
rationnelle. La torture est inhérente à l’ensemble colonialiste” (Fanon, 2011, p. 754, grifo nosso).
28
77
a grande hipótese levantada por Barbosa é que a noção fanoniana de
configuração, ou complexo, expõe que o colonialismo – enquanto
dominação econômica e político-administrativa de um país sobre outro
– é apenas uma das formas possíveis da configuração colonialista,
antecipando assim o conceito de colonialidade, proposto décadas
depois por Aníbal Quijano (Faustino, 2021b, p. 25).
Ora, ao retomarmos a ideia de localizar em Fanon uma influência
incontornável para os estudos críticos ao colonialismo, seus postulados teriam
inspirado uma “primeira fase” destes debates na América Latina, especialmente
vinculados às teorias da libertação de base marxiana influenciando, por exemplo,
as análises em torno à noção de colonialismo interno de Pablo Casanova – o
que veremos mais a frente -, bem como autores como Enrique Dussel, Leonardo
Boff e, com mais visibilidade, Paulo Freire, como apontamos na seção 3.2.
Assim, Fanon teria antecedido, em pelo menos 50 anos, a noção desenvolvida
por Quijano e que depois lograria êxito e figuraria nos desdobramentos das
teorias decoloniais que têm disputado o campo das ciências humanas, não sem
lançar mão de confusões conceituais e atropelos críticos.
Importante salientar este ponto, uma vez que no apressar dessas
disputas, uma análise mais detida dos conceitos e da totalidade dos “arquivosFanon” acaba dando lugar às narrativas históricas e epistemológicas mais ou
menos enviesadas, ocultando e invisibilizando quem, de fato, pôde oferecer as
condições materiais para a sua formulação e, no limite, semeando a
transformação radical do mundo e do pensamento especulativo.
Indícios desse apagamento podem ser especulados a partir do trabalho
de Guillaume Sibertin-Blanc de 2015 que, mencionado por Faustino, teria
apontado que Fanon “seria o verdadeiro inventor da esquizoanálise, com
escritos que antecedem O anti-Édipo em pelo menos uma década” (Faustino,
2022, p. 136). Ou, ainda, na nossa desconfiança em torno da verdadeira
inspiração foucaultiana pela história da loucura que desembocaria, anos mais
tarde, numa intervenção nas políticas públicas internacionais por meio dos
movimentos antimanicomiais – inclusive no Brasil, com a promulgação da Lei da
Reforma Psiquiátrica nº 10.216/2001, muito devedora do pensamento francoitaliano, e que lhes confere extensos créditos, ao passo que as reflexões
psiquiátricas advindas da realidade concreta da intervenção médica propostas
78
por Fanon, que realizava estas experiencias antimanicomiais “revolucionárias”,
são pouquíssimo conhecidas e referenciadas pela área, num flagrante
apagamento institucional de seu pensamento que pode ter muitas justificativas,
inclusive racistas.
Como exemplo, bastaria o conhecimento do ensaio “Atitude do
muçulmano magrebino diante da loucura”, de 1965, em que Fanon, junto a
François Sanchez, diz:
Esse modo natural de assistência está impregnado de um espírito
profundamente holístico, que preserva intacta a imagem do homem
normal, apesar da presença da doença. [...] Respeito é dado ao louco
porque ele continua a ser, apesar de tudo, uma pessoa” (Fanon;
Sanchez, 2020, p. 249).
Não nos esqueçamos que, como nos ensina Faustino (2018), Fanon é
“um revolucionário particularmente negro”.
Contudo, após este breve comentário acerca do apagamento de Fanon,
certos de que o atual interesse editorial por seu pensamento reacende sua obra
e a vivifica, voltemos a Muryatan Barbosa quando este responde o motivo
suposto de Fanon não desenvolver em profundidade especulativa, em “Os
Condenados da Terra”, o complexo colonial. Para ele, Fanon teria mais razão de
expor ao público os desmandos franceses na Argélia – por uma questão
eminentemente política, dado a sua forma de testemunho do mundo colonial do que um aprofundamento teórico mais sistemático. Afinal de contas, o livro
oferecia uma espécie de análise-relato contemporâneo composta por aquele que
esteve diretamente vinculado no front de libertação. E, não fossem as
contingências que ceifaram a vida de Fanon, ao que tudo indica, seu
pensamento ainda renderia preciosas reflexões desdobradas das implicações
práticas do pós-revolução. Assim, Barbosa considera que Fanon, na obra em
questão,
pretendia explorar, do ponto de vista psicanalítico, as consequências
humanas da reprodução de sistemas de desumanização como o
colonialismo [...] Entretanto, do ponto de vista lógico, não havia
nenhuma impossibilidade teórica para que Fanon não se retoma ali
suas análises comparativas entre sociedades coloniais e racistas (não
colonizadas ou pós-coloniais)” (Barbosa, 2020, p. 381-382).
79
O fato é que, como exemplificação, Fanon evoca o contexto latinoamericano e suas ditaduras notadamente financiadas pelo imperialismo
estadunidense que só vieram a demonstrar os limites do projeto revolucionário
quando este não desce até a raiz do mundo colonial. Quer dizer, mesmo após a
luta de independência, o que houve foi o rendimento reformista aos interesses
da reconciliação, mediados pela economia política do capital. Com isso, não
houve, infelizmente, a superação deste complexo da estrutura colonialista, a
despeito de todos os esforços que reconhecidamente o tentaram fazer. Diante
disso, Barbosa nos relembra que Fanon toma como exemplo este cenário latinoamericano nos Condenados da Terra como “um ótimo exemplo de falsas
descolonizações, que lhe interessava críticas à época” (Barbosa, 2020, p. 376).
Nesse sentido, Fanon, a seu turno, considera que:
Se quisermos uma prova dessa eventual transformação dos elementos
da burguesia ex-colonizada em organizadores de festas para a
burguesia ocidental, vale a pena evocar o que aconteceu com a
América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio,
as meninas brasileiras, as meninas mexicanas, as mestiças de treze
anos, Acapulco, Copacabana são os estigmas dessa depravação da
burguesia nacional. Porque ela não tem ideias, porque se fecha sobre
si mesma, cortada do povo, minada pela sua incapacidade congênita
de pensar o conjunto dos problemas em função da totalidade da nação,
a burguesia nacional assumirá o papel de gerente das empresas do
Ocidente e praticamente organizará o seu país como lupanar da
Europa (Fanon, 2015, p. 180-181).
Este argumento da não superação da estrutura reforça a tese de que o
colonialismo se trata, portanto, de uma extensão muito maior do que se pode
supor; não apenas de ordem econômica e jurídica, mas subjetiva,
epistemológica e, ao fim, ontológica. Pode parecer evidente, mas não é. Seus
mecanismos internos já estavam à vista das preocupações de Fanon em torno
das dinâmicas pós-revolução, especialmente condensadas nos esforços de um
nacionalismo essencialista. Infelizmente, como já apontado por ele, os contextos
latino-americanos demonstravam que este perigo era iminente, uma vez que
dificilmente conseguiram superar as barreiras socioeconômicas e culturais
impostas ao longo da vigência da estrutural colonial. Esta preocupação deu
origem, ainda que no seio de um polêmico debate marxiano, dos perigos de um
estado nacionalista e patriótico que, numa palavra, converge o múltiplo ao uno.
80
Tal problema chega à pena de Pablo González Casanova, pensador
mexicano que formula, por meio do conceito de colonialismo interno, um
aprofundamento dos desdobramentos da l’ensemble. Segundo o autor, na longa
citação adiante,
o colonialismo interno corresponde a uma estrutura de relações sociais
de dominação e exploração entre grupos culturais heterogêneos e
diferentes. Se há alguma diferença específica em relação a outras
relações de dominação e exploração (cidade-campo, classes sociais)
é a heterogeneidade cultural que historicamente produz a conquista de
alguns povos por outros, e que nos permite falar não apenas de
diferenças culturais (que existem entre a população urbana e rural e
nas classes sociais), mas de diferenças de civilização. A estrutura
colonial assemelha-se às relações de dominação e exploração típicas
da estrutura urbano-rural da sociedade tradicional e dos países
subdesenvolvidos, na medida em que uma população composta por
diferentes classes (a urbana ou colonialista) domina e explora uma
população também composta por diferentes classes (as rurais ou
colonizadas); assemelha-se também porque as características
culturais da cidade e do campo contrastam fortemente; distingue-se
porque a heterogeneidade cultural é historicamente outra, produto do
encontro entre duas raças ou culturas, ou civilizações, cuja gênese e
evolução ocorreram até certo momento – a conquista ou a
“concessão”–, sem contato entre si, e uniram-se pela violência e pela
exploração, dando origem à discriminação racial e cultural que acentua
o caráter descritivo dos grupos da sociedade colonial: os
conquistadores e os conquistados (Casanova, 2006, p. 197-198,
tradução nossa).
Como sabemos, não houve a superação das estruturas de dominação
modernas que justamente fabricaram a si mesmas senão por este aparato de
exclusão e sujeição. Basta ver o que acontece, nos dias de hoje, aos povos
originários no Brasil e da negativa institucional e sistemática em reconhecer,
como dívida impagável, os desmandos etnocidários que tanto desabaram sobre
eles quanto sobre os povos africanos tornados escravizados. Numa palavra: o
limite histórico do fim da submissão colonial decretada pelas lutas de libertação
não levou, necessariamente, ao fim dos mecanismos internos que sustentavam
a manutenção desses sistemas de dominação. Ainda vivemos sob o julgo do
colonialismo interno e seus efeitos nefastos, uma vez que estão cravados nas
estruturas institucionais e, ainda pior, nas subjetividades daquelas pessoas que
as mantém de pé e brigam por elas (voltemos à cena inaugural desta tese). Por
isso, não somos pós-coloniais, porque o colonialismo perdura...
Justamente por não ter havido, de fato, um processo revolucionário que
transfiguraria a cultura colonial em outra coisa, a saber, uma cultura voltada à
81
solidariedade e à alegria, às formas de não opressão e, sobretudo, à
emancipação subjetiva e psicológica da toxicidade do colonialismo, é impossível
prescindir da categoria conceitual em questão, dado que:
em meio as grandes mudanças ocorridas desde o triunfo global do
capitalismo, o colonialismo interno, ou intracolonialismo, e sua relação
com o colonialismo internacional, formal e informal, e com o
transnacional, é uma categoria complexa que se reestrutura em suas
relações com as demais, e que reclama ser considerada em qualquer
análise crítica do mundo que se inicie a partir do local ou do global
(Casanova, 2007, p. 450-451).
Isto posto, ainda que formalmente os mecanismos de dominação colonial
tenham terminado, suas artimanhas permanecem vivas a toda prova. É possível
notar, como dissemos, sua atualização cotidiana na relação de extermínio de
povos indígenas, na exploração de seus territórios e saberes e na estrutura
estatal que, só existe como a conhecemos hoje, em função da exploração da
mão de obra escravizada durante a história do Brasil enquanto nação.
Esta noção de colonialismo interno, a qual Sílvia Rivera Cusicanqui vai
acertadamente identificar como situação da qual nunca saímos, se perpetua
justamente porque ela está impregnada em nossa subjetividade moderna
(Cusicanqui, 2014). Contudo, a partir da sua correta identificação e crítica, se
pode reencontrar todo um aparato da argumentação do pensamento póscolonial, dos efeitos deste cenário e das possíveis estratégias para sua
superação. Entretanto, novamente há de se fazer um alerta sobre os discursos
em disputa nos cenários acadêmicos. Isso porque no afã de ter o que dizer com
uma roupagem aparentemente nova e pretender-se inédito, muito dos créditos a
suas fontes originais se obliteram.
Sobre esse procedimento talvez apressado e muito devedor de um
refinamento conceitual já produzido, podemos revisitar a anedótica passagem
em que Silvia Cusicanqui, ao submeter um artigo crítico a uma revista
estadunidense, recebeu como resposta que deveria modificar seu aparato
teórico para contemplar a noção de “colonialidade do poder” desenvolvida a
planos pulmões pelo grupo M/C29. A autora, em resposta, recusou enfaticamente
O Grupo Modernidade/Colonialidade congrega em si os maiores expoentes da chamada teoria
decolonial geopoliticamente referenciada nos países hispanohablantes da América Latina. Para
um estudo detalhado das origens de suas propostas, suas heranças e recusas teóricas, bem
29
82
o que lhe foi sugerido fazer, uma vez que a própria noção de colonialismo interno
já figuraria completa em sua intenção teórica, e que ela não tinha culpa pela falta
de leitura e conhecimento adequado por parte dos autores da “colonialidade”
sobre o trabalho de Pablo González Casanova. Segundo Adams, esse
procedimento demonstra “do que essa restrição/subtração de determinados
conceitos pode criar nas descontinuidades da teoria social latino-americana.
(Adams, 2021, p. 79). E não só isso: como, por trás destes procedimentos, estão
as intensões políticas de se buscar, efetivamente ou não, uma transformação
radical do mundo como o conhecemos.
Assim, tomado a seu turno, Silvia Cusicanqui considera que, ao delimitar
as portas de entrada para
a análise da vinculação entre os fenômenos de violência estrutural e a
formação/transformação de identidades culturais, quis, finalmente,
contribuir para a construção de um quadro conceitual capaz de, ao
mesmo tempo, compreender a tradição e a modernidade, as âncoras
profundas do passado e as potencialidades do presente. Tal quadro
conceitual não é outro senão o da teoria do colonialismo interno,
entendido como um conjunto de contradições diacrônicas de
profundidade
variável,
que
emergem
à
superfície
da
contemporaneidade
e,
portanto,
atravessam
as
esferas
contemporâneas dos modos de produção, os sistemas políticos
estatais e as ideologias ancoradas na homogeneidade cultural
(Cusicanqui, 2010, p. 36, tradução nossa).
Isso porque, atrelado ao cenário ainda a ser superado em que opera o
colonialismo interno, é possível identificar as falhas da justiça em proteger
integralmente as pessoas e os grupos que mais padecem de seus mecanismos
aparentemente imorríveis.
Ao recursar-se pelo lugar fabricado para subalternizar as pessoas
colonizadas, Fanon retoma a ideia de que a transformação se dá em função da
intervenção social direta. Ao invés, então, de concordar em permanecer no lugar
de sujeição, o filósofo aponta, radicalmente:
Pois bem, não, não direi nada disso! Eu lhe direi: é o meio, é a
sociedade que é responsável pela sua mistificação. Isso dito, o resto
virá por si só. E sabemos do que se trata. Do fim do mundo... (Fanon,
2008, p. 180, grifo nosso).
como seus limites críticos aos moldes do que propõe Cusicanqui, ver o importante trabalho cf.
Eduardo Restrepo e Axel Rojas (2010) e Ramón Grosfoguel (2013).
83
A ideia de fim de mundo expressa por Fanon na passagem acima nos é
cara e serve de pedra de toque para nossa tese, uma vez que contém o núcleo
mesmo da promessa de um mundo pós-colonial, de fato: a dissolução total dos
mecanismos internos e externos de dominação, expropriação e pilhagem das
subjetividades, corpos e espíritos de quem quer que seja, principalmente quando
maquiado de um progresso moral da humanidade, mas que, por trás desta
máscara, esconde a tentativa suicida30 de perpetuação das opressões e da
marcha da morte. Sabemos que morrer é o destino de quem vive, inclusive sendo
passagem para outros mundos, mas não é por isso que a morte indigna e
violenta deve ser buscada e continuamente estimulada. O que nos interessa,
como dissemos na abertura do nosso trabalho, é escolher formas mais dignas
inclusive de morrermos. Trata-se, sobretudo, mais de interromper a máquina de
produzir morte que, em seu expediente de reduzir as diferenças numa unidade
absoluta, sustenta este mundo como o conhecemos. Então, a tarefa é contarmos
mais uma história, adiando, assim, o fim completo de uma ideia de mundo que
seja diverso:
Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um
de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato
de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando
não significa que somos iguais; significa exatamente que somos
capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que
deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de
uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi
só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos
(Krenak, 2019, p. 33).
Sobre a tal promessa da humanidade que é devida em alegria, esta que
se alargaria não só às diferenças internas ao gênero taxonômico humano, mas
também aos demais entes que fabricam mundo conosco, um mundo
multiespécies, Fanon é perspicaz ao apontar que à imposição do mundo branco,
este que semeou as diferenças racistas a partir das diferenças culturais, quando
identificada,
gera
uma
resposta
contrária.
Na
atitude
de
distinguir
qualitativamente os modos de vida, de estabelecer critérios negativos às
Suicida, pois estamos, todas aquelas que comungam da vida, já imersas no “legado”
escatológico das catástrofes climáticas e seu projeto “etno-eco-cida” (Valentim, 2018, p. 21).
30
84
pessoas colonizadas, de infringir complexos múltiplos de inferioridade, a tudo
isso, nasce também a luta pela sua dissolução. E a luta, em certo sentido,
vincula-se à toxicidade da situação colonial, pois para reclamar a promessa, é
necessário, então, tornar-se branco, já que este é um valor supremo seu: a
igualdade:
Começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco
me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa
qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita
no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente
possível o mundo branco, “que sou uma besta fera, que meu povo e
eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornedor [sic] de
cana macia e de algodão sedoso, que não tenha nada a fazer no
mundo” (Fanon, 2008, p. 94).
Entretanto, não se trata de ser levado pelo “dilúvio civilizador” que “recorre
ao universal”, palavras que Fanon evoca no seu poderoso capítulo 5 de Pele
Negra, Máscaras Brancas, intitulado “A experiência vivida do negro”, mas de
reconhecer a autenticidade fora da rigidez compulsiva das identidades
essencializadas, estas que foram construídas a partir de imagens contrárias. O
projeto de Fanon – ao desvelar as estruturas do complexo colonialista
impregnado não só nas dinâmicas socioeconômicas nos países da periferia do
capitalismo global, mas também em subjetividades – não é tornar-se branco: é
tentar encontrar um outro modo de existir que prescinda do duplo narcisismo,
mas que não prescinda da condição universalmente esperada: a condição da
humanidade.
Em outras palavras, o negro não deve ser colocado diante deste
dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência
de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria
dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus sonhos a
expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo
não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao
contrário meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torna-lo
capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira
origem do conflito, isto é, as estruturas sociais (Fanon, 2008, p. 95-96,
grifo do autor).
São coisas distintas, portanto: uma é ser aculturado para ser reconhecido,
o que, convenhamos, é sempre impossível aos olhos do mundo branco, pois
para qualquer pessoa racializada, existe a “epidermização da inferioridade”
85
(Fanon, 2008, p. 28) expressa não na “’ideia’ que os outros fazem de mim, mas
de minha aparição” (Fanon, 2008, p. 108); fazendo com que elas jamais sejam
o que a supremacia branca espera delas. Trata-se, então, de interditar a dialética
do reconhecimento racial, destruí-la, para então, rumar ao aberto. O que é ele
ainda está para ser construído e, ao que tudo indica, este processo será sempre
um devir do tempo comprometido com mundos plurais enquanto lócus de
produção de subjetividades “curadas” do complexo colonialista. Se há a
possibilidade de se restituir a promessa, talvez não seremos nós a vivenciá-lo,
uma vez que o colonialismo interno está tão arraigado e se reatualiza
cotidianamente que será preciso muitos anos ainda de luta para que
alcancemos, enquanto uma comunalidade da vida, a sua plenitude. Mas viver
almejando é, além de um sonho em suas agências políticas, um compromisso
imperativo. É o que parece ser o caso da Filosofia de Frantz Fanon. Ela requer,
além da superação do complexo colonialista, um de seus fundamentos mais
problemáticos: a interdição do reconhecimento de outrem.
