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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PEDRO AUGUSTO PEREIRA GONÇALVES UMA ALEGRIA ANUNCIADA: O FIM DO MUNDO COMO FIM DO COMPLEXO COLONIALISTA CURITIBA 2024 PEDRO AUGUSTO PEREIRA GONÇALVES UMA ALEGRIA ANUNCIADA: O FIM DO MUNDO COMO FIM DO COMPLEXO COLONIALISTA Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Filosofia, no Setor de Ciências Humanas, na Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof. Antonio Valentim. CURITIBA 2024 Dr. Marco DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS – BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS HUMANAS Gonçalves, Pedro Augusto Pereira Uma alegria anunciada : o fim do mundo como fim do complexo colonialista. / Pedro Augusto Pereira Gonçalves. – Curitiba, 2024. 1 recurso on-line : PDF. Tese – (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Valentim. 1. Fanon, Frantz, 1925-1961. 2. Fim do mundo. 3. Imperialismo. 4. Alegria. I. Valentim, Marco Antonio, 1978-. II. Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título. Bibliotecária : Fernanda Emanoéla Nogueira Dias CRB-9/1607 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO FILOSOFIA 40001016039P7 ATA Nº019.2024 ATA DE SESSÃO PÚBLICA DE DEFESA DE DOUTORADO PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM FILOSOFIA No dia cinco de julho de dois mil e vinte e quatro às 10:00 horas, na sala Ambiente remoto (Google Meet)., Ambiente remoto (Google Meet)., foram instaladas as atividades pertinentes ao rito de defesa de tese do doutorando PEDRO AUGUSTO PEREIRA GONÇALVES, intitulada: Uma alegria anunciada: o fim do mundo como fim do complexo colonialista, sob orientação do Prof. Dr. MARCO ANTONIO VALENTIM. A Banca Examinadora, designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação FILOSOFIA da Universidade Federal do Paraná, foi constituída pelos seguintes Membros: MARCO ANTONIO VALENTIM (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ), DEBORA CRISTINA DE ARAUJO (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO), WANDERSON FLOR NASCIMENTO (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA), GISELLE MOURA SCHNORR (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ -), IVO PEREIRA DE QUEIROZ (UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ). A presidência iniciou os ritos definidos pelo Colegiado do Programa e, após exarados os pareceres dos membros do comitê examinador e da respectiva contra argumentação, ocorreu a leitura do parecer final da banca examinadora, que decidiu pela APROVAÇÃO. Este resultado deverá ser homologado pelo Colegiado do programa, mediante o atendimento de todas as indicações e correções solicitadas pela banca dentro dos prazos regimentais definidos pelo programa. A outorga de título de doutor está condicionada ao atendimento de todos os requisitos e prazos determinados no regimento do Programa de Pós-Graduação. Nada mais havendo a tratar a presidência deu por encerrada a sessão, da qual eu, MARCO ANTONIO VALENTIM, lavrei a presente ata, que vai assinada por mim e pelos demais membros da Comissão Examinadora. Observações: "Após a deliberação, a banca examinadora decidiu pela aprovação do candidato no exame de doutorado. A bancaressalta a excelência da tese apresentada e recomenda a sua publicação editorial em forma de livro. A banca também recomenda aindicação da tese para os prêmios ANPOF e Capes de melhor tese de doutorado em filosofia." CURITIBA, 05 de Julho de 2024. Assinatura Eletrônica 05/07/2024 14:20:08.0 MARCO ANTONIO VALENTIM Presidente da Banca Examinadora Assinatura Eletrônica 06/07/2024 09:12:32.0 DEBORA CRISTINA DE ARAUJO Avaliador Externo (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO) Assinatura Eletrônica 06/07/2024 01:00:51.0 WANDERSON FLOR NASCIMENTO Avaliador Externo (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA) Assinatura Eletrônica 09/07/2024 15:44:05.0 GISELLE MOURA SCHNORR Avaliador Externo (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ -) Assinatura Eletrônica 11/07/2024 16:04:11.0 IVO PEREIRA DE QUEIROZ Avaliador Externo (UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ) Rua Dr. Faivre, 405, 6º andar - CURITIBA - Paraná - Brasil CEP 80060-140 - Tel: (41) 3360-5048 - E-mail: pgfilos@ufpr.br Documento assinado eletronicamente de acordo com o disposto na legislação federal Decreto 8539 de 08 de outubro de 2015. Gerado e autenticado pelo SIGA-UFPR, com a seguinte identificação única: 378403 Para autenticar este documento/assinatura, acesse https://siga.ufpr.br/siga/visitante/autenticacaoassinaturas.jsp e insira o codigo 378403 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO FILOSOFIA 40001016039P7 TERMO DE APROVAÇÃO Os membros da Banca Examinadora designada pelo Colegiado do Programa de Pós-Graduação FILOSOFIA da Universidade Federal do Paraná foram convocados para realizar a arguição da tese de Doutorado de PEDRO AUGUSTO PEREIRA GONÇALVES intitulada: Uma alegria anunciada: o fim do mundo como fim do complexo colonialista, sob orientação do Prof. Dr. MARCO ANTONIO VALENTIM, que após terem inquirido o aluno e realizada a avaliação do trabalho, são de parecer pela sua APROVAÇÃO no rito de defesa. A outorga do título de doutor está sujeita à homologação pelo colegiado, ao atendimento de todas as indicações e correções solicitadas pela banca e ao pleno atendimento das demandas regimentais do Programa de Pós-Graduação. CURITIBA, 05 de Julho de 2024. Assinatura Eletrônica 05/07/2024 14:20:08.0 MARCO ANTONIO VALENTIM Presidente da Banca Examinadora Assinatura Eletrônica 06/07/2024 09:12:32.0 DEBORA CRISTINA DE ARAUJO Avaliador Externo (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO) Assinatura Eletrônica 06/07/2024 01:00:51.0 WANDERSON FLOR NASCIMENTO Avaliador Externo (UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA) Assinatura Eletrônica 09/07/2024 15:44:05.0 GISELLE MOURA SCHNORR Avaliador Externo (UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ -) Assinatura Eletrônica 11/07/2024 16:04:11.0 IVO PEREIRA DE QUEIROZ Avaliador Externo (UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ) Rua Dr. Faivre, 405, 6º andar - CURITIBA - Paraná - Brasil CEP 80060-140 - Tel: (41) 3360-5048 - E-mail: pgfilos@ufpr.br Documento assinado eletronicamente de acordo com o disposto na legislação federal Decreto 8539 de 08 de outubro de 2015. Gerado e autenticado pelo SIGA-UFPR, com a seguinte identificação única: 378403 Para autenticar este documento/assinatura, acesse https://siga.ufpr.br/siga/visitante/autenticacaoassinaturas.jsp e insira o codigo 378403 Bença! À Lucilene Soares - Randa Ashanti - e ao Grupo de Teatro Nuspartus – porque sonhamos as sementes do Baobá. Axé! AGRADECIMENTOS Agô àquelas que vieram antes de nós! Bênça! Chegamos, enfim, ao resultado de alguns anos dedicados ao estudo acadêmico de filosofia. Dedicação que se enredou por muitas vozes, abraços, sentimentos, alegrias, dificuldades, além de todos e demais sentimentos que nos movem, diariamente. Esta tese é o resultado de tudo isso, dos encontros e dos desejos de coisas boas. Resultado completamente coletivo, ainda que sob responsabilidade de um autor sempre estudante. Agradeço a todas as pessoas que, em algum momento, pensaram em mim e no processo dos estudos. Àquelas que perguntavam como andava a tese, quando seria a defesa, quando chegaríamos ao fim... É chegado este momento de celebrar. Esta tese é nossa! Passo aos agradecimentos nominais, tendo no sentimento que são tantas as pessoas e entes envolvidos nesse tempo-já que é tarefa impossível citá-las em completude. A mim é uma injustiça irreparável, mas lembrem-se: é fruto de tudo isso, nosso e em conjunto. Então, muito obrigado! Obrigado as minhas três mães: a que me teve, a do Céu do meu Orí, e muito especialmente a que me cria e me ensina o valor da alegria: Marlene. Só sou porque vocês me trouxeram aqui. A todo o sacrifício, a todas as alegrias, a todo o amor na sua força mais alegre e bonita: muito obrigado! Obrigado aos meus irmãos Raphaela e Gabriel. Sem vocês a vida seria menos alegre, triste demais. Amo vocês! Obrigado ao meu companheiro de vida que anda comigo, que aprendemos juntos os caminhos do cuidado e do amor. Newton, a você todos os meus amores e alívios. Te amo! Obrigado às bichas que não dão sossego (ainda bem): Feppo Bueno, Fê Nascimento, Arian Borges, Eduardo Malandrinha Luiz, Leah Ribeiro e Marcelo Endo, além da Katlyn Kéty. Aqui é um lugar seguro! Obrigado às amigas que, vibrando juntas, tentamos erguer um mundo novo: Lucilene Soares, a quem esta tese é dedicada. Laize Guazina, por mostrar que a filosofia é bonita, Lenne Cristenson, Mariana Conceição, Fabíola Mota, Camila Borges, Stael Madureira, Nayara Marques, Aline Di Giuseppe, Aline Ilha, Izis Dellatre, Aline Dias, Ghenifer Morais, Luciana Rodrigues, Jana Queiroz, Janine Mathias, Clara e Alice Barbi, Cris Oliveira, Vanessa Vieira, Nicoli Scotti, Larissa Maris, Talita Andrade, Scheila Amorim, Tereza Oliveira, Mara Santos, Kamylla Santos, Renato Cani, André Daniel, Danilo Faria, Luiz Thiago Dantas, Andrei Carvalho e Fred Pedrosa! Amo vocês! Obrigado pelos pensamentos bons! Obrigado à nossa família de Axé e aos encantados que nos dão caminhos bons e alegres: Okê Oxóssi! Saravá Cabocla Indaiá! Sarará Caboclo ArrancaToco! Saravá Oxóssi Caçador da Mata Virgem! Saravá Caboclo Caçador! Saravá Seu Zé do Morro! Saravá Seu Meia-Noite! Saravá toda nossa Banda! Bença, Mãe Silvana Borelli, Bença, Ekedi Niceia Ribeiro, e Bença, meus irmãos de um barco poderoso em meu coração: Maicon Marinho, Diogo Mello, Jurinã Oromi, minha madrinha Gizele Santini e meu padrinho-pai Erisson Cordeiro da Luz! Obrigado, Ana Rivera, Maria Claudia Gorges, Patrícia Teixeira e Michel Alves pela alegria de compartir a vida Ch’ixi com vocês! Obrigado às colegas da Educação de Jovens e Adultos do SESI Paraná: Amanda Krauss, Marina Perbiche, Rosilene Silva, Jaqueline França, Helen Barros, Anthoni Sobierai, João Cenoura, João Lee e Maurício Bisetto! Obrigado, Professora Débora Araújo e Professor Wanderson Flor do Nascimento pelos comentários muito generosos e atentos na ocasião do exame de qualificação e na banca da defesa. A presença de vocês foi pedra-sílex! Obrigado às demais pessoas que compuseram a banca, que pacientemente leram este trabalho e fizeram dele algo bom, e da defesa uma alegria emocionada: Professora Giselle Schnorr e o nosso mais velho, Professor Ivo Queiroz. Que sorte contar com vocês! Obrigado, querido e grande Marco Antonio Valentim, pela paciência e generosidade de andar comigo nos caminhos da filosofia desde 2015, Oríentando tudo que faço. Axé! Obrigado, Universidade Federal do Paraná, por todo o apoio necessário para trilhar os caminhos acadêmicos da filosofia. Obrigado ao povo brasileiro que, por meio do seu trabalho, coloca de pé nossa Universidade! Obrigado às pessoas que virão! AXÉ! VII Homenagem a Pavel Kohout Que te devolvam a alma Homem do nosso tempo. Pede isso a Deus Ou às coisas que acreditas À terra, às águas, à noite Desmedida, Uiva se quiseres, Ao teu próprio ventre Se é ele quem comanda A tua vida, não importa, Pede à mulher Àquela que foi noiva À que se fez amiga, Abre a tua boca, ulula Pede à chuva Ruge Como se tivesses no peito Uma enorme ferida Escancara a tua boca Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA. VIII Lobos? São muitos. Mas tu podes ainda A palavra na língua Aquietá-los. Mortos? O mundo. Mas podes acordá-lo Sortilégio de vida Na palavra escrita. Lúcidos? São poucos. Mas se farão milhares Se à lucidez dos poucos Te juntares. Raros? Teus preclaros amigos. E tu mesmo, raro. Se nas coisas que digo Acreditares. Hilda Hilst Poema aos homens do nosso tempo (1974) RESUMO Esta tese de doutorado investiga em que medida as contribuições do pensamento de Frantz Fanon, a partir do seu conceito de complexo colonialista, compreendem uma estrutura de mundo que precisa acabar. Este mundo tal qual o conhecemos é capaz de se apresentar senão como infernal àqueles humanos e não humanos, "condenados da terra" por sua "infelicidade ontológica" (Fanon) predicada pelo pensamento filosófico moderno. A esta “perspectiva objetiva” (Danowski e Viveiros de Castro), mobiliza-se uma miríade de pensamentos que visa a sua destruição. Neste ínterim, este estudo pretende mostrar como o pensamento de autoras e autores como Suzanne Roussi-Césaire, Silvia Rivera Cusicanqui, Lélia González, Denise Ferreira da Silva, Antônio Bispo dos Santos, Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Malcom Ferdinand caminham, sob diferentes vieses, advogando em favor de outros mundos plurais, a partir da leitura dos argumentos radicais de Fanon. Toma-se, assim, as contribuições dessas autorias como pressupostos de "escrevivências" (Conceição Evaristo) que, cientes dos traumas coloniais, tendem ao questionamento sobre a universalidade auto e sobredeterminada, a intercorrência dos dispositivos da racialidade (Carneiro) como motor do discurso moderno para, em os combatendo, rumar à alegria do acontecimento da vida. Incorporam e subsidiam a tese algumas imagens que representam os argumentos desenvolvidos. Como resultado, a tese propõe um breve ensaio sobre a alegria como forma de impulsionar as ações, práticas ou especulativas, para a construção de novos mundos. Palavras-chave: Fim do mundo, Filosofia Anticolonial, Complexo Colonialista, Alegria. ABSTRACT This thesis investigates the extent in which the contributions of Frantz Fanon's thought, based on his concept of the colonialist complex, comprehend as a world structure that needs to end. This world as we know it is capable of presenting itself as nothing but infernal to those humans and non-humans, the "condemned of the earth" for their "ontological unhappiness" (Fanon) predicated by modern philosophical thought. To this "objective perspective" (Danowski and Viveiros de Castro), a myriad of thoughts is mobilized aiming for its destruction. Meanwhile, this study aims to show how the thoughts of authors such as Suzanne RoussiCésaire, Silvia Rivera Cusicanqui, Lélia González, Denise Ferreira da Silva, Antônio Bispo dos Santos, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, and Malcom Ferdinand advocate for other plural worlds from different perspectives, based on the radical arguments of Fanon. Thus, the contributions of these authors are taken as assumptions of "escrevivências" (Conceição Evaristo) that, aware of colonial traumas, tend to question the self and over-determined universality, the occurrence of raciality devices (Carneiro) as the engine of modern discourse to, in combating them, move towards the joy of life's events. Some images representing the developed arguments are incorporated and subsidize the thesis. As a result, the thesis proposes a brief essay on joy as a way to drive actions, whether practical or speculative, for the construction of new worlds. Key-words: The end of the world, Anticolonial Philosophy, Colonialist Complex, Joy. SUMÁRIO UM PREFÁCIO PARA UM FIM DE UM MUNDO ....................................................... 14 FIGURA 1 – La Maison Dieu ..................................................................................... 30 CAPÍTULO 1 – DAS NOSSAS INTENÇÕES OU “PRA COMEÇAR A ESCREVER DE NOVO PELO FIM”. .................................................................................................... 31 1.1 A IV Conferência Nacional da Promoção do problema racial ................. 32 1.2 Por uma questão a ser perseguida ......................................................... 35 1.3 Um direito à escrita como um direito da vida .......................................... 39 1.4 Caminhos para uma encruzilhada de fazer outros Mundos .................... 44 FIGURA 2 – Tuíra Kayapó e o Terçado .................................................................... 47 CAPÍTULO 2 – UMA LUZ PARA “O DRAMA DA TERRA” ....................................... 48 2.1 Suzanne Roussi Césaire: um surrealismo milagroso ............................. 48 2.2 O movimento da Négritude ..................................................................... 48 2.3 Um apagamento ensurdecedor .............................................................. 51 2.4 Os milagres ainda por acontecer ............................................................ 57 FIGURA 3 – Suzanne Roussi-Césaire ...................................................................... 58 CAPÍTULO 3 - O GUERREIRO-SÍLEX ....................................................................... 59 3.1 Quando a prática clínica sustenta o compromisso revolucionário .......... 60 3.2 A radicalidade da proposta libertária: um fim de mundo para um novo mundo possível............................................................................................. 71 3.3 O complexo colonialista, o colonialismo interno e suas arapucas .......... 75 3.4 Interditar a interdição .............................................................................. 85 3.5 Fanon diante das suas remarcadas contradições .................................. 89 FIGURA 4 – Sílex ou Pederneira – a pedra da primeira arte .................................. 98 CAPÍTULO 4 – UMA GIRA PELOS MUNDOS ........................................................... 99 4.1 Lélia Gonzalez: intelectual da práxis amefricana .................................. 101 4.1.1 Lélia por quê? ................................................................................ 102 4.1.2 O manifesto da língua pela rasteira da Amefricanidade ................. 104 4.2 Silvia Cusicanqui e a cosmopolítica Ch’ixi: “vivir bien, no mejor”:......... 109 4.2.1 A proposta de uma epistemologia Ch’ixi ........................................ 111 4.2.2 A ideia Ch’ixi também é outra que humana .................................... 115 4.3 Denise Ferreira da Silva: a poética negro-feminista para destruir o Homo Modernus .................................................................................................... 118 4.3.1 Os pilares ontoespistemológicos modernos ................................... 122 4.3.2 O contragolpe da Poética Negra Feminista: liberar a imaginação do Entendimento .......................................................................................... 129 4.4 Dos Outros de que fomos tornados aos Demais que podemos ser ...... 134 FIGURA 6 – Blue Marble – a primeira foto da Terra em sua orientação original 135 PEQUENO ENSAIO PARA UMA ALEGRIA ............................................................ 136 FIGURA 7 –Jaider Esbell - A contínua energia da vida ........................................ 142 EPÍLOGO ................................................................................................................. 143 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 145 FIGURA 8 – Asase Ye Duru .................................................................................... 156 Parir o fim do mundo .............................................................................................. 157 14 UM PREFÁCIO PARA UM FIM DE UM MUNDO O fim do mundo é um tema aparentemente interminável – pelo menos, é claro, até que ele aconteça. Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro O fim do mundo não é algo que vá acontecer de uma hora pra outra. É algo constante. Daniel Lafayette, o Lafa, via Twitter (@UltraLafa) Atento aos sinais, quando perguntei às cartas, no final dos acontecimentos de 2019, como se passaria o ano de 2020, foi-me orientado, logo de saída no jogo, o arcano maior XVI, A Torre. Podem ser muitas as interpretações, e com doses pertinentes de especulação, sabemos que o arcano nos apresenta um cenário de destruição em acontecimento, um desmoronamento de certezas que estavam solidificadas em alicerces que julgávamos firmes, um edifício do conhecimento em ruínas, se quisermos. Todavia, ancorado no estudo conduzido por Alejandro Jodorowsky e Marianne Costa chamado O Caminho do Tarot (2016), li que, para além dos colapsos, o arcano XVI pode representar, também, a “abertura, emergência daquilo que estava confinado [...] A mensagem desta carta é de um grande alívio espiritual” (Jodorowsky; Costa, 2016, p. 239). Ainda, quando A Torre fala, podemos ouvir: Desprezando-me, isolando-me, crendo defender um território interior que só pertencia a mim, o que era eu na escuridão dessa torre? Mestre do quê? De que aparência, de que falsa identidade? Não passava do ar rarefeito de uma escuridão egoísta” (Jodorowsky; Costa, 2016, p. 243). A Torre como aquela lareira diante da qual Descartes especulava seu solipcismo para erigir ciências, talvez. A grande sensação ainda não experimentada de um fim da vida concreto, tendo em vista os imensos privilégios e colonizações espirituais que nos entorpecem os “sentimentos do mundo” do fim dos tempos, estava para se intensificar de modo acachapante. Isto, porque, por bastante tempo, como nos escreve Maria Lucia Macari e Karine Szuchman, foi 15 como se a nossa capacidade de fazer utopias, imaginar mais além, sonhar com algo completamente diferente do que vivemos, estivesse sufocada pela presença hegemônica do neoliberalismocolonial em todos os âmbitos de nossas vidas. Mesmo que sem perceber – e justamente por isso –, é como se silenciosamente aceitássemos que o neoliberalismo-colonial chegou para ficar. Continuamos jogando e alimentando as suas regras, escrevendo histórias e a História com as suas cores reluzentes: ficções cotidianas pintadas com os matizes neoliberais-coloniais. (Macari, Szuchman, 2023, p. 3). Nesses tempos atuais de neoliberalismo colonial1, uma espécie de maldição ou “retorno cármico” - para nos mostrar que, se antes, tínhamos como promessa sermos o país do futuro, nosso passado continua aqui a nos mostrar que muitas dívidas ainda não estão saldadas -, se abateu sob nossas privilegiadas cabeças, mais escancaradamente no país desde, pelo menos, 2013. Ano em que aconteceram no Brasil os eventos que ficaram conhecidos pelas “marchas de junho”. Ainda que sejam diversas as interpretações, como qualquer acontecimento, podemos considerar que as manifestações que tomaram as ruas, inicialmente foram articuladas por um coletivo de ativistas que pressionavam o não aumento de R$0,20 na passagem do transporte coletivo, na cidade de São Paulo. Ato contínuo, o movimento ganhou proporções muito maiores, pois sofreram a cooptação pelas grandes mídias e movimentos aparentemente apartidários, mas que se mostravam defensores de ideias conservadoras e antidemocráticas. Assim, aproveitando o momento de insatisfação geral e difusa de grande parte da população do país, infundiram bandeiras que culminariam em uma crise política e um período eleitoral posterior bastante extenuante, além de outros tantos efeitos nocivos à história recente e aos povos de um Brasil ainda jovem no que toca sua experiência dita democrática. Este início caótico do atual cenário sufocante em que vivíamos se intensificou com o resultado eleitoral para ocupar a cadeira da chefia do Trata-se de um neoliberalismo colonial porque as políticas que fazem ressurgir o liberalismo nos tempos atuais, que são aliadas à degradação dos direitos sociais historicamente conquistados, só podem acontecer nas estratégias colonialistas de domínio e controle de uns muitos por uns poucos. Como sugeriu Wanderson Flor do Nascimento, não se trata de uma qualificação situacional, em que adjetivando “colonial” ao neoliberalismo figuraria mera questão retórica ou inadvertida, abrindo-se margem para possíveis questionamentos se haveria algum tipo de neoliberalismo que não fosse colonial. Ao contrário disso, enfim, trata-se de uma vinculação tacitamente explícita. 1 16 executivo federal, em 28 de outubro de 2018 – tudo isso temperado com muitos desconfortos e indignações cotidianas. Ataques, descréditos, violências simbólicas e concretas, enfim. Contudo, na passagem de 2019 para 2020, na ocasião em que perguntava às cartas como se dariam os próximos meses do novo ano, desabou sobre nós uma infinidade de novas desgraças, até então irremediáveis: um vírus mortal, formas de governo municipal-estadual-federal-infernal e cada vez mais fortalecido e coeso, mentiras e enganações proferidas pelos porta-vozes do desejo de multiplicar dinheiro à custa de vidas precarizadas, enfim, todo um sentimento de fim de mundo. Naquele período, mais horror nas notícias, imagens de desespero de todo o tipo, rifas para ajudar amigos que estavam perdendo tudo, lives solidárias, pessoas muito queridas partindo e outras tantas em sofrimento mental. Essa sensação muito inédita ao mesmo tempo que muito tardia (pelos privilégios e colonizações espirituais que já mencionamos) de que o fim era naquele mesmo instante, se estendeu e repetiu-se de modo terrivelmente real pelos intermináveis dias entre as primeiras semanas de março de 2020, até começar a ser diminuído, no dia 17 de janeiro de 2021. Na ocasião, Mônica Calazans, enfermeira negra que trabalha no Sistema Único de Saúde, foi a primeira brasileira a receber a primeira dose da vacina contra o vírus Sars-Cov2, na cidade de São Paulo, um dia inesquecível entre tantos outros que poderiam sequer ser motivo de termos que nos lembrar. Mas é preciso lembrar não só do que testemunhamos enquanto vivíamos aqueles tempos. Foi preciso aprender e reconhecer, dolorosamente - apesar da história dos vencedores insistir em apagar - que vários fins de mundo já aconteceram a várias outras gentes (não humanas e humanas). Ora, desde que o colonialismo, o maior empreendimento europeu para fora dos seus domínios geográficos, estendeu-se por outros mundos, tornados mesmo outros e passíveis, aos seus produtores, de serem dominados e usados para alimentar as sanhas do velho mundo, o fim já tinha se tornado uma infeliz realidade concreta. Todas essas desgraças, em maior ou menor grau, podem ser relacionadas à uma certa, digamos, espiritualidade ontológica que tantos outros (humanos e mais que humanos) já experimentaram desde os tempos em que recebemos o mau agouro da colonização que inauguraram o “novo mundo”, 17 portanto. Então, se a carta revelada no jogo representava uma ruína de um lado, de outro, como um ideal de possibilidade, emergindo direto dos seus escombros, pode também “trata[r]-se de uma assunção. [...] A criação de um ser novo [que] se anuncia, o que se concretizará em A Estrela (Arcano maior XVII)” (Jodorowsky; Costa, 2016 p. 241). Nada mais fanoniano, para nós. Mas, antes de tal abertura para talvez a criação da novidade prometida, a partir de um fortalecimento do que já está posto como possibilidade de um novo por meio dos pensamentos plurais, é preciso falar dos escombros de um determinado jeito de fazer mundo que nos abarcou e nos custou inúmeras mortes, sejam elas espirituais, corpóreas, estéticas e políticas. Com isso, o fim de mundo a que nos proporemos a pensar não é um que diagnostica, na medida em que lamenta, o que vai acontecer como resultado da promessa moderna de que o humano Homem seria capaz de elevar-se acima da natureza e comandála, o que está a conduzir-nos para um cenário ainda pior, em que o aquecimento global já passa a ser chamado de ebulição. Apesar de considerarmos os escombros e falar, em alguma medida, a partir deles, é preciso seguir. Antes, porém, vale nos lembrarmos de um alerta... O vaticínio que põe fim a este mundo pode, entre tantas evidências a que temos contato, também ser atestada mediante o contato e as palavras de Davi Kopenawa e Bruce Albert, em A queda do céu. O capítulo que encerra a segunda parte do livro chamado de “O ouro canibal” centra-se sobre o tema dos metais, sua origem e função cosmológicas, sua extração inadvertida pelos brancos e as consequências dela não somente aos Yanomami, mas para “o mundo inteiro”, pois, nas palavras de Davi Kopenawa, por mais vastos que sejam a terra e o céu, suas fumaças [dos metais] acabam por se dispersar em todas as direções e todos são atingidos por elas: os humanos, os animais, a floresta. É verdade. Até as árvores ficam doentes (Kopenawa, 2015, p. 370). Sendo resquícios, “fragmentos do céu antigo”, os metais foram escondidos por Omama no fundo da terra, pois são muito maléficos e exalam fumaças de epidemia xawara. Além, sustentam o novo céu feito pelo demiurgo Yanomami após o cataclismo do primeiro tempo. Uma vez alcançados pelas intensas escavações dos garimpeiros e mineradores que agem como tatu- 18 canastras, os xamãs não poderão atuar junto aos xapiri na diplomacia xamânica “de guerrilha” que mantém este novo céu de pé, sustentado. No capítulo em questão, é possível perceber, enfaticamente, o que vem se passando longo do livro, a saber, a tarefa de Davi em advertir os brancos, ensiná-los, lembrá-los do que pode (re)acontecer caso as ações expropriadoras não cessem: o céu vai cair e, assim como tem sido difícil a vida e a existência dos povos da floresta diante do seu extermínio causado pela ação dos napë, “nem mesmo [eles] os brancos vão sobrevier” (Kopenawa, 2015, p. 372). Davi parece já saber de alguns dos efeitos da retirada dos metais nas terras outras, uma vez que, depois da extração de todo o metal, a terra fica fria (friável), tal como nos países dos brancos europeus pós-revoluções industriais: “onde o solo é vazio, faz muito frio, as nuvens são baixas e quase não se vê o sol. Deve ser o caso das terras distantes de onde os ancestrais dos brancos já extraíram todo o minério” (Kopenawa, 2015, p. 360). Omama é o pai dos minérios e se apresenta como uma montanha de ferro subterrânea. São como raízes do metal e, sem elas, a terra começa a tremer, rachar e desabar sobre os pés. A floresta, entretanto, (ainda) não é uma terra friável e nem sofre com terremotos, pois é ela o centro do mundo Yanomami, mas nos lugares mais distantes e frios, eles ocorrem justamente por essa falta de “sustentação”. O desastre ambiental extrativista e expropriante, sobretudo encarado a partir de sua verdadeira identidade, ou seja, como crime(s), acontece ainda nos territórios Yanomami e não muito longe dele. Lembremo-nos, brevemente, do que ocorre às populações indígenas desde os primeiros mau-encontros até dias correntes... Num anuário bizarro, ainda que sucinto, rememoramos que, desde os primeiros contatos no início do século XVI passando pelas expedições genocidas dos bandeirantes, a devassa da terra pela conquista de ouro e diamantes, seja durante os anos de chumbo em que militares golpistas devassavam a floresta amazônica repetindo aquela sanha bandeirante do assassinato de gentes humanas e não humanas; seja nas regiões dos megalomaníacos projetos desenvolvimentistas do governo Lula-Dilma (Belo Monte no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau no rio Madeira, Teles Pires e São Manoel no rio Teles Pires e outras); seja na Lama da Samarco, Vale e BHP Billinton que promoveu o engolfamento dos territórios em Mariana, Minas Gerais, no dia 5 de novembro 19 de 2015, com sua repetição monstruosa, desta vez em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019, considerado o maior acidente de trabalho no país; que fez o Rio Doce, o Watu, “mergulhar em si” (Krenak, 2022, p. 24); seja pela omissão proposital com que o governo federal, liderado sob milícias evangélicas, lidou com os Yanomami mais recentemente, seja por tudo isso e por muito mais, nos resta o espantoso, ao notar a profecia xamãnica de Davi que advertiu e acabou por se realizar nas terras de seus parentes Krenak que hoje se lamentam: “Watu é Kwen”, ou “O rio morreu”: Se os brancos começarem a arrancar o pai do metal das profundezas do chão com seus grandes tratores, como espíritos tatu-canastra, logo só restarão pedras, cascalho e areia. Ele ficará cada vez mais frágil e acabaremos todos caindo para debaixo da terra. É o que vai ocorrer se atingirem o lugar em que mora Xiwãripo, o ser do caos, que, no primeiro tempo, transformou nossos ancestrais em forasteiros. O solo, que não é nada grosso, vai começar a rachar. A chuva não vai mais parar de cair e as águas vão começar a transbordar de suas rachaduras. Então, muitos de nós serão lançados à escuridão do mundo subterrâneo e se afogarão nas águas do seu grande rio, Moto uri u. Escavando tanto, os brancos vão acabar até arrancado as raízes do céu, que também são sustentadas pelo metal de Omama. Então ele vai se romper novamente e seremos aniquilados, até o último. Esses pensamentos me atormentam muito. Por isso levo em mim as palavras de Omama para defender nossa floresta. Os brancos não pensam nessas coisas. Se o fizessem, não arrancariam da terra tudo o que podem, sem se preocupar. É para acabar com isso que quero fazer com que eles ouçam as palavras que os xapiri me deram no tempo do sonho. (Kopenawa, 2015, p. 361). Trata-se, por parte daqueles que consideram as vidas outras como recursos, de ódio aos rios, ódio à terra, ódio a tudo o que não represente ordem e progresso. Trata-se de um dos mecanismos mais evidentes da Plantationceno (Ferdinand, 2022): o Racismo Ambiental, que pode ser definido como: O conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos, que aceitam a degradação ambiental e humana, com a justificativa da busca do desenvolvimento e com a naturalização implícita da inferioridade de determinados segmentos da população afetados – negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores pobres, que sofrem os impactos negativos do crescimento econômico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício para os demais (Herculano, 2006). Assim, alguns dos problemas que se apresentam às comunidades indígenas, sobretudo quando saqueadas de seus potenciais cosmológicos e 20 muitos outros, são perpassados pelas questões raciais que sumarizam a sua exclusão que deslegitima, oprime, explora e aniquila, degradando-as muitas vezes a partir de suposições filosóficas e ambientais abstratas e mesmo alheias à sua espiritualidade, levadas a cabo com interesses coloniais e econômicos. Contra esse torpor assassino, o que vemos n’A Queda do Céu é uma verdadeira ação cosmopolítica para conscientização dos brancos, numa pedagogia da lembrança que pretende opor-se ao esquecimento banco além de um alerta forte: o céu vai cai novamente e ninguém escapará. Logo, as palavras de um xamã Yanomami revelam “todo um processo político-cultural de adaptação criativa que gera as condições de possibilidade de um campo de negociação interétnica onde o discurso colonial possa ser contornado ou subvertido” (Albert, 1995, p. 4), principalmente quando ultrapassam a dicotomia sobre o pensamento ambiental, a saber, a proteção ou a exploração2. Essa “reformulação estratégica do xamanismo nativo em linguagem ecopolítica” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 103) soma-se, portanto, à diplomacia do xamã. É um terceiro nível de ação, portanto. Entretanto, num mundo onde tudo possui agência espiritual, o mero discurso ambiental de proteção não cabe: a impossibilidade de redução do meio ambiente a quantidades de energia e de recursos, numa total separação entre ambiente e sociedade, torna-se evidente quando lançamos sobre estes a compreensão de que são históricos e culturais, assumindo valores distintos em cada contexto e em cada situação. Significa dizer que o valor que a natureza e o ambiente tem para comunidades como as indígenas, quilombolas e ribeirinhas, certamente não é o mesmo que neles encontram as empresas hidroelétricas ou as que cultivam monoculturas de eucalipto. (Paes e Silva, 2011). A cosmopolítica de que nos falam Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2014)3 é, então, o pano de fundo para as relações que se traduzem Cf. Bruce Albert: “de fato, esses dois discursos sobre a Natureza têm, no fundo, premissas comuns que são radicalmente antagônicas às concepções indígenas. Exploração ou preservação da Natureza remetem ao mesmo pressuposto de uma Natureza-objeto, reificada enquanto instância separada da sociedade e a ela subjugada. Ora, nada mais estranho que esta separação e este antropocentrismo para as cosmologias das sociedades amazônicas, que fazem do universo uma totalidade social regida por um complexo sistema de intercâmbios simbólicos entre sujeitos humanos e não-humanos, sistema do qual o xamanismo é a pedra de toque” (Albert, 1995, p. 19). 2 “Quando um índio interage com um existente de “outra espécie” – o que, repetimos, inclui os membros de outros coletivos que nós chamaríamos de “humanos” -, ele sabe que está tratando com uma entidade que é humana em seu próprio departamento. Assim se dá então que toda 3 21 no enfrentamento com o povo da mercadoria e da política e que implicam uma concepção outra da vida, uma vez que, diante das estratégias da vida deste povo, “a política é outra coisa” (Kopenawa, 2015, p. 390). Não é um lamento, portanto, que engana os menos avisados numa maquiagem sustentável e demais tendências falaciosas e perniciosas. Não é, também, uma política clássica que governa os recursos e faz gerência de crises do capital, tampouco é uma vida insistente em se fazer por meio de metabolismos espirituais de outrem. Esta política, no limite, revela um fim de mundo que imagina o fim de um aparato filosófico e, portanto, ideológico, que a todo tempo estimula os mecanismos que sustentam os próprios colapsos que ele mesmo produz pela perpetuação da tecnologia colonial, por meio do espírito ontológico moderno. Assim, não estamos somados ao coro dos que agora sofrerão o que sempre infringiram e tampouco queremos adiar o fim deste mundo para que os sofrimentos sejam levados adiante. Afinal, como nos lembra Ailton Krenak: “quando dizemos mundo pensamos logo neste, em incessante disputa instaurada por uma gestão que deu metástase: o do capitalismo – que alguns já chamam de capitaloceno” (Krenak, 2022, p. 32). Perspectiva justa, se pensamos que não são todos os que, diante da lei, são formalmente considerados humanos, as causas dos colapsos societais e ambientais a que estamos já mais acostumados. O antropos do caos e das catástrofes é demasiado sacerdote do capitalismo colonial, este que é tão falado, tão batido, mas tão presente. É preciso, então, reafirmar esse fim, porque, como dissemos, a espiritualidade ontológica canônica, a qual vimos tentando compreender desde a metade do curso de graduação em filosofia, tem se mostrado como um alicerce para os fins a que temos notícia, e que produz um viés pessimista de que, talvez, não haja saída. Esse viés pessimista nos é estimulado, então, por um tipo de pulsão de ir morrendo, que só pode ser barrado caso este mundo acabe de vez, colapse em sua força autodestrutiva, mas que não nos leve junto pois, sabemos: há espiritualidades cosmo-ontológicas divergentes a esse impulso para o abismo, em que os agentes que compartilham a vida e uma certa condição de interação transespecífica nos mundos ameríndios é uma intriga internacional, uma negociação diplomática ou uma operação de guerra que deve ser conduzida com a máxima circunspecção” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 96). 22 humanidade estão implicados pela alegria momentânea de estarem vivos, estejam onde estiverem. Se, talvez, fomos ensinados a nos acostumar com a ideia de que “o futuro a Deus pertence” e, com essa ideia, nos isentamos de uma atuação mais direta na construção coletiva e compartilhada de futuro, é mais que necessário pensar em outras direções. Não se trata, então, de um controle do porvir - o que, sabemos, já nos conduziu onde estamos – mas, sim, que tipo de ação nos é requerida para fazer com que o porvir aconteça. Com seria possível fazer e pensar um fim para este mundo que interdita o futuro, despreza o passado e adjudica o presente sempre ao que Davi Kopenawa (2015) chama de o “povo da mercadoria”, para, em oposição, que a vida seja afirmada, em todas as suas dimensões de alegria? Se, então, estamos diante de um “’fim do mundo” no sentido de mundo humano, o fim como resultado de um processo de desvitalização ontológica do ambiente (devastação ou artificialização integrais do planeta), com efeitos “desumanizadores” sobre os sobreviventes (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 61), e se este mundo é o porta-voz dos fins, como acabar de vez com ele para que outros possam existir? Sendo este mundo pós-colonial, portanto, “uma perspectiva objetiva” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 33), uma vez que seus condenados padecem das piores catástrofes contra a vida em todas as suas dimensões a nós conhecíveis fomentadas pelo capitalismo, a tese aqui defendida é a de que, para pensarmos e, portanto, fazemos possibilidades de saída, é preciso vislumbrar os escombros e falar a partir deles, escombros estes que podem nos oferecer um ponto de partida, a partir do pensamento anticolonial. Se o mundo é essa tal perspectiva objetiva, se este nosso mundo foi construído senão por violências e espoliações de trabalhos de outrem a quem dificilmente haverá formas de reparação, se a todo momento nos são expostas as razões pelas quais este mundo precisa acabar, antes que ele acabe com os potenciais mundos que resistem bravamente a este etnocídio moderno, quem são esses nós que somos chamados a reafirmar a vida, mesmo diante do fim iminente do mundo pelas pandemias, conflitos agrários, extinções em massa, limpezas étnicas e colapsos climáticos que um tipo de humanidade, a dos 23 modernos e seu vício incessante de consumo de outrem, soube fabricar com excelência? Podemos dizer que, além de terranos, ideia lançada por Bruno Latour e que expressaria, se bem pensada, uma certa condição de aliança entre entidades que não são necessariamente da espécie humana (Fausto, 2013, p. 169) e, portanto, agora, despossuídos de uma promessa de importância ontológica que fora construída por uma filosofia que os elevava à condição de Senhores do reino onto-epistemológico moderno, somos um produto de tais, para falar com Fanon, infelicidades ontológicas. Contra ela, contra tudo o que a produz, somos estas pessoas humanas e entidades mais que humanas que não estamos unificadas num interesse universal humano positivo, porque existe uma diversidade de alinhamentos políticos dos diversos povos ou “culturas” mundiais com muitos outros actantes e povos não-humanos [...] contra os autointitulados porta-vozes do Universal. O multiverso, o estado antenômico ou pré-cósmico de fundo, permanece não unificado, tanto do lado da humanidade como do mundo. Toda unificação está (sob um modo que poderíamos chamar e multiplamente hipotético) no futuro, e dependerá da capacidade de negociação uma vez declarada a guerra, a “guerra de mundos” como chamou Latour em outro texto (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p.121, grifos dos autores). O que nos é caro, a esta múltipla comunidade de agentes, é a chance de poder, com alegria, vivermos em estado de maior comunhão de tranquilidade; o que, desde o começo do século XVI, nos parece impossível. Para além de nós, para além de uma simples experiência onírica de fantasias utópicas sem compromisso, sonhar uma necessária disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas (Krenak, 2019, p. 52-53), porque é no sonho que encontramos a maleabilidade necessária para viver e tomar decisões, tecendo vias de possibilidades de sermos comuns. Não se trata, portanto, de uma vida isolada, sonhando em solipcismo, anti-humanista que ataque o seu sentido mais caro, a saber, a vida (neste caso, de toda a comunidade envolvida nela, menos, é claro, daqueles que a fazem cessar de forma cruel). É necessário sonhar e acordar, agir em alianças, pois constituímos aquilo que os filósofos Stefano Harney e Fred Moten entendem por subcomuns 24 do iluminismo [undercommons of enlightenment] (Harney; Moten 2013, p. 26) e, assim, somos convocadas e convocados a articular o fim para este mundo, como alternativa única para repensar o que é essa humanidade que nos constituiu senão como aquilo que chamamos4 de exclusiva, ou seja questionar quem participa dessa humanidade, de forma a rever as bases ontológicas, epistêmicas e éticas que têm nos guiado até aqui, torna-se parte fundamental dessa reflexão sobre o fim do mundo e, principalmente, sobre que mundo queremos habitar (Macari, Szuchman, 2023, p. 10). Trata-se, então, de continuarmos a fabular, ou melhor, “a reflorestar o imaginário”, como nos chama à tarefa Antônio Bispo. Cumprir a promessa anunciada por Fanon e que nos foi exortada por Aimé Césaire em seu poema matriarcal da Négritude: acabar com este mundo projetado e erigido pelos pilares coloniais antes que ele acabe com a gente. Essas noções até aqui apresentadas compõem, por aproximação, a ideia de Frantz Fanon sobre um novo humanismo, pois o caminho que é aberto por essa noção permite que interditemos “o futuro hipotecado”, lançando mão que humanidades outras que humanas, outras que branca e outras que modernas possam proliferar. Ou este mundo acaba ou ele acabará, de vez, com a possibilidade mesma de repensá-lo. Seja pela luta conjugada com uma “pedagogia do sonho” da qual nos inspira Davi Kopenawa (2015), seja por uma utopia, seja por uma especulação filosófica que costura esta tese, seja pela insistente lembrança de que, a despeito do fim, como canta Caetano Veloso, estamos “vivos, muito vivos, vivos, vivos”: certamente é por uma insistência pela reflexão filosófica no que ela pode de melhor. Pelo diálogo honesto e sensivelmente compreensível das humanidades radicais, pois outras que moderna além, evidentemente, da dignidade de viver, posto que estamos aqui, ainda. Até agora, nos parece que esse lamento pelo fim deste mundo - que é proferido pelos discursos resignados ancorados nos tristes pactos de um quase oxímoro do desenvolvimento sustentável, este que coloca como tarefa a ser realizada pelas pessoas comuns e não pelas grandes corporações neocoloniais - não passa de uma denegação da pulsão de morte que a violência colonial 4 Gonçalves (2018a). 25 desenvolve como motor do seu expediente. Nos parece ser um grito desesperado de uma humanidade exclusiva que sabendo que vai morrer do próprio veneno, se agarra ao que ainda resta do seu narcisismo patológico e delega a responsabilidade para se manter viva pelo constante uso do trabalho dos outros. Afinal, foi isso que veio e que chama de empreendedorismo, certo? Então, por que não chamarmos a morte para o jogo? Morte como fim “de tudo isso que está aí” ou o fim do mundo como morte a isso... Se o nosso passado está diante dos olhos e o nosso futuro montado sob nossas costas e nos premendo à frente (como nos ensina a filosofia dos povos Aymara) 5, talvez não seja tão necessário assim que deixemos tantas pegadas por aí com a intenção de nos perpetuarmos, pois a memória pressuporia fazer sobreviver o chamado por uma humanidade plural, e não reproduzirmos essa vontade de nos eternizarmos dominando e controlando outras vidas – o que aprendemos quando fomos colonizadas e colonizados pela conhecida noção de trabalho dos manuais de sociologia: transformar a natureza para que o trabalho nos transforme. Devemos, então, na fabulação de outros caminhos e encruzas, abandonar o que aprendemos nas lições do capitalismo colonial que atrapalha a comunhão cosmopolítica ao sermos catequizadas e catequizados pelo espírito desejoso e insaciável da mercadoria. O corpo, o sangue e o espírito do capital foram alimentados por fins de mundos pré-modernos a partir da sua vida transformada em trabalho escravizado, o corpo seviciado e a natureza, em seu amplo aspecto de compreensão, decepada, com vias de concretar e asfaltar um destino teleológico de que todos os que sobraram deveriam convergir à esta humanidade exclusiva, para merecer a dignidade da vida e seu direito funesto a um habitar colonial: A escravização de homens e mulheres, a exploração da natureza, a conquista das terras e dos povos autóctones, por um lado, e os desmatamentos, a exploração dos recursos minerais e dos solos, por outro, não formam duas realidades distintas, e sim contituem elementos de um mesmo projeto colonial. A colonização europeia das Américas é apenas outro nome da imposição de uma maneira singular, violenta e destruidora de habitar a Terra (Ferdinand, 2022, p. 56). 5 A isto voltaremos, mais adiante. 26 Tal convergência, esse “habitar colonial” de que nos fala Malcom Ferdinand, nos parece de fácil acesso pela celebração de bens culturais e educacionais pensados para reforçar essa ontologia espiritual, esse ethos da morte que, bem disfarçado, resultam currículos eurocentrados e epistemicidas, festivais étnicos em que só a cultura branca é destacada, celebrações da consciência negra em que apenas brancos falam e tocam, em imensos supermercados atacadistas que nos vendem alimentos ultraprocessados na medida em que estacionam carros cada vez maiores convertidos em SUVs, em farmácias a cada esquina que nos medicam e nos embotam, nas varandas dos apartamentos gourmet enfeitadas com bandeiras do Brasil, nos carros de aplicativo que nos apartam de compartilhar mobilidade pública e que fabricam trabalhadores-fantasmas, no embranquecimento dos gratilovers que abundam nos terreiros e apostam na emulação de rituais xamânicos numa autoafirmação narcísica até mesmo cômica, nos simbolismos de carteirada daqueles vocêsabe-com-quem-está-falando, toda essa afirmação de um progresso e ordem, essa “violência da condição tóxica [que] recobriu o mundo” (Ferdinand, 2022, p. 133) com seus venenos, garimpos, grilagens, ecocídios e assassinatos de viventes não humanos, dessa segregação em nome de uma experiência de consumo exclusiva, de um último respiro que pretende nos distinguir qualitativamente, mas que escondem imensos danos a essa teia da vida, enfim, toda essa desgraça. Logo, trazer a morte para o jogo não é nada menos que reconhecer que, insistindo nesses mecanismos distintivos, teleológicos, nessa promessa de modernidade, estaremos todos mortos em vida, sem sequer alcançarmos a possibilidade de pensar o lugar da morte para mundos outros. Mas, seria pertinente escolhermos qual morte queremos morrer. Eis uma tarefa importante. Aliás, esse deveria ser um direito. Morte em vida que nos arrasta para uma apatia covarde ou uma morte que seja compatível com ser encantada e encantado pela possibilidade de continuar vibrando, tornados, agora sim, outras entidades, na comunicação constante e presente entre um passado ancestral e sua atualização no futuro da vida? Morte como um apagamento, um esquecimento e uma terrível reatualização genocida, ou morte como possibilidade de viver outramente? Como construiremos o fim de um mundo para que possamos morrer de outro jeito, em mundos outros? Ou melhor, como pensarmos em coletividade “uma experiência tão radical que nos leve além 27 da ideia de finitude” (Krenak, 2022, p. 43)? Poderemos começar a responder tais perguntas, se com mais atenção, nos inspirarmos desta vez no acontecimento do Arcano XIII - sem nome, mas comumente relacionado à Morte, “quando uma revolução é desejada, o arcano XIII a enseja com uma rapidez radical, que pode provocar um grande alívio” (Jodorowsky; Costa, 2016, p. 221) Almejar o fim, a impermanência deste mundo, portanto. Outra pista, àqueles que ainda têm dúvidas, pode ser tirada do comentário que o psicanalista Jurandir Freire Costa faz ao prefaciar o incontornável livro de Neusa Santos Souza, Tornar-se negro, de 1983 e reeditado, recentemente, em 2021. No texto de Jurandir, é possível lermos: Todo ideal identificatório do negro converte-se dessa maneira, num ideal de retorno ao passado, no qual ele poderia ter sido branco, ou na projeção de um futuro, em que seu corpo e identidade negros deverão desaparecer. Não é difícil imaginar o ciclo entrópico, a direção mortífera imprimida nesse ideal. [...] Seu projeto é o de, no futuro, deixar de existir; sua aspiração é a de não ser ou não ter sido (Costa, 2021, p. 29). Essa alienação produzida pelo ideal projeta, portanto, para o futuro, um fim de mundo, não apenas para as pessoas negras (como é o foco da argumentação de Jurandir inspirado por Neusa), mas a todas as pessoas racializadas e aos entes não humanos ou mais que humanos. Se lermos o antropoceno (ou seus nomes mais acurados como capitaloceno, plantationceno, etc) enquanto realização máxima desse ideal kantiano de uma Humanidade exclusivista - pois aniquila tudo o que toca, posto que visa reinar sobre a exterioridade como uma forma de superá-la, de inscrever-se fora dela, protegendo-se no conforto dos muros da interioridade de sua mente, e faz isso à custa de escravização daquilo que considera ser meros “recursos naturais” – se é assim, portanto, o grande argumento giraria em torno de um fim radical para esse mecanismo de dominação que aprisiona e interdita as condições objetivas e materiais, além das espirituais e ontológicas, de produzir outros mundos. Tratase de lutar para não desaparecer enquanto aquele ideal nos toca e nos transforma em seu arremedo, mas sim, de criar condições de possibilidade para que outros mundos possam existir coabitando o que restar, ainda, do produto da tragédia moderna que, talvez, consigamos fazer parar. Afinal de contas, ainda é preciso pensar e garantir certa “perspectiva objetiva” e a morte, como aquela 28 primeira opção, deve ser evitada sob pena de não existir sequer outros modos de escolhermos morrer. O fim do mundo, em suma, é uma necessidade explícita de revolução e superação daqueles escombros coloniais para que a vida possa ser vivida de maneira peremptória e radicalmente mais alegre. Contrária a uma ideia pessimista de que não há saída, o fim do mundo, pelo menos aqui, ganha uma dimensão da alegria. Alegria cuja condição para acontecimento é uma emancipação da dominação colonial [que] não pode ser pensada unicamente como uma mudança da relação de humanos com humanos. Ela implica também uma transformação da relação colonial com as paisagens e com os não humanos, inclusive em suas formas escravagistas (Ferdinand, 2022, p. 198). Combater as condições insuportáveis que nos colocam diante da morte e que vai nos matando, também, a capacidade de imaginar. Imaginar vida, dias seguintes e saídas às quase aporias sociais e históricas assentadas nessa base que teima em diferenciar pessoas de pessoas, pessoas de animais, animais de animais. O destino, assim, será lógico: o fim do mundo, entendido como um fim coletivo. Catastrófico e escatológico com inundações de fogo e outras tantas e tamanhas tragédias. A isto, infelizmente, vamos nos acostumando, mas não deveríamos, como já cantava Marina Colasanti. Contudo, é este fim de mundo que nos é mandatório imaginar, mais uma vez, contra tudo isso que está posto. Fabular outros e demais modos, outras e demais formas de fazer viver. A vida como um compromisso coletivo, portanto. A vida como uma espécie de alívio. A vida, compartilhada e reconhecida entre todos, como alegria. Nossas mãos pálidas para anunciar o fim do mundo, como nos interpela Drummond, é para sabermos que as mãos já não podem, sob risco de se perpetuarem em manchas de sangue, sustentar a estrutura que descrevemos. Caras pálidas e mãos pálidas que morrem com este mundo. Contra isso, mãos coloridas, mãos de cor, caras sem máscaras brancas, corpos em movimento para, numa espécie de dança, andarmos juntas e juntos, com nossas absolutas diferenças conosco e com os demais. Observarmos aquilo que nos conta Neusa Souza no sensível e bonito ensaio O estrangeiro: nossa condição, a saber: 29 Pudesse este [sujeito] acolher o efêmero, admitir a transitoriedade de todas as coisas, abraçar o nômade em sua transição fugaz, pudesse o sujeito dizer sim ao estrangeiro, esse passageiro da diferença, e o estranho haveria de se conjugar, não com inquietude, desalento, dor e medo, paixões tristes, mas aliar-se com a alegria do novo, com afirmação do múltiplo, afirmação trágica do plural, do diferente. Só assim o estranho viria a se definir como afirmação alegre da diferença, verdadeiro antídoto contra toda forma de racismo. O racismo é essa peste, olhar odioso que afeta o Outro, visada de ódio e intolerância àquilo que funda sua diferença. Ódio e intolerância ao Outro, o racismo é essa maneira funesta de pensar e agir, fruto de uma vontade totalitária em seu duplo afã de extirpar do Outro o seu modo de gozo e, ao mesmo tempo, de lhe impor o nosso. Contra o racismo de todas as cores, de todos os sexos, de todas as crenças, de todas as línguas, de todas as culturas, de todos os países, contra esse horror, que nos valha o estrangeiro – o estrangeiro de toda parte, o estrangeiro do exterior e do interior de nós mesmos (Souza, 2021, p. 129-130). Assim, diante do exposto, “não estamos aqui para simplesmente constatar que o mundo já acabou, está acabando ou vai acabar. Há muitos mundos no Mundo” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 157, grifo dos autores). Então, o que nos convoca é que falar do fim do mundo é falar na necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta. Um povo que creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 159, grifo dos autores). Essa reflexão nos parece menos um devaneio que uma urgência. E é a ela que devotamos as páginas a seguir, pois nas leituras, conversas e experiências que tivemos, é ainda possível tentar. Com certa alegria realista, é chegada a hora de começar, como nos sugere Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi, em sua Carta à leitora preta do fim dos tempos6: “002. A destruição como experimento de um processo anticolonial; a destruição do mundo que conhecemos como possibilidade de imaginação política”. Porque “não podemos nos render à narrativa de fim de mundo que tem nos assombrado, porque ela serve para nos fazer desistir dos nossos sonhos” (Krenak, 2022, p. 37). Eis a tarefa que nos guia, aqui. Precisamos nos tornar outramente. 6 Texto que abre o livro de Denise Ferreira da Silva, A dívida Impagável (2019). 30 FIGURA 1 – La Maison Dieu FONTE: Ben-Dov (2017, p.200). 31 CAPÍTULO 1 – DAS NOSSAS INTENÇÕES OU “PRA COMEÇAR A ESCREVER DE NOVO PELO FIM”. 71. Le seule chose au monde qui vaille la peine de commencer: La Fin du monde parbleu. Aimé Césaire7 Que todos vivam o grande conclave que é a Terra. O grande conselho que é a Terra. Beatriz Nascimento, em “Orí”, de 1989. Esta tese é povoada de acontecimentos os quais ressoam por todo o texto, numa espécie de ponto de partida para as reflexões que aqui se farão presentes, como uma tentativa, dissemos, de imaginar um fim para este mundo animando mundos outros, ainda que, por enquanto, especulativos. Uma tese que tenta pensar o acontecimento, portanto, que em suas múltiplas possibilidades, em seus múltiplos desdobramentos. Com os limites que temos, tenta dar conta da articulação de reflexões que convergem os muitos anos de leituras, conversas e, acima de tudo, sentimentos sobre este mundo. À cada acontecimento que aqui é apresentado pelas leituras, reflexões, passagens e imagens, uma forma de estender e tentar compreender seus efeitos numa rede, ora mais confusa, ora menos, de fazer filosofia. Passada esta situação à leitora e ao leitor, sempre que o efeito parecer confuso em demasia, para além dos óbvios limites teóricos e argumentativos de qualquer texto e sua autoria, vale a ressalva de ter por horizonte uma ou várias formas de acontecimentos. O que pode um acontecimento? Excerto do poema Cahier d’un retour au pays natal. Conforme tradução de Lilian Pestre de Almeida (Césaire, 2012, p.42-43): 7 71. A única coisa no mundo que vale a pena começar: O Fim do mundo ora essa 32 1.1 A IV Conferência Nacional da Promoção do problema racial Em maio de 2018, em Brasília, tive a oportunidade, enquanto representante do poder público, de estar junto à delegação do Paraná na IV Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, promovida pelo então Ministério dos Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Durante a solenidade de abertura, o auditório do Centro Internacional de Convenções do Brasil pôde presenciar uma cena que ecoaria pelos demais dias do evento: a disputa pela representatividade das identidades que, aparentemente, seriam contempladas ali. Aparentemente, porque foram chamadas ao palco algumas pessoas representantes de diversos segmentos como, por exemplo, os povos ciganos, as pessoas com deficiência, as pessoas negras, povos ribeirinhos, as pessoas de religiões de matriz africana e servidores governamentais que, na ocasião, estavam dando a cara da nova turma. Turma essa que, a pouco, havia se alastrado pelos gabinetes e repartições do governo federal sob o signo do exvice-presidente Michel Temer. A ex-presidenta Dilma Rousseff havia sofrido um impeachment que, já à época, estava sob suspeitas de se tratar de um golpe político-midiático. Hoje, como sabemos, este golpe se confirmou após sua absolvição das supostas improbidades vinculadas às famosas "pedaladas fiscais". Enfim, aliado a isso, tínhamos o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, preso há pouco mais de um mês do evento pelos arautos da República de Curitiba, sucursal mais poderosa da operação Lava-Jato. Antes de prosseguirmos, um ponto importante do acontecimento da tese: ela é resultado das experiências que se desdobraram e ainda se desdobram, principalmente na cidade de Curitiba. Casa do pretenso pedacinho da Europa no Brasil, que carrega em suas esquinas planejadas (diga-se) do centro da cidade a simbologia do movimento paranista, este com seus ideais de progresso, trabalho, civilização e futuro que, como aponta André Daniel, abre um panorama de elementos e ideais que recriam sentidos que se revelaram nos discursos totalitaristas do século XX, como o nazismo, o fascismo, o autoritarismo (Daniel, 2020, p. 79); 33 esta mesma cidade que, aos olhos de Dalton Trevisan, “sem pinheiro ou céu azul, pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar – esta Curitiba, e não a outra para inglês ver [...]” (Trevisan, 1999, p. 9), é o lugar de formulação das ideias aqui expressas. A mesma cidade que diante dos acontecimentos recentes da história da narrativa política do país - que se arrogou ao deprimente lugar da República de Curitiba - sediou uma das mais expressivas devassas ao que se poderia esperar dos ideais e promessas de um regime democrático e jurídico: o palco da montagem grotesca da peça da Lava-Jato, operação que perseguiu, jurídica e politicamente, figuras importantes para um certo ideal de justiça social e que representavam o pior pesadelo aos defensores ferrenhos do espírito lavajatistaparanista: explicitamente conservador, declarada e orgulhosamente branco, esteticamente hipertrofiado, mentirosamente patriótico e definitivamente violento. A mesma cidade que vê atualizada uma certa república oligárquica, que vê proliferar células neonazistas, que se coloriu de um verde e amarelo insuportáveis, é a cidade em que há, também, formas de resistir e pressionar pela sua ressignificação. Assim, a ideia de fim de mundo que tentamos expressar neste estudo pode (e deve) ser entendida como uma tentativa de pôr fim à ideia mesma de um mundo curitibano inspirada nas resistências aqui presentes. Curitiba como um símbolo do que o Brasil deve ser, esse fim teleológico para o povo brasileiro, é esta finalidade que precisa acabar. É aqui, em primeiro lugar, que pensamos o acontecimento de um fim a que aludimos e, como resposta, tentamos articular. Aqui, de Curitiba. Voltemos à IV CONAPIR: a cerimonialista do ato, então, convidou sua audiência a se postar em respeito para a execução do hino nacional brasileiro. Ao soar a música gravada nos alto-falantes do espaço e suas primeiras notas da melodia conduzida pelos sopros da orquestra, foi possível ouvir com nossos pés grudados ao chão do auditório, uma pulsação que diferia do andamento quaternário da música cívica. O que ouvíamos, então, para depois conseguirmos ver, foi, logo após a intensa manifestação contra o então governo Temer e a prisão injusta de Lula, um grupo com diversas lideranças indígenas reunidas, marchando pelo corredor que dividia os lados da plateia, desde a porta de 34 entrada até o palco. Este grupo, que agregava em si diferentes povos, não havia sido convidado à mesa de abertura, aparentemente esquecidos pelo protocolo cerimonialista e, ao perceberem isso, articularam-se rapidamente em sua em caminhada marchada, com batidas dos seus pés demarcando território. Ocuparam, pois, o espaço, ovacionados por parte da plateia que estava entendendo o que se passava e outras tantas pessoas preocupadas em esconjurar o novo governo como todo tipo de palavras de ordem, gritos de guerra e hashtags. Dali em diante, a IV CONAPIR, as políticas públicas de promoção da igualdade racial às quais participava ativamente na sua construção local, os modos de perceber a luta e a resistência das diversas pessoas no Brasil, as formas de entrar em contato com saberes, a forma de pensar filosofia e de pôr em marcha o conhecimento articulado ao compromisso de libertação, tomou outro sentido pela situação concreta e vivida no território super disputado das políticas públicas, com todas as suas idiossincrasias e “simpatias-sem-vínculo” (Ferdinand, 2022). A cena vivida, as batidas sentidas na abertura oficial da Conferência, o “esquecimento” dos povos indígenas representados em sua multiplicidade ali no espaço institucional-estatal, a perda da inocência sobre o jogo político em sua estrutura macrodiscursiva da gestão da coisa pública, a luta pela garantia de direitos dos povos historicamente excluídos como o fim mesmo da nossa presença ali: tudo isso, com suas contradições, oclusões, aberturas e incômodos dos mais diversos, a todo tempo trazido à memória sob o ato de ocupação pelos indígenas durante a abertura da maior conferência de promoção da igualdade racial do país, a quarta da história recente, foi o que nunca mais deixou de ressoar, ainda que implicitamente, quando, em qualquer ocasião, se discute a ideia de justiça social. Pelo menos para mim. Se a luta não é coletiva, se não há solidariedade, como podemos avançar? Esta pergunta ainda martela... Esta tentativa de experimentar uma tese de doutoramento em filosofia nasce, então, não apenas de uma questão acadêmica acerca do problema da universalidade exclusiva que desenvolvemos durante a pesquisa para o término da graduação em filosofia, em 2015, e no mestrado em filosofia, concluído em 2018. Nasce, também, das observações e intervenções, todas práticas, as quais ainda nos chegam a todo o tempo. Seja durante a vida cotidiana e principalmente por ela, seja pela experiência vivida na construção de políticas de cultura, direitos 35 e infância e seus desafios históricos da qual também fiz parte ativamente, de 2017 a 2021, em Almirante Tamandaré, um dos municípios mais subalternizados e empobrecidos do Paraná, seja durante o percurso nos grupos de estudos e eventos acadêmicos cada vez mais abertos a outros mundos possíveis, seja ao longo dos encontros e tensionamentos diversos, seja compartilhando a casa de Axé que cuida do meu Orí, seja coabitando o mundo com todos os seres nele implicados: a todo momento somos conclamadas e conclamados a pensar em que medida mantemos o nosso endosso a este mundo ou nos recusamos a fazêlo. O que se pretende com este estudo, mais do que o cumprimento regulamentar de um protocolo acadêmico – aliás, importante para nós, para nossa comunidade e para a produção de ciência – é mover horizontes possíveis que, de certa maneira, contribuam para o fim deste mundo como o conhecemos. São esforços no sentido de tentar oferecer uma coalizão possível, a partir da filosofia e o que ela ainda pode promover, para tanto. Sobre quais termos, problemas e, sobretudo, sobre quais fins se tensionam para este mundo é o que se tentará articular nas páginas seguintes, que foram escritas a partir de certo esforço intelectual e que apontam para uma tentativa possível de ser alcançada: uma restituição, como nos diz Juliana Fausto, da “política que nos é devida” (Fausto, 2022, p. 1). Não em termos abstratos de uma filosofia política – o que certamente não é sobre o que se anuncia nesta dívida, mas mobilizadas e mobilizados em já fazer com que tudo viva, mais no sentido da política enquanto prática cosmológica e não como uma espécie de controle/gestão deletério. E da melhor maneira que seja possível a se comprometer. 