3.4 Interditar a interdição
Um dos pilares que sustentam a novidade da proposta escrita em Pele
Negra, Máscaras Brancas é, sem dúvida, o tema do reconhecimento. Ao longo
dos seus capítulos, é possível perceber o drama absoluto das pessoas negras
que, tendo tomado consciência da impossibilidade de existirem plenamente
dentro da promessa de uma humanidade universal moderna, se vêm diante de
uma atitude inadiável: ou inventam “uma nova possibilidade de existir” ou, senão
pela passividade resignada, devem “branquear ou desaparecer” (Fanon, 2008,
p. 95).
Uma das teses que sagraram a originalidade de Fanon ao status de um
filósofo revolucionário na obra em questão que, de certa maneira, é leitura
obrigatória para as pessoas racializadas que se encontram nos dilemas raciais
de uma sociedade excludente, expressa-se quando o autor visa, a partir da
dialética senhor-escravo proposto por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito,
verificar em que medida tal conceito pode ser habilitado para pensar as relações
coloniais.
86
Antes de seguirmos, porém, é importante ressaltar as diferenças
certamente políticas em traduzir Hegel. Deivison Faustino oferece um
interessante panorama sobre a tradução do termo Knecht e sua ambivalência, a
depender de uma espécie de tradição interpretativa que se faz da
Fenomenologia do Espírito. De um lado, segundo o autor, poderia se traduzir o
termo em questão para “servo”, pois “Hegel tinha em mente a servidão feudal, e
não a escravidão colonial, ao formular sua alegoria” (Faustino, 2022, p. 51). De
outro lado, outra forma possível é “escravo”, tradução para o português mais
vinculada à tradução francesa de Hegel, esta feita por Jean Hyppolite, levandose em consideração uma vinculação do tradutor às críticas marxistas da época inclusive apropriadas por Fanon. Já numa terceira via não mencionada por
Faustino sobre a questão da tradução, estaria Susan Buck-Mors (2011) no seu
já clássico Hegel e Haiti. Neste texto, Buck-Mors defende
que a ‘dialética do senhor e do escravo’ hegeliana tem raízes mais
na história contemporânea — particularmente, nas notícias que
chegavam à Europa da Revolução Haitiana de 1791 — do que na
tradição herdada pelo filósofo alemão (Buck-Mors, 2011, p. 131).
Ao afirmar isso, a autora considera que Hegel era leitor de jornais da
época que, frequentemente, noticiavam a revolução haitiana e sua “novidade” no
que toca às implicações políticas do período. Assim, conforme Susan, o autor da
famosa equação dialética do reconhecimento não estaria de forma alguma alheio
ao contexto revolucionário:
antes de escrever A fenomenologia do espírito, Hegel havia
abordado o tema do reconhecimento mútuo em termos de
Sittlichkeit [eticidade]: criminosos contra a sociedade ou as relações
recíprocas na comunidade religiosa ou afeição pessoal. Agora,
porém, esse jovem professor, ainda no início de seus 30 anos, teve
a audácia de rejeitar essas versões anteriores (mais aceitáveis para
o discurso filosófico estabelecido) e inaugurar, como a metáfora
central de seu trabalho, não a escravidão oposta a algum estado
mítico de natureza (como todos aqueles entre Hobbes e Rousseau
haviam feito antes dele), mas escravos contra senhores, trazendo
para dentro de seu texto a realidade presente, histórica, que o
circundava como uma tinta invisível (Buck-Mors, 2011, p. 143-144).
Diante deste ponto em específico, nosso estudo vincula-se à última concepção
apresentada por Susan, na medida em que acolhe a sugestão de Marco Antonio
Valentim sobre este ponto não poder ser ignorado, uma vez que a solução do
87
reconhecimento na luta de libertação se dá em função da ação revolucionária,
como exige Fanon.
Tão logo, como consequência de sua análise, Fanon postulará que a
ferida colonial fornece seu limite mais absoluto para a teoria do reconhecimento
hegeliano que, até então, é fundamental para a construção da identidade 31: a
interdição do reconhecimento pelo advento do racismo, este que só atua em vias
de uma distinção qualitativa no seio da sociedade em função de uma
impossibilidade de equiparação metafísica. Isso não é pouco e, de saída, esta
espécie de cálculo do estatuto ontológico das pessoas racializadas tornou-se
presença obrigatória quando se quer, de fato, entender as origens pelas quais o
colonialismo foi definitivo em barrar o mundo para pessoas não brancas.
Não à toa, este procedimento hegeliano estará no núcleo da psicanálise
lacaniana que considera a construção da identidade, da subjetividade, do desejo
e do inconsciente a partir do encontro do sujeito no discurso do outro. Fanon,
que foi leitor de Jacques Lacan. E, a propósito da passagem sobre a linguagem
e a fixidez identitária, considera que: “enclausurar o negro, é perpetuar uma
situação de conflito onde o branco infesta o negro com corpos estranhos
extremamente tóxicos (Fanon, 2008, p. 48). A clausura de que fala Fanon aqui
pode ser entendida, especialmente, do ponto de vista da vivência das
subjetividades colonizadas, mais fortemente das pessoas negras que se vêm
constantemente feridas ao não realizarem o ideal branco. É aqui, nesta tentativa
de ser reconhecido que, pelo menos no Brasil, as pessoas racializadas
encontram seu maior drama, pois como nos mostra Neusa Santos Souza,
numa sociedade de classes em que os lugares de poder e tomada
de decisão são ocupados por brancos, o negro que pretende
ascender lança mão de uma identidade calcada em emblemas
brancos, na tentativa de ultrapassar os obstáculos advindos do fato
de ter nascido negro. Essa identidade é contraditória; ao mesmo
tempo que serve de aval para o ingresso nos lugares de prestígio e
poder, o coloca em conflito com sua historicidade, dado que se vê
obrigado a negar o passado e o presente: o passado no que
concerne à tradição e cultura negras e o presente no que tange à
experiência da discriminação racial (Souza, 2021, p. 112-113).
31
É por isso que Lélia Gonzalez tomará a figura da mãe-preta, aquela que cuidou como babá
da maior parte da sociedade brasileira desde sua fundação escravagista, como o sujeitosuposto-saber que, subvertendo a língua culta, instaura o pretuguês. Ao fazê-lo, em certa medida
Lélia também está torcendo esta dialética para mostrar que, talvez, o jeito ladino de participar do
mundo irrompe com esta interdição, pois “o lixo falará, e numa boa”. As implicações desta
operação no mínimo psicológica em Lélia poderemos ver no próximo capítulo.
88
Segundo Fanon, “aos olhos do branco, o negro não tem mais resistência
ontológica” (Fanon, 2008, p. 104). O que isso parece querer dizer? Em primeiro
lugar que o mundo branco é completo, pois compreende uma humanidade
integralmente já realizada na própria dialética senhor-escravo, em que seus
partícipes se reconhecem simultaneamente enquanto Eu e Outro, concretizando
a força de sua ontologia. Deste modo, segundo, Faustino (2021c),
o movimento dessas duas consciências, cada qual desejando fazer da
outra o objeto de sua satisfação, é expresso por uma luta (de vida ou
morte) para provar a si mesma e a uma outra o valor de sua existência,
e é somente a partir dessa luta que a consciência pode elevar-se à
certeza de si (Faustino, 2021c, p. 461, grifos do autor).
Em segundo lugar, e aí pode-se perceber a originalidade de Fanon, está
em verificar que este mundo só existe em função da fabricação do outro
racializado, interditado a ele à realização daquele cálculo ontológico expresso
pela dialética do reconhecimento, pois são menos que humanos. Assim o são
em decorrência de sua constituição ontológica enfraquecida que barra a
realização completa da humanidade no seio de sua destinação teleológica de
história. Não pode haver, na própria dinâmica de constituição de mundo branco,
espaço para o reconhecimento do não branco enquanto sujeito em si mesmo. E
isso é óbvio: o branco cria o negro para reafirmar a sua humanidade que, aos
seus olhos racistas, resta incompleta (e, dependendo do viés, impossível), aos
não brancos. Logo, instaura-se o já mencionado duplo narcisismo em que as
identidades estão fechadas em si mesmas, sendo que apenas uma é
considerada digna de reconhecimento pleno, devendo, assim, ensinar as outras
como fazer. Segundo Faustino (2021c),
o problema adquire expressão ainda mais dramática: o negro (noir) não
existe em-si, enquanto ser substantivo; é apenas uma abstração
(nègre) produzida por uma Weltanschauung reificada da sociabilidade
colonial e, devido a esse estranhamento, a sua presença/existência é
atestada, apenas, como predicado à agência do “verdadeiro” sujeito
(branco/colonizador). Diante dele, portanto, sua resistência ontológica
desfaz-se em um vazio dolorosamente nauseante. (Faustino, 2021c, p.
466, grifos do autor).
Em terceiro lugar, pode-se dizer que a superação da estrutura colonial e
seus complexos que estruturam as diferenciações não restará completa caso a
89
interdição da própria dialética do reconhecimento não seja ela mesma
interditada. Isso quer dizer que, se em Hegel, a partir de uma leitura marxiana
da dialética, a dicotomia entre senhor e escravo é dissolvida pelo trabalho
desalienado, entendido enquanto produção de mundo racionalizável em que
ambos as partes se reconhecem pelo seu trabalho, em Fanon, a interdição só
pode ser barrada por meio da luta e da pedagogia revolucionária que, na medida
em que destrói um mundo colonial e pérfido, erige uma nova sociedade que, mal
ou bem, restitui as identidades que por muito tempo não puderam ser sequer
celebradas, mesmo que, num primeiro momento, em seu caráter aparentemente
mais essencialista.
3.5 Fanon diante das suas remarcadas contradições
Dizemos aparentemente mais essencialista, porque é interessante
perguntarmo-nos qual é o estatuto do mito para Fanon, aqui. Ora, se a todo
momento o seu texto mobiliza uma experiência desmistificadora das estruturas
coloniais, o mito também, no seio de uma cultura autóctone, pode barrar a
realização de um encontro com o humanismo universal. Não podemos deixar de
notar que, em Os Condenados da Terra, Fanon atribui o que ele chama de “mitos
aterrorizantes, tão prolíficos nas sociedades subdesenvolvidas” (Fanon, 2015, p.
72) à uma certa noção cosmológica envolvida nas práticas espirituais/religiosas
de tais sociedades.
Segundo nosso autor,
gênios malfeitores que intervêm cada vez que se sai da linha,
homens-leopardos, homens-serpentes, cães de seis patas, zumbis,
toda uma gama inesgotável de animáculos ou de gigantes dispõe
em torno do colonizado um mundo de proibições, de barragens, de
inibições muito mais terríveis do que o mundo colonialista. Essa
superestrutura mágica, que impregna a sociedade indígena, exerce,
no dinamismo da economia libidinal, funções precisas (Fanon,
2015, p. 72).
Aos olhos de Fanon, essa forma de mistificação, que parece ser alvo da
sua crítica política, seria superada pela experiência vivida na luta anticolonial,
pois é dela que se renasce uma nova humanidade. Logo, ao que tudo indica,
essa nova humanidade, no excerto em destaque, parece ser a mais laica
90
possível, o que talvez, reforçaria a tese de um afastamento da Négritude
enquanto uma expressão cosmológica herdada de África e que seria
compartilhada por todos os negros em diáspora (Oliva, 2013, p. 238) ou, se
quisermos, uma ignorância em relação aos valores comunitários e de
pertencimento que são vivenciados em espaços religiosos, relegados a uma
crítica do que ele considerava ser fanatismo, animismo ou coisa que o valha.
Sobre a relação de Fanon com os aspectos espirituais/religiosos,
especialmente os islâmicos nas sociedades norte-africanas, sua biógrafa
considera que
na sua reflexão política, profundamente ateísta, ele irá
continuamente separar política e religião, ao mesmo tempo que não
dissociará a política da cultura. Acreditava firmemente que, sob o
domínio colonial, a cultura se tornava fossilizada, que a luta de
libertação iria reinventar novas formas culturais, longe do rigorismo
tradicionalista que lhe parece rígido, antiquado e mortífero. Como
na Argélia, como em Blida, onde ele exercitava sua curiosidade
sobre os costumes, as instituições da cultura e do imaginário, mas
não sobre o impacto do sagrado e do religioso na política, ele não
subscreve o discurso árabe-islâmico que havia sido adotado em
certas alas da FLN, mesmo na Tunísia. (Cherki, 2022, p. 168).
Contudo, se pensarmos no Brasil, conseguimos identificar elementos,
especialmente vinculados às religiões de matriz africana fortemente marcadas
pela cosmovisão de tradição iorubana, que assegurariam uma unidade na
diversidade de experiência em diáspora, o que, para uma certa tradição histórica
do campo da educação para as relações étnico-raciais no Brasil chamará de
“valores civilizatórios afro-brasileiros” (Trindade, s/d)32. Estes aliás, balizam
muito do trabalho inclusive de Lélia Gonzalez. Então, diante desses elementos
nos quais é possível perguntar pelo estatuto do mito em Fanon, haveríamos de
nos perguntar, também em seguida: o possível viés ateísta de Fanon deve-se à
sua vinculação à teoria marxiana? Seria um limite do horizonte político do filósofo
que, ao se deparar com formas ancestrais de vivências espirituais, as relegam a
um certo primitivismo que, no fundo, carregaria uma reprimenda às
religiosidades que encontrou em África e na Martinica, sejam elas islâmicas,
Ainda que possa soar relativamente mal aos ouvidos mais acostumados e atentos às críticas
sobre o papel da civilização na modernidade e seu caráter um que de unificador (para sermos
generosos nas palavras), trazemos este conceito aqui como forma de celebrar as conquistas
históricas que o movimento negro brasileiro, em suas diferentes alianças e espectros, conseguiu,
consegue e ainda conseguirá no campo de atuação antirracista. Louvamos a ideia, mesmo que
existam diferentes caminhos para pensar tais valores ou princípios da convivência multiespécie
sejam africanos, afro-brasileiros, ameríndios ou amefricanos.
32
91
cristãs ou africanas? Em seu pensamento estaria vinculado um sentimento de
que as vivências religiosas se caracterizariam por uma espécie de atraso nos
esforços de descolonização?
Ao que tudo indica, se nossas perguntas se sustentam, evidencia-se uma
interessante contradição diante do que ele mesmo expunha quando analisava a
importância de se considerar os aspectos da cultura no tratamento de pessoas
violentadas pela colonização. E, se há algo que manifesta a cultura, este algo
são as dinâmicas da religiosidade de um povo. Aliás, a religiosidade muitas
vezes supera os próprios limites do que pode ser circunscrito dentro do conceito
de cultura.
Fanon, talvez influenciado pelo ranço materialista, tenha relegado à
desimportância (ou mesmo a um certo nível de preconceito) este aspecto central
da vida de muitas pessoas que, ao invés de essencializar identidades, reforçam
os laços de pertença e fortalecimento de vínculos presentes, com toda força da
resistência aos processos de opressão, em espaços religiosos. Especialmente
se as vivências dessas pessoas estiverem sob constante ameaça e ataque
daqueles que se arrogam como os portadores da única mensagem religiosa
possível por meio de todas as artimanhas nefastas que temos notícias travestido
de um deus uno, poderoso e onipresente.
Outra questão candente no nosso autor que merece um ponto de atenção,
para além do estatuto do mito, é a problemática em relação ao gênero,
particularmente à homossexualidade e ao machismo. Quando as questões de
gênero, numa perspectiva descolonial e afrodiaspórica, têm tensionado, para
além de uma série de questões caras ao lugar das mulheres e pessoas
LGBTQIAP+ racializadas, a uma releitura localizada das contribuições de Fanon
e, também, Aimé Césaire e o silenciamento das questões das mulheres em suas
obras, como vimos no capítulo anterior, é bom ter à vista que, antes de se tratar
de um revisionismo lacrador, o que se pretende é estabelecer um limite da crítica
importante a qualquer avanço teórico. Afinal de contas, não nos interessa
nenhum tipo de sacralização da imagem e dos pressupostos de nenhum filósofo,
mas verificar o que dos seus pensamentos é possível restituir à uma proposta
nova de mundo. Dito isso, avancemos sem estabelecer um tribunal sumário de
cancelamento...
92
Flagrante é a virulência machista com que Fanon interpela Mayotte
Capécia, em Pele Negra, Máscaras Brancas:
Efetivamente uma maldição flutua em volta de Mayotte Capécia. Mas
ela é centrífuga. Mayotte Capécia amesquinhou-se. Tomara que,
com o peso de suas imbecilidades, ela não torne mais pesado o
processo contra si. Vá em paz, ô enlameada romancista... Mas vá
sabendo que, além de suas quinhentas páginas anêmicas, poderemos
sempre encontrar o caminho honesto que leva ao coração. Apesar de
você. (Fanon, 2008, p. 61. Grifos nossos).
Ainda, foi possível destacar a reprodução psicanalítica freudiana33 em
relação às mulheres quando, no capítulo 6, Fanon reproduz a tese das fases
edipianas femininas chegando a afirmar, assustadoramente, que
se penetrarmos um pouco mais no labirinto, constataremos: quando a
mulher vive a fantasia do estupro por um preto, é de certo modo, a
realização de um sonho pessoal, de um desejo íntimo (Fanon, 2008, p.
153).
Assim, pensamos que levadas às últimas consequências, estaria Fanon
vinculado a uma psicanálise machista, que já foi tanto combatida por algumas
autoras feministas? Até que ponto, nesta fase fanoniana, sua psicanálise é
libertadora para todas as pessoas?
Pensamos que não se trata meramente de uma crítica da obra de Capécia
e seus problemas internos, mas um ataque machista de desqualificação
intelectual da autora. Tal fato é reforçado se pensamos que, no capítulo 4,
quando Fanon se contrapõe enfaticamente contra Octave Mannoni, ele não
lança mão da mesma agressividade para com o autor, homem. Mas, também
importante notar que a luta das mulheres na Argélia ensinou, de certa forma, que
o papel feminino é condição indispensável para o que ele almejava enquanto
encaminhamento de uma sociedade nova.
Assim, podemos ver, ainda que muito timidamente, um Fanon mais
"progressista" em relação às mulheres numa reflexão nos Condenados da Terra,
numa das poucas passagens em que o nosso autor trata das mulheres. Fanon
escreve:
33
E seus desdobramentos, cf. Fanon (2008) e a nota 35 da página 152 da edição consultada.
93
Num país subdesenvolvido, será preciso tentar, o mais rapidamente
possível, mobilizar os homens e as mulheres. O país subdesenvolvido
deve se abster de perpetuar as tradições feudais que consagram a
prioridade do elemento masculino sobre o elemento feminino. As
mulheres receberão um lugar idêntico aos homens, não em artigos da
Constituição, mas na vida cotidiana, na fábrica, na escola, nas
assembleias" (Fanon, 2010, p. 231).
Ainda sob o viés das discussões de gênero e sexualidades, Fanon é
problemático ao lidar com a questão da homossexualidade em duas passagens:
a primeira, na curiosa nota 38 da página 154 da edição consultada e, depois, na
passagem à página 169, ambas de Pele Negra..., quando ele diz:
E depois, Monsieur Solomon, vou lhe confessar algo: nunca pude ouvir
sem náusea um homem dizer de outro homem: 'Como ele é sensual!'
Não sei o que é a sensualidade de um homem. Imaginem uma mulher
dizendo de outra: 'Ela é terrivelmente desejável, essa boneca...'
(Fanon, 2008).
Problematizar as questões que trazemos nesta seção da tese não se trata
de um mero revisionismo lacrativo, como dissemos, mas sim de matizar
historicamente as construções e contribuições que acabaram por reforçar
subalternidades. Longe, portanto, de abonar ou, ainda pior, fazer vista grossa
aos deslizes de Fanon em Pele Negra..., a citação acima, vinculada à figura
revolucionária de Djamila Bouhired presente nas reflexões do Ano V... podem
mostrar que ele estava se abrindo, ainda que muito pouco, à questão do gênero
e das sexualidades. E isso se dá por três evidências.
A primeira, uma vez que conviveu com a potência libertadora das
mulheres em resistência quando diante das opressões colonialistas, Abel Santos
credita a uma certa Ancestralidade Africana do nosso autor, porque seria
possível “afirmar que entre o momento da escrita de Pele Negra, Máscaras
Brancas e a experiência revolucionária, Fanon apresenta um salto de qualidade
na percepção da mulher africana” (Santos, 2023, p. 105).
A segunda, seria sua escuta analítica expressada por meio de um
manuscrito que confidenciou a sua amiga e assistente Marie-Janne Manuellan
narrada por sua biógrafa, a saber, a:
de um jovem paciente de 27 anos que se submeteu a sessões de uma
hora, cinco vezes por semana [...]. Ele [Fanon] não só escuta a
94
desejada e reprimida homossexualidade, como é igualmente atento
aos significantes que sempre regressam” [...] (Cherki, 2022, p. 180).
Logo, se Fanon não era reconhecido por ser um psicanalista ativo à época em
que redigiu sua mais conhecida obra no começo dos anos de 1950, já “em 1958,
porém, sua posição havia se tornado mais matizada e, em sua prática, ele não
contestava a universalidade da triangulação do Édipo” (Cherki, 2022, p. 181). O
mesmo Complexo de Édipo que, em Pele Negra..., no comentário que nosso
autor faz ao compêndio de psiquiatria de Henri Baruk, figura como ausente no
desenvolvimento psicossexual das crianças, uma vez que não se verificaria a
“pederastia” na ilha da Martinica. (Fanon, 2008, p. 154).
E por fim, a terceira: como em qualquer pessoa que se vê e se implica, as
posições que antes eram tidas como naturais passam por um processo de
desnaturalização também política, sobretudo, no caso de Fanon, pela pedagogia
revolucionária. Afinal, não é este um dos saldos positivos da luta, das andanças
e do compartilhamento de mundo com outras pessoas e entes?
Diante de tais questões, uma coisa é certa: ainda que, como nos mostra
Rae Rosenberg,
Fanon não se vincule explicitamente à homossexualidade ou às
questões da diversidade sexual e de gênero [queerness] em suas
teorizações sobre as condições psíquicas da raça e do colonialismo
[...], [ele] oferece uma rica fundação na qual as investigações críticas
sobre a raça, a implantação colonial e geografia queer podem se
apoiar. (Rosenberg, 2021, p. 3, tradução nossa).
Todas estas contradições (ou limites) aqui expostas, e também suas
possíveis transformações, não são feitas com a intenção de compor um tribunal
para execrar sua figura, dando munição para seus detratores. O fazemos
justamente para reconhecer os limites do seu pensamento, suas contradições
que precisam ser resolvidas pelas pessoas que levam adiante seu projeto de
futuro desipotecado em que as formas de desatenção às violências inaceitáveis
praticadas por nossa sociedade sejam interditadas, principalmente porque são
questões que envolvem diretamente a nós que sofremos violências diversas por
expressarmos nossa vida como ela é. O que interessa, em suma, é considerar
“os escritos de Fanon como ponto de vista teórico inesgotável, múltiplo, capaz
de ser lido/visto além da superfície” (Coswosk, 2020, p. 105).
95
Entretanto, uma vez que se trata, em rigor, de analisar as formas de
alcançar uma descolonização irrestrita mesmo que nele ressoe uma herança
moderna34, é interessante ver como aspectos da formação política e acadêmica
do nosso autor não restam de todo acatadas, “mas em tensão com ela[s]: é
duramente crítico de seus processos, mas é dentro de suas margens onde busca
alternativas para uma nova forma de convivência em sociedade” (Oliva, 2013, p.
222, tradução nossa).
Sobre isso, Faustino (2022) observa:
Fanon almejava a revolução social como possibilidade histórica e,
principalmente, como condição para superar as alienações
psicossociais que permitiram curar as feridas físicas e psíquicas
promovidas pelo complexo colonial. Mas sabia que as lutas sociais não
poderiam ter êxito se não tivessem como ponto de partida a realidade
concreta em que surgiram; por isso, a afirmação histórica e contingente
das identidades negadas é um tipo de mal necessário ao qual não se
pode renunciar quando se está diante de ataques discriminatórios
(Faustino, 2022, p. 39).
Este procedimento, segundo Faustino, compreende a calibanização35 não
só do cânone ocidental, mas da dialética hegeliana empreendida por Fanon, pois
não se trata de negá-la, mas fazer realizar dela a sua promessa. Participar da
universalização humana não deve mais pressupor tornar-se branco. É
exatamente o contrário: é recusar a procura de uma branquitude como destino,
bem como recusar uma identidade negra fechada em si mesma com elementos
de um passado estável essencializado e recluso nos valores civilizatórios
presumidos para, talvez, fazer com que a comunalidade da vida esteja ancorada
em princípios da vitalidade e da solidariedade, em suma, aberta à novidade.
Sobre esta última, volta e meia desconfiamos que Fanon, além de leitor
confesso de Nietzsche, também estava atento à proposta filosófica de Henri
Que não o manteve apartado, como seus leitores e leitoras podem verificar, das influências de
seu pensamento filosófico - de Merleau-Ponty, passando a Marx e a Hegel, por exemplo.
34
A figura aqui é a da personagem Caliban, desenvolvida por Willian Shakespeare em sua obra
A tempestade. Tal personagem é frequentemente evocada nos estudos pós-coloniais a partir de
Fanon para justamente mostrar que, tal qual Caliban, ao aprender a língua de seu mestre para
lançar contra ele os piores insultos, a dialética requerida para a construção de uma identidade
também deveria ser subvertida, reapropriada e não negada (Faustino, 2021c). Como veremos
no próximo capítulo, é justamente contra esta calibanização dos pressupostos
ontoepistemológicos modernos que a obra de Denise Ferreira da Silva mobilizará seus esforços
argumentativos.
35
96
Bergson. Que ele tivesse, em sua biblioteca, exemplares do Ensaio sobre os
dados imediatos da consciência e A evolução criadora fica provado na relação
apresentada por Khalfa na edição dos Écrits sur l’aliénation et la liberté (2015).
Contudo, além de evocar Bergson sobre a questão da confissão em contextos
de guerra colonial, Fanon, em seu projeto filosófico maior, estaria antevendo um
futuro aberto à novidade, tema central em Bergson: “será que podemos ir mais
longe e dizer que a vida, como a atividade consciente, é invenção e, com ela,
criação incessante”? (Bergson, 2005, p. 24).
Tal fator se ligaria, como dissemos anteriormente, à procura de
fundamentações teóricas que, no fundo de suas propostas, se encontrariam
práticas de liberdade36.
O se que pode afirmar, categoricamente, é que a experiência vivida na
luta revolucionária, apesar de suas imensas dificuldades e aporias, faz florescer
a beleza de uma nova condição de sujeito. Não é por acaso que Fanon se
debruça à análise dos efeitos dos cinco anos da guerra anticolonialista na
Argélia. É por meio desta sociologia de uma revolução que se poderá informar
que
a promoção de uma nova sociedade não é possível senão no
quadro da independência nacional. [...] no mesmo tempo em que
o homem colonizado se coloca em tensão e recusa a opressão,
nele se produz uma mudança radical que faz impossível e
escandalosa qualquer intenção de manter o regime colonial
(Fanon, 1976, p. 150, tradução nossa).
Assim, “a luta de um povo que não economiza seu sangue nem seus
sofrimentos pelo triunfo da liberdade, [disso] então diremos que tudo é possível”
(Fanon, 1976, p. 151, tradução nossa). A desalienação pela luta, essa negativa
pela interrupção de um reconhecimento que possa hipostasiar um humanismo
novo a todas as pessoas e entes só se torna possível pela transformação
anticolonial irrestrita do mundo que, não mais preso às estruturas de dominação,
com seus racismos, sexismos e intolerâncias, torna-se, enfim, pós-colonial, pois
36
Nossa desconfiança carece de um estudo mais aprofundado sobre a pretensa e interessante
vinculação da teoria bergsoniana da novidade enquanto movimento constante, com a própria
possibilidade revolucionária de Fanon. Aqui, aproveitamos para agradecer a professora Maria
Adriana Camargo Cappello que, ainda no último semestre de 2014, durante a graduação, nos
mostrou como a filosofia do bergsonismo pode ser interessantíssima para questionarmos um
certo viés conservador da vida.
97
“desde já, é melhor decidir virar a página. É preciso sair da grande noite em que
fomos mergulhados” (Fanon, 2015, p. 361).
E, ainda que timidamente neste capítulo da tese, nos parece que vincular
a postura anticolonial de Fanon a um compromisso cosmopolítico de
transformação de mundo, reinvenção da vida e afirmação da alegria são
caminhos incontornáveis. Mesmo que tais caminhos não sejam explicitamente
observáveis em suas obras, levando-se em consideração o contexto histórico
que nosso autor desenvolveu suas reflexões, mesmo assim, se pretendemos,
seriamente alegres, sair de onde estamos em direção a lugares de pensabilidade
mais sensíveis e generosos, considerar Fanon é uma oportunidade de entender
que a grande novidade anunciada de implosão do mundo colonial, muito se deve
aos seus esforços por uma pedagogia revolucionária de luta.
Entretanto, o contexto pós-colonial no que requer de uma promessa
contida em seu nome ainda resta a ser pensado e posto em ação, como
dissemos. É sobre isso um dos principais e difíceis argumentos em torno do qual
Denise Ferreira da Silva desenvolverá a noção de “dívida impagável”, que
veremos mais à frente e nas possibilidades de negociar um mundo ch’ixi
ladinoamefricano, em Cusicanqui e Gonzalez, respectivamente.
98
FIGURA 4 – Sílex ou Pederneira – a pedra da primeira arte
FONTE: Wikimedia Commons
99
CAPÍTULO 4 – UMA GIRA PELOS MUNDOS
Sem gira eu não posso trabalhar.
Ponto de abertura de gira
Arreda homem que aí vem mulher
Ponto de Pombagira Rainha
[...]
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.
Leitura, de Adélia Prado
Ao longo dos primeiros passos deste trabalho, percorremos as principais
ideias envolvidas numa concepção de mundo que carrega em si uma estrutura,
um complexo colonial. Este “drama da terra” de que nos falou Suzanne RoussiCésaire e que mobilizou Frantz Fanon, na medida em que ele se envolvia com a
luta antimanicomial e anticolonial, exigiu um reposicionamento do mundo em
vias de destruir as estruturas que o sustentam e que insistem em perpetuar
violências múltiplas não só aos humanos, mas também à comunidade
multiespécies da Terra. Essas posturas combativas foram alvo das análises as
quais nos debruçamos nos capítulos anteriores. Em seu propósito mais evidente,
o que apresentamos pode ser entendido como um esforço argumentativo na
tentativa de apontar os caminhos para um mundo pós-colonial. Mundo que tende
a ser outra coisa, a partir da superação das estruturas de dominação colonial
expressas
naquele
complexo
colonialista
que
não
estiveram
apenas
circunscritas ao tempo histórico das explorações imperialistas, mas que se
perpetuam nas dinâmicas sociais a partir da noção de colonialismo interno.
O que interessa ressaltar, diante da tentativa pela sistematização mínima
dos pressupostos anticoloniais apresentada nos capítulos anteriores, é como
eles ressoam em proposições filosóficas mais contemporâneas. Para tanto,
evocamos, a partir deste capítulo, as contribuições de Lélia Gonzalez, Silvia
Rivera Cusicanqui e Denise Ferreira da Silva para o debate ao redor do fim deste
mundo como o conhecemos. Os motivos pelos quais estas três pensadoras são
100
mobilizadas podem ser vários e os veremos na medida em que apresentamos
os principais aspectos de suas filosofias. Por ora, basta dizer que, de algum
modo, nos escritos das três filósofas há uma tentativa pela realização deste
mundo pós-colonial enquanto um compromisso teórico e essencialmente prático,
que visa restituir as condições de possibilidade e pensabilidade de uma vida
plena, solidária e minimamente compartilhada. Não são meras elucubrações de
um modismo acadêmico, mas, cada uma a seu turno, numa espécie de alquimia
de conceitos, contribui para a formulação de uma poção, um antídoto
contracolonial.
Diante das suas óbvias diferenças internas no que tange seu vocabulário,
ancestralidades teóricas e escopos, mais do que separá-las, o propósito
anticolonialista aqui as une, especialmente entorno da argumentação central, a
saber: como produzir mundos outros que este? Como arregimentar uma (ou mais
que uma) proposição que implique mundos em que o princípio primeiro seja a
vida plena, com alegria?
A escolha também não é arbitrária, se tensionamos minimamente ampliar
a discussão teórica encontrada nessas três mulheres na América não apenas
pela mera representatividade - que, em si mesma, não tem muito a dizer - mas
pelo compromisso em divulgar modos muito particulares de construir teorias
filosoficamente estruturadas num compromisso comum: por meio de suas
contribuições, é possível antever uma vinculação, em maior ou menor
intensidade, as reafirmando ou as negando, no que anteriormente chamamos de
filosofia pós-colonial, mas que se desvela em pensamentos anticoloniais.
Contudo, além de tentar mapear os percursos argumentativos que apoiem este
argumento, tentaremos mostrar, também, os caminhos pelos quais será
possível, num arrazoado de tudo o que vimos até aqui somados às suas
contribuições, antever uma perspectiva cosmo-etno-política de mundo. A partir
de então, tentaremos expor quais as chances de mobilizar o pensamento, e
sempre os colocar em função das experiências vividas no seio mesmo da
sofisticação do aparato neocolonial que o capitalismo global faz reproduzir
incessantemente.
Assim, começaremos com Lélia Gonzalez que, durante nosso estudo,
tornou-se fundamental enquanto uma pensadora que subverte o pensamento
social brasileiro restituindo uma certa ladinidade para lidar com os intensos
101
efeitos negativos do racismo estrutural. Depois, articularemos os pressupostos
desenvolvidos por Silvia Cusicanqui que desdobram, a partir do encontro entre
cosmologias muito particulares, um mundo Ch’ixi possível. Ao final, tentaremos
mostrar como a filosofia de Denise Ferreira da Silva, ao mesmo tempo em que
apresenta uma contundente crítica aos paradigmas ontoepistemológicos
modernos, propõe uma poética da negritude que é eminentemente aberta ao
devir Outra-mente. Vejamos...
4.1 Lélia Gonzalez: intelectual da práxis amefricana
Temos a oportunidade participar de um período interessante, no qual há
o redescobrimento da envergadura do pensamento de mulheres negras, como o
de Suzanne Roussi-Césaire, Angela Davis, bell hooks etc, e de mulheres que,
do Brasil, levam adiante uma lança para fraturar as estruturas coloniais. Tal é o
caso de Lélia Gonzalez. Esta tese, sem dúvida, tenta prestar uma espécie de
homenagem a este acontecimento. Infelizmente, Lélia ainda está fora dos
currículos formais de filosofia pelo país, apesar de ter muito dizer a ele e a toda
a comunidade filosófica brasileira. Conhecer Lélia, até poucos anos atrás, se
dava em contextos da luta de resistência ao racismo brasileiro, muito vinculado
às estratégias de uma pedagogia das relações étnico-raciais. Assim se deu
nosso conhecimento da autora que, na medida em que foi sendo aprofundado
por leituras, debates e à sua chegada em alguns contextos acadêmicos, foi
mostrando-se não apenas como uma potente argumentação antirracista, mas
muito profundo em suas especulações filosóficas.
Assim como acontece atualmente com o pensamento fanoniano, o
pensamento de Lélia vem sendo amplamente (re)descoberto, discutido e
publicado, estabelecendo-se, aos poucos, uma antologia37 e uma fortuna crítica
sobre sua obra. Nos contextos acadêmicos, para citar um dos quais Lélia tem
Em 2018, a União dos Coletivos Pan-Africanistas, num esforço editorial até então inédito,
compilou 45 ensaios de Lélia, cobrindo quase a totalidade da sua produção textual. É com base
nesta publicação que referenciamos todos os seus textos mobilizados, apontado, na medida do
possível, suas datas e contextos de publicação. Assim, além de referenciar o ano da coletânea,
indicaremos entre colchetes o ano de publicação oficial do ensaio evocado, cf. formato
(Gonzalez, [ano de publicação], 2018, p. XX), assim como fizemos com os ensaios de Fanon.
37
102
circulado, uma interessante prova da sua pertinência atual é expressa no número
de teses e dissertações que, em seus títulos, trazem o descritor “Lélia Gonzalez”.
Encontramos, numa busca rápida no Catálogo de Teses e Dissertações do Portal
Capes38, o montante de 80 trabalhos, dos quais 62 são dissertações de mestrado
e 18 teses de doutorado defendidas nos últimos 5 anos. Em sua maioria, as
áreas de interesse são as ciências humanas e educação. Como temos
acompanhado ao longo dos últimos anos dos nossos estudos, o interesse pela
obra de Lélia tende a crescer na medida em que ainda há muito o que se
mobilizar para a superação da estrutura racista brasileira, sendo ela fundamental
para tanto.
Lélia em sua vida pública atuou em diversas frentes como a política, a
militância antirracista, a vida intelectual - com sua formação sólida em filosofia,
antropologia, história, geografia e psicanálise, a cultura e a educação. Em sua
biografia39, é possível encontrar um presente esforço pela destruição das
mistificações racistas brasileiras em seus aspectos mais amplos, desvelando
cada um deles ao mostrar que, antes de uma pretensa democracia racial,
estamos sob uma amefricanidade que carrega em si não só as contradições
racistas, mas suas características culturais mais profícuas que aliam as
experiências em diáspora na constituição do se entende por povo brasileiro.