1.2 Por uma questão a ser perseguida Colocada em experimento neste trabalho, então, está uma ideia que a perpassa de fio a pavio: seria possível antever, num primeiro momento, nos escritos de algumas autoras e alguns autores e seus pensamentos anticoloniais – mas, principalmente, ao ampliarmos a consulta aos “arquivos-Fanon”8 Como aponta Ivo Queiroz: “O termo arquivos-Fanon refere-se aos discursos que tecem a narrativa contida nas obras selecionadas para esta pesquisa, quais sejam: Pele negra, máscaras 8 36 (Queiroz, 2013, p. 27) levando em consideração os recém traduzidos escritos psiquiátricos e escritos políticos9 - a possibilidade de promover a “restituição da promessa” de um novo humanismo materializado pela dissolução completa do complexo colonialista [l’ensemble colonialiste] e seus mecanismos de alienação inerentes ao colonialismo interno? Trata-se, então, da investigação sobre em que condições existe a possibilidade da dissolução, ainda que neste momento especulativa, do atual cenário que conhecemos e suas artimanhas e arapucas coloniais pelas inúmeras páginas da história do pensamento moderno sob a imagem do fim do mundo. Em primeiro lugar, pretendemos localizar nos arquivos-Fanon as menções a este complexo colonialista, seus mecanismos e, sobremaneira, a possibilidade de uma emancipação pela equação dialética da luta anticolonial (por princípio) que conduzirá ao mundo pós-colonial (este, sim, como uma promessa a ser realizada). As noções de colonialidade do poder, do saber etc. (Quijano, 2005) tão visitadas atualmente e que muitas vezes são tomadas com ar de novidade, já estariam postuladas na noção de complexo colonialista, em Fanon. Logo, essa noção fanoniana ajudaria, antes, a descrever um princípio de "colonialismo interno" que já mostraria toda a estrutura colonial a se combater efetivamente, numa espécie de defesa de um cessar-mundo, este que, objetivamente, se arregimenta sob as bases do complexo. O desenvolvimento da noção deste complexo colonialista em Fanon - que teria influências diretas da crítica do brancas; Sociología de uma revolución: Os condenados da terra; Em defesa da revolução africana” (Queiroz, 2013, p. 27). É possível notar que o mercado editorial brasileiro, nos recentes anos, vem publicando traduções inéditas para textos até então pouco conhecidos de Frantz Fanon, na medida em que reedita algumas de suas obras mais conhecidas, como é o caso da recente edição de Pele Negra, Máscaras Brancas e Em defesa da revolução africana. Também é bom salientar que o campo de comentários sobre o autor vem florescendo inclusive com a possibilidade de já haver certa fortuna crítica de comentários que propõe leituras particulares do pensamento de Fanon, mostrando que existem “fanonismos” diversos, com suas questões próprias e que, ainda que tardiamente, promovem o autor a nada menos do que é: um filósofo implicado em questões candentes para seu tempo e que, por meio de suas reflexões, inspiram muitos outros trabalhos em vias de promover um novo mundo, uma possibilidade de transformar o que temos. Importante demais este momento em que mais pessoas conseguem ter acesso ao pensamento fanoniano. Suas veredas e problemas internos e os efeitos deste processo ressoam nesta tese. Para uma consulta detalhada sobre os “fanonismos” e suas implicações, ver o trabalho de um dos principais comentadores brasileiros do autor, cf. Deivison Faustino (2022). 9 37 movimento da Négritude ao denunciar suas artimanhas - poderia ser alvo de futuros aprofundamentos do autor. Contudo, pela urgência da luta anticolonial africana, pela morte precoce de Fanon e pela posterior “falência” das revoluções ao não superarem os nacionalismos capitalistas estatais e coloniais, não se foi possível dar cabo a este sistema-mundo onde é constantemente perpetuado o “colonialismo interno” como lógica de dominação, justamente por passarem do paradigma revolucionário ao reformista – escopo mesmo da gerência política da modernidade e seu discurso empresarial, ao reafirmar a humanidade para caber na ontoepistemologia moderna, como aponta Denise Ferreira da Silva (2007, 2014, 2019, 2020) e, portanto, falhando em seu expediente pretensamente emancipatório. Para este percurso, pretendemos mapear os pressupostos mais gerais do de uma determinada economia de conceitos vinculada ao pensamento anticolonial da primeira metade do séc. XX, especialmente nos arquivos-Fanon, mas também em escritos outros que o inspiraram a “sair da grande noite” colonial, especialmente pela inspiração do pensamento de Suzanne RoussiCésaire. Passado essa primeira tarefa e, depois, a imersão dos arquivos-Fanon, restaria, em segundo lugar, verificar em Silvia Cusicanqui e Lélia Gonzalez como haveria a restituição dessa promessa pós-colonial apontando para a articulação de uma possibilidade de fazer a luta e a resistência cosmopolítica. Esta parece ser radicalizada em Denise Ferreira da Silva, ao propor a poética negra feminista assumida na integralidade da ideia do excesso da das Ding – “a coisa” hegeliana que extrapola a representação da separabilidade kantiana e propõe um mundo em que tudo conflui ao-mesmo- tempo-agora num cosmo, num abismo de possibilidade, um continuum de mundo não separado pela consciência elevada ao supremo da razão por Hegel, assim como por Heidegger, com sua noção de Subjectum (Silva, 2019). Talvez resida aí o maior desafio: mobilizar uma atitude revolucionária ao abandonar o primado políticojurídico – muito arraigado às nossas subjetividades ainda modernas, e rumar a uma possibilidade ilimitada de vida, sem perder, contudo, a intencionalidade da luta. Voltarmo-nos à uma postura afinada com as proposições, segundo Antônio Bispo dos Santos (2016, 2023), contracoloniais que, vinculadas à vida e à experiência dos povos que sempre resistiram aos ataques colonialistas e 38 etnocidas, asseguram um novo dia senão através da luta numa “aliança cosmológica, mesmo falando línguas diferentes” (Santos, 2018, p. 2). Com isso, o que nos é caro e interessaria no argumento é reforçar a tese de como as heranças teóricas de Fanon o fizeram “guerreiro-sílex10”, este que legou ao pensamento filosófico revolucionário uma postura de enfrentamento radical das estruturas de dominação e subjugação do “homem pelo homem” e, por vibrações de sua poética, ajudou a inspirar a possibilidade de outra política, cosmológica e necessariamente múltipla, ao seu turno. Assim, seu pensamento, se torcido a realizar aquilo que não houve tempo de ser feito pelas contingências históricas, levaria a uma contundente reprimenda à noção de essencialismo ontológico e de luta, às disputas narrativas pelas identidades e a compartimentação do mundo em estruturas de estados-nacionais com sua explícita herança colonial. Lendo seus escritos, assim, talvez consigamos responder à pergunta feita por Wanderson Flor do Nascimento, na ocasião da qualificação da tese, em julho de 2022, quando ele nos fez pensar: “como Fanon caminharia conosco pela IV CONAPIR?... O que seria, então, a proposição fanoniana que, certa maneira, perfaz a não desenvolvida ideia de novo humanismo? Nada menos que - e acima de tudo, uma possibilidade (talvez anárquica em seu destino) de superação das relações de poder e a igualdade em potência e ato entre os entes do mundo. A luta pela Terra encampada por seus condenados, ao fim, seria a mãe de todas as lutas como nos interpela o movimento dos povos indígenas no Brasil por seu direito à vida que, antes de patriarcados pátrios, abriria uma possibilidade à diplomacia das fronteiras rumo à realização de uma mátria cosmológica11. Como quer Imagem mobilizada por Aimé Césaire, um dos mestres de Fanon. Exortou a figura do seu exaluno no poema Par tous mots guerrier-silex, como tendo a capacidade, tal qual a rocha sílex, de, numa fricção, alastrar incêndios que sacodem as estruturas colonialistas e entortar seus ferros e grilhões. Lembremo-nos da poética fanoniana: “Nós pretendemos aquecer a carcaça do homem e deixá-lo livre. Talvez assim cheguemos a este resultado: o Homem mantendo o fogo por autocombustão” (FANON, 2008, p. 27). Para tanto, há de se cumprir com sua exigência mais aguda: a dissolução das formas de manutenção das opressões, sejam elas quais forem. Como aponta Césaire, desta feita no texto em que o homenageia após sua morte, Fanon foi aquele “que desperta e aquele que alenta, aquele que chama o homem a cumprir sua tarefa, a se realizar mediante o exercício de seu próprio pensamento” (Césaire, 2017a, p. 197, tradução nossa). Sobre o poema citado, cf. Césaire (2017b, p. 231-233). 10 Devo essa formulação a uma conversa que tive com Camila dos Santos da Silva, do povo Kaingang e colega das Ciências Sociais, na ocasião de nosso encontro para discutir políticas culturais, em 2022. O seu relato e postura combativa sempre presente em nossos encontros ecoam neste trabalho de ponta a ponta. 11 39 Achille Mbembe (2017), o paciente fanoniano, paciente deste novo mundo, “é o paciente do futuro” e, de nossa parte, o seu pensamento filosófico anuncia uma promessa de mundo pós-colonial, de fato, ao se comprometer como uma espécie de profilaxia aos espíritos e mentes colonizadas. Profilaxia esta que se constitui como um novo ideal de vida por meio do engajamento. Para nós, conhecer Fanon é pensar em um outro mundo possível. Diante então desta espécie de antecipação do nosso itinerário, passemos à tentativa de promovê-lo. 1.3 Um direito à escrita como um direito da vida Antes, porém, se faz necessário, para nós, pensar que a escrita deste texto, ainda que em certa medida preso às regras e convenções acadêmicas de costurar uma pesquisa de doutoramento, exprime uma postura em aliança com coletividades de pensamentos que visam, não apenas escrever sobre si, numa espécie de narrativa autocentrada a qual a filosofia canônica está por muito tempo acostumada, mas, a partir das observações de mundo, possam minimamente oferecer um contraponto a ele. É por isso que, para nós, esta tese pode também ser entendida como uma costura de escrevivências. Assim, se a nossa leitora e nosso leitor julgarem necessário, podemos inscrever este conceito como uma espécie de procedimento metodológico. Ou seja, a metodologia de pesquisa, nesta tese, está em evidenciar textos nos quais a possibilidade de pluralizar mundos seja possível, com vistas ao combate irrestrito à fome do capital pela morte de tudo que não se alie a ele e ao seu inerente fatalismo que, como nos aponta Mark Fisher, “só poderá ser combatido seriamente pela emergência de um sujeito político novo (e coletivo)” (Fisher, 2020, p. 89, grifo nosso). Logo, figura-se como um critério metodológico aqui que tentará ser articulado a partir das observações de mundo que fazem os seres em luta para que ele se torne mais justo e plural. A criação conceitual da escrevivência então, surge na poderosa literatura de Conceição Evaristo. O conceito condensa três atos, a saber: escrever, ver e viver. Nada mais consoante com a proposta que visa oferecer um contraponto às formas de produzir exclusão e perpetuar relações de poder estritamente 40 hegemônicas e autoritárias. Assim, segundo Conceição, a escrevivência pode ser entendida quando surge a fala de um corpo que não é apenas descrito, mas antes de tudo vivido. [...] Pode-se dizer que os textos femininos negros, para além de um sentido estético, buscam semantizar um outro movimento, aquele que abriga todas as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida (Evaristo, 2005, p. 67, grifos da autora). A escrita como um dos direitos comuns da vida. Talvez esta ideia esteja no coração das filosofias que nunca se acovardaram ao enfrentar seus problemas encarnados. Isso quer dizer que, se a filosofia quando definida a partir de suas múltiplas possibilidades, mas que, por excelência, tenta sistematizar alguma ideia e transformá-la em algo que poderia ser relevante às pessoas, cumpre mal ou bem um papel de sacudi-las de algum jeito. Provoca nessas pessoas uma espécie de deslocamento de terreno que, às vezes cede completamente, às vezes apenas trepida. Aquilo que mobiliza o corpo, as sensações, as contradições e as possibilidades de produzir o pensamento – às vezes ritmado, às vezes sincopado, às vezes descompassado - faz parte do perigoso e arriscado jogo de mobilizar paisagens, histórias, inspirações, sentimentos em vias de, talvez, oferecer algum sentido para esta experiência do comum a qual chamamos vida, e que compartilhamos entre humanos e entidades mais que humanas – como as montanhas, os rios, os espíritos, os encantados e os mares, os animais, por exemplo. Assim, um texto escrevivido é, segundo Cristiane Côrtes: Uma forma de preservar o narrador que lê a própria língua de forma particular e ao mesmo tempo coletiva. Suas experiências pessoais são convertidas numa perspectiva comunitária. O seu discurso sabota o oficial porque cria um devir mais justo e coerente com o povo que quer representar. Essa narrativa une experiência à linguagem para resgatar o passado ou vivificar a memória. Esse resgate possui uma dimensão política conectada a uma ideia de coletivo, que foge da representação e da interiorização da história individual, e dialoga com o silêncio transgressor na medida em que insiste na resistência do povo silenciado e na persistência em cravar no campo da escrita essa lacuna existente pela ausência da representatividade (Côrtes, 2018, p. 56, grifos nossos). É por isso que, antes de pensar uma escrevivência autocentrada unicamente nas experiências individuais, conceder a mais que devida, digamos, 41 “cidadania filosófica” a este conceito tão poderoso traz ao nosso campo uma possibilidade de construção coletiva de outros mundos que não sejam estes que estamos assujeitadas e assujeitados pela ampla gama de violências possíveis, inclusive as violências filosóficas. E este nos parece ser o expediente das pensadoras e dos pensadores que, diante do racismo virulento e das expropriações colonialistas, sustentam uma postura que, avessa ao status quo e a uma certa defesa arraigada do que possa ser um cânone filosófico, partilhe outras e novas possibilidades de vida sem querer submetê-la a algum tipo de domínio ou controle. Seguindo essa ideia, Conceição nos exorta, ao se contrapor à ideia de Clarice Lispector de que a escrita é uma forma de dominar o mundo, e ainda mais, de somente circunscrever experiências pessoas em detrimento das coletivas, dizendo que por isso, nunca pensaria a Escrevivência como possibilidade de domínio do mundo. Mas como uma pulsação antiga, que corre em mim por perceber um mundo esfacelado, desde antes, desde sempre. E o que seria escrever nesse mundo? O que escrever, como escrever, para que e para quem escrever? Escrevivência, antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera. Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida. Um mundo que busco apreender, para que eu possa, nele, me autoinscrever, mas, com a justa compreensão de que a letra não é só minha. (Evaristo, 2020, p. 35, grifos nossos). Neste exercício da comunalidade da vida, “o perigo ao escrever é não fundir nossa experiência pessoal e visão do mundo com a realidade, com nossa vida interior, nossa história, nossa economia e nossa visão” (Anzaldúa, 2000, p. 233). Trata-se, de saída, em mobilizar um poder, ou, como quer Octavia Butler (2017), começar a escrever sobre o ele, pois ainda é algo que se partilha muito pouco. Escrever, ver e viver, artesania do pensamento que, pedindo licença para contribuir, nunca deixa de entrar. Mas, entrar de que maneira? Entrar como? O esforço aqui mobilizado pretende, com as devidas proporções, apontar alguns dos caminhos pelos quais pode ser possível requerer uma agenda descolonizatória do pensamento filosófico. Até hoje tem nos parecido que este compromisso, apesar de todos os louváveis esforços, apresenta-se mais retórico que, de fato, propositivo. Logo, é perfeitamente possível - e até esperada - uma atitude cética quando se escuta 42 falar da possibilidade de descolonizar o que quer que seja, pois, até os dias atuais, a proposta tem sido pouco concreta, haja visto os terrores incessantes cotidianos. Contudo, como aponta o filósofo camaronês Ernest Marie Mbomda (2019), ao invés de nos perguntarmos em quais termos essa possibilidade descolonizatória seria efetiva, poder-se-ia também, para atenuar essa aparente incredulidade, reformular[mos] a mesma questão da seguinte forma: quais são as condições de pensabilidade [pensabilité] ou de possibilidade de uma real descolonização do conhecimento em filosofia? Com essa reformulação, ao enfatizar as condições para uma descolonização da filosofia, o ceticismo deixa uma porta aberta para a possibilidade de um exame construtivo do que se apresenta como práticas de descolonização do conhecimento (Mbonda, 2019, p. 300, grifos do autor, tradução nossa). Face à impossibilidade, portanto, de entrar em contato com a profundidade do pensamento anticolonial e seus desdobramentos, sem levar em consideração suas escrevivências e suas condições de pensabilidade que mobilizam seus textos em total compasso com sua luta contracolonial, logo, uma das consequências desse itinerário é abandonar uma leitura apenas interna a qualquer texto. Esse jeito de se enredar, ou seja, numa conhecida estratégia da leitura estrutural de textos, nos foi exaustivamente estimulada nos primeiros anos dos estudos acadêmicos em filosofia. É um método interessante para revelar os corações dos pensamentos e das escolas, matizes e períodos históricos distintos entre si. Contudo, o mesmo método dificulta uma compressão mais alargada das consequências espirituais, cosmológicas e políticas dos efeitos de produção de mundo que os mesmos pensamentos provocaram e insistem em provocar. E, diante disso, apenas nos é exigida, como condição de possibilidade e pensabilidade de vida, saltar para fora das quatro linhas dessas constituições e costurá-las com tantos outros contextos implicados na feitura mesma desse mundo em produção. Trata-se de considerar, assim, a complexidade de eventos que os geraram, a partir dos olhares que temos, em conjunto com outros tantos. E, antes que os defensores da tradição filosófica ofereçam objeções e desencorajem “contaminações” da biografia dos estudantes nas pesquisas acadêmicas, sob a acusação de que trazer “aspectos da militância” ou “paixões” nada tem a ver com objetivos filosóficos estritos, Grada Kilomba os adverte: 43 como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico. Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito pessoal”; “muito emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma. (Kilomba, 2020, p. 35-36). Diante de tudo isso, dizemos, novamente, que a escrita é um direito da vida e, se a vida está refletida na filosofia ou melhor, ela se faz senão junto com a vida, tudo que é dela nos interessa. Bom, passada esta espécie de justificação ainda necessária aos leitores que oferecem contrapontos a este tipo de fazer filosofia, voltemos. Restituir a leitura filosófica pelo que ela pode ter de mais interessante: vincular mundo ao pensamento, dar-lhe um corpo ou, melhor, aliar músculo ao conceito (ao invés de substituir um pelo outro). Recusar, enfaticamente, uma postura que Bispo dos Santos denomina cosmofóbica (Santos, 2021, 2023), esta que pretende afastar do pensamento, por meio de uma educação domesticadora, a criatividade especulativa, a múltipla agência e as implicações compartilhadas para a construção coletiva da vida. Tal expediente filosófico deveria ocupar nosso trabalho especulativo para exigir do nosso campo e da confessada paixão que a ele devotamos, o seu melhor: a possibilidade de transformar e fortalecer a vida por meio do pensamento, o fazendo trepidar e, nas melhores tentativas, sucumbir de vez, escrevivendo e permitindo que a vida seja, por princípio, algo a se celebrar e a se defender, se reinventar e se lutar para fazer acontecer para todos (todos no sentido mais abrangente possível). Em alegria. Restituir a vida e o seu princípio que a anima - elã e compromisso para nós, acaso e indiferença para tantos, mas sobretudo Axé para nós. Axé que Sueli Carneiro (2023, p. 303), ao louvar seu amigo poeta Arnaldo Xavier, bonitamente chamou de Axébedoria. Esta que vivemos com desde os primeiros passos de quem nos antecedeu e que insiste em nos lembrar: é para todas e para todos, e cabe a nós que recebemos, levar adiante. Esta tarefa faz parte daquela política que nos é devida, também. Nesse sentido, este esforço se soma à ideia de que, 44 cuidando uns dos outros, cuidamos de nós, sujeitos-alvo de um mundo atual que nos extirpa a alegria de viver. Defendendo a ideia da comunalidade enquanto construção coletiva deste fim de mundo, acreditamos, como nos aponta novamente Sueli Carneiro, que o momento da inflexão vem, então, do reconhecimento de que, embora diversos, estamos sujeitos ao dispositivo da racialidade: isso impulsiona a nossa resistência e reorganiza os sentidos da existência. Esse processo é mediado pelas contradições do pertencimento racial, a identificação da luta como único caminho possível de redenção individual e coletiva para o segmento oprimido e de que isso não é conjuntural, mas parte integrante da vida, condição necessária para ser e permanecer, condição emancipatória da vida no plano individual e coletivo. Por isso tem que ser feito e refeito todos os dias, porque as contradições estão presentes no cotidiano de cada um e de todos. O racismo não descansa. Por isso mesmo, a luta tem que ser permanente, contínua (Carneiro, 2023, p. 340, grifos da autora). É a isto, portanto, que nos vincularemos. 1.4 Caminhos para uma encruzilhada de fazer outros Mundos Ao apontar os limites da produção de conhecimentos pretensamente universais, especialmente quando estes não se consideram como um sistema de dominação racial e geopoliticamente justificados, os estudos anticoloniais apresentam tanto críticas quanto alternativas para transformar e ocupar a disputa pela sua produção e legitimação. Para tanto, fazem emergir pessoas subalternas, historicamente excluídas, marginalizadas e colonizadas que, por meio de suas escrevivências lutam por uma fissura nas narrativas, saberes e subjetividades até então hegemônicas. Diante da ainda necessária crítica à empresa colonial (Césaire, 1978) e sua supremacia branca (Mills, 2006) inerente, a possibilidade de ampliar os limites da própria ideia de filosofia comprometida pela manutenção da vida – sobretudo ao forjar um alargamento do conceito de humanidade frente à crítica ao humanismo moderno, se faz tarefa urgente, e especular em quais termos isso seria possível um procedimento filosófico inadiável. A partir da nossa hipótese interpretativa sobre o pensamento racial kantiano desenvolvida no estudo do mestrado, nos foi possível pensar como o regime colonial ontológico de produção de conhecimento se inscreveu e ainda 45 se sustenta no interior discursivo da supremacia moderna. A consequência deste expediente colonizatório produziu inúmeras formas de sujeição e subalternidade, principalmente por negar a produção de saberes e pensamentos próprios, que na maioria das vezes, oferece um mundo invertido pela lógica eurocêntrica, por isso mesmo um mundo do “desatino insuportável” (Clastres, 2014). O que mobilizamos agora sobre o estatuto de construção ontológica dos subalternos pós-coloniais diante de seu excesso ontoepistemológicos (Silva, 2019). Ou seja, uma vez que a ontologia humanamente moderna é exclusiva e exclusivista, principalmente à luz do Humanismo da Aufklärung, como tensionar – e se é possível o fazê-lo – pelo menos uma humanidade “à medida do mundo” (Césaire, 1978, p. 63)? Assim, uma pergunta cara ao nosso itinerário, vinculada à grande primeira questão, será: filosoficamente, é possível identificar uma noção de humanidade que se almejou construir nos escritos anticoloniais aqui a analisados? E uma segunda questão, coextensiva à primeira: se sim, até que ponto suas consequências políticas e estéticas alargaram o próprio conceito de humanidade que outrora foi concebido exclusivamente? Para tentar responder nossas inquietações filosóficas, iremos a) apresentar algumas noções da crítica anticolonial proposta por Suzanne Roussi-Césaire e Frantz Fanon entorno do complexo colonialista e seus mecanismos, além de pensar que este complexo representa um mundo que precisa acabar; b) identificar como o legado destes escritos anticoloniais fanonianos influenciaram na construção teórica do pensamento contemporâneo sobre o que pode ser pensado para humanidades outras que habitem mundos outros, em Lélia Gonzalez, Silvia Rivera Cusicanqui e Denise Ferreira da Silva, e c) relacionar as teses propostas pelos escritos anticoloniais para a construção da ideia de uma filosofia que, de fato, promova o rompimento das tristezas coloniais, vinculado ao mundo como conhecemos pelo menos ao que fomos acostumados pelo espírito filosófico moderno que, apesar de suas grandes diferenças, carrega em si um desejo de domínio do conhecimento que só logrou êxito a partir do trabalho escravizado nas colônias ameríndias, africanas e asiáticas; para, então, pensar uma alegria da vida enquanto um acontecimento. Para tanto, os próximos dois capítulos apresentarão os caminhos pelos quais se desenvolverá a primeira grande crítica ao aparato colonial por meio do 46 pensamento de Suzanne Roussi-Césaire e o movimento da Négritude e, depois, a explosão filosófica de Frantz Fanon e sua radicalidade anticolonialista. A partir dos seus escritos, trataremos de verificar em quais caminhos suas proposições dão conta de estabelecer uma potente crítica ao sistema colonial em vigência, concomitantemente à mobilização de uma estratégia de valorização da subjetividade das pessoas colonizadas, ainda que em sua gênese. Esta valorização logrará êxito na radicalidade de uma postura anticolonial posterior, mas que já então anunciada, provoca reflexões acerca dos malefícios da expropriação colonial na vida dos colonizados. Assim, ao escrutínio dos arquivos-Fanon, mostraremos como este pensador tão fundamental para as ciências humanas atuais, concebe um projeto filosófico que é eminentemente revolucionário. Isso porque seu pensamento propõe tanto do ponto de vista da luta concreta pela qual se implicou, mas também do ponto de vista pela luta especulativa, uma perspectivação do jogo moderno que fomentou as múltiplas formas de opressão no seio do capitalismo imperialista. Passada a oportunidade de ver mais de perto como Fanon pensou uma revolução tal que advogue um fim para este mundo como o conhecemos, pretendemos desenvolver como os ecos de suas proposições chegam em projetos filosóficos que tentam atualizar seus pressupostos na medida em que há o refinamento (ou, talvez, o embrutecimento total) das formas de neocolonialismo que nunca abandonou o dispositivo do racismo, do sexismo e do colonialismo interno. Procederemos essa tentativa de analisar o cenário a partir das contribuições escrevividas de Lélia Gonzalez, Silvia Rivera Cusicanqui e Denise Ferreira da Silva. Ao fim, esta tese tenta reunir, numa espécie de ensaio para a alegria, um projeto que, se bem executado, pretende mostrar o quanto isso pode ser possível a partir daquele princípio como quem deseja, afirmativamente, a própria chance de estar aqui, coletivamente. As pessoas que leem o texto estão convidadas para pensar conjuntamente se foi possível realizar tal empreitada e se vale a pena se engajarem nas proposições aqui apresentadas, levando-as adiante. Seguimos. 47 FIGURA 2 – Tuíra Kayapó e o Terçado FONTE: Paulo Jares (1989) 48 CAPÍTULO 2 – UMA LUZ PARA “O DRAMA DA TERRA” 2.1 Suzanne Roussi-Césaire: um surrealismo milagroso Dedicamos este pequeno capítulo ao pensamento de Suzanne RoussiCésaire que, em seu nome antes da marca do casamento com Aimé Césaire, carregava uma outra, Roussi, desta feita de um verbo que queima [fr. roussir], de forma permanente, a imagem de uma construção ontológica. Queimadura provocada por meio das expressões literárias que extraem da arte o seu potencial revolucionário; que oferece condições para que o pensamento seja libertado das tragédias da sub-representação e das amarras de uma triste dependência. Queimadura também que legiferou a poesia atlântica mais conhecida de Aimé Césaire, mas que, por motivos também da estrutura colonial e seu machismo, restaram por muito apagadas. 2.2 O movimento da Négritude Ao descer12 aos confins do sentimento e do inconsciente a fim de transfigurar, ressignificar e desmistificar as construções coloniais racistas que viam nas pessoas negras uma sub-humanidade, o movimento da Négritude contou com a produção bastante estimada, ainda que em certa medida marginalizada. Seu nome, uma subversão que positiva o insulto contido na expressão francesa nègre, que designa pejorativamente uma pessoa de cor (com todos os predicados a ela atribuídos pelas teorias racistas), acrescido do sufixo tude que, de origem latina, designa o estado ou qualidade de algo. Logo, essa qualidade positivada daquilo que se atribui outrora como pura negatividade torna-se uma das perspectivas estéticas, políticas e filosóficas mais Sobre este ponto devo mencionar a clareza fundamental com que o professor Maicon Reus Engler abordou esta tópica e seus desdobramentos não só para o platonismo, como para uma ideia geral de filosofia, na ocasião do curso ministrado por ele sobre A República, durante o primeiro semestre de 2020, no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPR. 12 49 contundentes no enfrentamento das artimanhas colonialistas racistas. Assim, conforme René Depestre13, era a primeira vez na América que uma palavra de sentido pejorativo e ofensivo, na sua origem, perdia, aos olhos do oprimido, sua acepção injuriosa, para, como um bumerangue, voltar à cabeça do opressor, assumindo, repentinamente, uma função de reparação e de justiça (Depestre, 1980, p. 33). O termo négritude encontrou a sua primeira ocorrência provavelmente nos rascunhos da primeira versão de um poema capital para o movimento, a saber: o Cahier d’un retour au pays natal [Diário de um retorno ao país natal] de Aimé Césaire. Considerado o “poema matriarcal da negritude” (Almeida, 2012), a obra composta pelo poeta e político martinicano ao longo de, pelo menos, 17 anos (desde sua primeira versão em 1939 até sua versão definitiva em 1956), influenciou definitivamente a perspectiva de valorização das características aparentemente comuns entre pessoas negras que, pelo advento da diáspora e seus crimes, se espalharam ao longo de todo o planeta. Depestre considera que o movimento é muito devedor da efervescência das ideias estéticas anticoloniais que tiverem florescimento a partir do encontro de algumas pessoas, em Paris, no início do século XX: O movimento martiniquense, guadalupeano, guianense, da negritude, mais ou menos contemporâneo ao renascimento haitiano, que começou em 1928 com Ainsi parla l’oncle e La Revue indigène, é uma vanguarda que, entretanto, não recobre o do Haiti. A negritude se formou organicamente em Paris, onde seus criadores faziam seus estudos superiores: Étienne Léro, Jules Monnerot, René Ménil, Aimé Césaire, Léon Damas, Léonard Sainville, Aristide Maugée, os irmãos Achille (o único haitiano do grupo antilhano era o Dr. Sajous, originário de Cayes, Haiti) aos quais se juntaram, dois anos depois, os estudantes africanos Léopold Sedar Senghor, Osmane Socé, Birago Diop, todos os três do Senegal. Em seus primeiros momentos – e talvez até sua dispersão pela guerra, em 1939 – este foi um grupo ideologicamente muito heterogêneo no qual figuravam um marxismo de estrita obediência como o de René Ménil e um Jules Monnerot que faria depois uma evolução diametralmente diferente. Esses jovens intelectuais organizaram (além da Revue du munde noir, publicação bilingüe, com Andrée Nardal e Sajous, que teve a colaboração de Jean René Depestre, poeta e literato haitiano, amigo de Aimé Césaire e figura muito importante para o pensamento literário do caribe, redige um texto, em 1980, intitulado Bom dia e adeus à negritude. Este texto, vinculado ao comparatismo literário interamericano, revisita a história do movimento Négritude na medida em que apresenta uma crítica importante a ele. Depestre, ao se afastar de seus ideais, rumou em direção a outros movimentos, como é o caso do Antillanité proposto por Édouard Glissant, por exemplo. 