4.1.1 Lélia por quê?
Segundo Patrícia Teixeira, Lélia Gonzalez
se uniu a muitas pessoas em busca da concretização, problematização
e tensionamento dessa ação [emancipação dos povos negros] na
sociedade brasileira e deixou um legado que deve ser reconhecido,
perpetuado e expandido (Teixeira, 2017, p. 96).
De saída, sua biografia caminha concomitantemente à sua obra que,
infelizmente foi interrompida quando Lélia Gonzalez faleceu em decorrência de
Pesquisa
realizada
em
03
de
maio
de
https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
38
2023
por
meio
do
site
Para um detalhamento biográfico sobre Lélia Gonzalez, cf. Viana (2006); Ratts e Rios (2010)
e compilados por Teixeira (2017).
39
103
um problema cardíaco. Entretanto, em que pese a interrupção de sua obra em
função de ter trocado “sua situação de companheira de luta pela de ancestral”
(Bairros, 2000, p.359), a pensadora é definitivamente uma figura central para,
como já dissemos, restituir o mundo às pessoas racializadas.
Em vias gerais, as contribuições de Lélia para tanto estão diluídas em
artigos para jornais, textos para eventos acadêmicos, discursos, comentários
sobre obras e entrevistas concedidas, mostrando a sua capilaridade e inserção
por diversos meios de difusão. Certamente, Lélia é conhecida por dois textos
fundamentais de sua produção, a saber: Racismo e sexismo na cultura brasileira
de 1980, e A categoria político-cultural da amefricanidade, de 1988. Em ambos,
a nossa filósofa articula, às noções da constituição sociológica latino-americana
a partir de diferenças entre os modelos de colonização português e ibérico,
questões da subjetividade das pessoas racializadas, principalmente as
mulheres, profundamente construídas nestes contextos de negação de uma
identidade que é “muito mais ameríndio-amefricana” (Gonzalez, [1985] 2018, p.
336) do que a produzida numa orientação eurocêntrica. Isso faz, aos olhos de
Lélia, com que todas as pessoas que se constituíram em sociedades outrora
formalmente colonizadas carregaram em si e nas expressões de suas
subjetividades, os efeitos de uma identificação com as figuras opressoras que,
por meio de suas filosofias, perpetraram os complexos de inferioridade e
dependência, além da manutenção de um sistema patriarcal que visa
duplamente negar as mulheres.
É fundamentalmente por isso que ela, num artigo intitulado “Por um
feminismo afrolatinoamericano”, datado de 1988, tende a alargar o conceito de
experiência da tomada de consciência da mulher negra, pois as estruturas
coloniais que, parafraseando Lacan, legiferam as subjetividades, não são
exclusivas apenas delas, apesar de nelas se expressarem de modos
particularmente cruéis. Ora, se a linguagem e o discurso constituem todo o
arsenal subjetivo e inconsciente a que temos acesso, o Brasil só é possível
porque existe a “mãe preta”. E se as bases materiais e espirituais (para ficarmos
só com essas de inúmeras outras) para a formação de nós são as mulheres
negras (e, antes, as mulheres indígenas), que relegadas a um exclusivismo
forçado do cuidado doméstico senão pelo ódio e desprezo da agência política
104
feminina pública, o que encontramos é a tal rasteira que foi dada para que
pudéssemos existir.
Entretanto, essa possibilidade é sempre inferiorizada, uma vez que a
própria colonização, sobretudo com seus processos internalizados na cultura e
na subjetividade, apaga qualquer capacidade de alargamento de experiência
que só pode acontecer pela luta crítica. Assim, sobre esse alargamento da
experiência, numa espécie de compartilhamento da situação dramática que o
colonialismo determina, Lélia considera que
uma questão de ordem ético-política é imposta imediatamente. Não
posso falar na primeira pessoa do singular, de algo dolorosamente
comum a milhões de mulheres que vivem na região; refiro-me aos
ameríndios e aos africanos, subordinados a uma latinidade que
legitima sua inferiorização (Gonzalez, [1988] 2018, p. 308).
Isso parece nos dizer que, muito além de meramente evocar uma espécie
de argumento de autoridade do tipo “lugar de fala”, Lélia Gonzalez está mais
interessada em mostrar como as falas dos lugares subalternizados é que
determinam um ponto de inflexão que visa desvelar o paradigma atrelado a “uma
cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista da realidade” (Gonzalez, [1988] 2018,
p. 309). E, o que fica evidente, é que a única maneira de o fazer é coletiva.
4.1.2 O manifesto da língua pela rasteira da Amefricanidade
Coletividade tal que assegura a magistral percepção de que “a rasteira já
está dada” (Gonzalez, [1984] 2018, p. 205) por meio da amefricanidade e do seu
significador: o pretuguês, pois a língua oficial do Brasil, na verdade, é uma
subversão que nos foi presenteada pela África a partir da resistência e do
combate à morte.
O código de comunicação referido reatualiza as presenças ameríndias e
negras numa estrutura oficial da língua portuguesa. Um passo importante na
dimensão conceitual do pretuguês se dá por sua vinculação à constituição da
cultura brasileira. Pela apropriação que Lélia faz da figura materna psicanalítica,
o pretuguês invade, constitui e dá vazão à expressividade cultural, pois conforme
afirma nossa pensadora:
105
e quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a
mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam
respeito prá criança brasileira [...], essa criança, esse infans, é a dita
cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês” (Gonzalez, [1984] 2018, p.
205).
Se a mãe é a quem cria, e se quem cria é a empregada, a bá, a mucama,
a promessa da purificação e branqueamento do povo brasileiro dos devaneios
eugenistas não logra seu completo êxito. O português é tomado pelo pretuguês.
Ele é subvertido e povoado. Trata-se de torcer a língua culta como forma de
quebrar sua pretensão controladora e, além, desvelar um “DNA” fonético que se
vincula às origens africanas:
É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é
Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala
errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l
nada mais é do que a marca lingüística de um idioma africano, no qual
o l inexiste. Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o
maior barato a fala dita brasileira que corta os erres dos infinitivos
verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não
sacam que tão falando pretuguês. (Gonzalez, [1984] 2018, p. 208).
Conforme Lélia nos conta, é em função das mulheres africanas que,
“apesar de todo o racismo vigente, os brasileiros falam ‘pretuguês’ (português
africanizado) e só conseguem afirmar como nacional justamente aquilo que o
negro produziu em termo de cultura” (Gonzalez, [1981] 2018, p. 111). Essa
cultura que foi forjada por meio de violências múltiplas, maquiadas no mito de
uma democracia racial tropical, expressa em seus códigos e práticas um país
que dá as costas para qualquer vivente considerado de segunda classe, sejam
humanos ou não humanos. É a isso que Lélia chama a nossa atenção: se nossa
consciência é por demais colonizada, devemos nos lembrar que nosso
inconsciente e referências são, por demais, amefricanas. E é por isso que,
segundo nossa autora, “a questão do negro, a questão do índio ou a questão da
mulher não são questões só nossas, especificamente, e sim da sociedade
brasileira, de todos nós” (Gonzalez, [1985] 2018, p. 239).
Podemos lembrar, assim, de Deleuze, ao considerar o teatro de Carmelo
Bene em Um manifesto de menos, que nos mostra como uma prática discursiva
hegemônica, que unifica as comunicações em torno de uma língua maior,
106
transmuta-se numa forma de poder40. Indo além, lembremo-nos, também, de
Pierre Clastres que, quando descrevia o processo de francização já apontava “o
etnocídio pertencente à essência unificadora do Estado” (Clastres, 2014, p. 84).
Mas, em resposta definitiva a essas unificações da norma culta padrão, que de
certa forma tendem a perpetuar uma das formas de etnocídio, lembremo-nos
não só do pretuguês como explosão daquela latente cultura amefricana, mas
também da estratégia de que nos ensina Nêgo Bispo: trata-se de uma “guerra
das denominações: o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de
enfraquecê-las” (Santos, 2023, p. 13, grifos nossos).
O que Lélia Gonzalez está a propor pode ser entendido, à pena
deleuziana, por essa menorização da língua, uma vez que “não há língua
imperial que não seja escavada, arrastada por essas linhas de variação inerente
e contínua, quer dizer, por esses seus usos menores” (Deleuze, 2010, p. 39). E,
ainda, diz: “uma variação imanente, contínua e regulada: eis o que define toda
língua por seu uso menor, um cromatismo ampliado, um black-english para cada
língua” (Deleuze, 2010, p. 40); ou seja, há um pétit-nègre de Fanon (2008) e um
pretuguês de Lélia para cada língua maior que unifica os esforços etnocidas do
Estado contemporâneo. A língua, então, como espécie de luta, de marca de
resistência. A língua como um feitiço, como nos ensina Antônio Bispo dos Santos
(2023). Longe de um possível flagrante de que o colonialismo (no nosso caso,
português) venceu, posto que pensamos e falamos a partir de seu léxico e
sintaxe, Margarida Petter nos afirma:
as línguas africanas foram sempre percebidas no Brasil como um
agente perturbador e desestruturador da língua herdada da colônia.
Se, no século XIX e meados do século XX, os primeiros estudos
linguísticos valorizaram o léxico de origem africana como um elemento
importante de nossa identidade linguística, visto que as palavras da
África evidenciavam a diferença entre o Português Brasileiro e o
Português Europeu, trabalhos do final do século XX atribuíam à
influência africana os desvios à norma culta, como a falta de
concordância nominal e verbal, sobretudo. Atualmente, a linguística
está mais atenta aos estudos da sintaxe do PB e, sob esse aspecto, as
línguas bantas oferecem um material imprescindível para a análise. A
A oportunidade de percorrer os caminhos de uma escrita-manifesto (cf. Abstado, 1980) teve
lugar no curso ministrado pela professora Juliana Fausto, durante o segundo semestre de 2019,
no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPR, a quem sou grato pelas reflexões,
indicações bibliográficas e generosidade na leitura do artigo de conclusão sobre o tema da
disciplina e sua conexão com a obra de Lélia Gonzalez que, posteriormente, foi estendido a partir
das contribuições de Aline Di Giuseppe e publicado como capítulo de uma coletânea. (cf.
Giuseppe; Gonçalves, 2020).
40
107
investigação das variedades africanas de português em comparação
com o PB evidencia um fato: as palavras são do português, mas a
fonologia, a semântica e a sintaxe têm a marca africana (Petter, 2023,
p.134).
Se a apropriação da língua maior e sua constante variação, subversão e
reinvenção indeléveis a partir das formas de pensamento locais é o que faz uma
língua viva - um manifesto discursivo por excelência anticolonial reatualizado a
todo instante num continuum41 -, os resíduos do logos do Uno se convertem em
expressões dos que antes eram tidos como lixo. E, com Lélia, aprendemos que
“o lixo fala, e numa boa”. Não apenas o lixo do inconsciente que é matéria bruta
para os processos de cura pela fala dos quais a psicanálise se alimenta, mas um
lixo enquanto condenados da Terra que, diante de tal identidade, se insurge para
o novo.
O que nossa autora tensiona está por dissolver os dualismos perversos
que erigiram a Cultura ocidental e que corroem aquelas e aquilo que constituem
a diferença marcada por indicadores raciais, sexuais, de classe e outros. E, em
Lélia, somos muitas pois somos pessoas amefricanas. Se isso já prefigura uma
multiplicidade de agências e conflitos, é preciso tentar nos aproximarmos da
nova construção de identidades que sejam refratárias à figurada pela ontologia
colonial.
É por isso que, como afirma Lélia no seu texto “Nanny”, para a Revista
Humanidades, da UnB:
O Brasil, por razões de ordem geográfica, histórico-cultural e sobretudo
de ordem do inconsciente – é uma América Africana cuja latinidade,
por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, nomear o nosso
país com todas as letras: Améfrica Ladina (cuja neurose cultural tem
no racismo o seu sintoma por excelência) (Gonzalez, [s/d] 2018, p. 335,
grifos da autora).
Com base nesses pressupostos é que emergirá a amefricanidade como
uma categoria político cultural que “está intimamente relacionada àquelas do
Sobre isso, Margarida Petter diz: “A noção de continuum, como entendo, envolve: a) mudança
no tempo, em que as diferenças entre as variedades vão se acentuando, como no caso da
concordância de gênero, praticamente residual no Brasil e ainda atuante no contexto angolano
e moçambicano; e b) permanência, continuidade, sem que haja um início e um fim, em que o
tempo não é o fator relevante, pois o que importa é uma certa “unidade”, um conjunto de formas
semelhantes que rompem com o PE e que sustentam o reconhecimento da língua nacional como
um português afro-banto” (Petter, 2023, p. 135).
41
108
pan-africanismo, negritude, blackness, afrocentricidade, etc” (Gonzalez, [s/d]
2018, p. 336). Mas, não só. A partir da evidência de que a Améfrica também é
ameríndia, Lélia nos avisa de que
o termo amefricanas/amefricanos nomeia a descendência não só dos
africanos “gentilmente” trazidos pelo tráfico negreiro, como daqueles
chegados à América antes de seu “descobrimento” [...]. É na chamada
América Latina (muito mais ameríndio-amefricana do que outra coisa)
que essa denegação [racista] se torna amplamente verificável
(Gonzalez, [s/d], 2018, p. 336), grifos da autora).
Evidentemente, trata-se de reconhecer que aqueles condenados da Terra
não podem, como pudemos notar na abertura da IV CONAPIR a qual fizemos
referência no começo deste trabalho, atuarem sem uma mínima coalizão,
respeitadas as condições ancestrais que nos colocam aqui. Com Lélia é possível
antever que, em que pese a importância e centralidade das análises serem
voltadas à população negra em todo seu trabalho, os povos ameríndios não
podem deixar de ser considerados na solidariedade dos movimentos negros
organizados e, também, de todos os outros que seguem firme tentando construir
mundos outros, sob pena de todos perderem para o fim catastrófico irreversível.
Afinal de contas, se “para os povos nativos das Américas, o fim do mundo já
aconteceu, cinco séculos atrás” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 138), é
não só possível, mas mandatório, que os escutemos a sério.
Quando Lélia, em ação e pensamento que transformam, dá visibilidade e
desbrava caminhos às gerações por vir, se vivifica em personagem fundamental
para construir novos horizontes práticos e teóricos, afetivos e culturais; em última
instância. Pois, fez de sua escrevivência o motor para as transformações de
realidades injustas para a construção de uma vida mais justa e solidária, ainda
que se tenha muito por se fazer.
E, essa parece ser a postura de Silvia Rivera Cusicanqui quem numa
variante da Amefricanidade, pensa um mundo Ch’ixi. É o que passaremos a ver.
109
4.2 Silvia Cusicanqui e a cosmopolítica Ch’ixi: “vivir bien, no mejor”42:
Silvia Rivera Cusicanqui traz, a partir de uma posição “retórica
anticonquista” (Cusicanqui, 2022) a sua contribuição ao pensar a ideia de um
mundo Ch’ixi como algo também compartilhado entre os subjugados do
colonialismo em seus atravessamentos identitários. No léxico de Cusicanqui, a
autora, além tentar promover, às vezes, uma linguagem neutra com o uso do x
em vogais que expressariam um gênero designado em algumas de suas
formulações, também mobiliza palavras da língua do povo andino Aymara não
apenas como meros termos, senão como palavras-conceito, ao entender que as
artimanhas do capital oferecem uma instrumentalização racionalista que “segue
asfixiando nossos povos e bloqueando o pensamento crítico, tanto nas
universidades, como na esfera pública e seu debate político” (Cusicanqui, 2018,
p. 21, tradução nossa).
O que faz do pensamento de Cusicanqui algo peculiar e que nos ajuda na
desmontagem das nossas colonizações espirituais é promover uma aliança que,
ouvindo as montanhas andinas e seus coabitantes, reverbera nos corredores
acadêmicos para além da mera crítica. Suas proposições de pensamento
almejam alcançar um outro mundo possível que se forja recusando uma certa
economia gramatical moderna que, atrelada às situações colonialistas, “o não
dito é o que mais significa; as palavras escondem mais do que revelam, e a
linguagem simbólica toma a cena” (Cusicanqui, 2010b, p. 13, tradução nossa).
Diante deste ponto, a pensadora costura análises que se inspiram em
movimentos de insurgência (e suas contradições) que lutaram e ainda lutam por
uma ideia de viver bem e compartilhado, tais como o feminismo que traz consigo
os reflexos das resistências das mulheres andinas, o campesinato boliviano e
seu consequente Movimento Katarista, do final da década de 1970, além daquilo
que se constituiu por fonte de inspiração para todas as formas mais novas de
oposição à estrutura colonial, a saber: resistências presentes desde os tempos
das primeiras ocupações da coroa espanhola no território das montanhas, como
a rebelião pan-andina de Tupaq Katari, de 1780-82 (Cusicanqui, 2010a). Aliada
ao princípio de luta anticolonial, a autora propõe, como caminhos de suas
42
Cf. Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 103.
110
análises, uma certa metodologia analítica a qual chamou sociologia da imagem,
especialmente voltada aos trabalhos de Waman Puma43 que, por meio de seus
desenhos, “cria uma teoria visual do sistema colonial” (Cusicanqui, 2010b, p. 14,
tradução nossa).
Concebendo o cenário atual de consequentes crises, sejam elas teóricas,
morais, éticas, espirituais, econômicas etc.) que nada mais são do que um
desdobramento e reatualização do colonialismo interno, Cusicanqui nos propõe
colocar em questão
o fato de que acreditamos nos entender, porque damos como certo o
que significam palavras como mercado, cidadania, desenvolvimento,
descolonização, entre outras. São palavras que tranquilizam, mas de
modo enganador. [...] O que faz a crise é quebrar essa segurança,
movermos o piso e obrigarmo-nos a penar o que queremos dizer com
elas. (Cusicanqui, 2018, p. 40-41, tradução nossa).
Essas “palavras mágicas”, segundo nossa pensadora, motivam, para
além de um entendimento de suas origens e significações histórico-políticas,
uma abertura mais generosa para os pensamentos que estão expressos em
outros meios que não os da soberania gramatical moderna e lexicográfica44,
porque esta permite que,
hoje em dia, a retórica da igualdade e da cidadania se converta em
uma caricatura que esconde os privilégios políticos e culturais tácitos,
noções de sentido comum que fazem toleráveis a incongruência e
permitem reproduzir as estruturas coloniais da opressão (Cusicanqui,
2010b, p. 56-57, tradução nossa).
Então, face à contestação das palavras mágicas modernas, a relação
imagética e discursiva está presente não apenas em palavras e desenhos, mas
no modo pelo qual a linguagem - que articula fala e pensamento -, expressam
Felipe Guamán Poma de Ayala, também conhecido por Waman Puma, foi um indígena
Quechua. Através de sua produção pictórica presente em sua obra El primer nueva corónica y
buen gobierno de 1615, é possível entrar em contato com sua denúncia sobre o tratamento
dispensado pelos conquistadores espanhóis aos povos andinos. Cusicanqui dedica boa parte de
sua argumentação teórica às análises dos desenhos de Puma.
43
É por isso que, na maioria dos trabalhos da autora estudados para esta tese, volta e meia
aparecem as imagens de Waman Puma. É por isso, também, aliada à sugestão de Débora Araújo
na ocasião do exame de qualificação do estudo que estamos apresentando, que trazemos
algumas imagens ao longo do nosso texto. Mais do que ornamentos, elas representam uma
espécie de síntese argumentativa de cada seção.
44
111
ora a herança do colonialismo entranhado, ora as formas pelas quais resistem
mundos outros, mundos que nos lembram que é possível ser outramente. E é
justamente nessa implicação absoluta que nos constitui enquanto viventes
insatisfeitos de um mundo ainda colonial que emergirá a noção de uma
epistemologia Ch’ixi.
4.2.1 A proposta de uma epistemologia Ch’ixi
A partir do triste mecanismo do “habitar colonial” que, além de devassar
as paisagens e vidas não humanas, devassou também as mulheres com
estupros, trabalhos forçados e todo tipo de humilhação para fazer-se a si mesmo
(Ferdinand, 2022; Carneiro, 2023; Gonzalez, 2018 etc.), uma legião de
condenados da Terra se veem às voltas com uma educação e cultura que se
impõem como única forma ontológica de alcançar uma humanidade aos moldes
europeus, na medida em que são relegados ao limbo da própria humanidade
impossível de ser realizada pelos mesmos motivos que a construíram, ou seja,
é uma equação infernal que nunca será resolvida. O que resta então, aos
mestiços do mundo, a uma certa noção de origem, pelo menos sendo realidade
de grande parte do dito “povo brasileiro”, quando carregam em si tanto memórias
ameríndias e africanas, quanto europeias? É assumindo como essa contradição
imbricada que habita as pessoas colonizadas nas periferias dos países latinoamericanos que Cusicanqui desenvolverá, a partir na noção Aymara de um
terceiro incluído, a ideia de qulla, que se coloca oposta à lógica aristotélica que
solidifica o modo de pensar moderno:
O dualismo andino é dinâmico. Então, a partir dessas formas
estruturais de pensamento, ou da existência, por exemplo, de palavras
como qulla que quer dizer a uma só vez remédio e veneno, me dou
conta que a capacidade de manejo das contradições na língua e na
cultura Aymara é muito forte, o que chama-se lógica trivalente, e isso
nos permite pensar a realidade colonial com muito mais vigor e certeza
que com os conceitos monísticos que vêm da Europa, onde te obrigam
à lógica aristotélica de que A é A e não pode ser B. Em Aymara, A pode
ser ao mesmo tempo B. (Cusicanqui, 2015, p. 95, tradução nossa).
O que subjaz tal posição lógica é a oferta de uma contra análise ao já
conhecido hibridismo cultural45 que postularia, no contexto pós-guerra fria, que
45
Cf. Canclini (1998).
112
o mundo caminharia para uma homogeneização culturalista fomentada pelos
mercados transnacionais. Além de
assumi[r] a possibilidade de que, da mescla dos diferentes, possa sair
um terceiro completamente novo, uma terceira raça ou grupo social
capaz de fundir as características de seus ancestrais em uma mistura
harmoniosa e de todo inédita (Cusicanqui, 2010b, p. 70, tradução
nossa),
Sílvia Cusicanqui considera que um pensamento Ch’ixi consiste, enfim, num
esforço por superar o historicismo e os binarismos da ciência social
hegemônica, lançando mãos de conceitos-metáfora que a descrevem
e interpretam as complexas mediações e a heterogénea constituição
de nossas sociedades [...] [porque] vivemos a múltipla irrupção de
passados não digeridos e indigeríveis. (Cusicanqui, 2018, p. 17,
tradução nossa).
Este conceito-metáfora Ch’ixi corresponde, na cosmovisão Aymara, a
objetos cuja cor se faz através da mescla de diferentes, formando pontos,
manchas que não se homogeneízam, não se transformam em outra cor
uniforme, mas guardam as características de cada qual, formando um terceiro
viés, contrastado. Assim como nas pedras, nos solos, nas nuvens, nas águas,
no fogo, enfim, no encontro com as diferenças.
Contudo, antes de se reprimirem mutuamente, ou pior, se fecharem em
seus polos, o que produz é uma aparição heterogênea, pelo menos no nível
fenomenológico, mas que resguarda a possibilidade de transformação.
Transformação tal que seja capaz de recusar a pä chuyma, a alma dividida, o
produto das colonizações espirituais, em uma duplicidade (ou multiplicidade)
Ch’ixi que lança sua flecha em direção a uma
Ética do bem comum, não só em vias da sobrevivência humana e a
reprodução do social, mas também em busca da cura do planeta e da
reconexão de nossas pequenas angústias com os latidos e os
sofrimentos da pacha (Cusicanqui, 2018, p. 52, tradução nossa).
A esta coletividade de comunalidades, é evidente que o interesse,
desveladas as carapaças etnocidas da modernidade, exprime-se à uma vontade
contumaz do viver bem, posto que as formas de vida que se fizeram antes do
mau
encontro
colonial
se
mantiveram
pulsando
pela
resistência
e
113
ancestralidade. Os pulsos que ainda pulsam são possíveis justamente porque
habitam numa forma de viver que recusa e denuncia o colonialismo interno e
tende às noções pluriversais desse buen vivir, mescladas, aprendendo junto com
todos os agentes a sermos outros daqueles prejudicados pelos processos de
colonialismo.
Contudo, esse núcleo das vontades coletivas pela vida está longe de ser
algo tolo, descompromissado e apolítico. Não se trata de “gratidão” aleatória por
estamos vivos enquanto muitos outros, humanos e considerados não humanos,
são seviciados pelo capitalismo neocolonial. A noção de buen vivir é
absolutamente cosmopolítica na medida que deve ser pensada como uma
atitude dos povos e sociedades contra o Estado, de que já nos falava Pierre
Clastres. Estado que, antes de defender a vida e os interesses planetariamente
comuns, mobiliza suas formas de repressão para defender propriedades
privadas, como se a Terra fosse exclusiva a alguns tipos de humanos. Como se
a cerca, o muro e as fronteiras fossem os verdadeiros pilares do planeta.
Isto quer dizer que, contrariamente à sanha aceleracionista dos povos
modernos que são movidos pela ganância das mercadorias e mentirosas
vantagens do capital, a possibilidade de haver saída a este moedor de
esperanças é uma conexão outra com a vida, que passa por dinâmicas
cosmopolíticas muito mais complexas que a mera economia de gestão das
populações naquele viés biopolítico que nos ensinou Michel Foucault. Essas
dinâmicas complexas residem na possibilidade de compreensão do próprio
tempo não como algo a ser vivido com vistas a uma evolução em estágios
sucessivos e ascendentes, mas condições em que todos os entes se
transformam, se agenciam e se implicam cosmopoliticamente. É por isso que a
noção de bem viver não é tola ou inocente, descolada de um propósito comum
de agência múltipla. O que se mostra, então, é um
presente etnográfico [que] não é de modo algum um "tempo" imóvel;
as sociedades lentas conhecem velocidades infinitas, acelerações
extra-históricas, em uma palavra, devires, que fazem do conceito
indígena do vivir bien algo metafisicamente muito mais parecido com
um esporte radical do que com uma descansada aposentadoria
campestre. (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 93)
O esporte radical de que aduzem os autores acima vibra em conjunto à
radicalidade mesma daquela proposta fanoniana de um mundo outro, em que
114
haja possibilidades para que a vida seja absolutamente compartilhada e
celebrada em seu viés absoluto, mas que resguarda as diferenças constituintes
de uma pluralidade, de uma multiversalidade. Assim, segundo Cusicanqui,
Habitar o mundo-do-meio tecendo as wak’as como alegoria da batalha
cósmica entre forças opostas, converte a violência em um princípio de
outra natureza: o selvagem revive o civilizado, o feminino se opõe e
complementa o masculino; o tecido incorpora a língua. Esta alegoria
nos leva à ideia de um mundo ch’ixi como horizonte possível de
transformação emancipatória. Ao habitar no meio de mandatos
opostos, criando vínculos com o cosmos através de alegorias, o
equilíbrio ch’ixi, contraditório e, por sua vez, entramado, das diferenças
irredutíveis entre homens e mulheres (ou entre indixs e mestiçxs, etc.,
etc) faria possível um outro mundo. (Cusicanqui, 2018, p. 56, tradução
nossa).
Na passagem que destacamos sobre a proposta geral deste mundo Ch’ixi,
aparece a noção de wak’as que, segundo evidências presentes ao longo do texto
de Cusicanqui, sugerem lugares sagrados e ritualísticos que “são geralmente
considerados vorazes e famintos” (Cusicanqui, 2018, p. 47, tradução nossa).
Eles que existiam em função de “uma economia e uma contabilidade dos bens
oferecidos às entidades sagradas” (Cusicanqui, 2018, p. 47, tradução nossa).
Dada esta espécie de tradução, a passagem destacada acima parece
fazer maior sentido, especialmente ao evocar entidades outras-que-humanas na
agência de transformação do mundo que é cosmo-etno-político em contraste
com o pensamento filosófico moderno autocentrado, estéril e completamente
pobre de mundo. Asase Ye Duru, ou “A Terra tem peso”, como sabemos pela
filosofia do povo Akan, em Gana e Costa do Marfim.
A Pacha é sagrada no sentido de oferecer as condições de possibilidade,
uma vez obrigados a viver os espólios do horror colonial que tanto a machucou,
para reinventar outra prática de vida. Prática inspirada nestes movimentos de
revolta, de luta, de guerrilha pela vida, nas resistências e escrevivências junto à
Ela. E, sem nos esquecer: irmanadas e irmanados, também, por agentes outros
que humanos.
115
4.2.2 A ideia Ch’ixi também é outra que humana
A autora, em seu mais recente texto traduzido no Brasil, considera que,
para além de um certo viés muito centrado apenas nos seres humanos, o
pensamento Ch’ixi também é informado por uma certa “qualidade indeterminada”
também nos animais não humanos (ou mais que humanos). Isso porque, ouvindo
o que pensa o escultor aymara Víctor Zapana, Cusicanqui nos diz que
os animais ch’ixi são manchados, pintados, granulados: pertencem ao
mundo de baixo e, ao mesmo tempo, ao mundo de cima. Por isso, são
animais poderosos, indeterminados, que ajudam a ‘resistir à maldade
do inimigo’. Entre eles está o katari (a serpente), o jararankhu (o
lagarto), o jamp’atu (o sapo) e a kusikusi (a aranha) (Cusicanqui, 2022,
p. 305, modificado).
Tal é o caso do impressionante desenho de Waman Puma ao retratar o
ser mítico Uturunku e chamá-lo de Sexto Capitão, um indígena dos altiplanos
transformado em jaguar46.
Cusicanqui nos conta em sua análise que, num primeiro momento,
pensava que o capitão seria representado pela figura humana de cabelos longos
que aparece à direita, enfrentando um grande jaguar, com seu arco e fecha.
Contudo, nossa autora se retrata, nos dizendo: “simplesmente não tinha me dado
conta (pelo meu hábito antropocêntrico) que o Sexto Capitão era, na realidade,
o Uturunku” (Cusicanqui, 2022, p. 306).
Essa transformação poderia ser entendida a partir da ideia de um perspectivismo, porque,
ainda que o relato de Cusicanqui estabeleça um lugar geográfico andino, o perspectivismo, a
partir das cosmologias ameríndias e amazônicas, oferece mais um poderoso elemento
contracolonial. Cf. Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 93): “o que chamaríamos de mundo
natural, ou "mundo" em geral, é para os povos amazônicos uma multiplicidade de multiplicidades
intrincadamente conectadas. As espécies animais e outras são concebidas como outros tantos
tipos de "gentes" ou "povos': isto é, como entidades políticas. Não é "o jaguar" que é "humano";
são os jaguares individuais que adquirem uma dimensão subjetiva (mais ou menos pertinente,
conforme o contexto prático da interação com eles) ao serem percebidos como tendo "atrás
deles" uma sociedade, uma alteridade política coletiva”.
46
116
FIGURA 5: Otorongo achachi, de Waman Puma (1615)
FONTE: Cusicanqui, 2022, p. 305.
Esta importante ressalva exemplifica um dos vários processos de
descolonização que se fazem possíveis, o que irá desembocar nas resistências
e nos “gestos de insubordinação intelectual” (Cusicanqui, 2022, p. 280) que
praticamos quando nossa indigestão, causada pelos anos sorvendo os baquetes
modernos, nos empapuçam os sentidos. E, se é possível chegarmos a lugares
em que nossas antigas certezas são regurgitadas, temos diante de nós a
possibilidade de aprender com os animais citados. Aprender a nos defendermos
das maldades inimigas que se alimentam de nossa morte. Aprender, também, a
assumir a equivalência de capacidades cognitivas como uma premissa
básica, que não acontece em nossas sociedades, porque há uma
cadeia de desprezos coloniais que pressupõem a ‘ignorância do índio’
e se filtra pelos poros do cotidiano, erigindo os muros do sentido
comum (Cusicanqui, 2018, p. 80, tradução nossa).
Mas, para que essa espécie de milagre da vida possa imantar as
consciências daqueles que ainda estão presos às noções muito pobres que
alimentam a cosmovisão eurocêntrica moderna, é necessário, além da luta
117
conjunta pelo propósito da vida boa, relembrarmos que outras temporalidades
são também possíveis. Temporalidades tais que sejam concebidas como
simultaneidade, num continuum entre passado, presente e futuro:
Viver em tempo presente, tanto o passado inscrito no futuro (‘princípio
da esperança’), como o futuro inscrito no passado (qhipnayra), [que]
supõe uma mudança na percepção da temporalidade, é declarar a
eclosão de tempos mistos na consciência e na práxis (Cusicanqui,
2018, p. 91, tradução nossa).
Como nos adverte Cusicanqui, umas das questões centrais desse projeto
de viver outramente lança sua atenção crítica às palavras encobridoras e dos
modismos teóricos recentes – que mais determinam um aprisionamento do
saber em espécies de seitas-conceito -, em direção a uma prática
irreversivelmente comprometida com os propósitos que advoga. Prática que
reconhece a possibilidade de agência cosmopolítica não apenas ao demos
enquanto povo único e exclusivo, mas no engajamento pela libertação irrestrita,
do jeito melhor que conseguirmos fazer por meio das nossas ações
micropolíticas.
É por isso que, no contexto de uma crítica da temporalidade,
não há ‘pós’ nem ‘pré’ em uma visão da história que não é linear,
tampouco teleológica, que se move em ciclos e espirais, que marca um
curso sem deixar de retornar ao mesmo ponto. O mundo indígena não
concebe a história linearmente, e o passado-futuro estão contidos no
presente: a volta ou o avanço, a repetição ou a superação do passado
estão em jogo a cada conjuntura, e dependem de nossos atos mais do
que de nossas palavras (Cusicanqui, 2010b, p. 55, tradução nossa).
Eis, assim, uma das muitas possibilidades de, em vendo e fazendo o
mundo colonial se acabar, engajarmo-nos em práticas comuns que aliem não só
nossas experiências atuais e ancestrais, mas que, com outras agências, possam
sonhar com novos mundos possíveis. Esta é a tarefa exigida se quisermos
sobreviver à catástrofe presentificada para chegar a outro lugar. Porque, como
nos aconselha a autora a quem dedicamos esta seção da tese:
É um privilégio viver em um espaço desde o qual se pode experimentar
e repensar coisas como a desobediência organizada, a resistência
comunitária, as formas comunais de autogestão, a desprivatização, de
fato, dos serviços e espaços públicos, as formas alternativas e
iconoclastas de fazer política desde o cotidiano/feminino, que nos
118
ajuda a defender-nos das lógicas perversas do sistema capitalista. A
peleia por resistir à privatização da água, do ar, dos bosques e
cordilheiras se expande a todos os níveis; nossas ideias também são
matérias-primas expropriáveis. Mas, é bem difícil pensar que se possa
lograr espaços descolonizados no interior da academia, desde a
individualidade da cátedra, ou na solidão da produção teórica.
Considero que há de ser formados coletivos múltiplos de pensamento
e ação, corazonar e pensar em comum, para poder enfrentar o que nos
espera. [...] Isto tem a ver com maneiras de enfrentar as crises
ambientais, a crise dos serviços, as crises de abastecimento. Temos
de estar prontos! Prontos como? Penso que só será possível através
de comunidades (ancestrais o modernas, de parentesco ou afinidade),
que sejam capazes de fazer ao mesmo tempo que falar; trabalhar com
as mãos, ao mesmo tempo que trabalhar com a mente; mas também
comunidades que não obliterem nem silenciem vozes dissidentes, as
formas femininas e ancestrais de criar o político e de procurar o bemestar comum. Assim mesmo, me parece importante a ocupação dos
espaços; a recuperação dos terrenos públicos privatizados e
entulhados; a retomada dos espaços visuais cobertos pelas
mensagens estridentes do comércio e da política. Temos que nos valer
de recursos múltiplos, de gestos diversos que tenham a ver com ações
que podem ser musicais, artesanais e nas ruas, tecendo por debaixo,
alegorias de interconexão que, em última instância, fará brotar outra
linguagem da politização (Cusicanqui, 2018, p. 72-73, grifo da autora,
tradução nossa).
Junto a esta tentativa de fazer um mundo novo a que aludimos neste
trabalho, a atitude de corazonar – ligar seu coração com sua memória -, participa
da construção a que almejamos.
E, pensando na memória, trazemos por fim, a pensadora Denise Ferreira
da Silva que, fazendo uma espécie de genealogia da memória filosófica
moderna, nos ensina que só haverá saída na dissolução completa do homo
modernus.
4.3 Denise Ferreira da Silva: a poética negro-feminista para destruir o Homo
Modernus
O corpo marcado pela tortura que se
decompõe no solo e todas as
particulazinhas que fazem parte deste
corpo vão fazer parte de tudo o que vai
crescer nesse solo.
Denise Ferreira da Silva (Curso Luz
Negra, Aula 3, 2019b, 1:49:07).
119
A filósofa Denise Ferreira da Silva, por meio de suas contundentes críticas
ao projeto filosófico moderno de erigir um sujeito da transparência localizado a
partir da Europa, perfaz o caminho difícil e necessário para desvelar os
mecanismos
teóricos,
estéticos,
políticos,
jurídicos
-
em
suma,
ontoepistemológicos (ser e saber), que o forjaram: como ponto focal a partir do
qual todo o resto, os “outros da Europa”, precisavam se apoiar para tentar
participar de uma comunidade ontologicamente digna.
Grande parte do seu projeto, segundo a pensadora, lança-se a “mapear
os efeitos da mobilização das estratégias científicas e históricas nos textos que
escreveram os sujeitos políticos modernos” (Silva, 2022, p. 411). Assim, Denise
Ferreira da Silva encontra, na justificação científica do século XIX, a partir das
teses dos principais filósofos europeus modernos dos séculos XVI, XVII e XVIII,
o contexto no qual irão nascer não apenas o edifício estruturado das
configurações que tornaram possíveis conhecer o sujeito europeu moderno ou,
homo modernus – “o sujeito moderno como efeito tanto da significação histórica
quanto da significação científica – simultaneamente produtor e produto, causa e
efeito” (Silva, 2022, p. 261); mas, acima de tudo - os sujeitos subalternos,
afetáveis, colonizáveis, condenados pela Terra Europa à uma condição de
inferioridade moral, jurídica e política. A novidade no projeto filosófico de Denise
é mostrar que, a partir dos mecanismos ontológicos modernos, não só aquele
sujeito que Foucault tão bem elucidou com sua genealogia é capaz de ser
conhecido, mas principalmente conhecer como emergem, no discurso moderno,
os “outros” racializados que não são levados em conta e cujo desaparecimento
é mandatório.