13 50 Price-Mars, Alain Locke, Claude McKay, Félix Éboué, René Maran) duas publicações efêmeras: Légitime défense (1932), L’Étudiant noir (1934). Com armas desiguais fornecidas pelo marxismo, pelo surrealismo e pelo freudismo, sem contar o recurso à etnologia de Frobenius, Delafosse, Georges Hardy, Robert Delavignette, Théodore Monod, essas revistas abriram fogo de artilharia pesada, tanto sobre o mundo capitalista cristão e burguês quanto sobre a opressão colonial e o racismo (Depedtre, 1980, p. 31). Mais precisamente, em 1934 com a edição da revista L’Étudiant noir, que além de Aimé Césaire contava com a coedição dos poetas e políticos Léopold Sédar Senghor e Léon Damas – do Senegal e da Guiana Francesa, respectivamente – o movimento se estendeu por vários anos constituindo-se como difusor de seus ideais emancipatórios que vinculavam uma ideia de valorização positiva da identidade negra com suas estéticas e, enfim, políticas. Tratou-se, então, de estabelecer uma via em que houvesse a desmistificação, subversão e afirmação da negritude enquanto estratégia para fazer nascer uma identidade positiva, que não mais vê a sua humanidade limitada e interditada. O que esteve a combater, em suma, [foi] a religião cristã, o destino fatal, a ciência e a política – toda a tradição humanista europeia – [que] se dão a mão para justificar a exclusão do negro da humanidade. E o excluído aceita sua exclusão, convencido do fundamento do discurso do outro” (Almeida, 2012, p. 127). Como Lélia Gonzalez (1988) bem nos informou, o que está em franca recursa é o suposto-saber enunciativo que constrói e sustenta a existência menorizada das pessoas racializadas – especialmente negras – a partir da tara racista da dominação sexualizante de seus corpos, e da captura sádica de seus espíritos, por meio das estratégias colonizatórias que vão muito além da mera ocupação geográfica. Trata-se, em suma, de uma colonização territorial do complexo mente-corpo-espírito das pessoas que, vítimas de uma trama colonial racista e genocida, têm um intenso trabalho de buscar caminhos outros para uma afirmação da vida, em última instância. Entretanto, voltemos a esse cenário que, no desenvolvimento e nos espólios da Segunda Guerra Mundial tensionava – inspirado de forma confessional no processo de independência do Haiti, em 1º de janeiro de 1804, a construção de um novo mundo. A revista Tropiques constituiu como um 51 importante veículo de circulação das ideias antilhanas, além de Aimé Césaire, René Ménil e Aristide Maugée (literatos martinicanos) encontrou na figura de Suzanne Roussi-Césaire sua maior articuladora, especialmente com outro movimento estético caro à esta turma mais centro-atlântica: o Surrealismo. 2.3 Um apagamento ensurdecedor Num importante artigo, Rosânia Oliveira do Nascimento (2016) restitui a figura de Suzanne que restou apagada por muitos anos. Conforme a autora, diante do fato de Suzanne ter sido obliterada pela fama de seu companheiro Aimé, (fortemente causado pelo machismo histórico ainda vigente), é imperativo o reconhecimento de sua participação não só no movimento surrealista em diáspora, mas no pensamento de seu cônjuge no que toca às intenções libertárias do movimento de origem francesa do começo do século XX – o surrealismo, alicerçando o “humanismo à medida do mundo” como advogava seu companheiro: Apesar de notarmos uma mulher, uma estudante ativista da Diáspora Negra, há ainda lacunas sobre a produção literária desta martinicana e [...] persistem indagações inaudíveis: como uma pensadora da relevância Suzanne Roussi-Césaire passou despercebida pelos críticos do Movimento Négritude? Dada a sua importância como editora e co-fundadora de duas prestigiadas revistas entre as décadas de 1920 a 1940, qual a razão da sua pouca produção? E, por que parou de escrever no auge de suas reflexões? (Nascimento, 2016, p. 16). Reforçando este coro, no belo posfácio que integra os artigos e ensaios de Suzanne Roussi-Césaire recentemente traduzidos no Brasil (Papéis Selvagens, 2021), Lilian Pestre de Almeida aponta que a pensadora não somente influenciou o movimento, mas determinou muito de seus rumos. A propósito do comentário que tece sobre a evidência desta “apropriação” a partir do ensaio de Suzanne, a saber, “Alain e a estética”, datado de julho de 1941, Almeida nos interpela ao dizer que o conhecimento das diferentes versões do Cahier, este poema “móvil” entre todos, permite-nos afirmar sem qualquer dúvida que é o poeta Aimé que desenvolve o texto escrito e publicado pela sua mulher em 1941. Isso nos faz descobrir que, se Suzanne, nas suas epígrafes ou fechos de textos, retoma Césaire, este, igualmente, retoma textos de 52 sua mulher, quer seja desenvolvendo-os, quer resumindo-os. Aliás, não é o único a fazê-lo” (Almeida, 2021, p. 93). E, não menos que isso: a autora, que é uma das principais estudiosas e tradutoras de Aimé Césaire, considera que os hiatos e a interrupção da intensa, mas curta produção intelectual e artística de Suzanne, se deve à sua saúde frágil que ainda era conciliada com a criação de seus seis filhos tidos com Aimé, além de seu intenso trabalho docente numa das principais instituições de ensino da Martinica, inclusive tendo sido professora de Fanon. Logo, uma justiça é devida a Suzanne que, ao estruturar o movimento da Négritude, forneceu as bases para que se pudesse tensionar o seu projeto de libertação. Quais são os elementos que se podem antever em sua obra, pelo menos as que tivemos acesso? Ressaltamos três neste trabalho, mas certamente podem ser elencados muitos mais. Como primeiro elemento, podemos destacar uma ideia muito particular de humanidade. Sobre este ponto, é possível mapear tal ideia a partir do ensaio que ela escreve, em abril de 1941 intitulado “Leo Frobenius e o problema das civilizações”. Evocando o pensamento do referido antropólogo alemão14 e seu conceito de Paideuma, a saber, um princípio que se inscreveria na dinâmica cultural de qualquer sociedade de modo a permitir que se movimente como um organismo vivo, Suzanne postulará: Não, o homem não cria a civilização; não, a civilização não é obra do homem. O homem, ao contrário, é instrumento da civilização, um simples meio de expressão de uma potência orgânica que o ultrapassa infinitamente. O homem não age, é agido, movido por uma força anterior à humanidade, uma força que se confunde com a própria força vital, a Paideuma fundamental” (Roussi-Césaire, 2021, p. 27). Leo Frobenius foi um etnólogo que, durante seu trabalho nos primeiros anos do século XX, circulou por territórios africanos coletando suas mitologias e ficando reconhecido por isso, além de que teria incentivado revoluções dos súditos muçulmanos do império britânico, todas malfadadas (Riva; Biocca, 2016). Frobenius também foi entusiasta pela existência da Atlantis africana, esta que teria lançado as bases dos elementos culturais do continente. A partir da sua pretensa valorização do território africano, é exortado pelo movimento da Négritude por sua importância ao estudar a “morfologia das culturas”. Conforme Suzanne, esta “que não é nem história primitiva, nem pré-história, nem história moderna. Ela não acumula fatos e datas. Não é também arqueologia – não é tampouco etnologia, etnografia – Não – O que ela quer é estudar ‘o ser orgânico’ da civilização. Civilização esta que é concebida como ‘entidade metafísica’” (Roussi-Cesáire, 2021, p. 28). 14 53 Este argumento pouco ortodoxo15, especialmente às ciências do político, se vinculará, a partir do pensamento de Suzanne, a um destino comum, a saber: o enfrentamento dos “problemas imediatos dos quais é impossível escapar sem covardia” (Roussi-Césaire, 2021, p. 32), uma vez que parece que a humanidade euramericana teria sido tomada no século XIX por uma verdadeira loucura da ciência, pela técnica, por máquinas, cujo resultado foi o pensamento imperialista criador da economia mundial e do cerco do globo. Essa verdadeira loucura de poder e de dominação que transtorna a humanidade, em catástrofes tão terríveis quanto as guerras de 1914 e 1939, é o sintoma de uma nova irrupção da Paideuma. Irrupções de que não podemos ainda ter plena consciência e cujo sentido real ainda permanece oculto para nós. Está aí o drama da terra. Quanto ao papel do homem, ele é o de se preparar para viver esse futuro outro, é o de se deixar mover pelo Real, sem perder esse sentido da piedade, esse sentido da conquista, esse sentido do destino que é sua herança única, inestimável (RoussiCésaire, 2021, p. 32). Esta ideia de uma humanidade vinculada a um princípio global não tanto ativo e que apresenta os sintomas de seu tempo, conferiria uma espécie de dupla situação: o acirramento das dinâmicas sociais pelas disputas promovidas na égide da técnica moderna, ao passo que, a partir dela, se exige com bastante coragem, uma contraposição em vias de entender o real drama da terra, ainda inacessível, mas que conclama a uma superação da “verdadeira loucura de poder e dominação que transforma a humanidade”. Curioso notar, ainda neste primeiro elemento, um aspecto central, a saber: restituir ao campo da arte o poder de ser o local de remissão desta humanidade problemática. Sobre isso, Suzanne, em outro artigo datado de julho de 1941, intitulado “Alain e a estética” aponta: Em todo caso, em todas as artes, o velho horizonte se amplia e recua para além do concebível. A mais bela ambição do homem, conhecer o inconhecível, realiza-se. A arte é o único caminho de acesso, atual, para esse outro mundo, atraente. Esse é o poder que é delegado ao artista. Estamos no direito de esperar dele todos os milagres. [...] A uma nova consciência do mundo, uma nova consciência do humano corresponde um jogo novo, esplêndido (Roussi-Césaire, 2021, p. 41, grifos nossos). Que podemos, sem hesitar, ver em Fanon a sua recusa. Basta lembrarmo-nos que um dos seus princípios mais caros é a noção em torno do conceito de “sociogenia” e o sociodiagnóstico da situação colonial: “a Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa à influência humana. É pelo homem que a Sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas do edifício” (Fanon, 2008, p. 28). 15 54 Neste passo, ao lermos a passagem acima, entramos em contato com uma espécie de alívio que só pode advir da arte. Sobre este ponto, vale a pena sugerir que, ancoradas e ancorados neste milagre que nos é permitido esperar dos artistas, há um horizonte possível que vai de encontro a um “cosmocídio” de que nos fala o filósofo Dénètem Touam Bona (2020). A este verdadeiro inferno, aquele que mata qualquer possibilidade de vivermos de forma encantada e ampliada, podemos pensar uma alternativa coletiva e poética que tenda a ver os acontecimentos dos mundos que poderemos criar como saídas, como capacidade de evitarmos a pobre morte do fim do mundo como consequência última do capitalismo tardio, filho feio do plantatioceno. Segundo Bona, como uma urgência artística, a cosmopoética é a forma primeira da ecologia: uma ecologia dos sentidos e da imagine-ação pela qual pajés, ngangas, mães de santo, bruxas neopagças e outros mestres do invisível estabelecem um diálogo obscuro, tecido de metáforas, com o conjunto de tudo que vibra (Bona, 2020, p. 11). Se trazemos Suzanne aqui como uma inspiração não só para Fanon, como veremos a seguir, mas animando toda a tese, especialmente diante deste argumento da arte ser um dos caminhos possíveis para a construção de viabilidades contrárias ao fim de mundo empobrecido pela cosmovisão moderna, vibramos na proposta coletiva, novamente, de resistências pela amplidão do pensamento especulativo, filosófico-artístico, não só dos artistas, mas também das pessoas que sabem mover as vibrações do mundo. Assim, pode ser ainda possível, ir adiante. Mas, voltemos aos dois últimos elementos que destacamos do pensamento de Suzanne. O segundo, resta, ao contrário do que se possa pretender, numa recusa a um certo viés essencialista de passado – justamente o que muito se apontaria pelos detratores do movimento Négritude, inclusive os próprios Fanon e Depestre16. 16 Depestre chega a considerar que, no núcleo desta crítica, pode se encontrar o que chama de uma metafísica somática, pois apresenta um paradoxo. Segundo ele, “longe de formar uma consciência contra as violências do subdesenvolvimento, a negritude dissolve seus negros e seus negro-africanos num essencialismo perfeitamente inofensivo para o sistema que subtrai aos homens e mulheres a sua identidade. Hoje os "negrólogos" da negritude a apresentam como uma concepção de mundo que, nas sociedades americanas ou africanas, seria exclusiva dos 55 Sobre essa recusa, desta vez no ensaio intitulado “Mal-estar de uma civilização”, de abril de 1942, Suzanne se opõe tenazmente aos mecanismos de assimilação colonial que estacionariam a criatividade estética dos colonizados diante da superioridade de seus opressores. Deste modo, a solução, que passa por uma reflexão necessariamente estética e pelo viés da cultura, conduziria a uma legitimidade da ação. Nos termos de Suzanne, Não se trata de uma volta atrás, da ressureição de um passado africano que aprendemos a conhecer e a respeitar. Trata-se, ao contrário, de uma mobilização de todas as formas vivas misturadas nesta terra onde a raça é o resultado da combinação mais contínua; trata-se de tomar consciência do formidável acúmulo de energias diversas que até aqui encerramos em nós mesmos. Devemos agora empregá-las em sua plenitude, sem desvio e sem falsificação. Pior para aqueles que nos julgam sonhadores. A mais perturbadora realidade é a nossa. Agiremos. Essa terra, a nossa, só pode ser o que queremos que seja. (RoussiCésaire, 2021, p. 57). O segundo elemento aparece na importância incontornável de Suzanne neste cenário a partir de suas contribuições e conexões com o Surrealismo proposto por André Breton. Como é sabido, este foi um movimento de vanguarda francesa que, no início dos anos da década de 1920, a partir do Manifesto Surrealista de autoria de Breton, pretendeu subverter o enrijecimento que se anunciava ao mundo depois de séculos de tradição europeia da racionalidade e da sua ordenação pragmática que desaguou nos escândalos das guerras europeias de 1919 e 1938. O legado desta tradição se exacerbou nas guerras e inúmeras formas de opressão que, por sua crueldade e desenvolvimento técnico, se voltaram contra a Europa e exterminaram milhares dos seus. Frente a isso, o movimento propunha uma libertação da representação de suas amarras racionalistas na medida em que deixava fluir, numa espécie de negros, independentemente da posição que eles ocupam na produção, na propriedade e na distribuição de bens materiais e espirituais. De fato, trata-se de uma Weltanschauung de origem anti-racista que, recuperada pelo neocolonialismo, tenta na sombra do movimento e reforçandose em sofismas, manter os negros oprimidos distantes das determinações que devem fecundar suas lutas de libertação. A negritude, de movimento de contestação literária e artística que foi, no princípio, à ideologia de Estado em que se tornou, não é, entretanto, um fenômeno de geração espontânea. A negritude tem um passado: ela é, por certo, estreitamente tributária da história e das estruturas sociais formadas pelo escândalo americano do tráfico negreiro e o do regime da plantation” (Depestre, 1980, p. 2, grifos do autor). 56 associação livre, o pensamento e a tentativa de, então, representá-lo esteticamente. Nada mais candente a um movimento que estava motivado a erigir um mundo novo a partir da valorização de aspectos brutalmente reprimidos pelo sistema colonial. Assim, certamente ao influenciar seus entusiastas pela Négritude e explicitamente a Suzanne, é possível estabelecer que na interlocução entre os autores dos trópicos e os surrealistas europeus, um projeto de superação do colonialismo foi gestado. Assim, a pensadora, desta vez no ensaio intitulado “1943: o surrealismo e nós”, de outubro de 1943, considera que assim é a atividade surrealista, uma atividade total: a única que pode libertar o homem, revelando-lhe seu inconsciente, uma das que ajudarão a libertar os povos, esclarecendo os mitos cegos que os conduziram até aqui. [...] Portanto, longe de contradizer, ou de atenuar, ou de desviar nosso sentimento revolucionário da vida, o surrealismo o apoia. Ele alimenta em nós uma força impaciente, mantendo sem fim o exército maciço das negações (Roussi-Césaire, 2021, p. 62). O terceiro e último elemento a se destacar, coextensivo ao segundo, está na oportunidade devida de reconhecer o papel central das mulheres na produção da luta, do conhecimento e da especulação libertária por meio do viés surrealista, neste caso. Pareceria necessário dizer isso, cumprindo uma prerrogativa formal e meramente inclusiva requerida nos tempos atuais. Contudo, não é o caso deste argumento. Lembremo-nos de Angela Davis que disse17: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura sociedade se movimenta com ela”. Nada menos que isso, além de uma “justiça epistêmica” da qual nos fala Wanderson Flor do Nascimento (2023), deve ser atribuída a Suzanne Roussi-Césaire, que, se não foi a mais influente pensadora do surrealismo no contexto da 2ª Guerra, figura como uma das principais, como aponta Penelope Rosemont, editora da antologia sobre a participação das mulheres no movimento: Muitas vezes, é difícil e às vezes impossível identificar as influências particulares de indivíduos. Aqui, eu simplesmente sugiro que os principais desenvolvimentos do pensamento surrealista durante a Segunda Guerra Mundial – particularmente no que diz respeito à emancipação das mulheres, a relação entre a humanidade e a natureza, a importância da cultura popular e uma apreciação mais profunda das culturas negras, nativas americanas e outras do Terceiro Mundo – foram o resultado, em grande medida, da influência 17 Em sua conferência na UFBA, em Salvador, em julho de 2017. 57 cumulativa e crescente de mulheres e participantes do Terceiro Mundo no Movimento Surrealista (Rosemont, 1998, p. 124, tradução nossa). 2.4 Os milagres ainda por acontecer Após percorrer - ainda que de forma breve, até mesmo porque os textos a que temos acesso são pequenos em sua quantidade pelas razões já apontadas acima -, as contribuições de Suzanne Roussi-Césaire ao movimento Négritude, estas que certamente somam em mais monta, devem ser melhor aprofundadas posteriormente por novas pesquisas. Mesmo assim, por suas inestimáveis contribuições não só ao referido movimento da Négritude, mas ao desmantelamento do mundo colonial, Suzanne nos ensina – assim como ensinou a seu aluno Fanon - que não é exigida apenas uma certa reparação (ainda que totalmente irrealizável) da opressão sofrida e, menos ainda, uma busca incessante a uma identidade perdida – mesmo que a própria noção de identidade exerça um papel fundamental pela retomada da subjetividade colonizada enquanto partícipe da humanidade global. Mas tratarse-á da possibilidade de desvelar as estruturas opressoras que o mantiveram, por séculos, nos mais terríveis açoites às testemunhas de sua história. Tratar-se-á de uma promessa de um futuro, não mais hipotecado como nos interpela Fanon, mas de todas os milagres, como quer Suzanne sustentando-se na arte e na cultura em vias de construir um mundo novo. 58 FIGURA 3 – Suzanne Roussi-Césaire FONTE: madinin-art.net/11-aout-2015-le-centenaire-de-suzanne-roussi/ 59 CAPÍTULO 3 - O GUERREIRO-SÍLEX D’une intelligence aiguë, intensément vivant, doté d’un sombre humour, il expliquait, bouffonnait, interpellait, imitait, racontait : il rendait présent tout ce qu’il évoquait. Simone de Beauvoir18 O projeto filosófico de Frantz Fanon é profundo, posto que radical. É a partir do nosso encontro com ele e seu pensamento que as motivações aqui se desenvolveram. As suas considerações que se tornaram referenciais incontornáveis para todas as pessoas que investigam os efeitos do racismo nas subjetividades é uma parte importante de sua proposta, mas não é a única. Este aspecto central e certamente mais conhecido de seu pensamento, a saber, a desalienação das pessoas negras, participa de um projeto maior; um projeto revolucionário que, em termos gerais e muito próprios, “deve tender ao universalismo inerente à condição humana” (Fanon, 2008, p. 28). Pelo menos é o que podemos antever como horizonte em sua obra mais famosa, Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1951. A ambição de Fanon se desdobra numa espécie de tentativa limite: uma que seja fundamentada totalmente em sua prática, que pode subverter a própria filosofia calcada em uma tradição exclusivista, uma vez que “se é em nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, é também em seu nome que muitas vezes se decide seu extermínio” (Fanon, 2008, p. 43). De saída, o alvo torna-se o mapeamento das estruturas alienantes que foram perpetradas por ideias mistificadoras com seu substrato filosófico-colonial. Não à toa que, na obra em questão, a palavra “mistificação” e “alienação” pipocam na efervescência do seu projeto de emancipação completa das amarras opressoras. Mais uma vez, o que deve ser feito é proceder à jornada para uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico Assim foi que, em La force des choses, Simone de Beauvoir (2014, p. 359) definiu Fanon. Uma possível tradução seria: “De uma inteligência aguda, intensamente viva, dotada de humor ácido, explicava, brincava, desafiava, imitava, contava: tornava presente tudo o que evocava”. 18 60 ressurgimento pode acontecer. A maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos” (Fanon, 2008, p. 26). Novamente a tópica de descer aos confins da sujeição reaparece, para dela, ressurgir uma outra possibilidade de inventar a vida. E essa descida compreende desvelar os conflitos psíquicos que são palco da alienação mais forte das pessoas nas situações em que se deparam com a diminuição de sua existência. 3.1 Quando a prática clínica sustenta o compromisso revolucionário Renato Nogueira, em sua apresentação à edição brasileira dos Escritos Psiquiátricos, recentemente traduzida e publicada no país, considera, a partir da ideia fanoniana de mundo dividido, que a colonização divide o mundo em duas partes: em uma, vive o colonizador, a régua, o cânone, a imagem da humanidade, o branco; em outra, o inverso, o negativo. Se Fanon nos fala da revolução e ficou bastante conhecido por esse discurso, ele ressalva que nenhuma revolução pode acontecer sem a descolonização do pensamento. Ele seria, pois, um precursor daquilo que hoje chamamos de desintoxicação das subjetividades colonizadas (Nogueira, 2020, p. 17). Por meio de sua prática clínica nos contextos em que se apresentavam intensos dramas colonialistas, tanto da parte dos nativos quanto da parte dos mantenedores desta estrutura de dominação, Fanon mobilizou seus esforços para mostrar que a alienação da liberdade produz os mais diversos sofrimentos psíquicos. Numa contribuição deveras importante para a época, a perspectiva sociogênica trazia a novidade até então inaudita no tratamento das psicopatologias que outrora eram atribuídas tanto às questões orgânicas, quanto (e de forma racista) a uma vinculação presumida inerente entre problemas mentais, numa espécie de herança lombrosiana – inclusive esta última forma de psiquiatria tendo sido comumente adotada para justamente reforçar os contextos coloniais. Logo, para tentar mapear a extensão e a profundidade do pensamento fanoniano, é necessário passar em revista aos seus escritos psiquiátricos que, no seio da revolução argelina, determinou uma prática clínica que se recusou 61 pela manutenção dos sistemas de alienação. Em Fanon, trata-se de verificar, nessas condições, o que Jean Khalfa considera ser o paradigma do “constitucionalismo” em etnopsiquiatria colonial, “que enxerga diferenças ou deficiências raciais nesses traços da cultura”19. Traços da cultura, a bem dizer, assentados nas bases colonialistas de um discurso dominante que moldará as subjetividades de maneira profunda, sendo “uma questão que atravessará toda a obra posterior de Fanon, quer como psiquiatra, político ou pensador da alienação” (Cherki, 2022, p. 52-53). Esta importante questão é vislumbrada no ensaio “A socioterapia numa ala de homens muçulmanos: dificuldades metodológicas” escrito em parceria com Jacques Azoulay, em 1954, e publicado na revista L’Information Psychiatrique. Nele, ambos se questionam: em razão de qual desvio de julgamento pudemos crer possível uma socioterapia de inspiração ocidental numa ala de alienados muçulmanos? Como seria possível uma análise estrutural se colocávamos entre parênteses os contextos geográficos, históricos, culturais e sociais? (Fanon; Azoulay, [1954] 2020, p. 182). Esta posição que, segundo os autores, é “desprovida de objetividade”, poderia indicar, se não problematizada a tempo, a vinculação da prática clínica a um estilo de psiquiatria ocidental: Reflexivamente, o psiquiatra adota a política de assimilação. O autóctone não tem necessidade de ser compreendido em sua originalidade cultural. O esforço tem de ser feito pelo “nativo”, que tem todo o interesse em se assemelhar ao tipo de homem quem lhe é proposto. A assimilação neste caso, não implica reciprocidade de perspectivas. Há toda uma cultura que deve desaparecer em benefício de outra” (Fanon; Azoulay, [1954] 2020, p. 182). Logo, segundo o comentário que oferece aos textos psiquiátricos de Fanon, Khalfa considera que “o interesse desse problema de medicina legal é revelar que na sociedade colonial não há contrato social compartilhado, não há a adesão do indivíduo a um todo social e jurídico” (Khalfa, 2020, p. 50) e, ainda, que 19 Cf. nota à página 201 dos “Escritos Psiquiátricos” de Fanon. 62 a ideologia de uma patologia mental e de um caráter naturalmente ligados a uma raça, por mais espontânea que tivesse parecido, não passava de um dispositivo destinado a mascarar essa contradição. Sob a capa da ciência, a naturalização da doença mental com base racial significava, na realidade, transformar em norma natural certa estrutura cultural importada da Europa” (Khalfa, 2020, p. 50). O que Fanon está a requirir é uma prática clínica que, em momento algum, pode ser desvinculada politicamente dos ideais de cura que, por sua vez, estão eminentemente vinculadas à cura do colonialismo enquanto estrutura que mantém as “patologias da liberdade”. Segundo Khalfa, a doença mental nunca é vista como uma forma extrema de liberdade, mas antes como uma ‘patologia da liberdade’, expressão que Fanon utiliza em vários textos, referindo-se a [Henry] Ey, que, por sua vez, o havia tomado de empréstimo de um artigo epônimo de Günter Anders (Khalfa, 2020, p. 38). Interessante notar que Henry Ey, por vezes interlocutor referenciado de Fanon em seus escritos psiquiátricos foi, além de também psiquiatra, um filósofo que considerava a psicanálise reconhecida na França não pela medicina, mas pelas propostas surrealistas. (cf. Aversa, 2018, p. 128). Não é pouco notar isso, dada a influência explícita desta corrente estética no movimento da Négritude e no pensamento de Suzanne Roussi-Césaire - como vimos-, e como esta, por sua vez, ecoa, ainda que criticamente, no pensamento fanoniano. No fim das contas, ao que tudo indica, Fanon reuniria em sua proposta todos os elementos que apontassem para um certo grau de liberdade em sua forma mais aberta: seja pela psicanálise, seja pela sua atuação dramatúrgica ainda pouco conhecida, seja pela sua proposta clínica, seja pela sua própria prática revolucionária. Vejamos mais. Estudando a cultura, o contexto, e as formas de ver o mundo dos colonizados, Fanon foi capaz de identificar que as doenças mentais em contextos de violência podem ser caracterizadas como tal e que, somente uma intervenção radical neste cenário poderia conduzir à cura. É o que aponta Khalfa ao dizer que as formas que as doenças mentais tomam são determinadas pela estrutura das relações de que o indivíduo é capaz, ou incapaz, de 63 participar, portanto, por fatores ‘externos’, nem orgânico nem psíquicos, mas institucionais e sociais (Khalfa, 2020, p. 30). Tal é uma das naturezas fundamentais dos sofrimentos psíquicos aos quais Fanon investigava que, em Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952, no maior capítulo da obra que desvelou mais esta máscara branca, a saber, a psicopatologia racista, ele diz: Qual nossa proposição? Simplesmente esta: quando os pretos abordam o mundo branco, há uma certa ação sensibilizante. Se a estrutura psíquica se revela frágil, tem-se um desmoronamento do ego. O negro cessa de se comportar como um indivíduo acional. O sentido de sua ação estará no Outro (sob a forma do branco), pois só o Outro pode valorizá-lo. No plano ético, ou seja, valorização de si (Fanon, 2008, p. 136, grifo do autor). Logo, os transtornos mentais que também são somados às taras sexistas sobre o corpo negro só são passíveis de cura, para Fanon, se se investiga sua origem social e suas implicações. Talvez aqui caiba uma reflexão sobre o corpo. O capítulo mencionado, a saber, “O preto e a psicopatologia”, é absolutamente necessário para entender como a sexualização das pessoas racializadas configura-se como uma projeção das taras recalcadas pelos valores civilizatórios brancos. Filosófica e sistematicamente, eles reduzem o corpo à morada do sórdido e do proibido que enxerga apenas “um membro: o negro foi eclipsado. Virado membro. Ele é pênis” (Fanon, 2008, p. 146), passando pelas sevícias da escravização, a sua delimitação pela frenologia, chegando até a hiperssexualização das mulheres amefricanas. Este recalque, que pode ser facilmente atribuído como um dos efeitos da gênese da canônica separação cartesiana entre res extensa e res cogitans, acaba por desembocar, no limite colonizatório, numa situação tão dramática que para o corpo negro e indígena, racializados, inferiorizados pela epidermização, só resta ser exterminado. É o que Faustino (2022) vai considerar quando ao encerrar reificadamente o colonizado nos fetiches próprios, que não pode ver em si, o branco turva a própria visão no véu das relações raciais. Mais que isso, ao tomar contato com esses elementos seus projetados no outro, assusta-se (ou se atrai) em um jogo sadomasoquista (Faustino, 2022, p. 72). 64 Interessante notar que este recalcamento do corpo, muito “estimulado” pela tradição filosófica moderna, faz também com que este ciclo infernal da denegação - este mecanismo psíquico que resiste em negar aquilo que deseja e que acaba, ora ou outra, escapando no discurso - atue na sociedade como um todo: os corpos são “duros”, não se manifestam, pois, como analisou Foucault (1987), são tornados “dóceis”. Administra-se e condiciona-se o corpo e tudo que vem dele é visto como animalizado, tendo que ser reprimido, portanto – tornado racional. Os efeitos são imensos para a história20 e passam desde as religiões que usam o espírito racional e “escolhem esperar” em detrimento às manifestações da espiritualidade que só existem em função do corpo; a dança marcada, treinada em detrimento às danças populares; o silêncio nos auditórios de concerto em detrimento ao “feitiço decente” (Sandroni, 2001) do samba e dos bailes funks; o ascetismo em detrimento à experiência de conhecer o próprio corpo e toda a sorte de silêncios corporais em contraposição ao grito do corpo... O corpo como tabu. A mente como purificação. Não é de se espantar que grande parte do nosso adoecimento contemporâneo e o mais grave de tudo, o genocídio das pessoas racializadas, se deve à esta recusa do corpo, este apagamento, esta forma de neutralizá-lo, fazê-lo sumir. O corpo como uma ameaça. É por isso que Fanon não só o evoca em diversas parte de sua obra, como faz dele o seu leitmotiv: “Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!” (Fanon, 2018, p. 191). Neste cenário, a discussão fanoniana do corpo passa necessariamente por sua apropriação detida da filosofia fenomenológica de Merleau-Ponty21. Sem nos estendermos muito a este respeito que é largamente comentado pela fortuna crítica fanoniana, bastaria dizer que o corpo assume um lugar político que não pode ser mais objetificável, como quis os mecanismos de controle colonial e 20 Para uma das análises definitivas sobre esta questão, recomendamos os textos de Lélia Gonzalez, além da análise propostas por Fanon sobre a “nova dialética do corpo e do mundo” (Fanon, 1976, p. 41) na experiência vivida da luta revolucionária. Também, indicamos o comentário sobre este aspecto do pensamento de Fanon – o corpo quando se torna o lugar da luta na formulação de uma cultura nacional - cf. De Oto (2013). Cf. Cardim ao comentar o estatuto do corpo na filosofia de Merleau-Ponty, “longe de ser um obstáculo à nossa liberdade, o corpo é a própria condição da liberdade. A liberdade do ser humano se ‘apoia’ em seu ‘envolvimento universal’ (Fenomenologia da Percepção, 607). O ser humano pode arrancar-se de suas rotinas habituais para dar-se um futuro novo” (Cardim, 2009, p. 118). 