De saída, o que interessa à autora é pensar condições de
(im)possibilidade de novos horizontes, uma vez que sua
poética negra feminista vislumbra a im/possibilidade da justiça, a qual,
desde a perspectiva do sujeito racial subalterno, requer nada mais
nada menos que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido,
isto é, o Mundo Ordenado diante do qual descolonização, ou a
restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos
escravos, é tão improvável quanto incompreensível (Silva, 2019a, p.
37).
Importante notar a pujança desta questão diante o fato de que, mesmo
que se possam sumarizar, a partir dos registros oficiais, todas as mortes de
120
pessoas racializadas no Brasil nas últimas décadas por meio da violência estatal,
sem contar a infinidade de tantas outras que sequer são consideradas – a justiça
enquanto reparação nunca será alcançada, porque ela só chega à uma
determinada parcela da população que está protegida pela arquitetura
ontoespistemológica moderna e capitalista liberal, a saber, pessoas brancas que
não estão em situação de vulnerabilidade social e econômica.
Isto posto, há uma guerra declarada do Estado - com seus poderes de se
autopromover e se autoproteger que, “na recente reconfiguração do palco
político global (ético-jurídico) [o coloca] no comando da subjugação racial” (Silva,
2014, p. 69) – contra as pessoas historicamente despossuídas, por meio do
genocídio da população negra, indígena e pobre; em suma os condenados da
arquitetura colonial capitalista. É por isso, por sua condição ontológica
construída enquanto exterioridade pela gramática moderna, que “esses
extermínios não desencadeiam uma crise ética porque os corpos dessas
pessoas e os territórios que elas habitam quase sempre já significam violência”
(Silva, 2014, p. 69). A guerra, portanto, é uma forma de afirmação e
sobrevivência do Estado, dos pilares ontoespietemológicos que só existem a
partir do exílio dos outros àquilo que Denise chama de “afetabilidade”.
O que ampara a necessidade do exílio de uma moralidade objetiva é a
construção de uma noção muito particular de dignidade ontológica que é
resguardada apenas à noção de humanidade exclusiva. Assim, Denise aponta
que o
mapeamento da racialidade revela como esse arcabouço políticosimbólico que reconfigura um efeito-poder da necessitas
(formalização) produz os “outros em relação à Europa” em situação de
afetabilidade, sujeitos que não atuam na moralidade objetiva. Nele, os
outros em relação à Europa habitam sozinhos os domínios da
necessitas, completamente sujeitados ao poder limitador/regulador
que produz e determina as partes e movimentos dos seus corpos,
assim respondendo pela qualidade inferior de suas mentes, o que é
significado nos modos de existência que se desenvolvem em seus
territórios. [...] Em outras palavras, a racialidade produz tanto o sujeito
da moralidade objetiva, que é protegido nos salões da lei e pelas forças
de Estado, quanto os sujeitos da necessitas, os sujeitos raciais
subalternos cujos corpos e territórios, o presente global, se tornam
lugares onde o Estado faz uso da sua força de autopreservação” (Silva,
2014, p. 91-92).
Percebemos, então, que a tal falência das instituições a toda hora
diagnosticada, além de toda uma literatura crítica que tenta mobilizar seus
121
argumentos para realizar uma inclusão dos “outros” nas promessas de dignidade
da vida humana - promessas estas feitas pela filosofia que se pretende universal
quando em formulações de sua ética iluminista - restam não só inúteis como
irrealizáveis diante da indiferença que produziu e ainda reproduz a diferença
racial. Tanto os diagnósticos quanto as críticas demonstram que
a violência racial, à solta na (in)diferença que põe ao chão a
administração da justiça na/para a aplicação da lei, imediatamente
legitimando o Estado a usar suas forças para a autopreservação, não
requer extirpar os significantes da humanidade. Pelo contrário, a queda
dessa administração já está inscrita na racialidade, que produz a
humanidade, a figura política autodeterminada (ético-jurídica) que
busca uma moralidade objetiva, apenas porque isso a institui em uma
relação – unida/separada pelas linhas do quadro clássico – como outra
figura política (o “eu” sujeitado), que se depara com o horizonte da
morte. (Silva, 2014, p. 110-111).
Nessa tese de Ferreira da Silva, podemos então apenas constatar que,
se a justiça é irrealizável, pois habita o “conto ontológico que anuncia a
moralidade objetiva” (Silva, 2014, p. 110-111), nada menos que imaginar outras
saídas e tentar destruir esse edifício ontoepistemológico nos é exigido enquanto
uma requisição do fim deste mundo. Se o entendemos, por óbvio, como uma
perspectiva objetiva, “ante a essas estruturas, esses sujeitos raciais subalternos
não são ninguém, são não seres” (Silva, 2014, p. 100). Ademais, se ainda
quisermos parar de fazer sumir esses ninguéns, esses no-bodys, se quisermos
que parem de ser desaparecidos esses corpos que representam uma ameaça à
estrutura perversa do mundo moderno, devemos, então, pôr fim a ela,
precisamente, porque
a racialidade assegura que, onde quer que seja, independentemente
do lugar do planeta, aquele ‘outro’ que representa uma constante
ameaça existe porque já foi assinalado: como tal, ele é uma ameaça
interminável porque sua diferença necessária usurpa sistematicamente
do sujeito a pretensão sobre uma vida ética de autodeterminação”
(Silva, 2014, p. 113, grifos da autora).
Enquanto, então, aceitarmos a condição de termos sido feitos em regime
de apartheid ontológico, sequer haverá qualquer outra exposição que não seja à
uma violência total que nos conduzirá, necessariamente e infelizmente, à morte.
Mas, como exigem todas as boas estratégias táticas de contra-ataque, é primeiro
mandatório tentar compreender como a ameaça foi construída. Nós devemos
122
imaginar poder jogar contra o inimigo. Para tanto, antes de nos juntarmos a ele,
condição que nos colocaria como vencidas e vencidos, o mapearemos,
dançaremos com ele, até surgir o rabo de arraia. E, na ocasião deste trabalho
acadêmico, o pensamento de Denise parece ser um bom paranauê.
Vejamos...
4.3.1 Os pilares ontoespistemológicos modernos
Desde Immanuel Kant, munido com sua Crítica da Razão Pura, sabemos
que as categorias do Entendimento conferem poderes para que os homens
possam conhecer, por meio dos conceitos a priori – inscritos desde já na mente,
o fundamento mesmo das impressões sensíveis que lhes aparecem pela
experiência. Segundo o filósofo, portanto, a possibilidade de conceber o espaço
e o tempo são calcadas na intuição pura, que não dependem de justificações a
posteriori, ou seja, na experiência, constituindo aquilo que o pensador
categorizará, dentro da Doutrina Transcendental dos Elementos, como Estética
Transcendental. Sendo, portanto, intuições a priori, de certa maneira inatas, tais
categorias dão conta de classificar, separar e determinar os objetos (e pessoas)
que chegam à via dos sentidos, conferindo, assim, a possibilidade de produção
de qualquer conhecimento da ordem das coisas do/no mundo e, de outro lado,
da ordem de si mesmo, afastando-se dos objetos como sua condição
ontológica47.
Não é sem razão, portanto, como já demonstramos anteriormente em
nossa dissertação de mestrado, que o filósofo foi o responsável por, de maneira
inédita, determinar um conceito filosófico que explicava as diferenças entre os
seres humanos que a todo o tempo intrigavam o velho mundo europeu a partir
dos primeiros relatos das colonizações, fabricando, pois, distinções qualitativas
sob a justificativa das diferenças raciais. Diante dos olhos do próprio autor, esse
contingente de outros-que-ele não passavam de “degradação animalesca da
Segundo o autor em sua célebre obra em questão, “A unidade sintética da consciência é,
portanto, uma condição objetiva de todo o conhecimento, de que preciso não apenas para mim
a fim de conhecer um objeto, mas sob qual toda intuição tem que estar a fim de tornar-se objeto
para mim, pois de outra maneira e sem essa síntese o múltiplo não se reuniria numa consciência”
(Kant, 1983, p. 87, grifo do autor), mas que, caso não o tivesse feito, faríamos nós.
47
123
humanidade” (Kant, 2010, p. 31) por não reproduzirem seu modelo civilizatório
arregimentado sob as bases de um Estado-europeu. E é a partir disso, que
Denise considerará ser herança do kantismo dois pilares ontoespistemológicos
modernos fundamentais, a saber separabilidade e determinabilidade. Segundo
nossa autora,
dois elementos entrelaçados do programa kantiano continuam a
influenciar projetos epistemológicos e éticos contemporâneos: (a)
separabilidade, isto é, a ideia de que tudo o que pode ser conhecido
sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas
(espaço e tempo) da intuição e as categorias do Entendimento
(quantidade, qualidade, relação, modalidade) –, todas as demais
categorias a respeito das coisas do mundo permanecem inacessíveis
e, portanto, irrelevantes para o conhecimento; e ,consequentemente,
(b) determinabilidade, a ideia de que o conhecimento resulta da
capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem
ser usados para determinar (isto é, decidir) a verdadeira natureza das
impressões sensíveis reunidas pelas formas da intuição” (Silva, 2019a,
p. 39).
Ora, como nos explica Marco Antonio Valentim, esse tipo de formulação
da filosofia transcendental vai se fundamentar na possibilidade mesma de uma
recusa irrestrita a se “contaminar” com exterioridades, que, nos termos de
Husserl (apud Valentim, 2018, p. 20), proporia uma “aniquilação do mundo das
coisas”. Isso quer dizer, categoricamente, que a tendência aniquiladora desta
ontoepistemologia moderna se faz afirmar senão como sua condição de
existência. É preciso se apartar das exterioridades, das afetabilidades, para que
se garanta a segurança do núcleo que se pretende intocado pela ameaça da
morte, que só seria possível aos outros que europeus e que assegure, aos
senhores do Entendimento, a “Excepcionalidade do homem – sua alma, livre
arbítrio, capacidade de raciocinar etc.” (Silva, 2016, p. 59, tradução nossa).
Entretanto,
os
princípios
racionais
universais
do
Entendimento
explicariam muito bem uma certa natureza de uma parte dos seres humanos
enquanto fenômenos determinados por eles e, aquilo que motiva grandes
batalhas na tradição filosófica, a saber, a tópica da liberdade, restaria confinada
quando muito, nos muros da razão. Ou, na pior dos pesadelos kantianos, na
liberdade sem lei daqueles que ainda não foram contemplados pela
“sociabilidade insociável” que faz um cálculo das vontades e motivações
coletivas.
124
Mas, Denise nos mostra que, como resultado dessa conta kantiana
herdeira do princípio da Mathesis universalis, os dois pilares garantem, ao sujeito
do Entendimento, uma soberania dos demais objetos e entes do mundo, e uma
separação entre grupos humanos. Uns mais próximos da liberdade, outros
menos, a depender de seu espaço e tempo na ordenação cosmológica da vida
na Terra. Colado aos dois primeiros pilares resultantes do sistema filosófico
kantiano, que não resolvem a contento o problema da liberdade que é
constantemente ameaçada pelas leis exteriores da natureza, aparece no
horizonte da ontologia moderna um terceiro, desta vez à pena de Hegel.
Neste passo - que é um dos principais da tese filosófica de Denise para
mostrar um ponto de inflexão que abrirá margem às teorias do racismo científico
do séc. XIX -, suas análises dão conta de, a partir da leitura da Fenomenologia
do Espírito, considerar que a liberdade, antes restringida pela exterioridade,
passou a se expressar fazendo as pazes com razão. O que Denise considera
ser a poesis interiorizada de Kant, a saber, “formulações filosóficas que
descrevem a razão como a força produtiva que opera primeira e principalmente
a partir dos limites da mente racional” (Silva, 2022, p. 24), transfiguram-se em
poesis transcendental:
Hegel reconstituiu o universal formal kantiano (“razão pura”), isto é, o
transcendental, como coisa (desejante viva) histórica, a saber, a força
(interior-temporal) produtiva, o “espírito”, o Eu transcendental. Ao
resolver a razão em liberdade, a natureza em história, o espaço em
tempo, as coisas do mundo em sujeito (pensante, do conhecimento,
atuante, desejante ou vivente), Hegel reescreveu a peça da razão
como poesis transcendental (Silva, 2022, p. 179).
A consciência, quanto mais autorreflexiva, toma a forma poderosa de não
apenas produzir-se a si mesma, mas ordenar, categorizar, historicizar e atualizar
as manifestações do corpo, da mente, do espaço, do tempo, da Natureza e da
Razão - vistas como distintas por seu antecessor - num mesmo princípio: o
Espírito. A sua fenomenologia se desenrola, então, por meio dos atos históricos
e progressivos, tendo como sua mola de propulsão a ideia central da superação
de um estágio anterior em direção às possibilidades de um outro e novo estágio.
Tal processo dialético que, n’A ciência da lógica será encarado como
Aufhebung, consistiria em precisar estes estágios de desenvolvimento de todas
as coisas e gentes observáveis no mundo e, por consequência de uma lógica
125
interna ao sistema hegeliano, caracterizá-las qualitativamente pela historicidade
manejadas por uma razão científica.
A partir dessa transformação proposta por Hegel, Denise identifica que,
aliado aos dois primeiros pilares kantianos, está posto um terceiro: a
sequencialidade. É este pilar síntese que poderá atestar que, observadas e
cumpridas as condições deste edifício, haverá àqueles que moram em sua
cobertura, àqueles que compram suas varandas-gourmet, àqueles que se
aglomeram nas comunidades, àqueles que sentem o desespero nos campos de
refugiados em tendas puídas e àqueles que ocupam as ruas e habitam as
florestas do mundo aparentemente despossuídos de tudo. Quanto mais perto de
arranhar o céu, mais perto do Espírito que garante lugar privilegiado de acesso
aos mecanismos jurídico, econômicos e morais do Estado.
Denise, deste modo, nos informa que a contribuição decisiva de Hegel
para a “representação moderna, como defendo, não é estabelecer como as
configurações da Europa pós-iluminista difere-se de outras configurações
anteriores ou coexistentes, mas sim estabelecer o porquê” (Silva 2022, p. 201).
E esta motivação acontece, uma vez que,
para Hegel, a Europa pós-iluminista atesta a realização do “espírito”,
pois ali a “Ideia” – ou seja, a razão enquanto liberdade – é observável
nas configurações sociais, onde o “Espírito” é reconhecido como o Eu
(regente e produtor) transcendental, e quando a autoconsciência
entende sua causa e essência, a saber: a transcendentalidade, isto é,
no momento da “vida ética”. Em outras palavras, quando Hegel
remolda a autoconsciência como homo historicus – a coisa (interiortemporal) autodeterminada, cuja vontade e ação atualizam somente o
“Espírito” – ele também estabelece a universalidade e a historicidade
como os princípios que marcam a “diferença intrínseca” da Europa pósiluminista (Silva, 2022, p. 205).
A narrativa inscrita nos anais da filosofia moderna que encontra seu ápice
no pensamento hegeliano constitui-se numa espécie de álbum de memórias do
sujeito eurocêntrico, o Homo Modernus. Uma mesa em que só alguns sorvemse de um baquete de dignidades, enquanto outros mantém aquela
comensalidade senão através de seu trabalho, vida e espíritos expropriados.
Como consequência desse sistema, não apenas estariam condenadas as
humanidades outras que europeias, mas também o mundo todo, conforme nos
explica Valentim:
126
Longe de apontar para algo remoto, tal hipótese já era em si mesma
aniquiladora: no conceito de “mundo exterior”, esse tópos
pretensamente neutro, aniquilava-se – colocando “entre parênteses” –
uma multiplicidade inumerável de “mundos divergentes” (apud
Stengers, 2005), neutralizados em sua potência própria de
mundanização pela “consciência absoluta”, emancipada, do povo
universal. Se se o considera em vista de seu impacto imanente sobre
outros povos, humanos e não-humanos, que desde sempre manteve
excluídos e assujeitados à produção do sentido “em geral”, dificilmente
escapa à evidência de que o pensamento transcendental opera como
um dispositivo de aniquilação ontológica. Adversária da onto-teo-logia,
a tese moderna do “isolamento metafísico do homem” (apud
Heidegger, 1190, p. 172), é, ao mesmo tempo, etno-eco-cida
(Valentim, 2018, p. 21).
Tal aniquilação ontológica logrará maior êxito quando no ofuscamento do
discurso filosófico ante ao florescimento dos discursos científicos do século XIX
e XX48, aquelas gradações que antes forjavam a ontologia do sujeito histórico
passaram a motivar as investigações das ciências naturais e antropológicas ao
se perguntarem, primeiro, pelas disposições biológicas do ser humano
(gramática das diferenças raciais) para, depois, aliá-las às disposições societais
(gramática das diferenças culturais) – todas ligadas, obviamente, à reprodução
do Estado liberal moderno e seu aparato ético, jurídico e econômico.
Assim, toda uma ideia entorno do darwinismo social se desdobra,
mostrando que, na linha ascendente e evolutiva da história do mundo, as
colonizações seriam justificáveis para um melhoramento cultural daqueles cujos
hábitos assombram as etiquetas modernas, mas que também garantem o
acúmulo de capital, fonte da expropriação das colônias. Isso, mais tarde,
conceberá países de primeiro e terceiro mundos.
Para não repetirmos a já exaustiva história do “fardo do homem branco”,
limitamo-nos aqui a exprimir, nas palavras da nossa filósofa, a ideia das
distinções culturais que, diante da pretensa universalidade humanista, faz do
racismo científico algo moralmente obsoleto:
Ao mobilizar o cultural com o intuito de encarcerar os “outros da
Europa” dentro das suas tradições e assim, de manter a Europa pósiluminista no momento da transparência, esses projetos científicos
sociais [antropologia e sociologia] abordaram seus objetos sempre-já
como coisas raciais. Isso não ocorreu porque as versões dessas
disciplinas falharam em recusar o “pecado original”, isto é, a escrita do
homem como efeito das ferramentas do nomos produtivo, ou seja, a
O que os físicos Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, em seu livro O grande projeto, de
2011, considerarão, presunçosamente, ser a de morte da filosofia.
48
127
razão científica como máscara do Espírito, mas sim porque, conforme
o rejeitaram, incorporaram a diferença racial como traço substantivo do
corpo humano. Se este não tivesse sido o caso, não teria sido possível
esculpir seus próprios nichos de modo a não os distinguir da história
(Silva, 2022, p. 293, grifos nossos).
É por esse horizonte inscrito desde já na aniquilação de outras entidades,
outras ontologias e outras espiritualidades que, quando estamos diante dos
apartheids, dos genocídios humanos e outro-que-humanos, dos naufrágios, do
atraso das vacinas, dos inúmeros tiros, balas perdidas, lagrimas de familiares
que sepultam seus mais novos ou mais velhos por conta da “violência urbana”
ou do campo, das hordas de animais que são transformados em carne para uma
certa produtividade pop da agroindústria, das pessoas sendo pesadas por @ ou
alimentadas por ração, enfim, de todo esses futuros interrompidos, a tudo isso,
não existem maiores comoções dos senhores da razão transcendental. Afinal de
contas, segundo Denise,
exatamente porque o arsenal da racialidade assegura o lugar da mente
e configuração social da Europa pós-iluminista na transparência, ao
passo que escreve os “outros da Europa” numa dimensão não
abarcada pela transcendentalidade, o posicionamento subalterno dos
últimos não provoca a crise ética esperada pelas pessoas que
argumentam que a subjugação racial contradiz os princípios éticos
modernos (Silva, 2022, p. 326, grifos nossos).
Por isso, sempre que pensarmos o primeiro mundo, sempre que
aludirmos à emancipação do sujeito, sempre que clamarmos pela dignidade,
devemos lembrar que as condições para que pensemos estes termos é forjada
pela ontoepistemologia moderna e seu duplo: a dialética racial49 e sua
capacidade de só pensar no humano. Só existem raças porque, antes, o sujeito
da transparência se fez em discurso que perpassou os domínios das ciências
naturais e sociais conjugadas na inscrição do sujeito moderno naquilo que
Denise conceberá por “Tese da Transparência”.
Só pode existir liberdade (autodeterminação), portanto, se existir uma
comparação com os “outros” afetáveis que foram mapeados primeiro pelo léxico
filosófico moderno e, depois, científico que fizeram nascer as diferenças físicas,
Cf. Silva (2019a, p. 139): “as quais explicam as diferenças econômicas resultantes de séculos
de expropriação da terra do nativo e do trabalho do escravo, primeiro como diferença racial e,
depois, diferença cultural”.
49
128
raciais, sociais, jurídicas e econômicas como operação das leis naturais
atreladas às capacidades mentais do ser humano, e não como uma
consequência de uma operação ontológica que, ao separar os humanos dos não
humanos, separava os primeiros entre si. A tradição filosófica chegada ao seu
ponto ótimo com Kant e Hegel se traduz em evidências naturais pela autoridade
do discurso científico em sua mudança de paradigmas, instaurando de forma
contumaz a ideia mesma de uma filosofia essencialmente anti-cosmopolítica.
Concluiu-se, como vimos, a montagem final do espetáculo moderno das
ontologias coloniais. Uma crença verdadeira e justificada senão por fabulações
especistas e racistas.
As liberdades modernas, além de serem construídas a partir do uso e
abuso de combustíveis fósseis (Chakrabarty, 2013), é primordialmente
assentada nos corpos dos outros afetáveis, combustíveis viventes. Trata-se,
sobremaneira daquilo que Cida Bento (2022) chama de pacto narcísico da
branquitude que, no caso do Brasil, será exitoso, porque
os brancos, em sua maioria, ao não se reconhecerem como parte
essencial nas desigualdades raciais, não as associam à história branca
vivida no país e ao racismo. Além disso, a ausência de compromisso
moral e o distanciamento psicológico em relação aos excluídos são
características [desse] pacto narcísico (Bento, 2022, p. 121).
A explicação, portanto, é friamente justificável, pois filosoficamente
moderna e possível, uma vez que estes condenados
contitu[em] tanto uma forma social quanto unidades geográfica e
historicamente separadas que, como tal, ocupam posições diferentes
perante a noção ética de humanidade – identificada com as
particularidades das coletividades branco-europeias (Silva, 2019a, p.
43).
Os que são produzidos como restos, os outros que são obrigados a pagar
com sua vida para que haja a construção do mundo moderno (tanto entidades
humanas ou extra-humanas) estarão eternamente inscritas num ordenamento
que os compromete a saldar uma dívida impossível, uma dívida impagável. Tal
ordenamento que foi começado na estrutura da acumulação de recursos para
sustentar um projeto do capital insuflado pela sanha colonialista, muitas vezes é
esquecido por uma certa fortuna crítica que, por demais histórica no sentido
129
progressivo, parece esquecer a materialidade do que foi o colonialismo, este que
usou de todas as suas armas para extrair todos os valores do trabalho de outrem.
4.3.2 O contragolpe da Poética Negra Feminista: liberar a imaginação do
Entendimento
Diante desse esquecimento suspeito, Denise oferece à noção marxista de
“acumulação primitiva” uma crítica que marca a lembrança de que só existem as
estruturas do capitalismo, porque houve o trabalho escravo como essencial e
inerente à sua reprodutibilidade. Assim, a coletânea que é nomeada Dívida
Impagável (2019a) é animada por também questionar, novamente, a história
como flecha do tempo.
O experimento especulativo é inspirado nas personagens de Octavia
Butler, especialmente Dana, da obra Kindred (2017). Tentando não entregar ao
máximo os detalhes do excelente livro de Butler às pessoas que ainda não
tiveram oportunidade e a sorte de ler a obra em questão, dizemos apenas que a
protagonista viaja contra sua vontade no “tempo-espaço” descobrindo que sua
vida permanece atada ao seu “passado” que fora compartilhado por outras
pessoas seviciadas pela violência escravocrata dos Estados Unidos – e tais
viagens sustentam a própria existência de Dana no “presente”, pois precisa
salvar um antepassado da morte para que consiga sobreviver. Todavia, este
trabalho gera mais danos à própria existência da protagonista. Essa inspiração
literária traria a forte noção de que os efeitos da expropriação e violências totais
coloniais não estão no passado, porque, como atestamos, o passado não
passou.
O passado tem se atualizado permanentemente na medida em que suas
práticas nocivas continuam a ser reproduzidas pelas estruturas que protegem a
propriedade privada – estruturas estas que são forjadas no interior da
ontoepistemologia moderna: econômica, social e jurídica, uma vez que são todas
políticas no sentido foucaultiano de viver e deixar morrer. Contra essa genealogia
que nada mais faz do que desvelar o DNA da racialidade, uma estratégia de
enfrentamento insurgente pode ser traduzida numa Poética Negra Feminista,
cuja “força radical da Negridade reside na virada do pensamento; o conhecer e
130
o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo como o
conhecemos” (Silva, 2019a, p. 91, grifo da autora).
Não é sem razão que a categoria da Negridade aparece aqui. No texto a
que aludimos, de 2019, Denise Ferreira da Silva diz que a diferença racial
observável por tal categoria funciona justamente porque “oclui a violência total
absolutamente necessária para que tal expropriação ocorra, uma violência
autorizada pelas formas jurídicas modernas” (Silva, 2019a, p. 139). Se assim é,
apenas a categoria da Negridade, quando trazida à Poética Negra Feminista
proposta pela autora, é capaz de, por sua força, “desestabilizar o programa ético
regido pela determinabilidade ao expor a violência que a mesma refigura” (Silva,
2019a, p. 139).
Poderíamos nos perguntar, somadas a ela, quais demais estratégias
poderiam estar em coalizão para fraturarem os pilares que sustentam este
mundo neocolonial e capitalista como o conhecemos, exprimido entre tantas
outras torturas e desgraças, pelas palavras encobridoras que restam num
“umbral” de que nos fala Cusicanqui; pela morte, pelo apagamento e pela
impossibilidade de realizar qualquer justiça, uma vez que não há, de maneira
sincera, maiores perturbações éticas quando israel fuzila os refugiados que
buscam se alimentar pela distribuição de ajuda humanitária na Palestina, por
tantos outros que são desalojados de suas terras pela sanha dos minerais que
dão vida às placas eletrônicas de celulares no Congo, pelas notícias semanais
de que jovens negros são assassinados ou que povos indígenas são
contaminados pelos rejeitos de garimpo ilegal que infestam seus já diminuídos
territórios e por uma tristeza tão absoluta que os retira da vida pelo suicídio.
Sair desse horizonte sistemático e sumário da morte, pois como nos
ensina o samba, camarão que dorme, a onda leva, é preciso. Porque é possível
imaginarmos mundos em que nossa condição, aquela que nos põe a todos como
vivos, não seja uma maquiagem ou, ainda, a insistência numa luta crítica, ainda
que meritosa, mas inútil, no final das contas, pela inclusão a um sistema desde
já construído para nos matar. Ou, mais precisamente:
Quanto tempo ainda será necessário para finalmente reconhecerem
que as condições sob as quais reescrevem sua própria história não são
propriamente suas, que a diferença que os marca como sujeitos
subalternos também institui o lugar dos que os exploram e os
dominam? Mais de cinquenta anos já se passaram desde que Fanon
131
delimitou as figuras somente capazes de irromper na representação
moderna, os espécimes do homo modernus, isto é, as figuras cujas
configurações sociais e corporais não soletram o nome próprio do
homem, ou seja, os sujeitos subalternos globais (Silva, 2022, p. 436)
Se somos cabra marcado para morrer, como imaginar outramente? Quanto
tempo teremos, ainda?
A coalização de que tanto somos pacientes devém de práticas da
ancestralidade, do sonho e de uma pedagogia revolucionária da lembrança que
nos (re)ensina nossa imanência à vida, que é sempre compartilhada e implicada
continuamente. É sobre esse “continuum” que Denise desenvolverá a ideia de
uma diferença sem separabilidade que “vislumbra o que torna-se acessível à
imaginação, o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução
do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação” (Silva, 2019a, p.
44). A este expediente imaginativo necessário como uma possibilidade de fugir
à iminência da morte provocada, Denise nomeia de Corpus Infinitum.
Tal ideia emerge pelo questionamento crítico e radical à noção
estruturante da temporalidade, tal como pressuposta pela filosofia kantiana.
Assim, Denise nos diz que a crítica marxista à noção da racialidade é
insuficiente, pois considera que a violência total utilizada pelo colonialismo resta
como uma fase, um período histórico já superado, tendo se refinado e
transformado em outras violências como a islamofobia, a crise dos refugiados e
as limpezas étnicas. Contudo, o que Denise sugere, é que os efeitos da
racialidade estão sempre atualizados, mesmo que por outros nomes. Ou seja, o
princípio que dispõe das vidas outras que europeias, que as torna governáveis,
controláveis, enfim, matáveis, é o que estrutura todo o sistema capitalista e não
apenas no seu primeiro momento de acumulação primitiva. Ou seja, “a violência
racial e colonial [atua] como uma sobra ideológica, oportunista, do capital global”
(Silva, 2020, p. 207).
O que Denise propõe, como forma de superar essa linearidade temporal
que nada mais faz do que reforçar o princípio racial e perpetuá-lo, além de
aprisionar a imaginação nos domínios ontológicos modernos50, é conceber um
O que, inclusive, seria mascarado pelo princípio da democracia liberal que aparentemente
oferece a oportunidade de todos participarem das decisões políticas, mas que, por este mesmo
princípio aprisionar a imaginação de modo que a impeça de conceber formas outras das que
estamos acostumados e anestesiados por ele, constitui, enquanto noção de tempo, uma
violência antinegra, cf. Warren (2024). Agradeço ao Bruno Amorim pela tradução e indicação
50
132
pensamento poético capaz de mobilizar o que existe como plenum a fim de
pensar outramente o mundo, porque este pensamento “revela a linguagem de
assimilação e o impulso para proteger o ‘modo de vida’ branco/europeu como
uma repetição dos termos e da lógica aplicada há um século” (Silva, 2020, p.
213). Assim, segundo nossa autora,
uma vez que o que acontece ocorre no plenum, ele é ao mesmo tempo
expressão de, e expresso por, seja lá o que existe debaixo, acima e ao
lado; o que já se foi, e o que ainda está por vir. Quando um modo de
pensamento diagrama o capital global junto a tantos instantes e
instâncias repetitivos da aplicação do maquinário colonial-racial, ele
não pode ser indiferente à violência racial em todas suas iterações e
expressões (Silva, 2020, p. 214).
A esta imageação do plenum, um dos caminhos propostos por Denise que
se somam com as ideias de viver outramente, ao partir de uma premissa
temporal outra que kantiana e hegeliana, assim como Silvia Cusicanqui, e que,
no final das contas, destrua este mundo como o conhecemos, reside formular a
tentativa especulativa, num primeiro momento, de liberar todo o potencial
imaginativo das amarras das leis do Entendimento e da transparência51. Na aula
intitulada “As implicações filosóficas” do curso “Luz Negra”, ministrado na
Universidade de São Paulo em dezembro de 201952 - lugar de excelência do
colonialismo, como nos conta Nego Bispo -, Denise nos convoca a pensar qual
deste texto, que ajuda a dar uma dimensão do problema da temporalidade e seus
desdobramentos.
Importante salientar que, na ocasião da defesa desta tese, na arguição do prof. Wanderson
Flor do Nascimento, ficou evidente que, se tomarmos tal asserção às últimas consequências,
estaremos certamente ingênuos, para não assumirmos equivocados, diante da possibilidade de
que Denise estaria nos levando a crer que a imaginação seria capaz de, mesmo que separada
do Entendimento e da transparência, fabular potenciais não violentos por si mesma. E, sabemos:
se tem uma coisa que a imaginação é capaz de fazer, é de criar horrores, inclusive artisticamente,
como Denise parece ingenuamente supor ser capaz quando da liberação da imaginação do
Entendimento. De pronto, acolhemos o problema e reconhecemos que ele surge, talvez, de uma
leitura um tanto quanto apressada e apaixonada demais pelo trabalho de Denise Ferreira da
Silva. Mas o que podemos, por ora, resguardar de interessante, é que conjugada da alegria, da
possibilidade cosmopolítica de promover condições de pensabilidade para outros mundos
possíveis e da própria leitura apressada e apaixonada, é que até então, nos limites históricos
que temos acesso, não apareceu ainda, tamanha potência crítica que visa textualmente destruir
os pilares ontoespistemológicos modernos que forjaram todo tipo de infortúnio da tristeza e da
destituição da vida enquanto festa da alegria. Se teremos tempo ou não para fazê-lo, pelo menos
dedicamos tempo para pensá-lo.
51
Curso que compreendeu quatro aulas que se encontram registradas em vídeos hospedados
no canal do YouTube sob responsabilidade do Centro Maria Antônia da USP. Vide:
https://www.youtube.com/@centrouniversitariomariaan4481/videos
52
133
seria a proposta de um femismo de recusa e rebelião. Ora, se o colonialismo
expropriou o valor do trabalho e do corpo de homens, mas sobretudo mulheres,
além de vidas não humanas por meio da violência total, se assim é,
o desafio que a poética negra feminista escolheu para si mesma: como
recuperar aquilo que foi engolfado, não o “outro” do Eu, porque esse
outro é desenhado nos mesmos termos do pensamento moderno, mas
aquilo que o pensamento moderno aponta como perigoso; aquilo que
se esconde no excesso, na violência; aquilo que torna a violência
sempre necessária, repetitiva. Aquilo que é construído como excesso,
como excessivamente violento. Já que a Negridade significa violência,
vamos ver o que essa violência é capaz de fazer, se ela é ativada pelo
nível do pensamento. (Silva, 2019b, 27’55’’).
Tal violência, em resposta, é uma forma de extrair do excesso, aquilo que
está posto como ameaça ao núcleo da transparência moderna, do Uno e da
Humanidade exclusiva, em suma, a maior dignidade da “dignidade exclusiva da
natureza humana” de que nos falava Lévi-Strauss (2017), aquilo do seu potencial
mais inventivo. Se estamos aqui pelas formas de resistência; da passagem, de
geração em geração, de um princípio de insistência pela vida que, apesar de
todas as violências totais, dos apagamentos, das mortes e das batalhas, pulsa;
se estamos em vias de pensar mundos novos, enfim, é mandatório que tentemos
abrir brechas para extrair da imaginação o que ela pode nos oferecer de melhor.
Vibrando junto à ideia de Suzanne Roussi-Césaire de que podemos
esperar dos artistas todos os milagres, podemos imaginar que Denise se inspira
nela quando propõe que a poética negra feminista consegue não apenas fabular
um mundo outro, mas começa a fazê-lo por meio de uma proposição de
intervenção por um caminho das obras de arte:
que tipo de obras de arte são capazes de uma perspectiva crítica
representacional pós-colonial, inclusive avançado sobre os limites dos
estudos pós-coloniais e sua gramática moderna? Se o objetivo é ir
além da denúncia e mover-se para desmantelar e contra-atacar a
violência epistêmica, o que uma arte anti-colonial pode ser em termos
de representação? Por enquanto e dentro dos limites deste texto minha
resposta a esta pergunta é: uma obra de arte anti-colonial questiona
cada modo, cada forma de apresentação, transformando-a num
confronto – que é a apresentação como recusa da representação”
(Silva, 2021, p. 291, grifos nossos)
Se a ideia de dívida impagável se caracteriza por uma relação jurídica que
distingue, pelo contrato, pessoas na relação do capital começado nas colônias
134
de exploração, além de não haver condições materiais possíveis para a
reparação do que já foi expropriado pela violência total (Silva, 2019a), o capital
nada mais faz do que perpetuar a sua herança maldita. Mas (há) a saída é
especular mundos outros que não se sustentem naquelas bases ontológicas e
epistemológicas que insistem em reproduzir diferenças. Não é significar a todo
momento, violentar com a determinabilidade e fechar-se em teorias e conceitos
que aprisionam a própria capacidade imaginativa de uma novidade. Trata-se de
implicar e fabular uma temporalidade e espacialidade outras que deem conta de
ultrapassar a necessidade da exclusão, da limpeza étnica e da separabilidade,
condições necessariamente vinculadas a este mundo que precisa acabar.
4.4 Dos Outros de que fomos tornados aos Demais que podemos ser
Podemos tomar o pronome indefinido “Outros” como preenchido de
definição, no sentido de que, quando tornado adjetivo pelos edifícios
monstruosos erigidos pela vontade de tudo dominar do saber científico e sua
alma metafísica – que a tudo mastiga como sendo seu objeto metabólico -, o
subproduto desta espécie de fagocitose ou, nos termos de Denise,
engolfamento, é justamente o que é predicado àqueles (todos) que não são eles
mesmos agentes deste metabolismo: nós. Nós tornados Outros-que dignos de
compartilhar os benefícios da operação de nutrição ontológica moderna. Outros
que eles, outros que europeus, outros que a norma. Diante do que vivemos, de
pensar que pelo compartilhamento de mundos podemos, de fato, ser muitos,
podemos, de direito, sermos os demais. Aquelas que, sabendo dos limites,
constroem caminhos. Se Exu é a boca que antes tudo comia, mas que aprendeu
a vomitar para saber dos seus próprios limites, nós assim deveríamos - em
franca reverência que nos é sempre devida-, observar essa conta: vomitar todas
as pretensões a que fomos tornados, mesmo que com promessas ilusórias de a
tudo dominar, catequizados pelo desejo do engolfamento total para sermos
senhores e supremos de tudo e, finalmente saber que, sem limite, sem disciplina
que nos congregará aos todos demais, seremos apenas excrementos de um,
agora sim, metabolismo total: o fim do mundo pela catástrofe da guerra daqueles
que sabem que podem mais contra aqueles que ainda imaginam estar sozinhos,
posto que isolados. O lance é não virar suco!