21 65 moderno como um todo. Ao contrário, evidencia-se um corpo-sujeito, que se coloca no mundo a partir da consciência e da sua agência subjetiva. Assim, o que está em jogo é o compreender em sua filogenia enquanto um mecanismo biológico, somado à sua ontogenia, enquanto um complexo de relações subjetivas e psíquicas. Como resultado desta operação, Fanon aponta à uma existência sociogênica que é atravessada pela consciência política. Ela está expressa na materialidade da história e da própria subjetividade enquanto uma coletividade (Fanon, 2018, p. 28). A concepção que se ancora nesta sociogenia é a condição de possibilidade da cura dos sofrimentos psíquicos causados sobretudo pelo racismo colonial22, além de ser caminho para uma revolução necessária que coloque fim às estruturas colonialistas. A adoção deste princípio pode ser lida num artigo23 escrito em parceria com Charles Geronimi, em 1959, e publicado na revista La Tunisie Médicale: assiste-se na internação a uma autêntica coisificação do conflito. E, portanto, do paciente. [...] Não se pode escotomizar por muito tempo o fato de que a situação conflitiva é a conclusão da dialética ininterrupta do sujeito e do mundo. Insiste-se sistematicamente no evento e minimiza-se a história. Não se trata objetivamente da biografia, da anamnese, mas da história do sujeito, na medida em que ela contém, no plano das interrogações sucessivas, o conflito e os elementos de sua superação (Fanon; Geronimi, [1959] 2020, p. 96). Aqui, não se trata apenas de investigar as causalidades orgânicas e psíquicas das doenças mentais, mas, sim, aliadas às estruturas sociais que as fomentam. Tal “conclusão da dialética” corresponde, pois, a uma causalidade necessária entre os acontecimentos sociais e os seus desdobramentos; neste caso, na incidência de conflitos psíquicos que se desenvolvem a partir dos contextos de negação da vida. Neste ambiente e em todos os quais onde há a presença da diminuição da potência da vida manifesta na subjetividade, a prática É por isso que Fanon indica uma crítica ao que considera ser uma “generalidade abstrata” no texto anticolonial de Albert Memmi (1977), pois faltaria a ele uma análise detida das evidências sociais específicas tanto a uma proposta que combata o colonialismo, mas principalmente que conduza à cura. Segundo Fanon no artigo intitulado “Escuta, homem branco!, de Richard Wright”, de 1959, “essas observações, em geral, não estão erradas, mas sua generalidade – sem falar de sua banalidade – impede que sejam penetrantes; parecem abstratas, sem relação direta com o concreto” (Fanon, [1959] 2021b, p. 125). 22 A saber: “A internação diurna na psiquiatria: valor e limites (2). Considerações doutrinárias” (Fanon; Geronimi, 2020). 23 66 clínica é, portanto, essencialmente política, pois eminentemente dialética: devese considerar como fundamentais as dinâmicas societais envolvidas na medida em que se recusa a perpetuação de mecanismos coloniais, como a psiquiatria ocidental ou etnopsiquiatria colonial, por exemplo. É por isso que, necessariamente, esta prática clínica requer uma demolição das estruturas físicas dos hospícios que mais reproduzem as estruturas de confinamento da subjetividade que as liberta: “o que é preciso, em todo caso, é evitar a todo custo a criação desses monstros que são os hospitais psiquiátricos clássicos” (Fanon; Geronimi [1959] 2020, p. 100). Os hospícios como uma das imagens deste mundo que precisa acabar24. Outra evidência do rompimento com os estigmas clínicos racistas que podem ser identificados nos discursos médico-científicos ocidentais, Fanon, desta feita em parceria com Raymond Lacaton, já em 1955, num breve relatório apresentado no Congresso de Médicos Alienistas e Neurologistas da França e de Países de Língua Francesa, chamado “Condutas confessionais na África no Norte (1)”, mostra como a psiquiatria forense é um braço fundamental dos sistemas de opressão colonial. Rebatendo a tese de que haveria um traço de personalidade comum aos muçulmanos, a saber, a propensão à mentira, Fanon e Lacaton mostram que, antes, essa pressuposição só faz sentido numa perspectiva racista. Lembremo-nos, mais uma vez: todo o aparato para atacar a moralidade das pessoas colonizadas era empregado. Neste texto pequeno, mas muito poderoso, os autores interpelam a psiquiatria colonial ao subverter a tese de que o primitivismo do autóctone o faria mentir de maneira sistemática quando, na verdade, trata-se de uma resistência a endossar uma espécie de contrato social colonial estipulado pelos dominadores: Pode-se assim, dizer que o norte-africano é mentiroso. É uma ideia admitida amplamente. Todo magistrado, todo policial, todo empregador será capaz de oferecer inúmeros e convincentes exemplos (o norteafricano, além do mais, é preguiçoso, trapaceiro etc). Mas será que Neste passo, não há como não lembrarmos do inimaginável sofrimento e descaso acontecidos no país, especialmente na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, que Daniela Arbex descreveu em seu livro que adjetiva o que se passava nas políticas públicas de assistência e saúde mental: um Holocausto Brasileiro. 60 mil pessoas, majoritariamente negras, foram mandadas para este campo de concentração em saúde mental chamado assustadoramente de Hospital Colônia e lá padeceram dos piores “tratamentos” dispensados aos enjeitados da sociedade da época. Depois disso, foram mortas pelo descaso institucional. Para rememorar este horrendo (e muitas vezes esquecido) episódio da história do país, mas que precisa ser lembrado sempre, cf. Arbex (2013). 24 67 essa simplificação permite encontrar a verdade inatingível? Essa orquestração da mentira, que descrevemos brevemente, exige uma compreensão mais profunda (Fanon; Lacaton, [1955] 2020, p. 239). A saída para uma intervenção libertária é estar imerso no povo, em sua cultura, os conhecer melhor e participar das dinâmicas societais deste “regime ontológico” que, muitas vezes, é desconhecido por muitos e tacitamente desprezado pelos operadores coloniais. Este texto é ainda mais importante se pensarmos que a psiquiatria forense com seu ranço lombrosiano continua a informar o aparato da justiça, especialmente a brasileira, sendo um eficaz instrumento para a manutenção do espírito colonial no país. A título de ilustração, ainda que mórbida, basta lembrarmo-nos que, em 2020, na cidade de Curitiba, uma juíza da 1ª Vara Criminal condenou um cidadão negro, Nathan da Paz, à época com 42 anos, com o seguinte parecer: “Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente.” 25 [Grifo nosso]. Nina Rodrigues com seu As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, de 1894, se regozijaria vendo a realização, 124 anos após a publicação do seu texto, do seu projeto jurídico pensado para o país e baseado nas diferenças das raças. Nada mais deprimente, para nós. Toda essa estrutura que aprisiona a liberdade, como podemos antever, que a reduz a um mero privilégio de uns poucos representa, para Fanon, “uma teoria da inumanidade” (Fanon, [1952] 2021a, p. 37). Esta ideia nasce de sua análise da situação de pessoas norte-africanas que emigraram para a França nos contextos da guerra, mas que, se hipostasiadas para todas as situações nas quais são requeridas um apequenamento da condição humana e sua subjetividade, é certo encontrar os seus pressupostos. É o que Fanon vai desenvolver no poderoso ensaio “A síndrome norte-africana”, publicado na revista Esprit, no mesmo ano da publicação de Pele Negra..., em 1952 e que 25 Mais detalhes deste absurdo jurídico contemporâneo, um dos inúmeros que abundam neste país, ver: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2020/08/4867956-juiza-diz-que--emrazao-de-sua-raca---homem-negro-e--seguramente--criminoso.html 68 integra a obra póstuma Por uma revolução africana. Na análise que oferece, nosso pensador aponta, como uma das teses desta teoria: Ameaçado em sua afetividade, Ameaçado em sua atividade social, Ameaçado em sua cidadania, o norte-africano reúne todas as condições que fazem um homem adoecer. Sem família, sem amor, sem relações humanas, sem comunhão com a coletividade, o primeiro encontro consigo mesmo se dará de modo neurótico, patológico. Ele vai sentir-se esgotado, sem vida, num corpo a corpo com a morte, uma morte aquém da morte, uma morte em vida [...] (Fanon, 2021a, p. 49, grifo nosso). A morte em vida a entendemos como o esforço contínuo de sujeição aos mecanismos de opressão que muitas vezes é operado na estrutura do Estado neoliberal colonialista. Este que formalmente assegura direitos sociais, mas que, confrontado com a materialidade da vida, tacitamente os transforma em privilégios de poucos e mercadoria para muitos, como dissemos. O genocídio da população negra e indígena no Brasil, em marcha quando escrevemos estas linhas26, faz da morte do corpo apenas o ato final de uma morte já anunciada na recusa pelo direito de viver que ainda reproduz as estruturas colonialistas desveladas por Fanon, o que nos faz, tristemente constar, e parafraseando Bruno Latour, jamais fomos pós-modernos e muito menos pós-coloniais: O colonizado, igual a todos os homens dos países subdesenvolvidos e os deserdados de todas as regiões do mundo, percebe a vida não como florescimento ou desenvolvimento de uma fecundidade essencial, mas como uma luta permanente contra uma morte atmosférica. Essa morte próxima se materializa na fome endêmica, no desemprego, nas epidemias, no complexo de inferioridade e na ausência de futuro. Essas ameaças ativas e esses obstáculos à existência do colonizado conferem à sua vida uma sensação de morte incompleta (Fanon, 1976, p. 103-104, tradução nossa). As escrevemos na semana em que garimpeiros invadem as terras yanomami Arakaça tendo reduzido a aldeia a cinzas e desaparecido todos os seus pertencentes, após as denúncias dos indígenas pelo estupro seguido de morte de uma adolescente de 12 anos, além das evidências que contam sobre uma mulher e uma criança de apenas 3 anos terem sido jogadas em um rio. Escrevemos estas linhas na semana em que Jhonathan Ribeiro de Almeida, de 18 anos, foi assassinado com um tiro a queima-roupas por forças policiais no Rio de Janeiro. Escrevemos estas linhas às vésperas de completar 1 ano da maior chacina em uma comunidade, também no Rio de Janeiro. Certamente, muitos outros casos acontecerão até terminarmos o texto e não pararão após sua conclusão. Para além da proposta revolucionária de construir um mundo outro a que esta tese tenta investigar seus fundamentos para colocá-las em marcha, não sabemos mais o que imaginar. 26 69 Constantemente remetemos esse ponto aqui, uma vez que, no fim das contas, este texto está mobilizado pela tentativa de percorrer os caminhos pelo alargamento definitivo do encantamento da vida enquanto possibilidade de que todos os entes possam, enfim, viver em alegria. Se o colapso da vida e do mundo perpetrado pelo colonialismo, e reatualizado cotidianamente, desemboca no colapso da subjetividade ao patologizá-la, o que se tem a fazer é nada menos que a destruição completa destas condições para, daí, emergir possibilidades de novos mundos, uma nova vida conduzida à desalienação, à reintegração social, à cura e, sobretudo, à liberdade. Isto posto, vale reiterar a proposta de Fanon por uma outra situação, que já estava expressa e afirmada em sua importante carta de demissão ao governador-geral da Argélia colonial, em 1956, que, dada a impossibilidade de um compromisso com a restituição das humanidades depostas pelo colonialismo, resta apenas considerar que: a função de uma estrutura social é constituir instituições permeadas pela preocupação com o homem. Uma sociedade que encurrale seus membros em soluções de desespero é uma sociedade inviável, uma sociedade que deve ser substituída (Fanon, 2021a, p. 94). Para Achille Mbembe (2017), o pensamento de Fanon materializa-se na possibilidade da recusa irrestrita ao que considera ser inerente às políticas da inimizade, a saber, o “princípio de destruição”. Quer seja, tudo o que vem sendo levado a cabo por um “Estado-corporação” (Silva, 2020) que subjuga o seu povo, lhes retirando conquistas históricas em detrimento dos interesses corporativos e financeiros do capital, este que atualiza as formas de colonização numa espécie de ancestralidade pérfida do imperialismo mercantilista. Por isso, o pós-colonial jamais aconteceu. O mundo para muitos entes ainda é demasiado colonial. Em Fanon, encontraríamos, segundo Mbembe, em resposta a este cenário agônico, uma forma de resistir revolucionariamente, uma vez que seu pensamento é sustentado pelo princípio de vida, cujas considerações acerca da destruição e da violência, por um lado, e do processo de cura e do desejo de uma vida sem fim, por outro, constituem a base de sua teoria de descolonização radical (Mbembe, 2017, p. 154). 70 É por este caminho, portanto, que seguiremos a trilha fanoniana rumo a este novo total tentando mapear os modos como ele o delimita, os problemas internos e, especialmente, em como reacender as possibilidades de intervenção revolucionária que, diante do necessário fim do mundo, se incline a um outro possível: Para Fanon, a cultura é a festa da imaginação produzida pela luta. Ela é ritmada pela transmutação de figuras picarescas, pelo ressurgir de narrações épicas, por um imenso trabalho sobre os objetos e as formas. [...] Através da dança, do canto melódico, o colonizado reestrutura sua percepção. O mundo perde o seu caráter maldito, e estão reunidas as condições para o inevitável confronto. Só há luta, se levar, necessariamente, ao estilhaçar de velhas sedimentações culturais. Esta luta é um trabalho coletivo organizado. Pretende claramente reverter a história. O paciente fanoniano tenta regressar à origem do futuro (Mbembe, 2017, p. 188). Ao comentar o afrofuturismo como este apontamento para algo que seja além do túmulo da humanidade, Mbembe ainda diz que: À condição terrestre substituir-se-á assim a condição cósmica, a cena de reconciliação entre o humano, o animal, o vegetal, o orgânico, o mineral, e todas as outras forças do vivente, quer sejam solares, noturnas ou astrais (Mbembe, 2017, p. 216). Reconciliação, ou rememoração, como nos lembra Davi Kopenawa, pelo menos para um tipo de humanidade, já que muitas delas, o que se poderia pressupor desta partilha no mundo, nunca precisaram fazer, pois se veem neste complexo político cósmico, lidando com as dinâmicas relacionais e relacionadas à cosmopolítica: Emergirão então, numa relativa clareza, requisitos, se não de uma possível universalidade, pelo menos de uma ideia de Terra como aquilo que nos é comum, a nossa condição comum. (Mbembe, 2017, p. 249). O sentido, talvez, é o mesmo cantado por Caetano Veloso; àquele da mensagem do índio que virá impávido, apaixonado, tranquilo e infalível para dizer aquilo que esteve por muito tempo oculto, apesar de óbvio. O coro, portanto, deve ser compartilhado. 71 3.2 A radicalidade da proposta libertária: um fim de mundo para um novo mundo possível À essa partilha do comum é exigida a superação da fixidez identitária concretada como essencial que só aumenta as disputas narrativas pelo direito de quem pode, no limite, viver mais ou menos que, ao invés de, no cerne do problema, assegurar o mesmo direito a todas as formas de existir, e que continuam reproduzindo as cenas lamentáveis da CONAPIR, por exemplo. Minimamente, trata-se de uma atitude que corrobora com um exercício da vida solidária, ou seja: que respeite uma prerrogativa universal que se deve pôr fim a tudo o que impede a vida compartilhada ser o que pode ser. Sobre isso, Deivison Faustino (2022) aponta que: Se foi o branco que criou o negro [nègre] ao recusar-se a reconhecêlo como humano, o horizonte da luta anticolonial não é o fechamento identitário, mas a sua superação. [...] Isso não significa renunciar ao repertório cultural próprio, em um movimento de negação de si; ao contrário, na luta anticolonial, a valorização da cultura particular tem função fundamental. O problema é se esquecer de seu caráter dinâmico, aberto e contraditório, tomando-se como ente autônomo e essencialista (Faustino, 2022, p. 35). Quando há um apego a esse princípio essencialista, se tem a reafirmação quase monolítica de identidades, fermentando um jogo discursivo de poder que vai autorizar, afinal de contas, quem pode falar – e se pode, em que circunstâncias; além de quem se deve, obrigatoriamente calar. Evoca-se o argumento de autoridade do “lugar de fala” de modo a reduzir o próprio campo do debate em vias de uma pluralidade cosmo-etno-política que, em momento algum, visa desconsiderar os infortúnios históricos sofridos pelas pessoas oprimidas. Pelo contrário! Entretanto, este cenário, se não conduzido numa perspectiva solidária, pode recair “[n]uma situação neurótica, na qual sou obrigado a escolher uma solução insana, conflitante, alimentada por fantasmagorias, antagônica, desumana enfim” (Fanon, 2008, p. 166). Essa neurose reforça, assim, o sistema de exclusão que funciona, a contento, tal como foi criado: faz-se o Eu na medida direta em que se faz e distancia-se do Outro; e por contraste, exclui o último para reafirma-se. Talvez 72 essa recusa seja uma das razões que fizeram Fanon afastar-se da concepção de Négritude proposta por Aimé Césaire ou melhor, as razões pelas quais seu discípulo levou adiante a proposta original, espremendo dela os princípios que o ajudariam na sua proposta revolucionária. Nesse sentido, Rabaka considera: A concepção de descolonização de Fanon, o que Hansen (1977) denominou “descolonização revolucionária”, é inescrutável sem vinculá-la ao pensamento de Césaire em seu Discurso sobre o colonialismo. A ênfase de Césaire não apenas na descolonização, mas na autodeterminação e a consciência africana foram apropriadas por Fanon que, por sua vez, as sintetizou contrastanto aos conceitos anticoloniais (incluindo as críticas de Sartre ao capitalismo e ao colonialismo), e então, corajosamente, as levou ao extremo. [...] aprofundou dialeticamente e desenvolveu discursivamente sua(s) dimensão(ões) revolucionária(s). (Rabaka, 2015, p. 177, grifos do autor, tradução nossa). Neste caso, é exigida a superação a esta vinculação essencialista. Caso contrário, apresenta-se um jogo perigoso e estrategicamente ruim, além de “uma dificuldade teórica e política para se estabelecer uma relação dialética entre a identidade e a diferença em um projeto anti-imperialista e emancipatório” (Faustino, 2021b, p. 22), uma vez que perpetua a dinâmica por excelência moderna e ocidental de humanidade, e é constantemente cooptado pela insistência e reforço das diferenças tornadas irreversíveis pela força do capital. Lembremo-nos do velho adágio: o que insiste em excluir pela divisão, intenta à dominação. Contra essa cooptação que vem tomando os espaços de decisão política e o debate público em torno de verbas, direitos, pertencimentos e ocupações, diante disso, talvez o verdadeiro sentido da intervenção deveria ser proliferar as múltiplas agências, as formas de habitar e fazer mundos outros que cindidos por compartimentações coloniais, como diz Fanon, e, acima de tudo, rumar a uma noção mais solidária de vida em comum, a exemplo de uma “pedagogia revolucionária” (Fanon, 2021b, p. 44) em sua exigência mais aguda. Em 1957, num artigo para o El Moudjahid intitulado “Uma revolução democrática”, tal pedagogia apresenta-se como exemplo de uma “síntese dinâmica criadora entre as aspirações do Eu cultural nacional e o espírito moderno em sua universalidade” (Fanon, 2021b, p. 64). Ainda sobre esta pedagogia, desta feita expressa no livro Ano V da revolução argelina, de 1959, 73 Fanon considera que “à pedagogia revolucionária da luta de Libertação, deve seguir normalmente uma pedagogia revolucionária de construção do Nacional” (Fanon, 1976, p. 76, tradução nossa). Esta pedagogia coloca em marcha uma realização dialética, portanto revolucionária, de mundo: na percepção, na língua, na consciência, no corpo, na subjetividade e na ontologia de um povo, ainda que sob os limites de uma nação. Contudo, essa ideia é transformada, já em 1961, depois de verificar os limites críticos deste nacionalismo pela ação de uma burguesia racista, uma vez que se torna imperativo barrar suas concepções, conforme podemos ler em Os condenados da Terra: chegando ao poder em nome de um nacionalismo estreito, em nome da raça, a burguesia, a despeito de declarações belas na forma mas totalmente vazias de conteúdo, manejando com completa irresponsabilidade frases que saem em linha reta dos tratados de moral ou de filosofia política da Europa, provará a sua incapacidade de fazer triunfar um catecismo humanista mínimo. [...] A burguesia ocidental, embora fundamentalmente racista, consegue, na maioria das vezes, mascarar esse racismo multiplicando os matizes, o que lhe permite conservar intacta a sua proclamação da eminente dignidade humana (Fanon, 2015, p. 190-191). Com isso, não queremos dizer que os esforços até agora empreendidos pela afirmação do que outrora foi produzido para ser constantemente negado são inúteis. Pelo contrário. Os avanços sociais, espirituais e subjetivos das ações afirmativas e das pessoas que lutaram e ainda lutam, fazem parte da sempre urgente e importante iniciativa pela restituição da vida. Não nos esqueçamos que Fanon está contra uma exacerbação rígida do nacionalismo e da mumificação da cultura, como podemos ler no seu ensaio “Racismo e cultura”, de 1956: A cultura encapsulada, vegetativa é revalorizada depois da dominação estrangeira. Ela não é repensada, retomada, dinamizada a partir de dentro. É reivindicada. E essa revalorização, de início não estruturada, verbal, recobre atitudes paradoxais. [...] Essa redescoberta, essa valorização absoluta de aspecto quase irreal, objetivamente indefensável, reveste-se de uma importância subjetiva incomparável (Fanon, 2021a, p. 82-83). É por isso que “liberar a cultura, revigorá-la mediante sua reapropriação – é fundamental para a libertação do colonizado e do próprio colonizador”, como aponta a biógrafa de Fanon, Alice Cherki (2022, p. 137), ao comentar este ponto. A etapa nacional do reconhecimento, para o autor, é a uma forma de aproximar 74 um povo acostumado à cristalização cultural às possibilidades da novidade. Assim, esta etapa não pode ser pulada, uma vez que “visa uma redistribuição fundamental das relações entre os homens” (Fanon, 2015, p. 281). Mas, se ainda temos que batalhar todos os dias, incessantemente, mostrando a toda prova que vidas outras importam e despendendo com isso tamanha energia e desgaste, movendo esforços para mostrar que, se levado a cabo, este humanismo deveria ser hipostasiado a todas as pessoas, não seria a hora de subverter esta luta pela destruição total daquilo que a produz, de uma vez por todas? Se temos que continuar lutando a todo o tempo, sempre recorrendo aos velhos argumentos, não teria Fanon algo a mais a nos ensinar desta pedagogia profundamente revolucionária? Num breve comentário acerca de tal pedagogia27, parece ser o caso da recepção de nosso filósofo e sua explícita influência pelo no campo pedagógico à letra do patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Em sua proposta de uma Educação como prática da liberdade, texto de 1967, Freire descreve como a sociedade brasileira, ainda apegada em sua herança colonial, é incapaz de uma experiência democrática: “o que nos importa afirmar é que, com essa política de colonização, com seus moldes exageradamente tutelares, não poderíamos ter tido experiências democráticas” (Freire, 1980, p. 75). Logo, se faz necessária uma pedagogia que, com seu projeto libertário e afinado com os contextos dos oprimidos, os liberam do desejo de tornarem-se opressores na medida em que, pelo desenvolvimento de uma consciência crítica e a recusa de uma educação bancária, transformam o mundo, requerendo dele uma humanidade completa, sua “vocação ontológica e histórica de ser mais” (Freire, 2005, p. 59). Outro ponto a se salientar, na verve anticolonial freireana, é seu encontro com Amílcar Cabral que, assim como Fanon, foi um revolucionário pela causa da independência de Guiné Bissau e Cabo Verde. Sobre isso, basta ver o importante texto Cartas à Guiné Bissau, em que Freire defende que, diante da educação colonial herdada, ela “deve ser radicalmente transformada e não simplesmente reformada” (Freire, 1977, p. 94). Ainda que, confessadamente, careça de toda a atenção exigida à envergadura de Paulo Freire não só para o contexto educacional brasileiro, mas mundial, como sugeriu a professora Giselle Schnorr, na ocasião da sua arguição na defesa desta tese, a quem, novamente, aproveito para agradecer e celebrar a sua importância em construir mundos novos e, se possivelmente, freireanos... 27 75 Mas, voltemos... Não seria o caso de dissolver aquilo que torna a humanidade ontologicamente realizável em seu caráter moderno? Interromper, de vez, os mecanismos ontoepistêmicos de justificação coloniais? Não se trataria, como quer Mbembe (2017), vincularmos a uma “ética do passante” em que as fronteiras não sejam mais barreiras, senão lugares em que justamente poderemos restituir cosmopolíticas da amizade? Ou, como pensamos, uma alegria da vida? O passo, então, no amplo cenário das disputas, nas dificuldades das múltiplas pautas, ainda está na corda bamba, mas se faz por uma travessia mais que necessária, pois requer uma reestruturação radical do mundo, o que Fanon nos ajuda a fazer: passar por cima deste drama absurdo que os outros montaram ao redor de mim, afastar estes dois termos que são igualmente inaceitáveis e, através de uma particularidade humana, tender ao universal (Fanon, 2008, p. 166). Resta saber, então, em quais termos esse universal é realizável e se é possível prescindir dele em nome de uma diminuição valorativa da humanidade em seu caráter metafísico. 3.3 O complexo colonialista, o colonialismo interno e suas arapucas Na compilação póstuma de “Por uma revolução africana”, é possível presumir, no artigo do El Moudjahid, de 1957, a saber, “Argélia diante dos torturadores franceses” a noção de complexo colonialista [l’ensemble colonialiste] que, o pesquisador Muryatan Barbosa (2020) considera ser uma configuração. Vejamos. Esta noção de complexo colonialista seria vista, aos olhos de Fanon, como um sistema de dispositivos a serviço da dominação completa dos corpos e territórios colonizados. Entretanto, pela natureza concisa, especialmente dos artigos presentes no El Moudjahid, Fanon não teria desenvolvido as implicações deste sistema neste texto, mas que, aos leitores e leitoras atentas de seus arquivos, seria possível vislumbrar sua capilaridade corrosiva, que, “em suma, [é] algo cuja origem foi o colonialismo, mas que existe para além deste. É parte 76 de uma estrutura contínua de relações sócio-psíquicas” (Barbosa, 2020, p. 363). Assim, de modo primaz, Barbosa aponta um lapso importante da primeira tradução portuguesa, em 1980, em torno desta noção de sistema. Segundo o autor, ao traduzir l’ensemble por “todo”, Isabel Pascoal não teria captado a riqueza da frase seguinte em que Fanon diz que o objetivo da revolução argelina não seria apenas promover a independência. Para ele, não se trata, tão somente, de destruir o “todo colonialista”. Tratase de destruir à estrutural colonialista – a configuração colonialista – que se consolida com o colonialismo, mas que continua a existir para além dele (Barbosa, 2020, p. 429). Justamente, na recente publicação brasileira (Zahar, 2021a) em que se retraduziu a obra, a passagem em questão toma a forma desta noção de estrutura: “na verdade, a atitude das tropas francesas na Argélia se situa numa estrutura de dominação policial, racismo sistemático e desumanização realizada de maneira racional. A tortura é inerente ao todo da estrutura colonialista” (Fanon, [1957] 2021a, p. 107)28. Isso indicaria, portanto, duas questões deveras importante tanto para o pensamento de Fanon quanto para o fanonismo em geral. A primeira, mais interna ao seu pensamento, é justamente posicionar o colonialismo como uma espécie de Weltanschauung que, ao longo de seu desenvolvimento pela modernidade imperialista, foi aprimorando técnicas de dominação senão por meio do rebaixamento da condição de humanidade das pessoas por ele subjugadas, que “faze[em] surgir do homem uma fera” (Fanon, [1957] 2021a, p. 33); numa estratégia de “cultivar racionalmente a selvageria, matar o homem para fazer surgir dele um animal feroz” (Fanon, [1957] 2021a, p. 33). Em segundo lugar, desta vez importante para os desdobramentos possíveis de seu pensamento na história das lutas revolucionárias, Fanon teria antecipado, como aponta Faustino ao prefaciar a edição brasileira em questão, a própria noção desenvolvida por Aníbal Quijano, quando este aborda o sistemamundo colonial em seu mais famoso texto que advoga em torno da noção de colonialidade. Segundo Faustino (2022), Cf. original: “En réalité, l’attitude des troupes françaises em Algérie se situe dans une structure de domination policière, de racisme systématique, de déshumanisation poursuivie de façon rationnelle. La torture est inhérente à l’ensemble colonialiste” (Fanon, 2011, p. 754, grifo nosso). 28 77 a grande hipótese levantada por Barbosa é que a noção fanoniana de configuração, ou complexo, expõe que o colonialismo – enquanto dominação econômica e político-administrativa de um país sobre outro – é apenas uma das formas possíveis da configuração colonialista, antecipando assim o conceito de colonialidade, proposto décadas depois por Aníbal Quijano (Faustino, 2021b, p. 25). Ora, ao retomarmos a ideia de localizar em Fanon uma influência incontornável para os estudos críticos ao colonialismo, seus postulados teriam inspirado uma “primeira fase” destes debates na América Latina, especialmente vinculados às teorias da libertação de base marxiana influenciando, por exemplo, as análises em torno à noção de colonialismo interno de Pablo Casanova – o que veremos mais a frente -, bem como autores como Enrique Dussel, Leonardo Boff e, com mais visibilidade, Paulo Freire, como apontamos na seção 3.2. Assim, Fanon teria antecedido, em pelo menos 50 anos, a noção desenvolvida por Quijano e que depois lograria êxito e figuraria nos desdobramentos das teorias decoloniais que têm disputado o campo das ciências humanas, não sem lançar mão de confusões conceituais e atropelos críticos. Importante salientar este ponto, uma vez que no apressar dessas disputas, uma análise mais detida dos conceitos e da totalidade dos “arquivosFanon” acaba dando lugar às narrativas históricas e epistemológicas mais ou menos enviesadas, ocultando e invisibilizando quem, de fato, pôde oferecer as condições materiais para a sua formulação e, no limite, semeando a transformação radical do mundo e do pensamento especulativo. Indícios desse apagamento podem ser especulados a partir do trabalho de Guillaume Sibertin-Blanc de 2015 que, mencionado por Faustino, teria apontado que Fanon “seria o verdadeiro inventor da esquizoanálise, com escritos que antecedem O anti-Édipo em pelo menos uma década” (Faustino, 2022, p. 136). Ou, ainda, na nossa desconfiança em torno da verdadeira inspiração foucaultiana pela história da loucura que desembocaria, anos mais tarde, numa intervenção nas políticas públicas internacionais por meio dos movimentos antimanicomiais – inclusive no Brasil, com a promulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica nº 10.216/2001, muito devedora do pensamento francoitaliano, e que lhes confere extensos créditos, ao passo que as reflexões psiquiátricas advindas da realidade concreta da intervenção médica propostas 78 por Fanon, que realizava estas experiencias antimanicomiais “revolucionárias”, são pouquíssimo conhecidas e referenciadas pela área, num flagrante apagamento institucional de seu pensamento que pode ter muitas justificativas, inclusive racistas. Como exemplo, bastaria o conhecimento do ensaio “Atitude do muçulmano magrebino diante da loucura”, de 1965, em que Fanon, junto a François Sanchez, diz: Esse modo natural de assistência está impregnado de um espírito profundamente holístico, que preserva intacta a imagem do homem normal, apesar da presença da doença. [...] Respeito é dado ao louco porque ele continua a ser, apesar de tudo, uma pessoa” (Fanon; Sanchez, 2020, p. 249). Não nos esqueçamos que, como nos ensina Faustino (2018), Fanon é “um revolucionário particularmente negro”. Contudo, após este breve comentário acerca do apagamento de Fanon, certos de que o atual interesse editorial por seu pensamento reacende sua obra e a vivifica, voltemos a Muryatan Barbosa quando este responde o motivo suposto de Fanon não desenvolver em profundidade especulativa, em “Os Condenados da Terra”, o complexo colonial. Para ele, Fanon teria mais razão de expor ao público os desmandos franceses na Argélia – por uma questão eminentemente política, dado a sua forma de testemunho do mundo colonial do que um aprofundamento teórico mais sistemático. Afinal de contas, o livro oferecia uma espécie de análise-relato contemporâneo composta por aquele que esteve diretamente vinculado no front de libertação. E, não fossem as contingências que ceifaram a vida de Fanon, ao que tudo indica, seu pensamento ainda renderia preciosas reflexões desdobradas das implicações práticas do pós-revolução. Assim, Barbosa considera que Fanon, na obra em questão, pretendia explorar, do ponto de vista psicanalítico, as consequências humanas da reprodução de sistemas de desumanização como o colonialismo [...] Entretanto, do ponto de vista lógico, não havia nenhuma impossibilidade teórica para que Fanon não se retoma ali suas análises comparativas entre sociedades coloniais e racistas (não colonizadas ou pós-coloniais)” (Barbosa, 2020, p. 381-382). 79 O fato é que, como exemplificação, Fanon evoca o contexto latinoamericano e suas ditaduras notadamente financiadas pelo imperialismo estadunidense que só vieram a demonstrar os limites do projeto revolucionário quando este não desce até a raiz do mundo colonial. Quer dizer, mesmo após a luta de independência, o que houve foi o rendimento reformista aos interesses da reconciliação, mediados pela economia política do capital. Com isso, não houve, infelizmente, a superação deste complexo da estrutura colonialista, a despeito de todos os esforços que reconhecidamente o tentaram fazer. Diante disso, Barbosa nos relembra que Fanon toma como exemplo este cenário latinoamericano nos Condenados da Terra como “um ótimo exemplo de falsas descolonizações, que lhe interessava críticas à época” (Barbosa, 2020, p. 376). Nesse sentido, Fanon, a seu turno, considera que: Se quisermos uma prova dessa eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de festas para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que aconteceu com a América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as meninas brasileiras, as meninas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana são os estigmas dessa depravação da burguesia nacional. Porque ela não tem ideias, porque se fecha sobre si mesma, cortada do povo, minada pela sua incapacidade congênita de pensar o conjunto dos problemas em função da totalidade da nação, a burguesia nacional assumirá o papel de gerente das empresas do Ocidente e praticamente organizará o seu país como lupanar da Europa (Fanon, 2015, p. 180-181). Este argumento da não superação da estrutura reforça a tese de que o colonialismo se trata, portanto, de uma extensão muito maior do que se pode supor; não apenas de ordem econômica e jurídica, mas subjetiva, epistemológica e, ao fim, ontológica. Pode parecer evidente, mas não é. Seus mecanismos internos já estavam à vista das preocupações de Fanon em torno das dinâmicas pós-revolução, especialmente condensadas nos esforços de um nacionalismo essencialista. Infelizmente, como já apontado por ele, os contextos latino-americanos demonstravam que este perigo era iminente, uma vez que dificilmente conseguiram superar as barreiras socioeconômicas e culturais impostas ao longo da vigência da estrutural colonial. Esta preocupação deu origem, ainda que no seio de um polêmico debate marxiano, dos perigos de um estado nacionalista e patriótico que, numa palavra, converge o múltiplo ao uno. 80 Tal problema chega à pena de Pablo González Casanova, pensador mexicano que formula, por meio do conceito de colonialismo interno, um aprofundamento dos desdobramentos da l’ensemble. Segundo o autor, na longa citação adiante, o colonialismo interno corresponde a uma estrutura de relações sociais de dominação e exploração entre grupos culturais heterogêneos e diferentes. Se há alguma diferença específica em relação a outras relações de dominação e exploração (cidade-campo, classes sociais) é a heterogeneidade cultural que historicamente produz a conquista de alguns povos por outros, e que nos permite falar não apenas de diferenças culturais (que existem entre a população urbana e rural e nas classes sociais), mas de diferenças de civilização. A estrutura colonial assemelha-se às relações de dominação e exploração típicas da estrutura urbano-rural da sociedade tradicional e dos países subdesenvolvidos, na medida em que uma população composta por diferentes classes (a urbana ou colonialista) domina e explora uma população também composta por diferentes classes (as rurais ou colonizadas); assemelha-se também porque as características culturais da cidade e do campo contrastam fortemente; distingue-se porque a heterogeneidade cultural é historicamente outra, produto do encontro entre duas raças ou culturas, ou civilizações, cuja gênese e evolução ocorreram até certo momento – a conquista ou a “concessão”–, sem contato entre si, e uniram-se pela violência e pela exploração, dando origem à discriminação racial e cultural que acentua o caráter descritivo dos grupos da sociedade colonial: os conquistadores e os conquistados (Casanova, 2006, p. 197-198, tradução nossa). Como sabemos, não houve a superação das estruturas de dominação modernas que justamente fabricaram a si mesmas senão por este aparato de exclusão e sujeição. Basta ver o que acontece, nos dias de hoje, aos povos originários no Brasil e da negativa institucional e sistemática em reconhecer, como dívida impagável, os desmandos etnocidários que tanto desabaram sobre eles quanto sobre os povos africanos tornados escravizados. Numa palavra: o limite histórico do fim da submissão colonial decretada pelas lutas de libertação não levou, necessariamente, ao fim dos mecanismos internos que sustentavam a manutenção desses sistemas de dominação. Ainda vivemos sob o julgo do colonialismo interno e seus efeitos nefastos, uma vez que estão cravados nas estruturas institucionais e, ainda pior, nas subjetividades daquelas pessoas que as mantém de pé e brigam por elas (voltemos à cena inaugural desta tese). Por isso, não somos pós-coloniais, porque o colonialismo perdura... Justamente por não ter havido, de fato, um processo revolucionário que transfiguraria a cultura colonial em outra coisa, a saber, uma cultura voltada à 81 solidariedade e à alegria, às formas de não opressão e, sobretudo, à emancipação subjetiva e psicológica da toxicidade do colonialismo, é impossível prescindir da categoria conceitual em questão, dado que: em meio as grandes mudanças ocorridas desde o triunfo global do capitalismo, o colonialismo interno, ou intracolonialismo, e sua relação com o colonialismo internacional, formal e informal, e com o transnacional, é uma categoria complexa que se reestrutura em suas relações com as demais, e que reclama ser considerada em qualquer análise crítica do mundo que se inicie a partir do local ou do global (Casanova, 2007, p. 450-451). Isto posto, ainda que formalmente os mecanismos de dominação colonial tenham terminado, suas artimanhas permanecem vivas a toda prova. É possível notar, como dissemos, sua atualização cotidiana na relação de extermínio de povos indígenas, na exploração de seus territórios e saberes e na estrutura estatal que, só existe como a conhecemos hoje, em função da exploração da mão de obra escravizada durante a história do Brasil enquanto nação. Esta noção de colonialismo interno, a qual Sílvia Rivera Cusicanqui vai acertadamente identificar como situação da qual nunca saímos, se perpetua justamente porque ela está impregnada em nossa subjetividade moderna (Cusicanqui, 2014). Contudo, a partir da sua correta identificação e crítica, se pode reencontrar todo um aparato da argumentação do pensamento póscolonial, dos efeitos deste cenário e das possíveis estratégias para sua superação. Entretanto, novamente há de se fazer um alerta sobre os discursos em disputa nos cenários acadêmicos. Isso porque no afã de ter o que dizer com uma roupagem aparentemente nova e pretender-se inédito, muito dos créditos a suas fontes originais se obliteram. Sobre esse procedimento talvez apressado e muito devedor de um refinamento conceitual já produzido, podemos revisitar a anedótica passagem em que Silvia Cusicanqui, ao submeter um artigo crítico a uma revista estadunidense, recebeu como resposta que deveria modificar seu aparato teórico para contemplar a noção de “colonialidade do poder” desenvolvida a planos pulmões pelo grupo M/C29. A autora, em resposta, recusou enfaticamente O Grupo Modernidade/Colonialidade congrega em si os maiores expoentes da chamada teoria decolonial geopoliticamente referenciada nos países hispanohablantes da América Latina. Para um estudo detalhado das origens de suas propostas, suas heranças e recusas teóricas, bem 29 82 o que lhe foi sugerido fazer, uma vez que a própria noção de colonialismo interno já figuraria completa em sua intenção teórica, e que ela não tinha culpa pela falta de leitura e conhecimento adequado por parte dos autores da “colonialidade” sobre o trabalho de Pablo González Casanova. Segundo Adams, esse procedimento demonstra “do que essa restrição/subtração de determinados conceitos pode criar nas descontinuidades da teoria social latino-americana. (Adams, 2021, p. 79). E não só isso: como, por trás destes procedimentos, estão as intensões políticas de se buscar, efetivamente ou não, uma transformação radical do mundo como o conhecemos. Assim, tomado a seu turno, Silvia Cusicanqui considera que, ao delimitar as portas de entrada para a análise da vinculação entre os fenômenos de violência estrutural e a formação/transformação de identidades culturais, quis, finalmente, contribuir para a construção de um quadro conceitual capaz de, ao mesmo tempo, compreender a tradição e a modernidade, as âncoras profundas do passado e as potencialidades do presente. Tal quadro conceitual não é outro senão o da teoria do colonialismo interno, entendido como um conjunto de contradições diacrônicas de profundidade variável, que emergem à superfície da contemporaneidade e, portanto, atravessam as esferas contemporâneas dos modos de produção, os sistemas políticos estatais e as ideologias ancoradas na homogeneidade cultural (Cusicanqui, 2010, p. 36, tradução nossa). Isso porque, atrelado ao cenário ainda a ser superado em que opera o colonialismo interno, é possível identificar as falhas da justiça em proteger integralmente as pessoas e os grupos que mais padecem de seus mecanismos aparentemente imorríveis. Ao recursar-se pelo lugar fabricado para subalternizar as pessoas colonizadas, Fanon retoma a ideia de que a transformação se dá em função da intervenção social direta. Ao invés, então, de concordar em permanecer no lugar de sujeição, o filósofo aponta, radicalmente: Pois bem, não, não direi nada disso! Eu lhe direi: é o meio, é a sociedade que é responsável pela sua mistificação. Isso dito, o resto virá por si só. E sabemos do que se trata. Do fim do mundo... (Fanon, 2008, p. 180, grifo nosso). como seus limites críticos aos moldes do que propõe Cusicanqui, ver o importante trabalho cf. Eduardo Restrepo e Axel Rojas (2010) e Ramón Grosfoguel (2013). 83 A ideia de fim de mundo expressa por Fanon na passagem acima nos é cara e serve de pedra de toque para nossa tese, uma vez que contém o núcleo mesmo da promessa de um mundo pós-colonial, de fato: a dissolução total dos mecanismos internos e externos de dominação, expropriação e pilhagem das subjetividades, corpos e espíritos de quem quer que seja, principalmente quando maquiado de um progresso moral da humanidade, mas que, por trás desta máscara, esconde a tentativa suicida30 de perpetuação das opressões e da marcha da morte. Sabemos que morrer é o destino de quem vive, inclusive sendo passagem para outros mundos, mas não é por isso que a morte indigna e violenta deve ser buscada e continuamente estimulada. O que nos interessa, como dissemos na abertura do nosso trabalho, é escolher formas mais dignas inclusive de morrermos. Trata-se, sobretudo, mais de interromper a máquina de produzir morte que, em seu expediente de reduzir as diferenças numa unidade absoluta, sustenta este mundo como o conhecemos. Então, a tarefa é contarmos mais uma história, adiando, assim, o fim completo de uma ideia de mundo que seja diverso: Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos (Krenak, 2019, p. 33). Sobre a tal promessa da humanidade que é devida em alegria, esta que se alargaria não só às diferenças internas ao gênero taxonômico humano, mas também aos demais entes que fabricam mundo conosco, um mundo multiespécies, Fanon é perspicaz ao apontar que à imposição do mundo branco, este que semeou as diferenças racistas a partir das diferenças culturais, quando identificada, gera uma resposta contrária. Na atitude de distinguir qualitativamente os modos de vida, de estabelecer critérios negativos às Suicida, pois estamos, todas aquelas que comungam da vida, já imersas no “legado” escatológico das catástrofes climáticas e seu projeto “etno-eco-cida” (Valentim, 2018, p. 21). 30 84 pessoas colonizadas, de infringir complexos múltiplos de inferioridade, a tudo isso, nasce também a luta pela sua dissolução. E a luta, em certo sentido, vincula-se à toxicidade da situação colonial, pois para reclamar a promessa, é necessário, então, tornar-se branco, já que este é um valor supremo seu: a igualdade: Começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco, “que sou uma besta fera, que meu povo e eu somos um esterco ambulante, repugnantemente fornedor [sic] de cana macia e de algodão sedoso, que não tenha nada a fazer no mundo” (Fanon, 2008, p. 94). Entretanto, não se trata de ser levado pelo “dilúvio civilizador” que “recorre ao universal”, palavras que Fanon evoca no seu poderoso capítulo 5 de Pele Negra, Máscaras Brancas, intitulado “A experiência vivida do negro”, mas de reconhecer a autenticidade fora da rigidez compulsiva das identidades essencializadas, estas que foram construídas a partir de imagens contrárias. O projeto de Fanon – ao desvelar as estruturas do complexo colonialista impregnado não só nas dinâmicas socioeconômicas nos países da periferia do capitalismo global, mas também em subjetividades – não é tornar-se branco: é tentar encontrar um outro modo de existir que prescinda do duplo narcisismo, mas que não prescinda da condição universalmente esperada: a condição da humanidade. Em outras palavras, o negro não deve ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao contrário meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torna-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais (Fanon, 2008, p. 95-96, grifo do autor). São coisas distintas, portanto: uma é ser aculturado para ser reconhecido, o que, convenhamos, é sempre impossível aos olhos do mundo branco, pois para qualquer pessoa racializada, existe a “epidermização da inferioridade” 85 (Fanon, 2008, p. 28) expressa não na “’ideia’ que os outros fazem de mim, mas de minha aparição” (Fanon, 2008, p. 108); fazendo com que elas jamais sejam o que a supremacia branca espera delas. Trata-se, então, de interditar a dialética do reconhecimento racial, destruí-la, para então, rumar ao aberto. O que é ele ainda está para ser construído e, ao que tudo indica, este processo será sempre um devir do tempo comprometido com mundos plurais enquanto lócus de produção de subjetividades “curadas” do complexo colonialista. Se há a possibilidade de se restituir a promessa, talvez não seremos nós a vivenciá-lo, uma vez que o colonialismo interno está tão arraigado e se reatualiza cotidianamente que será preciso muitos anos ainda de luta para que alcancemos, enquanto uma comunalidade da vida, a sua plenitude. Mas viver almejando é, além de um sonho em suas agências políticas, um compromisso imperativo. É o que parece ser o caso da Filosofia de Frantz Fanon. Ela requer, além da superação do complexo colonialista, um de seus fundamentos mais problemáticos: a interdição do reconhecimento de outrem. 3.4 Interditar a interdição Um dos pilares que sustentam a novidade da proposta escrita em Pele Negra, Máscaras Brancas é, sem dúvida, o tema do reconhecimento. Ao longo dos seus capítulos, é possível perceber o drama absoluto das pessoas negras que, tendo tomado consciência da impossibilidade de existirem plenamente dentro da promessa de uma humanidade universal moderna, se vêm diante de uma atitude inadiável: ou inventam “uma nova possibilidade de existir” ou, senão pela passividade resignada, devem “branquear ou desaparecer” (Fanon, 2008, p. 95). Uma das teses que sagraram a originalidade de Fanon ao status de um filósofo revolucionário na obra em questão que, de certa maneira, é leitura obrigatória para as pessoas racializadas que se encontram nos dilemas raciais de uma sociedade excludente, expressa-se quando o autor visa, a partir da dialética senhor-escravo proposto por Hegel em sua Fenomenologia do Espírito, verificar em que medida tal conceito pode ser habilitado para pensar as relações coloniais. 86 Antes de seguirmos, porém, é importante ressaltar as diferenças certamente políticas em traduzir Hegel. Deivison Faustino oferece um interessante panorama sobre a tradução do termo Knecht e sua ambivalência, a depender de uma espécie de tradição interpretativa que se faz da Fenomenologia do Espírito. De um lado, segundo o autor, poderia se traduzir o termo em questão para “servo”, pois “Hegel tinha em mente a servidão feudal, e não a escravidão colonial, ao formular sua alegoria” (Faustino, 2022, p. 51). De outro lado, outra forma possível é “escravo”, tradução para o português mais vinculada à tradução francesa de Hegel, esta feita por Jean Hyppolite, levandose em consideração uma vinculação do tradutor às críticas marxistas da época inclusive apropriadas por Fanon. Já numa terceira via não mencionada por Faustino sobre a questão da tradução, estaria Susan Buck-Mors (2011) no seu já clássico Hegel e Haiti. Neste texto, Buck-Mors defende que a ‘dialética do senhor e do escravo’ hegeliana tem raízes mais na história contemporânea — particularmente, nas notícias que chegavam à Europa da Revolução Haitiana de 1791 — do que na tradição herdada pelo filósofo alemão (Buck-Mors, 2011, p. 131). Ao afirmar isso, a autora considera que Hegel era leitor de jornais da época que, frequentemente, noticiavam a revolução haitiana e sua “novidade” no que toca às implicações políticas do período. Assim, conforme Susan, o autor da famosa equação dialética do reconhecimento não estaria de forma alguma alheio ao contexto revolucionário: antes de escrever A fenomenologia do espírito, Hegel havia abordado o tema do reconhecimento mútuo em termos de Sittlichkeit [eticidade]: criminosos contra a sociedade ou as relações recíprocas na comunidade religiosa ou afeição pessoal. Agora, porém, esse jovem professor, ainda no início de seus 30 anos, teve a audácia de rejeitar essas versões anteriores (mais aceitáveis para o discurso filosófico estabelecido) e inaugurar, como a metáfora central de seu trabalho, não a escravidão oposta a algum estado mítico de natureza (como todos aqueles entre Hobbes e Rousseau haviam feito antes dele), mas escravos contra senhores, trazendo para dentro de seu texto a realidade presente, histórica, que o circundava como uma tinta invisível (Buck-Mors, 2011, p. 143-144). Diante deste ponto em específico, nosso estudo vincula-se à última concepção apresentada por Susan, na medida em que acolhe a sugestão de Marco Antonio Valentim sobre este ponto não poder ser ignorado, uma vez que a solução do 87 reconhecimento na luta de libertação se dá em função da ação revolucionária, como exige Fanon. Tão logo, como consequência de sua análise, Fanon postulará que a ferida colonial fornece seu limite mais absoluto para a teoria do reconhecimento hegeliano que, até então, é fundamental para a construção da identidade 31: a interdição do reconhecimento pelo advento do racismo, este que só atua em vias de uma distinção qualitativa no seio da sociedade em função de uma impossibilidade de equiparação metafísica. Isso não é pouco e, de saída, esta espécie de cálculo do estatuto ontológico das pessoas racializadas tornou-se presença obrigatória quando se quer, de fato, entender as origens pelas quais o colonialismo foi definitivo em barrar o mundo para pessoas não brancas. Não à toa, este procedimento hegeliano estará no núcleo da psicanálise lacaniana que considera a construção da identidade, da subjetividade, do desejo e do inconsciente a partir do encontro do sujeito no discurso do outro. Fanon, que foi leitor de Jacques Lacan. E, a propósito da passagem sobre a linguagem e a fixidez identitária, considera que: “enclausurar o negro, é perpetuar uma situação de conflito onde o branco infesta o negro com corpos estranhos extremamente tóxicos (Fanon, 2008, p. 48). A clausura de que fala Fanon aqui pode ser entendida, especialmente, do ponto de vista da vivência das subjetividades colonizadas, mais fortemente das pessoas negras que se vêm constantemente feridas ao não realizarem o ideal branco. É aqui, nesta tentativa de ser reconhecido que, pelo menos no Brasil, as pessoas racializadas encontram seu maior drama, pois como nos mostra Neusa Santos Souza, numa sociedade de classes em que os lugares de poder e tomada de decisão são ocupados por brancos, o negro que pretende ascender lança mão de uma identidade calcada em emblemas brancos, na tentativa de ultrapassar os obstáculos advindos do fato de ter nascido negro. Essa identidade é contraditória; ao mesmo tempo que serve de aval para o ingresso nos lugares de prestígio e poder, o coloca em conflito com sua historicidade, dado que se vê obrigado a negar o passado e o presente: o passado no que concerne à tradição e cultura negras e o presente no que tange à experiência da discriminação racial (Souza, 2021, p. 112-113). 31 É por isso que Lélia Gonzalez tomará a figura da mãe-preta, aquela que cuidou como babá da maior parte da sociedade brasileira desde sua fundação escravagista, como o sujeitosuposto-saber que, subvertendo a língua culta, instaura o pretuguês. Ao fazê-lo, em certa medida Lélia também está torcendo esta dialética para mostrar que, talvez, o jeito ladino de participar do mundo irrompe com esta interdição, pois “o lixo falará, e numa boa”. As implicações desta operação no mínimo psicológica em Lélia poderemos ver no próximo capítulo. 88 Segundo Fanon, “aos olhos do branco, o negro não tem mais resistência ontológica” (Fanon, 2008, p. 104). O que isso parece querer dizer? Em primeiro lugar que o mundo branco é completo, pois compreende uma humanidade integralmente já realizada na própria dialética senhor-escravo, em que seus partícipes se reconhecem simultaneamente enquanto Eu e Outro, concretizando a força de sua ontologia. Deste modo, segundo, Faustino (2021c), o movimento dessas duas consciências, cada qual desejando fazer da outra o objeto de sua satisfação, é expresso por uma luta (de vida ou morte) para provar a si mesma e a uma outra o valor de sua existência, e é somente a partir dessa luta que a consciência pode elevar-se à certeza de si (Faustino, 2021c, p. 461, grifos do autor). Em segundo lugar, e aí pode-se perceber a originalidade de Fanon, está em verificar que este mundo só existe em função da fabricação do outro racializado, interditado a ele à realização daquele cálculo ontológico expresso pela dialética do reconhecimento, pois são menos que humanos. Assim o são em decorrência de sua constituição ontológica enfraquecida que barra a realização completa da humanidade no seio de sua destinação teleológica de história. Não pode haver, na própria dinâmica de constituição de mundo branco, espaço para o reconhecimento do não branco enquanto sujeito em si mesmo. E isso é óbvio: o branco cria o negro para reafirmar a sua humanidade que, aos seus olhos racistas, resta incompleta (e, dependendo do viés, impossível), aos não brancos. Logo, instaura-se o já mencionado duplo narcisismo em que as identidades estão fechadas em si mesmas, sendo que apenas uma é considerada digna de reconhecimento pleno, devendo, assim, ensinar as outras como fazer. Segundo Faustino (2021c), o problema adquire expressão ainda mais dramática: o negro (noir) não existe em-si, enquanto ser substantivo; é apenas uma abstração (nègre) produzida por uma Weltanschauung reificada da sociabilidade colonial e, devido a esse estranhamento, a sua presença/existência é atestada, apenas, como predicado à agência do “verdadeiro” sujeito (branco/colonizador). Diante dele, portanto, sua resistência ontológica desfaz-se em um vazio dolorosamente nauseante. (Faustino, 2021c, p. 466, grifos do autor). Em terceiro lugar, pode-se dizer que a superação da estrutura colonial e seus complexos que estruturam as diferenciações não restará completa caso a 89 interdição da própria dialética do reconhecimento não seja ela mesma interditada. Isso quer dizer que, se em Hegel, a partir de uma leitura marxiana da dialética, a dicotomia entre senhor e escravo é dissolvida pelo trabalho desalienado, entendido enquanto produção de mundo racionalizável em que ambos as partes se reconhecem pelo seu trabalho, em Fanon, a interdição só pode ser barrada por meio da luta e da pedagogia revolucionária que, na medida em que destrói um mundo colonial e pérfido, erige uma nova sociedade que, mal ou bem, restitui as identidades que por muito tempo não puderam ser sequer celebradas, mesmo que, num primeiro momento, em seu caráter aparentemente mais essencialista. 3.5 Fanon diante das suas remarcadas contradições Dizemos aparentemente mais essencialista, porque é interessante perguntarmo-nos qual é o estatuto do mito para Fanon, aqui. Ora, se a todo momento o seu texto mobiliza uma experiência desmistificadora das estruturas coloniais, o mito também, no seio de uma cultura autóctone, pode barrar a realização de um encontro com o humanismo universal. Não podemos deixar de notar que, em Os Condenados da Terra, Fanon atribui o que ele chama de “mitos aterrorizantes, tão prolíficos nas sociedades subdesenvolvidas” (Fanon, 2015, p. 72) à uma certa noção cosmológica envolvida nas práticas espirituais/religiosas de tais sociedades. Segundo nosso autor, gênios malfeitores que intervêm cada vez que se sai da linha, homens-leopardos, homens-serpentes, cães de seis patas, zumbis, toda uma gama inesgotável de animáculos ou de gigantes dispõe em torno do colonizado um mundo de proibições, de barragens, de inibições muito mais terríveis do que o mundo colonialista. Essa superestrutura mágica, que impregna a sociedade indígena, exerce, no dinamismo da economia libidinal, funções precisas (Fanon, 2015, p. 72). Aos olhos de Fanon, essa forma de mistificação, que parece ser alvo da sua crítica política, seria superada pela experiência vivida na luta anticolonial, pois é dela que se renasce uma nova humanidade. Logo, ao que tudo indica, essa nova humanidade, no excerto em destaque, parece ser a mais laica 90 possível, o que talvez, reforçaria a tese de um afastamento da Négritude enquanto uma expressão cosmológica herdada de África e que seria compartilhada por todos os negros em diáspora (Oliva, 2013, p. 238) ou, se quisermos, uma ignorância em relação aos valores comunitários e de pertencimento que são vivenciados em espaços religiosos, relegados a uma crítica do que ele considerava ser fanatismo, animismo ou coisa que o valha. Sobre a relação de Fanon com os aspectos espirituais/religiosos, especialmente os islâmicos nas sociedades norte-africanas, sua biógrafa considera que na sua reflexão política, profundamente ateísta, ele irá continuamente separar política e religião, ao mesmo tempo que não dissociará a política da cultura. Acreditava firmemente que, sob o domínio colonial, a cultura se tornava fossilizada, que a luta de libertação iria reinventar novas formas culturais, longe do rigorismo tradicionalista que lhe parece rígido, antiquado e mortífero. Como na Argélia, como em Blida, onde ele exercitava sua curiosidade sobre os costumes, as instituições da cultura e do imaginário, mas não sobre o impacto do sagrado e do religioso na política, ele não subscreve o discurso árabe-islâmico que havia sido adotado em certas alas da FLN, mesmo na Tunísia. (Cherki, 2022, p. 168). Contudo, se pensarmos no Brasil, conseguimos identificar elementos, especialmente vinculados às religiões de matriz africana fortemente marcadas pela cosmovisão de tradição iorubana, que assegurariam uma unidade na diversidade de experiência em diáspora, o que, para uma certa tradição histórica do campo da educação para as relações étnico-raciais no Brasil chamará de “valores civilizatórios afro-brasileiros” (Trindade, s/d)32. Estes aliás, balizam muito do trabalho inclusive de Lélia Gonzalez. Então, diante desses elementos nos quais é possível perguntar pelo estatuto do mito em Fanon, haveríamos de nos perguntar, também em seguida: o possível viés ateísta de Fanon deve-se à sua vinculação à teoria marxiana? Seria um limite do horizonte político do filósofo que, ao se deparar com formas ancestrais de vivências espirituais, as relegam a um certo primitivismo que, no fundo, carregaria uma reprimenda às religiosidades que encontrou em África e na Martinica, sejam elas islâmicas, Ainda que possa soar relativamente mal aos ouvidos mais acostumados e atentos às críticas sobre o papel da civilização na modernidade e seu caráter um que de unificador (para sermos generosos nas palavras), trazemos este conceito aqui como forma de celebrar as conquistas históricas que o movimento negro brasileiro, em suas diferentes alianças e espectros, conseguiu, consegue e ainda conseguirá no campo de atuação antirracista. Louvamos a ideia, mesmo que existam diferentes caminhos para pensar tais valores ou princípios da convivência multiespécie sejam africanos, afro-brasileiros, ameríndios ou amefricanos. 32 91 cristãs ou africanas? Em seu pensamento estaria vinculado um sentimento de que as vivências religiosas se caracterizariam por uma espécie de atraso nos esforços de descolonização? Ao que tudo indica, se nossas perguntas se sustentam, evidencia-se uma interessante contradição diante do que ele mesmo expunha quando analisava a importância de se considerar os aspectos da cultura no tratamento de pessoas violentadas pela colonização. E, se há algo que manifesta a cultura, este algo são as dinâmicas da religiosidade de um povo. Aliás, a religiosidade muitas vezes supera os próprios limites do que pode ser circunscrito dentro do conceito de cultura. Fanon, talvez influenciado pelo ranço materialista, tenha relegado à desimportância (ou mesmo a um certo nível de preconceito) este aspecto central da vida de muitas pessoas que, ao invés de essencializar identidades, reforçam os laços de pertença e fortalecimento de vínculos presentes, com toda força da resistência aos processos de opressão, em espaços religiosos. Especialmente se as vivências dessas pessoas estiverem sob constante ameaça e ataque daqueles que se arrogam como os portadores da única mensagem religiosa possível por meio de todas as artimanhas nefastas que temos notícias travestido de um deus uno, poderoso e onipresente. Outra questão candente no nosso autor que merece um ponto de atenção, para além do estatuto do mito, é a problemática em relação ao gênero, particularmente à homossexualidade e ao machismo. Quando as questões de gênero, numa perspectiva descolonial e afrodiaspórica, têm tensionado, para além de uma série de questões caras ao lugar das mulheres e pessoas LGBTQIAP+ racializadas, a uma releitura localizada das contribuições de Fanon e, também, Aimé Césaire e o silenciamento das questões das mulheres em suas obras, como vimos no capítulo anterior, é bom ter à vista que, antes de se tratar de um revisionismo lacrador, o que se pretende é estabelecer um limite da crítica importante a qualquer avanço teórico. Afinal de contas, não nos interessa nenhum tipo de sacralização da imagem e dos pressupostos de nenhum filósofo, mas verificar o que dos seus pensamentos é possível restituir à uma proposta nova de mundo. Dito isso, avancemos sem estabelecer um tribunal sumário de cancelamento... 