135
FIGURA 6 – Blue Marble – a primeira foto da Terra em sua orientação original
FONTE: NASA (1972)
136
PEQUENO ENSAIO PARA UMA ALEGRIA
It’s after the end of the world
Don’t you know that yet?
Sun Ra
Não há fim
para o que um mundo vivo
Exigirá de você
Lauren Olamina pelas mãos de Octávia Butler
Pela profecia
O mundo ia se acabar
Pelo vagabundo
Deixa o mundo como está
Pelo ser humano
Pelo cano o mundo vai (ou não)
Pelo cirandeiro
O mundo inteiro vai rodar
Ciranda do mundo – Edu Krieger
O que pode um acontecimento?
No momento em que inicio estas linhas, acreditem ou não as nossas
leitoras e os nossos leitores, tinha acabado de prestar atenção aos ecos que
vinham da sala e chegavam aos meus ouvidos. Por meio do maior jornal
televisivo do país - o mesmo que confessadamente foi um dos porta-vozes do
apoio midiático brasileiro ao golpe cívico-militar de 1º de abril de 1964 e que,
ontem, completava 60 anos -, este mesmo jornal de dimensões nacionais,
divulgou duas notícias seguidas que demoraram muito para acontecer. Mas,
antes tarde do que nunca, certo?
A primeira notícia nos contou que hoje, dia 2 de abril de 2024, numa
decisão inédita do Estado brasileiro, a Comissão de Anistia, amparada no
monumental e triste Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade 53,
concedeu a primeira reparação coletiva aos povos indígenas Krenak e Guarani
Kaiowá. Ambos padeceram sob o céu infernal dos anos de chumbo, tendo seus
parentes sofrido torturas, desaparecimentos e sendo expulsos forçadamente de
Disponível em:
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv
53
137
seus territórios-mãe. A decisão inédita e importante foi adiada especialmente em
2022, quando os membros da Comissão, que foram destacados pelo ex-governo
que se abateu sobre o Brasil de 2019 a 2022, rejeitaram o pedido de anistia.
Entretanto, somente agora, passados um pouco das tragédias institucionais mais
recentes, é que os parentes indígenas conseguem alcançar alguma coisa perto
da justiça e, talvez, um pingo de alegria pela memória de seus ancestrais
tornadas lembráveis pelo aparato estatal, este que antes das reparações, só faz
ser conhecido por suas históricas repressões desde 22 de abril de 1500.
Na ritualística que abriu a reunião54, a liderança Djanira Krenak,
acompanhada de um maracá e das vibrações de parte da plateia indígena que
dançava, promoveu uma espécie de bênção dos trabalhos. Ao falar,
posteriormente, a líder matriarcal relembrou emocionada a época das expulsões
promovidas pelos militares:
“Não tem terra de vocês mais, quem toma conta agora é os brancos. [...]
Diz que nós não tem terra, mas nós tem terra, sim! [...] É nossa terra sagrada,
nossa pedra sagrada, nosso rio sagrado... Dói muito falar nisso, né... Porque a
gente perdeu parente, e perdeu o nosso Rio Watu [...] Toda vida o índio foi morto
por causa de terra. [...] A gente índio é discriminado. Eles matam a gente como
mata cachorro, sabe? Igualzim cachorro, quando policial mata, eles num respeita
a gente”.
Ao final da reunião, num gesto menos poético e um tanto quanto
dramático, Eneá de Stutz, que preside a referida comissão, se ajoelhou e proferiu
estas palavras:
“Peço permissão para me ajoelhar com a sua benção. Em nome do Estado
brasileiro, eu quero pedir perdão por todo sofrimento que o seu povo passou. A
senhora, como liderança matriarcal dos Krenak, por favor, leve o respeito, nossas
homenagens e um sincero pedido de desculpas para que isso nunca mais aconteça.”
A segunda notícia, também resultado dos porões da ditadura, dá conta de
que a tortura seguida do assassinato e desaparecimento do deputado Rubens
Paiva, em janeiro de 1971, nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro,
Importante registrar que a sessão plenária foi transmitida ao vivo pelo canal oficial no YouTube
do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e sua gravação pode ser acessada neste link,
que foi consultado no dia 02 de abril de 2024, mesmo dia do acontecimento:
https://www.youtube.com/watch?v=H4ZRyd03TVE
54
138
será novamente investigada, a pedido do Conselho Nacional dos Direitos
Humanos.
Enquanto ouvia essas notícias e, depois de um dia todo às voltas com a
redação da versão preliminar e final deste trabalho, me lembrei que, cerca de
dois anos antes, enquanto redigia a nota de rodapé 26 do segundo capítulo
dedicado a Frantz Fanon, à página 68 deste texto, considerava que, diante do
genocídio cotidiano de indígenas e pessoas negras no Brasil, a única alternativa
era uma proposta de um mundo outro.
O tempo das revoluções pode já ter passado e, o que vimos pensando
aqui, é uma pequena contribuição-síntese das leituras, das tristezas e das
alegrias de viver coletivamente com aquelas e aqueles com as quais tenho a
sorte de encontrar. Por óbvio, as notícias que nos motivam agora, a redigir estas
linhas, estão longe de realizar uma justiça completa, uma alegria completa ou
uma reparação completa, dado que foram muitas e enormes as existências
humanas e ditas não humanas que se perderam no passar dos séculos em que
um projeto de vida que não é alargado para todos continua a reinar. Talvez
menos impávido, porque estamos aqui, ainda, vivendo e querendo outra coisa,
mas, ainda assim, presente. Entretanto, ainda que presente e aterrador,
podemos sentir que algo está se passando e fazendo com que, gradativamente,
ainda que lentamente, ele perca seu brilho.
Face a esta presença tão incômoda, tão pesada, que nos tira o sossego
e nos aliena da alegria, nos instiga à competição e nos acostuma a uma
enciclopédia de outros males, frente a tudo isso, é bom para as nossas saúdes
almejar que isso acabe. Que isso passe. E, como nos diz Déborah Danowski
(2022, p. 71, grifos nossos): “Para que uma coisa se passe, para que haja uma
saída, basta um diferencial de esperança, que no fim das contas podemos definir
como qualquer pequena inclinação da alma em direção àquilo que amplia nossa
existência e, portanto, em direção à alegria.”
Costumo pensar que a alegria genuína de um pedaço do mundo pertence
às crianças, às bichas e ao povo de Axé, porque elas, as crianças, e nós,
crianças que fomos, bichas e povo de Axé que somos, a todo tempo atacados
pelas ameaças catastróficas da sociedade que nos retira os direitos à infância,
ao cuidado, à expressão de nosso ser, à conexão com o nosso sagrado e, em
suma, ao mundo, continuamos sorrindo, brincando, fabulando, dançando,
139
cantando, batendo palmas, abrindo os leques, escorregando, dando piruetas e
respondendo com nossas vidas. Esta alegria pequena dos dias, dos encontros,
das ajudas, dos acodimentos, das preces, das firmezas, dos abraços, das
conquistas das amigas e dos amigos, do Axé, do sol e das estrelas, esta alegria
que nos chega também pelo passado daquelas e daqueles que tentaram e que
se reatualizam em nosso Orí, esta forma de alcançar com o coração aquilo que
a mão ainda não toca, como já dizia o belo samba cantado por Dona Ivone Lara,
a tudo isso, é que creditamos ser fonte inesgotável da perseverança.
Recusando-me a estar fixado nos muros das lamentações que ouvem
suplícios de um fim de mundo anunciado e garantido, penso que um antídoto a
ele é aquele que já profetizava Assis Valente, eternizado pela voz de Carmem
Miranda: não acreditar nessa conversa mole, mas tratando de aproveitar. Dançar
o samba em traje de maiô, fazer as pazes com quem temos treta e seguir
celebrando, porque o tal do mundo não vai acabar. Não pelo menos enquanto a
gente se agarrar nessa alegria. Eis, portanto, a necessidade de um ensaio que
a pense. Que a defenda e a defina como umas das poucas oportunidades de
sair da grande tristeza que somos insistentemente convidados a partilhar.
A partilha não pode ser essa, se nos foi prometida a alegria. Sim, ela é
momentânea. E por isso é tão poderosa. A saída é saber aproveitar, desses
lampejos que são difíceis e raros, mas existem, e tirar deles a inspiração e a
força para o que de nós é exigido, como está posto na epígrafe deste ensaio.
O que nos cabe, nesta proposta que conclama à alegria, é vigiar uma certa
voz incômoda e contrária a ela, voz que fica ressoando, mais ou menos, na
nossa cabeça, aquela voz do colonizador em nós – se nosso inconsciente foi
estruturado pelas mãos pretas das empregadas, serviçais e condenados de
nossa sociedade marcada pela hierarquia racista e sexista, como bem nos
ensinou Lélia González há algumas páginas -, também foi por aqueles que
habitam em nós, uma espécie de opressor, que nos move também aos desejos
de dominação dos múltiplos e que nos apequena. Como disse Foucault, habita
em nossas mentes e espíritos um grande inimigo:
o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini
— que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas
também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos
e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder,
desejar essa coisa mesma que nos domina e explora” (Foucault, 1993).
140
Esta atitude que recusa o mundo compartilhado, que distingue por
marcas, carros, roupas, viagens, cifras; que nega qualquer capacidade de
comunalidade, apegando-se a uma empatia mentirosa, fraca e covarde, está
longe de uma alegria que imagine uma ética vibrada na circularidade como um
princípio. Ética que nos ensina Sueli Carneiro como cuidado dos outros, em
suma, “uma responsabilidade social” (Carneiro, 2023, p. 356); ou, nas palavras
de Nêgo Bispo, “muito mais interessante é pensar como vamos cuidar de outra
vida quando ela está precisando de cuidados” (Santos, 2023, p. 70). Chega um,
chegam todos, portanto! Essa é uma das tarefas mais importantes àquelas
pessoas que sentem a coragem de pôr fim a este mundo cindido, este mundo
negativamente caótico que adoece a todos.
Afinal de contas, como nos interpela Neusa Santos Souza,
de que poderia nos servir um saber que fomenta e cristaliza
preconceitos? De que poderia servir um saber que nos condena à
impotência e à paralisia? De que poderia nos servir um saber que vai
na contramão do verbo “fazer”, do verbo “caminhar”? (Souza, 2021, p.
132-133)
Caminhemos, pois, com a alegria da feitura. Com aquele caminhar em
par, passo a passo, ora tranquilo, ora apressado, ora em franca maratona, em
vias de sedimentar um caminho pisado a muitas patas, asas e pés, caminho que
interligue fluxos de vida que valham a pena. Em alegria, ciosos de um mundo
novo, caminhemos. Caminhemos, começando de novo, num tempo espiralar em
que as temporalidades não mais sejam e se façam por violências e superações,
num movimento sempre ascendente e único. Caminhemos nos inspirando em
temporalidades que nos sugeriram Silvia Cusicanqui e Denise Ferreira da Silva,
temperadas de “transconfluências”, ou seja: “somos começo, meio e começo.
Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. A ordem
pode ser qualquer uma” (Santos, 2023, p. 49). Uma confluência como rios que
se encontram em alegria. Se tudo é água, e se nos fazemos por ela, que nos
façamos, também, pela alegria.
Uma forma de alegria é receber e compartilhar. Tenho, pelo menos duas
vezes ao ano, a oportunidade de preparar nossa casa para estarmos juntos à
comunidade de amigas e amigos, celebrando o acontecimento do encontro.
141
Caminhemos para uma grande festa: a experiência de receber pessoas
estimadas em casa, preparar as comidas e as bebidas, arrumar as mesas,
cadeiras, almofadas, cangas, aparar a grama, acender as luzes, preparar os
pratos e talheres e copos. Receber as pessoas amigas e as que são amigas das
amigas, que engrandecem o encontro. Ver a casa cheia de gente, de abraços,
de sorrisos, de gente mastigando e falando, fila para o banheiro, fogo acesso
que esquenta os caldos, as canjicas e os feijões. A festa que se desdobra em
várias promessas de encontros futuros. A festa que termina só no outro dia, com
as lembranças, recados, pia cheia de louça, as brasas da fogueira julina ainda
acesas, as cervejas que ficaram no isopor com gelo de dezembro. A ressaca boa
de ver cumprido o encontro. Essa gentileza e convite à comensalidade que
descrevo, em que se movem energias e sentimentos, que se compartilham as
expectativas e a vida com pessoas queridas é o sentimento que proponho ser a
alegria, juntada às das crianças, bichas e povo de Axé.
Tal alegria que acabo de relatar é, por óbvio, muito particular e de um
microcosmo relacional construído por muitos encontros. Contudo, não deixa de
revelar uma possibilidade ampliada de levar este princípio aos mundos outros
que podem aparecer como frutos bonitos de uma luta contracolonial, aquela
espécie de antídoto que propõe, na coletividade, nas ações e alianças ora mais
coesas,
ora
mais
difusas,
uma
inventividade
política,
ou
melhor,
cosmologicamente mais sensível e solidária a todos os entes da Terra. Essa
festa, que tem suas regras e observações, afinal de contas, o mundo é grande e
cabem todos, é uma festa em que a alegria será o motor da vida. Qualquer que
seja a forma, qualquer que seja o risco que a diminua de forma proposital, já é
um indício de que precisaremos nos rearranjar e achar, juntas e juntos, uma
saída. Antes de um controle, antes de um cerceamento da capacidade de ver e
viver, de reconhecer as diversas lutas históricas sumamente importantes que
nos ajudaram a chegar até aqui, com suas diferenças e propósitos, antes de tudo
isso, a festa emerge como uma capacidade feliz de sobrevivermos e nos autoorganizarmos, porque, em última instância, “a festa é mais forte do que a Lei”
(Santos, 2023, p. 44), e a alegria é a energia que anima todas as boas festas.
Dançar compartilhados, cantar compartilhados, comer compartilhados. É
uma ciranda que, diferentemente das intenções vazias e goodvibes, faça o
mundo girar, cosmologicamente, para todos os entes. Uma ciranda do mundo.
142
FIGURA 7 –Jaider Esbell - A contínua energia da vida
FONTE: affect-and-colonialism.net/exhibition/jaider-esbell-transworlds/
143
EPÍLOGO
Cobras-cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no voo.
O mundo não é o que pensamos.
História Natural, de Carlos Drummond de Andrade
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Lisbon Revisited, de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa
Enfim, chegamos às linhas finais deste estudo. Os anos investidos nesta
pesquisa pretenderam investigar o que nos parece ser uma radicalidade
argumentativa em vias de, ao propor o fim para este mundo, abrir caminhos de
possibilidades de viver em outro lugar, outras paisagens de pensamento e
imaginação que não se vinculam mais às formas de colonialismo espiritual,
conceitual e filosófico que tanto nos fizeram crer ser o caminho mais acertado.
Todo nosso texto, até aqui, tentou se articular sobre um fio condutor que,
por meio de uma postura anticolonial, pudesse convidar a nossa imaginação a
caminhar outras trilhas de mundo. Mundo conjunto, que pode ser outra coisa.
Às estruturas da subjugação, pilhagem, dominação e opressão dos corpos e
espíritos sucede uma promessa de vida pós-colonial. Vida que, se pensada e
alicerçada no viés de uma alegria cosmopolítica, poderá atender a um chamado
urgente que tem se mostrado cada vez mais presente na vida daquelas pessoas
e daqueles entes que desejam encontrar alguma paz de espírito. Alguma
possibilidade de se aliançarem em comunhão.
É o que tentamos fazer ao percorrermos, nos caminhos retóricos
apresentados, uma concepção de um outro mundo, pós-colonial, realizável e
cosmopolitciamente
mais
generoso.
Realizável
pelas
vontades,
pelas
imaginações e principalmente pelas práticas. Sejam elas nos cotidianos das
nossas relações; sejam nos contextos de promoção do direito à cultura, às
infâncias e à educação; seja na batalha árdua e às vezes ingrata das políticas
públicas; enfim, seja pela afirmação irrestrita do princípio de que a vida, por ser
aquilo que temos de mais precioso e importante, vale a pena ser vivida.
144
É precioso, então, viajarmos na ideia lançada por Sueli Carneiro (2023, p.
334) quando nossa mais velha nos diz que “outros modos de subjetivação” sejam
possíveis. Abandonarmos um desejo controlador não é das tarefas mais fáceis,
mas quem disse que a vida é fácil? Qual tipo de educação e qual tipo de
imaginação é precisa e preciosa para o cumprimento desta tarefa? Obviamente,
as que além de questionarem os currículos hegemônicos ou o tal “cânone
filosófico”, também sejam populares no sentido de reconhecer que todos os
entes envolvidos na cadeia da vida são responsáveis por dignificá-la. Portanto,
dever coletivo e comprometido cosmopoliticamente com mundos também
coletivizados.
A tarefa é descobrir caminhos, sensibilizar e pressionar pela própria ideia
de sair do solipcismo uno para um coletivismo pluralista. Tarefa da filosofia
pensar isso, ancorado no incômodo da IV CONAPIR, do susto da Torre, das
notícias ruins e do medo de morrer em vida.
Para concluirmos, então, esta pesquisa tentou oferecer uma possibilidade
de imaginar e especular este mundo colonial em ruínas, com os óbvios limites
que possui. Ao investigarmos os pressupostos filosóficos apresentados durante
todo o percurso, nos foi possível pelo menos fortalecermos conceitualmente tal
ideia e tentar antever quais condições de possibilidade são demandadas para
chegarmos a outras formas de sociabilidade possíveis.
No entanto, reconhecemos que, dos limites de qualquer texto acadêmico,
as dificuldades são muito maiores para, eventualmente, vermos as reflexões
brotarem a partir do seu ponto final. Mas, nos é também dada a possibilidade de
tentar, caminhando caminhos que percorreremos daqui adiante. Assim, o que
nos resta a dizer é uma espécie de convite: se a leitora e o leitor nos forem
generosos, compreenderão que a tentativa é sempre coletiva e que mais gente,
com outras, tantas e bonitas vozes podem se achegar e ajudar na caminhada,
porque a vida e o mundo não podem ter fim.
145
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156
FIGURA 8 – Asase Ye Duru
FONTE: adinkrasymbols.org
157
Parir o fim do mundo
Lucilene Soares
Parir o fim do mundo exige coragem,
força, conhecimento e uma pitada de deboche.
Afundar-se nas trincheiras da resistência criativa
e na fome de um futuro ancestral
Um futuro eticamente coerente e
comprometido com o pulsar da vida
Parir o fim do mundo exige
movimentos peristálticos de porvir
Buscar no princípio de Exu a pedra que mata hoje
o colonialismo lançado num passado cotidianamente presente
Parir o fim deste mundo exige alegria no percurso
A substituição das trombetas
Pela gargalhada ruidosa das crianças, bichas
E toda música e corporeidade do povo de AXÉ
Parir o fim do mundo
para alcançarmos a alegria
nos exige plenamente no processo
assumindo sinceramente nossas contradições
na coletividade da ação
e no fluir do movimento
Quem sabe este outro mundo
Já esteja desenhado nas micro/macro vivências
Nos quintais de Dona Marlene
Nas sementes de Baobá
Que timidamente guardam o gigante