92 Flagrante é a virulência machista com que Fanon interpela Mayotte Capécia, em Pele Negra, Máscaras Brancas: Efetivamente uma maldição flutua em volta de Mayotte Capécia. Mas ela é centrífuga. Mayotte Capécia amesquinhou-se. Tomara que, com o peso de suas imbecilidades, ela não torne mais pesado o processo contra si. Vá em paz, ô enlameada romancista... Mas vá sabendo que, além de suas quinhentas páginas anêmicas, poderemos sempre encontrar o caminho honesto que leva ao coração. Apesar de você. (Fanon, 2008, p. 61. Grifos nossos). Ainda, foi possível destacar a reprodução psicanalítica freudiana33 em relação às mulheres quando, no capítulo 6, Fanon reproduz a tese das fases edipianas femininas chegando a afirmar, assustadoramente, que se penetrarmos um pouco mais no labirinto, constataremos: quando a mulher vive a fantasia do estupro por um preto, é de certo modo, a realização de um sonho pessoal, de um desejo íntimo (Fanon, 2008, p. 153). Assim, pensamos que levadas às últimas consequências, estaria Fanon vinculado a uma psicanálise machista, que já foi tanto combatida por algumas autoras feministas? Até que ponto, nesta fase fanoniana, sua psicanálise é libertadora para todas as pessoas? Pensamos que não se trata meramente de uma crítica da obra de Capécia e seus problemas internos, mas um ataque machista de desqualificação intelectual da autora. Tal fato é reforçado se pensamos que, no capítulo 4, quando Fanon se contrapõe enfaticamente contra Octave Mannoni, ele não lança mão da mesma agressividade para com o autor, homem. Mas, também importante notar que a luta das mulheres na Argélia ensinou, de certa forma, que o papel feminino é condição indispensável para o que ele almejava enquanto encaminhamento de uma sociedade nova. Assim, podemos ver, ainda que muito timidamente, um Fanon mais "progressista" em relação às mulheres numa reflexão nos Condenados da Terra, numa das poucas passagens em que o nosso autor trata das mulheres. Fanon escreve: 33 E seus desdobramentos, cf. Fanon (2008) e a nota 35 da página 152 da edição consultada. 93 Num país subdesenvolvido, será preciso tentar, o mais rapidamente possível, mobilizar os homens e as mulheres. O país subdesenvolvido deve se abster de perpetuar as tradições feudais que consagram a prioridade do elemento masculino sobre o elemento feminino. As mulheres receberão um lugar idêntico aos homens, não em artigos da Constituição, mas na vida cotidiana, na fábrica, na escola, nas assembleias" (Fanon, 2010, p. 231). Ainda sob o viés das discussões de gênero e sexualidades, Fanon é problemático ao lidar com a questão da homossexualidade em duas passagens: a primeira, na curiosa nota 38 da página 154 da edição consultada e, depois, na passagem à página 169, ambas de Pele Negra..., quando ele diz: E depois, Monsieur Solomon, vou lhe confessar algo: nunca pude ouvir sem náusea um homem dizer de outro homem: 'Como ele é sensual!' Não sei o que é a sensualidade de um homem. Imaginem uma mulher dizendo de outra: 'Ela é terrivelmente desejável, essa boneca...' (Fanon, 2008). Problematizar as questões que trazemos nesta seção da tese não se trata de um mero revisionismo lacrativo, como dissemos, mas sim de matizar historicamente as construções e contribuições que acabaram por reforçar subalternidades. Longe, portanto, de abonar ou, ainda pior, fazer vista grossa aos deslizes de Fanon em Pele Negra..., a citação acima, vinculada à figura revolucionária de Djamila Bouhired presente nas reflexões do Ano V... podem mostrar que ele estava se abrindo, ainda que muito pouco, à questão do gênero e das sexualidades. E isso se dá por três evidências. A primeira, uma vez que conviveu com a potência libertadora das mulheres em resistência quando diante das opressões colonialistas, Abel Santos credita a uma certa Ancestralidade Africana do nosso autor, porque seria possível “afirmar que entre o momento da escrita de Pele Negra, Máscaras Brancas e a experiência revolucionária, Fanon apresenta um salto de qualidade na percepção da mulher africana” (Santos, 2023, p. 105). A segunda, seria sua escuta analítica expressada por meio de um manuscrito que confidenciou a sua amiga e assistente Marie-Janne Manuellan narrada por sua biógrafa, a saber, a: de um jovem paciente de 27 anos que se submeteu a sessões de uma hora, cinco vezes por semana [...]. Ele [Fanon] não só escuta a 94 desejada e reprimida homossexualidade, como é igualmente atento aos significantes que sempre regressam” [...] (Cherki, 2022, p. 180). Logo, se Fanon não era reconhecido por ser um psicanalista ativo à época em que redigiu sua mais conhecida obra no começo dos anos de 1950, já “em 1958, porém, sua posição havia se tornado mais matizada e, em sua prática, ele não contestava a universalidade da triangulação do Édipo” (Cherki, 2022, p. 181). O mesmo Complexo de Édipo que, em Pele Negra..., no comentário que nosso autor faz ao compêndio de psiquiatria de Henri Baruk, figura como ausente no desenvolvimento psicossexual das crianças, uma vez que não se verificaria a “pederastia” na ilha da Martinica. (Fanon, 2008, p. 154). E por fim, a terceira: como em qualquer pessoa que se vê e se implica, as posições que antes eram tidas como naturais passam por um processo de desnaturalização também política, sobretudo, no caso de Fanon, pela pedagogia revolucionária. Afinal, não é este um dos saldos positivos da luta, das andanças e do compartilhamento de mundo com outras pessoas e entes? Diante de tais questões, uma coisa é certa: ainda que, como nos mostra Rae Rosenberg, Fanon não se vincule explicitamente à homossexualidade ou às questões da diversidade sexual e de gênero [queerness] em suas teorizações sobre as condições psíquicas da raça e do colonialismo [...], [ele] oferece uma rica fundação na qual as investigações críticas sobre a raça, a implantação colonial e geografia queer podem se apoiar. (Rosenberg, 2021, p. 3, tradução nossa). Todas estas contradições (ou limites) aqui expostas, e também suas possíveis transformações, não são feitas com a intenção de compor um tribunal para execrar sua figura, dando munição para seus detratores. O fazemos justamente para reconhecer os limites do seu pensamento, suas contradições que precisam ser resolvidas pelas pessoas que levam adiante seu projeto de futuro desipotecado em que as formas de desatenção às violências inaceitáveis praticadas por nossa sociedade sejam interditadas, principalmente porque são questões que envolvem diretamente a nós que sofremos violências diversas por expressarmos nossa vida como ela é. O que interessa, em suma, é considerar “os escritos de Fanon como ponto de vista teórico inesgotável, múltiplo, capaz de ser lido/visto além da superfície” (Coswosk, 2020, p. 105). 95 Entretanto, uma vez que se trata, em rigor, de analisar as formas de alcançar uma descolonização irrestrita mesmo que nele ressoe uma herança moderna34, é interessante ver como aspectos da formação política e acadêmica do nosso autor não restam de todo acatadas, “mas em tensão com ela[s]: é duramente crítico de seus processos, mas é dentro de suas margens onde busca alternativas para uma nova forma de convivência em sociedade” (Oliva, 2013, p. 222, tradução nossa). Sobre isso, Faustino (2022) observa: Fanon almejava a revolução social como possibilidade histórica e, principalmente, como condição para superar as alienações psicossociais que permitiram curar as feridas físicas e psíquicas promovidas pelo complexo colonial. Mas sabia que as lutas sociais não poderiam ter êxito se não tivessem como ponto de partida a realidade concreta em que surgiram; por isso, a afirmação histórica e contingente das identidades negadas é um tipo de mal necessário ao qual não se pode renunciar quando se está diante de ataques discriminatórios (Faustino, 2022, p. 39). Este procedimento, segundo Faustino, compreende a calibanização35 não só do cânone ocidental, mas da dialética hegeliana empreendida por Fanon, pois não se trata de negá-la, mas fazer realizar dela a sua promessa. Participar da universalização humana não deve mais pressupor tornar-se branco. É exatamente o contrário: é recusar a procura de uma branquitude como destino, bem como recusar uma identidade negra fechada em si mesma com elementos de um passado estável essencializado e recluso nos valores civilizatórios presumidos para, talvez, fazer com que a comunalidade da vida esteja ancorada em princípios da vitalidade e da solidariedade, em suma, aberta à novidade. Sobre esta última, volta e meia desconfiamos que Fanon, além de leitor confesso de Nietzsche, também estava atento à proposta filosófica de Henri Que não o manteve apartado, como seus leitores e leitoras podem verificar, das influências de seu pensamento filosófico - de Merleau-Ponty, passando a Marx e a Hegel, por exemplo. 34 A figura aqui é a da personagem Caliban, desenvolvida por Willian Shakespeare em sua obra A tempestade. Tal personagem é frequentemente evocada nos estudos pós-coloniais a partir de Fanon para justamente mostrar que, tal qual Caliban, ao aprender a língua de seu mestre para lançar contra ele os piores insultos, a dialética requerida para a construção de uma identidade também deveria ser subvertida, reapropriada e não negada (Faustino, 2021c). Como veremos no próximo capítulo, é justamente contra esta calibanização dos pressupostos ontoepistemológicos modernos que a obra de Denise Ferreira da Silva mobilizará seus esforços argumentativos. 35 96 Bergson. Que ele tivesse, em sua biblioteca, exemplares do Ensaio sobre os dados imediatos da consciência e A evolução criadora fica provado na relação apresentada por Khalfa na edição dos Écrits sur l’aliénation et la liberté (2015). Contudo, além de evocar Bergson sobre a questão da confissão em contextos de guerra colonial, Fanon, em seu projeto filosófico maior, estaria antevendo um futuro aberto à novidade, tema central em Bergson: “será que podemos ir mais longe e dizer que a vida, como a atividade consciente, é invenção e, com ela, criação incessante”? (Bergson, 2005, p. 24). Tal fator se ligaria, como dissemos anteriormente, à procura de fundamentações teóricas que, no fundo de suas propostas, se encontrariam práticas de liberdade36. O se que pode afirmar, categoricamente, é que a experiência vivida na luta revolucionária, apesar de suas imensas dificuldades e aporias, faz florescer a beleza de uma nova condição de sujeito. Não é por acaso que Fanon se debruça à análise dos efeitos dos cinco anos da guerra anticolonialista na Argélia. É por meio desta sociologia de uma revolução que se poderá informar que a promoção de uma nova sociedade não é possível senão no quadro da independência nacional. [...] no mesmo tempo em que o homem colonizado se coloca em tensão e recusa a opressão, nele se produz uma mudança radical que faz impossível e escandalosa qualquer intenção de manter o regime colonial (Fanon, 1976, p. 150, tradução nossa). Assim, “a luta de um povo que não economiza seu sangue nem seus sofrimentos pelo triunfo da liberdade, [disso] então diremos que tudo é possível” (Fanon, 1976, p. 151, tradução nossa). A desalienação pela luta, essa negativa pela interrupção de um reconhecimento que possa hipostasiar um humanismo novo a todas as pessoas e entes só se torna possível pela transformação anticolonial irrestrita do mundo que, não mais preso às estruturas de dominação, com seus racismos, sexismos e intolerâncias, torna-se, enfim, pós-colonial, pois 36 Nossa desconfiança carece de um estudo mais aprofundado sobre a pretensa e interessante vinculação da teoria bergsoniana da novidade enquanto movimento constante, com a própria possibilidade revolucionária de Fanon. Aqui, aproveitamos para agradecer a professora Maria Adriana Camargo Cappello que, ainda no último semestre de 2014, durante a graduação, nos mostrou como a filosofia do bergsonismo pode ser interessantíssima para questionarmos um certo viés conservador da vida. 97 “desde já, é melhor decidir virar a página. É preciso sair da grande noite em que fomos mergulhados” (Fanon, 2015, p. 361). E, ainda que timidamente neste capítulo da tese, nos parece que vincular a postura anticolonial de Fanon a um compromisso cosmopolítico de transformação de mundo, reinvenção da vida e afirmação da alegria são caminhos incontornáveis. Mesmo que tais caminhos não sejam explicitamente observáveis em suas obras, levando-se em consideração o contexto histórico que nosso autor desenvolveu suas reflexões, mesmo assim, se pretendemos, seriamente alegres, sair de onde estamos em direção a lugares de pensabilidade mais sensíveis e generosos, considerar Fanon é uma oportunidade de entender que a grande novidade anunciada de implosão do mundo colonial, muito se deve aos seus esforços por uma pedagogia revolucionária de luta. Entretanto, o contexto pós-colonial no que requer de uma promessa contida em seu nome ainda resta a ser pensado e posto em ação, como dissemos. É sobre isso um dos principais e difíceis argumentos em torno do qual Denise Ferreira da Silva desenvolverá a noção de “dívida impagável”, que veremos mais à frente e nas possibilidades de negociar um mundo ch’ixi ladinoamefricano, em Cusicanqui e Gonzalez, respectivamente. 98 FIGURA 4 – Sílex ou Pederneira – a pedra da primeira arte FONTE: Wikimedia Commons 99 CAPÍTULO 4 – UMA GIRA PELOS MUNDOS Sem gira eu não posso trabalhar. Ponto de abertura de gira Arreda homem que aí vem mulher Ponto de Pombagira Rainha [...] Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca nada está morto. O que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera. Leitura, de Adélia Prado Ao longo dos primeiros passos deste trabalho, percorremos as principais ideias envolvidas numa concepção de mundo que carrega em si uma estrutura, um complexo colonial. Este “drama da terra” de que nos falou Suzanne RoussiCésaire e que mobilizou Frantz Fanon, na medida em que ele se envolvia com a luta antimanicomial e anticolonial, exigiu um reposicionamento do mundo em vias de destruir as estruturas que o sustentam e que insistem em perpetuar violências múltiplas não só aos humanos, mas também à comunidade multiespécies da Terra. Essas posturas combativas foram alvo das análises as quais nos debruçamos nos capítulos anteriores. Em seu propósito mais evidente, o que apresentamos pode ser entendido como um esforço argumentativo na tentativa de apontar os caminhos para um mundo pós-colonial. Mundo que tende a ser outra coisa, a partir da superação das estruturas de dominação colonial expressas naquele complexo colonialista que não estiveram apenas circunscritas ao tempo histórico das explorações imperialistas, mas que se perpetuam nas dinâmicas sociais a partir da noção de colonialismo interno. O que interessa ressaltar, diante da tentativa pela sistematização mínima dos pressupostos anticoloniais apresentada nos capítulos anteriores, é como eles ressoam em proposições filosóficas mais contemporâneas. Para tanto, evocamos, a partir deste capítulo, as contribuições de Lélia Gonzalez, Silvia Rivera Cusicanqui e Denise Ferreira da Silva para o debate ao redor do fim deste mundo como o conhecemos. Os motivos pelos quais estas três pensadoras são 100 mobilizadas podem ser vários e os veremos na medida em que apresentamos os principais aspectos de suas filosofias. Por ora, basta dizer que, de algum modo, nos escritos das três filósofas há uma tentativa pela realização deste mundo pós-colonial enquanto um compromisso teórico e essencialmente prático, que visa restituir as condições de possibilidade e pensabilidade de uma vida plena, solidária e minimamente compartilhada. Não são meras elucubrações de um modismo acadêmico, mas, cada uma a seu turno, numa espécie de alquimia de conceitos, contribui para a formulação de uma poção, um antídoto contracolonial. Diante das suas óbvias diferenças internas no que tange seu vocabulário, ancestralidades teóricas e escopos, mais do que separá-las, o propósito anticolonialista aqui as une, especialmente entorno da argumentação central, a saber: como produzir mundos outros que este? Como arregimentar uma (ou mais que uma) proposição que implique mundos em que o princípio primeiro seja a vida plena, com alegria? A escolha também não é arbitrária, se tensionamos minimamente ampliar a discussão teórica encontrada nessas três mulheres na América não apenas pela mera representatividade - que, em si mesma, não tem muito a dizer - mas pelo compromisso em divulgar modos muito particulares de construir teorias filosoficamente estruturadas num compromisso comum: por meio de suas contribuições, é possível antever uma vinculação, em maior ou menor intensidade, as reafirmando ou as negando, no que anteriormente chamamos de filosofia pós-colonial, mas que se desvela em pensamentos anticoloniais. Contudo, além de tentar mapear os percursos argumentativos que apoiem este argumento, tentaremos mostrar, também, os caminhos pelos quais será possível, num arrazoado de tudo o que vimos até aqui somados às suas contribuições, antever uma perspectiva cosmo-etno-política de mundo. A partir de então, tentaremos expor quais as chances de mobilizar o pensamento, e sempre os colocar em função das experiências vividas no seio mesmo da sofisticação do aparato neocolonial que o capitalismo global faz reproduzir incessantemente. Assim, começaremos com Lélia Gonzalez que, durante nosso estudo, tornou-se fundamental enquanto uma pensadora que subverte o pensamento social brasileiro restituindo uma certa ladinidade para lidar com os intensos 101 efeitos negativos do racismo estrutural. Depois, articularemos os pressupostos desenvolvidos por Silvia Cusicanqui que desdobram, a partir do encontro entre cosmologias muito particulares, um mundo Ch’ixi possível. Ao final, tentaremos mostrar como a filosofia de Denise Ferreira da Silva, ao mesmo tempo em que apresenta uma contundente crítica aos paradigmas ontoepistemológicos modernos, propõe uma poética da negritude que é eminentemente aberta ao devir Outra-mente. Vejamos... 4.1 Lélia Gonzalez: intelectual da práxis amefricana Temos a oportunidade participar de um período interessante, no qual há o redescobrimento da envergadura do pensamento de mulheres negras, como o de Suzanne Roussi-Césaire, Angela Davis, bell hooks etc, e de mulheres que, do Brasil, levam adiante uma lança para fraturar as estruturas coloniais. Tal é o caso de Lélia Gonzalez. Esta tese, sem dúvida, tenta prestar uma espécie de homenagem a este acontecimento. Infelizmente, Lélia ainda está fora dos currículos formais de filosofia pelo país, apesar de ter muito dizer a ele e a toda a comunidade filosófica brasileira. Conhecer Lélia, até poucos anos atrás, se dava em contextos da luta de resistência ao racismo brasileiro, muito vinculado às estratégias de uma pedagogia das relações étnico-raciais. Assim se deu nosso conhecimento da autora que, na medida em que foi sendo aprofundado por leituras, debates e à sua chegada em alguns contextos acadêmicos, foi mostrando-se não apenas como uma potente argumentação antirracista, mas muito profundo em suas especulações filosóficas. Assim como acontece atualmente com o pensamento fanoniano, o pensamento de Lélia vem sendo amplamente (re)descoberto, discutido e publicado, estabelecendo-se, aos poucos, uma antologia37 e uma fortuna crítica sobre sua obra. Nos contextos acadêmicos, para citar um dos quais Lélia tem Em 2018, a União dos Coletivos Pan-Africanistas, num esforço editorial até então inédito, compilou 45 ensaios de Lélia, cobrindo quase a totalidade da sua produção textual. É com base nesta publicação que referenciamos todos os seus textos mobilizados, apontado, na medida do possível, suas datas e contextos de publicação. Assim, além de referenciar o ano da coletânea, indicaremos entre colchetes o ano de publicação oficial do ensaio evocado, cf. formato (Gonzalez, [ano de publicação], 2018, p. XX), assim como fizemos com os ensaios de Fanon. 37 102 circulado, uma interessante prova da sua pertinência atual é expressa no número de teses e dissertações que, em seus títulos, trazem o descritor “Lélia Gonzalez”. Encontramos, numa busca rápida no Catálogo de Teses e Dissertações do Portal Capes38, o montante de 80 trabalhos, dos quais 62 são dissertações de mestrado e 18 teses de doutorado defendidas nos últimos 5 anos. Em sua maioria, as áreas de interesse são as ciências humanas e educação. Como temos acompanhado ao longo dos últimos anos dos nossos estudos, o interesse pela obra de Lélia tende a crescer na medida em que ainda há muito o que se mobilizar para a superação da estrutura racista brasileira, sendo ela fundamental para tanto. Lélia em sua vida pública atuou em diversas frentes como a política, a militância antirracista, a vida intelectual - com sua formação sólida em filosofia, antropologia, história, geografia e psicanálise, a cultura e a educação. Em sua biografia39, é possível encontrar um presente esforço pela destruição das mistificações racistas brasileiras em seus aspectos mais amplos, desvelando cada um deles ao mostrar que, antes de uma pretensa democracia racial, estamos sob uma amefricanidade que carrega em si não só as contradições racistas, mas suas características culturais mais profícuas que aliam as experiências em diáspora na constituição do se entende por povo brasileiro. 4.1.1 Lélia por quê? Segundo Patrícia Teixeira, Lélia Gonzalez se uniu a muitas pessoas em busca da concretização, problematização e tensionamento dessa ação [emancipação dos povos negros] na sociedade brasileira e deixou um legado que deve ser reconhecido, perpetuado e expandido (Teixeira, 2017, p. 96). De saída, sua biografia caminha concomitantemente à sua obra que, infelizmente foi interrompida quando Lélia Gonzalez faleceu em decorrência de Pesquisa realizada em 03 de maio de https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/ 38 2023 por meio do site Para um detalhamento biográfico sobre Lélia Gonzalez, cf. Viana (2006); Ratts e Rios (2010) e compilados por Teixeira (2017). 39 103 um problema cardíaco. Entretanto, em que pese a interrupção de sua obra em função de ter trocado “sua situação de companheira de luta pela de ancestral” (Bairros, 2000, p.359), a pensadora é definitivamente uma figura central para, como já dissemos, restituir o mundo às pessoas racializadas. Em vias gerais, as contribuições de Lélia para tanto estão diluídas em artigos para jornais, textos para eventos acadêmicos, discursos, comentários sobre obras e entrevistas concedidas, mostrando a sua capilaridade e inserção por diversos meios de difusão. Certamente, Lélia é conhecida por dois textos fundamentais de sua produção, a saber: Racismo e sexismo na cultura brasileira de 1980, e A categoria político-cultural da amefricanidade, de 1988. Em ambos, a nossa filósofa articula, às noções da constituição sociológica latino-americana a partir de diferenças entre os modelos de colonização português e ibérico, questões da subjetividade das pessoas racializadas, principalmente as mulheres, profundamente construídas nestes contextos de negação de uma identidade que é “muito mais ameríndio-amefricana” (Gonzalez, [1985] 2018, p. 336) do que a produzida numa orientação eurocêntrica. Isso faz, aos olhos de Lélia, com que todas as pessoas que se constituíram em sociedades outrora formalmente colonizadas carregaram em si e nas expressões de suas subjetividades, os efeitos de uma identificação com as figuras opressoras que, por meio de suas filosofias, perpetraram os complexos de inferioridade e dependência, além da manutenção de um sistema patriarcal que visa duplamente negar as mulheres. É fundamentalmente por isso que ela, num artigo intitulado “Por um feminismo afrolatinoamericano”, datado de 1988, tende a alargar o conceito de experiência da tomada de consciência da mulher negra, pois as estruturas coloniais que, parafraseando Lacan, legiferam as subjetividades, não são exclusivas apenas delas, apesar de nelas se expressarem de modos particularmente cruéis. Ora, se a linguagem e o discurso constituem todo o arsenal subjetivo e inconsciente a que temos acesso, o Brasil só é possível porque existe a “mãe preta”. E se as bases materiais e espirituais (para ficarmos só com essas de inúmeras outras) para a formação de nós são as mulheres negras (e, antes, as mulheres indígenas), que relegadas a um exclusivismo forçado do cuidado doméstico senão pelo ódio e desprezo da agência política 104 feminina pública, o que encontramos é a tal rasteira que foi dada para que pudéssemos existir. Entretanto, essa possibilidade é sempre inferiorizada, uma vez que a própria colonização, sobretudo com seus processos internalizados na cultura e na subjetividade, apaga qualquer capacidade de alargamento de experiência que só pode acontecer pela luta crítica. Assim, sobre esse alargamento da experiência, numa espécie de compartilhamento da situação dramática que o colonialismo determina, Lélia considera que uma questão de ordem ético-política é imposta imediatamente. Não posso falar na primeira pessoa do singular, de algo dolorosamente comum a milhões de mulheres que vivem na região; refiro-me aos ameríndios e aos africanos, subordinados a uma latinidade que legitima sua inferiorização (Gonzalez, [1988] 2018, p. 308). Isso parece nos dizer que, muito além de meramente evocar uma espécie de argumento de autoridade do tipo “lugar de fala”, Lélia Gonzalez está mais interessada em mostrar como as falas dos lugares subalternizados é que determinam um ponto de inflexão que visa desvelar o paradigma atrelado a “uma cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista da realidade” (Gonzalez, [1988] 2018, p. 309). E, o que fica evidente, é que a única maneira de o fazer é coletiva. 4.1.2 O manifesto da língua pela rasteira da Amefricanidade Coletividade tal que assegura a magistral percepção de que “a rasteira já está dada” (Gonzalez, [1984] 2018, p. 205) por meio da amefricanidade e do seu significador: o pretuguês, pois a língua oficial do Brasil, na verdade, é uma subversão que nos foi presenteada pela África a partir da resistência e do combate à morte. O código de comunicação referido reatualiza as presenças ameríndias e negras numa estrutura oficial da língua portuguesa. Um passo importante na dimensão conceitual do pretuguês se dá por sua vinculação à constituição da cultura brasileira. Pela apropriação que Lélia faz da figura materna psicanalítica, o pretuguês invade, constitui e dá vazão à expressividade cultural, pois conforme afirma nossa pensadora: 105 e quando a gente fala em função materna, a gente tá dizendo que a mãe preta, ao exercê-la, passou todos os valores que lhe diziam respeito prá criança brasileira [...], essa criança, esse infans, é a dita cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês” (Gonzalez, [1984] 2018, p. 205). Se a mãe é a quem cria, e se quem cria é a empregada, a bá, a mucama, a promessa da purificação e branqueamento do povo brasileiro dos devaneios eugenistas não logra seu completo êxito. O português é tomado pelo pretuguês. Ele é subvertido e povoado. Trata-se de torcer a língua culta como forma de quebrar sua pretensão controladora e, além, desvelar um “DNA” fonético que se vincula às origens africanas: É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é do que a marca lingüística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo tempo acham o maior barato a fala dita brasileira que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. (Gonzalez, [1984] 2018, p. 208). Conforme Lélia nos conta, é em função das mulheres africanas que, “apesar de todo o racismo vigente, os brasileiros falam ‘pretuguês’ (português africanizado) e só conseguem afirmar como nacional justamente aquilo que o negro produziu em termo de cultura” (Gonzalez, [1981] 2018, p. 111). Essa cultura que foi forjada por meio de violências múltiplas, maquiadas no mito de uma democracia racial tropical, expressa em seus códigos e práticas um país que dá as costas para qualquer vivente considerado de segunda classe, sejam humanos ou não humanos. É a isso que Lélia chama a nossa atenção: se nossa consciência é por demais colonizada, devemos nos lembrar que nosso inconsciente e referências são, por demais, amefricanas. E é por isso que, segundo nossa autora, “a questão do negro, a questão do índio ou a questão da mulher não são questões só nossas, especificamente, e sim da sociedade brasileira, de todos nós” (Gonzalez, [1985] 2018, p. 239). Podemos lembrar, assim, de Deleuze, ao considerar o teatro de Carmelo Bene em Um manifesto de menos, que nos mostra como uma prática discursiva hegemônica, que unifica as comunicações em torno de uma língua maior, 106 transmuta-se numa forma de poder40. Indo além, lembremo-nos, também, de Pierre Clastres que, quando descrevia o processo de francização já apontava “o etnocídio pertencente à essência unificadora do Estado” (Clastres, 2014, p. 84). Mas, em resposta definitiva a essas unificações da norma culta padrão, que de certa forma tendem a perpetuar uma das formas de etnocídio, lembremo-nos não só do pretuguês como explosão daquela latente cultura amefricana, mas também da estratégia de que nos ensina Nêgo Bispo: trata-se de uma “guerra das denominações: o jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las” (Santos, 2023, p. 13, grifos nossos). O que Lélia Gonzalez está a propor pode ser entendido, à pena deleuziana, por essa menorização da língua, uma vez que “não há língua imperial que não seja escavada, arrastada por essas linhas de variação inerente e contínua, quer dizer, por esses seus usos menores” (Deleuze, 2010, p. 39). E, ainda, diz: “uma variação imanente, contínua e regulada: eis o que define toda língua por seu uso menor, um cromatismo ampliado, um black-english para cada língua” (Deleuze, 2010, p. 40); ou seja, há um pétit-nègre de Fanon (2008) e um pretuguês de Lélia para cada língua maior que unifica os esforços etnocidas do Estado contemporâneo. A língua, então, como espécie de luta, de marca de resistência. A língua como um feitiço, como nos ensina Antônio Bispo dos Santos (2023). Longe de um possível flagrante de que o colonialismo (no nosso caso, português) venceu, posto que pensamos e falamos a partir de seu léxico e sintaxe, Margarida Petter nos afirma: as línguas africanas foram sempre percebidas no Brasil como um agente perturbador e desestruturador da língua herdada da colônia. Se, no século XIX e meados do século XX, os primeiros estudos linguísticos valorizaram o léxico de origem africana como um elemento importante de nossa identidade linguística, visto que as palavras da África evidenciavam a diferença entre o Português Brasileiro e o Português Europeu, trabalhos do final do século XX atribuíam à influência africana os desvios à norma culta, como a falta de concordância nominal e verbal, sobretudo. Atualmente, a linguística está mais atenta aos estudos da sintaxe do PB e, sob esse aspecto, as línguas bantas oferecem um material imprescindível para a análise. A A oportunidade de percorrer os caminhos de uma escrita-manifesto (cf. Abstado, 1980) teve lugar no curso ministrado pela professora Juliana Fausto, durante o segundo semestre de 2019, no Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPR, a quem sou grato pelas reflexões, indicações bibliográficas e generosidade na leitura do artigo de conclusão sobre o tema da disciplina e sua conexão com a obra de Lélia Gonzalez que, posteriormente, foi estendido a partir das contribuições de Aline Di Giuseppe e publicado como capítulo de uma coletânea. (cf. Giuseppe; Gonçalves, 2020). 40 107 investigação das variedades africanas de português em comparação com o PB evidencia um fato: as palavras são do português, mas a fonologia, a semântica e a sintaxe têm a marca africana (Petter, 2023, p.134). Se a apropriação da língua maior e sua constante variação, subversão e reinvenção indeléveis a partir das formas de pensamento locais é o que faz uma língua viva - um manifesto discursivo por excelência anticolonial reatualizado a todo instante num continuum41 -, os resíduos do logos do Uno se convertem em expressões dos que antes eram tidos como lixo. E, com Lélia, aprendemos que “o lixo fala, e numa boa”. Não apenas o lixo do inconsciente que é matéria bruta para os processos de cura pela fala dos quais a psicanálise se alimenta, mas um lixo enquanto condenados da Terra que, diante de tal identidade, se insurge para o novo. O que nossa autora tensiona está por dissolver os dualismos perversos que erigiram a Cultura ocidental e que corroem aquelas e aquilo que constituem a diferença marcada por indicadores raciais, sexuais, de classe e outros. E, em Lélia, somos muitas pois somos pessoas amefricanas. Se isso já prefigura uma multiplicidade de agências e conflitos, é preciso tentar nos aproximarmos da nova construção de identidades que sejam refratárias à figurada pela ontologia colonial. É por isso que, como afirma Lélia no seu texto “Nanny”, para a Revista Humanidades, da UnB: O Brasil, por razões de ordem geográfica, histórico-cultural e sobretudo de ordem do inconsciente – é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, nomear o nosso país com todas as letras: Améfrica Ladina (cuja neurose cultural tem no racismo o seu sintoma por excelência) (Gonzalez, [s/d] 2018, p. 335, grifos da autora). Com base nesses pressupostos é que emergirá a amefricanidade como uma categoria político cultural que “está intimamente relacionada àquelas do Sobre isso, Margarida Petter diz: “A noção de continuum, como entendo, envolve: a) mudança no tempo, em que as diferenças entre as variedades vão se acentuando, como no caso da concordância de gênero, praticamente residual no Brasil e ainda atuante no contexto angolano e moçambicano; e b) permanência, continuidade, sem que haja um início e um fim, em que o tempo não é o fator relevante, pois o que importa é uma certa “unidade”, um conjunto de formas semelhantes que rompem com o PE e que sustentam o reconhecimento da língua nacional como um português afro-banto” (Petter, 2023, p. 135). 41 108 pan-africanismo, negritude, blackness, afrocentricidade, etc” (Gonzalez, [s/d] 2018, p. 336). Mas, não só. A partir da evidência de que a Améfrica também é ameríndia, Lélia nos avisa de que o termo amefricanas/amefricanos nomeia a descendência não só dos africanos “gentilmente” trazidos pelo tráfico negreiro, como daqueles chegados à América antes de seu “descobrimento” [...]. É na chamada América Latina (muito mais ameríndio-amefricana do que outra coisa) que essa denegação [racista] se torna amplamente verificável (Gonzalez, [s/d], 2018, p. 336), grifos da autora). Evidentemente, trata-se de reconhecer que aqueles condenados da Terra não podem, como pudemos notar na abertura da IV CONAPIR a qual fizemos referência no começo deste trabalho, atuarem sem uma mínima coalizão, respeitadas as condições ancestrais que nos colocam aqui. Com Lélia é possível antever que, em que pese a importância e centralidade das análises serem voltadas à população negra em todo seu trabalho, os povos ameríndios não podem deixar de ser considerados na solidariedade dos movimentos negros organizados e, também, de todos os outros que seguem firme tentando construir mundos outros, sob pena de todos perderem para o fim catastrófico irreversível. Afinal de contas, se “para os povos nativos das Américas, o fim do mundo já aconteceu, cinco séculos atrás” (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 138), é não só possível, mas mandatório, que os escutemos a sério. Quando Lélia, em ação e pensamento que transformam, dá visibilidade e desbrava caminhos às gerações por vir, se vivifica em personagem fundamental para construir novos horizontes práticos e teóricos, afetivos e culturais; em última instância. Pois, fez de sua escrevivência o motor para as transformações de realidades injustas para a construção de uma vida mais justa e solidária, ainda que se tenha muito por se fazer. E, essa parece ser a postura de Silvia Rivera Cusicanqui quem numa variante da Amefricanidade, pensa um mundo Ch’ixi. É o que passaremos a ver. 109 4.2 Silvia Cusicanqui e a cosmopolítica Ch’ixi: “vivir bien, no mejor”42: Silvia Rivera Cusicanqui traz, a partir de uma posição “retórica anticonquista” (Cusicanqui, 2022) a sua contribuição ao pensar a ideia de um mundo Ch’ixi como algo também compartilhado entre os subjugados do colonialismo em seus atravessamentos identitários. No léxico de Cusicanqui, a autora, além tentar promover, às vezes, uma linguagem neutra com o uso do x em vogais que expressariam um gênero designado em algumas de suas formulações, também mobiliza palavras da língua do povo andino Aymara não apenas como meros termos, senão como palavras-conceito, ao entender que as artimanhas do capital oferecem uma instrumentalização racionalista que “segue asfixiando nossos povos e bloqueando o pensamento crítico, tanto nas universidades, como na esfera pública e seu debate político” (Cusicanqui, 2018, p. 21, tradução nossa). O que faz do pensamento de Cusicanqui algo peculiar e que nos ajuda na desmontagem das nossas colonizações espirituais é promover uma aliança que, ouvindo as montanhas andinas e seus coabitantes, reverbera nos corredores acadêmicos para além da mera crítica. Suas proposições de pensamento almejam alcançar um outro mundo possível que se forja recusando uma certa economia gramatical moderna que, atrelada às situações colonialistas, “o não dito é o que mais significa; as palavras escondem mais do que revelam, e a linguagem simbólica toma a cena” (Cusicanqui, 2010b, p. 13, tradução nossa). Diante deste ponto, a pensadora costura análises que se inspiram em movimentos de insurgência (e suas contradições) que lutaram e ainda lutam por uma ideia de viver bem e compartilhado, tais como o feminismo que traz consigo os reflexos das resistências das mulheres andinas, o campesinato boliviano e seu consequente Movimento Katarista, do final da década de 1970, além daquilo que se constituiu por fonte de inspiração para todas as formas mais novas de oposição à estrutura colonial, a saber: resistências presentes desde os tempos das primeiras ocupações da coroa espanhola no território das montanhas, como a rebelião pan-andina de Tupaq Katari, de 1780-82 (Cusicanqui, 2010a). Aliada ao princípio de luta anticolonial, a autora propõe, como caminhos de suas 42 Cf. Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 103. 110 análises, uma certa metodologia analítica a qual chamou sociologia da imagem, especialmente voltada aos trabalhos de Waman Puma43 que, por meio de seus desenhos, “cria uma teoria visual do sistema colonial” (Cusicanqui, 2010b, p. 14, tradução nossa). Concebendo o cenário atual de consequentes crises, sejam elas teóricas, morais, éticas, espirituais, econômicas etc.) que nada mais são do que um desdobramento e reatualização do colonialismo interno, Cusicanqui nos propõe colocar em questão o fato de que acreditamos nos entender, porque damos como certo o que significam palavras como mercado, cidadania, desenvolvimento, descolonização, entre outras. São palavras que tranquilizam, mas de modo enganador. [...] O que faz a crise é quebrar essa segurança, movermos o piso e obrigarmo-nos a penar o que queremos dizer com elas. (Cusicanqui, 2018, p. 40-41, tradução nossa). Essas “palavras mágicas”, segundo nossa pensadora, motivam, para além de um entendimento de suas origens e significações histórico-políticas, uma abertura mais generosa para os pensamentos que estão expressos em outros meios que não os da soberania gramatical moderna e lexicográfica44, porque esta permite que, hoje em dia, a retórica da igualdade e da cidadania se converta em uma caricatura que esconde os privilégios políticos e culturais tácitos, noções de sentido comum que fazem toleráveis a incongruência e permitem reproduzir as estruturas coloniais da opressão (Cusicanqui, 2010b, p. 56-57, tradução nossa). Então, face à contestação das palavras mágicas modernas, a relação imagética e discursiva está presente não apenas em palavras e desenhos, mas no modo pelo qual a linguagem - que articula fala e pensamento -, expressam Felipe Guamán Poma de Ayala, também conhecido por Waman Puma, foi um indígena Quechua. Através de sua produção pictórica presente em sua obra El primer nueva corónica y buen gobierno de 1615, é possível entrar em contato com sua denúncia sobre o tratamento dispensado pelos conquistadores espanhóis aos povos andinos. Cusicanqui dedica boa parte de sua argumentação teórica às análises dos desenhos de Puma. 43 É por isso que, na maioria dos trabalhos da autora estudados para esta tese, volta e meia aparecem as imagens de Waman Puma. É por isso, também, aliada à sugestão de Débora Araújo na ocasião do exame de qualificação do estudo que estamos apresentando, que trazemos algumas imagens ao longo do nosso texto. Mais do que ornamentos, elas representam uma espécie de síntese argumentativa de cada seção. 44 111 ora a herança do colonialismo entranhado, ora as formas pelas quais resistem mundos outros, mundos que nos lembram que é possível ser outramente. E é justamente nessa implicação absoluta que nos constitui enquanto viventes insatisfeitos de um mundo ainda colonial que emergirá a noção de uma epistemologia Ch’ixi. 4.2.1 A proposta de uma epistemologia Ch’ixi A partir do triste mecanismo do “habitar colonial” que, além de devassar as paisagens e vidas não humanas, devassou também as mulheres com estupros, trabalhos forçados e todo tipo de humilhação para fazer-se a si mesmo (Ferdinand, 2022; Carneiro, 2023; Gonzalez, 2018 etc.), uma legião de condenados da Terra se veem às voltas com uma educação e cultura que se impõem como única forma ontológica de alcançar uma humanidade aos moldes europeus, na medida em que são relegados ao limbo da própria humanidade impossível de ser realizada pelos mesmos motivos que a construíram, ou seja, é uma equação infernal que nunca será resolvida. O que resta então, aos mestiços do mundo, a uma certa noção de origem, pelo menos sendo realidade de grande parte do dito “povo brasileiro”, quando carregam em si tanto memórias ameríndias e africanas, quanto europeias? É assumindo como essa contradição imbricada que habita as pessoas colonizadas nas periferias dos países latinoamericanos que Cusicanqui desenvolverá, a partir na noção Aymara de um terceiro incluído, a ideia de qulla, que se coloca oposta à lógica aristotélica que solidifica o modo de pensar moderno: O dualismo andino é dinâmico. Então, a partir dessas formas estruturais de pensamento, ou da existência, por exemplo, de palavras como qulla que quer dizer a uma só vez remédio e veneno, me dou conta que a capacidade de manejo das contradições na língua e na cultura Aymara é muito forte, o que chama-se lógica trivalente, e isso nos permite pensar a realidade colonial com muito mais vigor e certeza que com os conceitos monísticos que vêm da Europa, onde te obrigam à lógica aristotélica de que A é A e não pode ser B. Em Aymara, A pode ser ao mesmo tempo B. (Cusicanqui, 2015, p. 95, tradução nossa). O que subjaz tal posição lógica é a oferta de uma contra análise ao já conhecido hibridismo cultural45 que postularia, no contexto pós-guerra fria, que 45 Cf. Canclini (1998). 112 o mundo caminharia para uma homogeneização culturalista fomentada pelos mercados transnacionais. Além de assumi[r] a possibilidade de que, da mescla dos diferentes, possa sair um terceiro completamente novo, uma terceira raça ou grupo social capaz de fundir as características de seus ancestrais em uma mistura harmoniosa e de todo inédita (Cusicanqui, 2010b, p. 70, tradução nossa), Sílvia Cusicanqui considera que um pensamento Ch’ixi consiste, enfim, num esforço por superar o historicismo e os binarismos da ciência social hegemônica, lançando mãos de conceitos-metáfora que a descrevem e interpretam as complexas mediações e a heterogénea constituição de nossas sociedades [...] [porque] vivemos a múltipla irrupção de passados não digeridos e indigeríveis. (Cusicanqui, 2018, p. 17, tradução nossa). Este conceito-metáfora Ch’ixi corresponde, na cosmovisão Aymara, a objetos cuja cor se faz através da mescla de diferentes, formando pontos, manchas que não se homogeneízam, não se transformam em outra cor uniforme, mas guardam as características de cada qual, formando um terceiro viés, contrastado. Assim como nas pedras, nos solos, nas nuvens, nas águas, no fogo, enfim, no encontro com as diferenças. Contudo, antes de se reprimirem mutuamente, ou pior, se fecharem em seus polos, o que produz é uma aparição heterogênea, pelo menos no nível fenomenológico, mas que resguarda a possibilidade de transformação. Transformação tal que seja capaz de recusar a pä chuyma, a alma dividida, o produto das colonizações espirituais, em uma duplicidade (ou multiplicidade) Ch’ixi que lança sua flecha em direção a uma Ética do bem comum, não só em vias da sobrevivência humana e a reprodução do social, mas também em busca da cura do planeta e da reconexão de nossas pequenas angústias com os latidos e os sofrimentos da pacha (Cusicanqui, 2018, p. 52, tradução nossa). A esta coletividade de comunalidades, é evidente que o interesse, desveladas as carapaças etnocidas da modernidade, exprime-se à uma vontade contumaz do viver bem, posto que as formas de vida que se fizeram antes do mau encontro colonial se mantiveram pulsando pela resistência e 113 ancestralidade. Os pulsos que ainda pulsam são possíveis justamente porque habitam numa forma de viver que recusa e denuncia o colonialismo interno e tende às noções pluriversais desse buen vivir, mescladas, aprendendo junto com todos os agentes a sermos outros daqueles prejudicados pelos processos de colonialismo. Contudo, esse núcleo das vontades coletivas pela vida está longe de ser algo tolo, descompromissado e apolítico. Não se trata de “gratidão” aleatória por estamos vivos enquanto muitos outros, humanos e considerados não humanos, são seviciados pelo capitalismo neocolonial. A noção de buen vivir é absolutamente cosmopolítica na medida que deve ser pensada como uma atitude dos povos e sociedades contra o Estado, de que já nos falava Pierre Clastres. Estado que, antes de defender a vida e os interesses planetariamente comuns, mobiliza suas formas de repressão para defender propriedades privadas, como se a Terra fosse exclusiva a alguns tipos de humanos. Como se a cerca, o muro e as fronteiras fossem os verdadeiros pilares do planeta. Isto quer dizer que, contrariamente à sanha aceleracionista dos povos modernos que são movidos pela ganância das mercadorias e mentirosas vantagens do capital, a possibilidade de haver saída a este moedor de esperanças é uma conexão outra com a vida, que passa por dinâmicas cosmopolíticas muito mais complexas que a mera economia de gestão das populações naquele viés biopolítico que nos ensinou Michel Foucault. Essas dinâmicas complexas residem na possibilidade de compreensão do próprio tempo não como algo a ser vivido com vistas a uma evolução em estágios sucessivos e ascendentes, mas condições em que todos os entes se transformam, se agenciam e se implicam cosmopoliticamente. É por isso que a noção de bem viver não é tola ou inocente, descolada de um propósito comum de agência múltipla. O que se mostra, então, é um presente etnográfico [que] não é de modo algum um "tempo" imóvel; as sociedades lentas conhecem velocidades infinitas, acelerações extra-históricas, em uma palavra, devires, que fazem do conceito indígena do vivir bien algo metafisicamente muito mais parecido com um esporte radical do que com uma descansada aposentadoria campestre. (Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 93) O esporte radical de que aduzem os autores acima vibra em conjunto à radicalidade mesma daquela proposta fanoniana de um mundo outro, em que 114 haja possibilidades para que a vida seja absolutamente compartilhada e celebrada em seu viés absoluto, mas que resguarda as diferenças constituintes de uma pluralidade, de uma multiversalidade. Assim, segundo Cusicanqui, Habitar o mundo-do-meio tecendo as wak’as como alegoria da batalha cósmica entre forças opostas, converte a violência em um princípio de outra natureza: o selvagem revive o civilizado, o feminino se opõe e complementa o masculino; o tecido incorpora a língua. Esta alegoria nos leva à ideia de um mundo ch’ixi como horizonte possível de transformação emancipatória. Ao habitar no meio de mandatos opostos, criando vínculos com o cosmos através de alegorias, o equilíbrio ch’ixi, contraditório e, por sua vez, entramado, das diferenças irredutíveis entre homens e mulheres (ou entre indixs e mestiçxs, etc., etc) faria possível um outro mundo. (Cusicanqui, 2018, p. 56, tradução nossa). Na passagem que destacamos sobre a proposta geral deste mundo Ch’ixi, aparece a noção de wak’as que, segundo evidências presentes ao longo do texto de Cusicanqui, sugerem lugares sagrados e ritualísticos que “são geralmente considerados vorazes e famintos” (Cusicanqui, 2018, p. 47, tradução nossa). Eles que existiam em função de “uma economia e uma contabilidade dos bens oferecidos às entidades sagradas” (Cusicanqui, 2018, p. 47, tradução nossa). Dada esta espécie de tradução, a passagem destacada acima parece fazer maior sentido, especialmente ao evocar entidades outras-que-humanas na agência de transformação do mundo que é cosmo-etno-político em contraste com o pensamento filosófico moderno autocentrado, estéril e completamente pobre de mundo. Asase Ye Duru, ou “A Terra tem peso”, como sabemos pela filosofia do povo Akan, em Gana e Costa do Marfim. A Pacha é sagrada no sentido de oferecer as condições de possibilidade, uma vez obrigados a viver os espólios do horror colonial que tanto a machucou, para reinventar outra prática de vida. Prática inspirada nestes movimentos de revolta, de luta, de guerrilha pela vida, nas resistências e escrevivências junto à Ela. E, sem nos esquecer: irmanadas e irmanados, também, por agentes outros que humanos. 115 4.2.2 A ideia Ch’ixi também é outra que humana A autora, em seu mais recente texto traduzido no Brasil, considera que, para além de um certo viés muito centrado apenas nos seres humanos, o pensamento Ch’ixi também é informado por uma certa “qualidade indeterminada” também nos animais não humanos (ou mais que humanos). Isso porque, ouvindo o que pensa o escultor aymara Víctor Zapana, Cusicanqui nos diz que os animais ch’ixi são manchados, pintados, granulados: pertencem ao mundo de baixo e, ao mesmo tempo, ao mundo de cima. Por isso, são animais poderosos, indeterminados, que ajudam a ‘resistir à maldade do inimigo’. Entre eles está o katari (a serpente), o jararankhu (o lagarto), o jamp’atu (o sapo) e a kusikusi (a aranha) (Cusicanqui, 2022, p. 305, modificado). Tal é o caso do impressionante desenho de Waman Puma ao retratar o ser mítico Uturunku e chamá-lo de Sexto Capitão, um indígena dos altiplanos transformado em jaguar46. Cusicanqui nos conta em sua análise que, num primeiro momento, pensava que o capitão seria representado pela figura humana de cabelos longos que aparece à direita, enfrentando um grande jaguar, com seu arco e fecha. Contudo, nossa autora se retrata, nos dizendo: “simplesmente não tinha me dado conta (pelo meu hábito antropocêntrico) que o Sexto Capitão era, na realidade, o Uturunku” (Cusicanqui, 2022, p. 306). Essa transformação poderia ser entendida a partir da ideia de um perspectivismo, porque, ainda que o relato de Cusicanqui estabeleça um lugar geográfico andino, o perspectivismo, a partir das cosmologias ameríndias e amazônicas, oferece mais um poderoso elemento contracolonial. Cf. Danowski; Viveiros de Castro, 2014, p. 93): “o que chamaríamos de mundo natural, ou "mundo" em geral, é para os povos amazônicos uma multiplicidade de multiplicidades intrincadamente conectadas. As espécies animais e outras são concebidas como outros tantos tipos de "gentes" ou "povos': isto é, como entidades políticas. Não é "o jaguar" que é "humano"; são os jaguares individuais que adquirem uma dimensão subjetiva (mais ou menos pertinente, conforme o contexto prático da interação com eles) ao serem percebidos como tendo "atrás deles" uma sociedade, uma alteridade política coletiva”. 46 116 FIGURA 5: Otorongo achachi, de Waman Puma (1615) FONTE: Cusicanqui, 2022, p. 305. Esta importante ressalva exemplifica um dos vários processos de descolonização que se fazem possíveis, o que irá desembocar nas resistências e nos “gestos de insubordinação intelectual” (Cusicanqui, 2022, p. 280) que praticamos quando nossa indigestão, causada pelos anos sorvendo os baquetes modernos, nos empapuçam os sentidos. E, se é possível chegarmos a lugares em que nossas antigas certezas são regurgitadas, temos diante de nós a possibilidade de aprender com os animais citados. Aprender a nos defendermos das maldades inimigas que se alimentam de nossa morte. Aprender, também, a assumir a equivalência de capacidades cognitivas como uma premissa básica, que não acontece em nossas sociedades, porque há uma cadeia de desprezos coloniais que pressupõem a ‘ignorância do índio’ e se filtra pelos poros do cotidiano, erigindo os muros do sentido comum (Cusicanqui, 2018, p. 80, tradução nossa). Mas, para que essa espécie de milagre da vida possa imantar as consciências daqueles que ainda estão presos às noções muito pobres que alimentam a cosmovisão eurocêntrica moderna, é necessário, além da luta 117 conjunta pelo propósito da vida boa, relembrarmos que outras temporalidades são também possíveis. Temporalidades tais que sejam concebidas como simultaneidade, num continuum entre passado, presente e futuro: Viver em tempo presente, tanto o passado inscrito no futuro (‘princípio da esperança’), como o futuro inscrito no passado (qhipnayra), [que] supõe uma mudança na percepção da temporalidade, é declarar a eclosão de tempos mistos na consciência e na práxis (Cusicanqui, 2018, p. 91, tradução nossa). Como nos adverte Cusicanqui, umas das questões centrais desse projeto de viver outramente lança sua atenção crítica às palavras encobridoras e dos modismos teóricos recentes – que mais determinam um aprisionamento do saber em espécies de seitas-conceito -, em direção a uma prática irreversivelmente comprometida com os propósitos que advoga. Prática que reconhece a possibilidade de agência cosmopolítica não apenas ao demos enquanto povo único e exclusivo, mas no engajamento pela libertação irrestrita, do jeito melhor que conseguirmos fazer por meio das nossas ações micropolíticas. É por isso que, no contexto de uma crítica da temporalidade, não há ‘pós’ nem ‘pré’ em uma visão da história que não é linear, tampouco teleológica, que se move em ciclos e espirais, que marca um curso sem deixar de retornar ao mesmo ponto. O mundo indígena não concebe a história linearmente, e o passado-futuro estão contidos no presente: a volta ou o avanço, a repetição ou a superação do passado estão em jogo a cada conjuntura, e dependem de nossos atos mais do que de nossas palavras (Cusicanqui, 2010b, p. 55, tradução nossa). Eis, assim, uma das muitas possibilidades de, em vendo e fazendo o mundo colonial se acabar, engajarmo-nos em práticas comuns que aliem não só nossas experiências atuais e ancestrais, mas que, com outras agências, possam sonhar com novos mundos possíveis. Esta é a tarefa exigida se quisermos sobreviver à catástrofe presentificada para chegar a outro lugar. Porque, como nos aconselha a autora a quem dedicamos esta seção da tese: É um privilégio viver em um espaço desde o qual se pode experimentar e repensar coisas como a desobediência organizada, a resistência comunitária, as formas comunais de autogestão, a desprivatização, de fato, dos serviços e espaços públicos, as formas alternativas e iconoclastas de fazer política desde o cotidiano/feminino, que nos 118 ajuda a defender-nos das lógicas perversas do sistema capitalista. A peleia por resistir à privatização da água, do ar, dos bosques e cordilheiras se expande a todos os níveis; nossas ideias também são matérias-primas expropriáveis. Mas, é bem difícil pensar que se possa lograr espaços descolonizados no interior da academia, desde a individualidade da cátedra, ou na solidão da produção teórica. Considero que há de ser formados coletivos múltiplos de pensamento e ação, corazonar e pensar em comum, para poder enfrentar o que nos espera. [...] Isto tem a ver com maneiras de enfrentar as crises ambientais, a crise dos serviços, as crises de abastecimento. Temos de estar prontos! Prontos como? Penso que só será possível através de comunidades (ancestrais o modernas, de parentesco ou afinidade), que sejam capazes de fazer ao mesmo tempo que falar; trabalhar com as mãos, ao mesmo tempo que trabalhar com a mente; mas também comunidades que não obliterem nem silenciem vozes dissidentes, as formas femininas e ancestrais de criar o político e de procurar o bemestar comum. Assim mesmo, me parece importante a ocupação dos espaços; a recuperação dos terrenos públicos privatizados e entulhados; a retomada dos espaços visuais cobertos pelas mensagens estridentes do comércio e da política. Temos que nos valer de recursos múltiplos, de gestos diversos que tenham a ver com ações que podem ser musicais, artesanais e nas ruas, tecendo por debaixo, alegorias de interconexão que, em última instância, fará brotar outra linguagem da politização (Cusicanqui, 2018, p. 72-73, grifo da autora, tradução nossa). Junto a esta tentativa de fazer um mundo novo a que aludimos neste trabalho, a atitude de corazonar – ligar seu coração com sua memória -, participa da construção a que almejamos. E, pensando na memória, trazemos por fim, a pensadora Denise Ferreira da Silva que, fazendo uma espécie de genealogia da memória filosófica moderna, nos ensina que só haverá saída na dissolução completa do homo modernus. 4.3 Denise Ferreira da Silva: a poética negro-feminista para destruir o Homo Modernus O corpo marcado pela tortura que se decompõe no solo e todas as particulazinhas que fazem parte deste corpo vão fazer parte de tudo o que vai crescer nesse solo. Denise Ferreira da Silva (Curso Luz Negra, Aula 3, 2019b, 1:49:07). 119 A filósofa Denise Ferreira da Silva, por meio de suas contundentes críticas ao projeto filosófico moderno de erigir um sujeito da transparência localizado a partir da Europa, perfaz o caminho difícil e necessário para desvelar os mecanismos teóricos, estéticos, políticos, jurídicos - em suma, ontoepistemológicos (ser e saber), que o forjaram: como ponto focal a partir do qual todo o resto, os “outros da Europa”, precisavam se apoiar para tentar participar de uma comunidade ontologicamente digna. Grande parte do seu projeto, segundo a pensadora, lança-se a “mapear os efeitos da mobilização das estratégias científicas e históricas nos textos que escreveram os sujeitos políticos modernos” (Silva, 2022, p. 411). Assim, Denise Ferreira da Silva encontra, na justificação científica do século XIX, a partir das teses dos principais filósofos europeus modernos dos séculos XVI, XVII e XVIII, o contexto no qual irão nascer não apenas o edifício estruturado das configurações que tornaram possíveis conhecer o sujeito europeu moderno ou, homo modernus – “o sujeito moderno como efeito tanto da significação histórica quanto da significação científica – simultaneamente produtor e produto, causa e efeito” (Silva, 2022, p. 261); mas, acima de tudo - os sujeitos subalternos, afetáveis, colonizáveis, condenados pela Terra Europa à uma condição de inferioridade moral, jurídica e política. A novidade no projeto filosófico de Denise é mostrar que, a partir dos mecanismos ontológicos modernos, não só aquele sujeito que Foucault tão bem elucidou com sua genealogia é capaz de ser conhecido, mas principalmente conhecer como emergem, no discurso moderno, os “outros” racializados que não são levados em conta e cujo desaparecimento é mandatório. De saída, o que interessa à autora é pensar condições de (im)possibilidade de novos horizontes, uma vez que sua poética negra feminista vislumbra a im/possibilidade da justiça, a qual, desde a perspectiva do sujeito racial subalterno, requer nada mais nada menos que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido, isto é, o Mundo Ordenado diante do qual descolonização, ou a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos, é tão improvável quanto incompreensível (Silva, 2019a, p. 37). Importante notar a pujança desta questão diante o fato de que, mesmo que se possam sumarizar, a partir dos registros oficiais, todas as mortes de 120 pessoas racializadas no Brasil nas últimas décadas por meio da violência estatal, sem contar a infinidade de tantas outras que sequer são consideradas – a justiça enquanto reparação nunca será alcançada, porque ela só chega à uma determinada parcela da população que está protegida pela arquitetura ontoespistemológica moderna e capitalista liberal, a saber, pessoas brancas que não estão em situação de vulnerabilidade social e econômica. Isto posto, há uma guerra declarada do Estado - com seus poderes de se autopromover e se autoproteger que, “na recente reconfiguração do palco político global (ético-jurídico) [o coloca] no comando da subjugação racial” (Silva, 2014, p. 69) – contra as pessoas historicamente despossuídas, por meio do genocídio da população negra, indígena e pobre; em suma os condenados da arquitetura colonial capitalista. É por isso, por sua condição ontológica construída enquanto exterioridade pela gramática moderna, que “esses extermínios não desencadeiam uma crise ética porque os corpos dessas pessoas e os territórios que elas habitam quase sempre já significam violência” (Silva, 2014, p. 69). A guerra, portanto, é uma forma de afirmação e sobrevivência do Estado, dos pilares ontoespietemológicos que só existem a partir do exílio dos outros àquilo que Denise chama de “afetabilidade”. O que ampara a necessidade do exílio de uma moralidade objetiva é a construção de uma noção muito particular de dignidade ontológica que é resguardada apenas à noção de humanidade exclusiva. Assim, Denise aponta que o mapeamento da racialidade revela como esse arcabouço políticosimbólico que reconfigura um efeito-poder da necessitas (formalização) produz os “outros em relação à Europa” em situação de afetabilidade, sujeitos que não atuam na moralidade objetiva. Nele, os outros em relação à Europa habitam sozinhos os domínios da necessitas, completamente sujeitados ao poder limitador/regulador que produz e determina as partes e movimentos dos seus corpos, assim respondendo pela qualidade inferior de suas mentes, o que é significado nos modos de existência que se desenvolvem em seus territórios. [...] Em outras palavras, a racialidade produz tanto o sujeito da moralidade objetiva, que é protegido nos salões da lei e pelas forças de Estado, quanto os sujeitos da necessitas, os sujeitos raciais subalternos cujos corpos e territórios, o presente global, se tornam lugares onde o Estado faz uso da sua força de autopreservação” (Silva, 2014, p. 91-92). Percebemos, então, que a tal falência das instituições a toda hora diagnosticada, além de toda uma literatura crítica que tenta mobilizar seus 121 argumentos para realizar uma inclusão dos “outros” nas promessas de dignidade da vida humana - promessas estas feitas pela filosofia que se pretende universal quando em formulações de sua ética iluminista - restam não só inúteis como irrealizáveis diante da indiferença que produziu e ainda reproduz a diferença racial. Tanto os diagnósticos quanto as críticas demonstram que a violência racial, à solta na (in)diferença que põe ao chão a administração da justiça na/para a aplicação da lei, imediatamente legitimando o Estado a usar suas forças para a autopreservação, não requer extirpar os significantes da humanidade. Pelo contrário, a queda dessa administração já está inscrita na racialidade, que produz a humanidade, a figura política autodeterminada (ético-jurídica) que busca uma moralidade objetiva, apenas porque isso a institui em uma relação – unida/separada pelas linhas do quadro clássico – como outra figura política (o “eu” sujeitado), que se depara com o horizonte da morte. (Silva, 2014, p. 110-111). Nessa tese de Ferreira da Silva, podemos então apenas constatar que, se a justiça é irrealizável, pois habita o “conto ontológico que anuncia a moralidade objetiva” (Silva, 2014, p. 110-111), nada menos que imaginar outras saídas e tentar destruir esse edifício ontoepistemológico nos é exigido enquanto uma requisição do fim deste mundo. Se o entendemos, por óbvio, como uma perspectiva objetiva, “ante a essas estruturas, esses sujeitos raciais subalternos não são ninguém, são não seres” (Silva, 2014, p. 100). Ademais, se ainda quisermos parar de fazer sumir esses ninguéns, esses no-bodys, se quisermos que parem de ser desaparecidos esses corpos que representam uma ameaça à estrutura perversa do mundo moderno, devemos, então, pôr fim a ela, precisamente, porque a racialidade assegura que, onde quer que seja, independentemente do lugar do planeta, aquele ‘outro’ que representa uma constante ameaça existe porque já foi assinalado: como tal, ele é uma ameaça interminável porque sua diferença necessária usurpa sistematicamente do sujeito a pretensão sobre uma vida ética de autodeterminação” (Silva, 2014, p. 113, grifos da autora). Enquanto, então, aceitarmos a condição de termos sido feitos em regime de apartheid ontológico, sequer haverá qualquer outra exposição que não seja à uma violência total que nos conduzirá, necessariamente e infelizmente, à morte. Mas, como exigem todas as boas estratégias táticas de contra-ataque, é primeiro mandatório tentar compreender como a ameaça foi construída. Nós devemos 122 imaginar poder jogar contra o inimigo. Para tanto, antes de nos juntarmos a ele, condição que nos colocaria como vencidas e vencidos, o mapearemos, dançaremos com ele, até surgir o rabo de arraia. E, na ocasião deste trabalho acadêmico, o pensamento de Denise parece ser um bom paranauê. Vejamos... 4.3.1 Os pilares ontoespistemológicos modernos Desde Immanuel Kant, munido com sua Crítica da Razão Pura, sabemos que as categorias do Entendimento conferem poderes para que os homens possam conhecer, por meio dos conceitos a priori – inscritos desde já na mente, o fundamento mesmo das impressões sensíveis que lhes aparecem pela experiência. Segundo o filósofo, portanto, a possibilidade de conceber o espaço e o tempo são calcadas na intuição pura, que não dependem de justificações a posteriori, ou seja, na experiência, constituindo aquilo que o pensador categorizará, dentro da Doutrina Transcendental dos Elementos, como Estética Transcendental. Sendo, portanto, intuições a priori, de certa maneira inatas, tais categorias dão conta de classificar, separar e determinar os objetos (e pessoas) que chegam à via dos sentidos, conferindo, assim, a possibilidade de produção de qualquer conhecimento da ordem das coisas do/no mundo e, de outro lado, da ordem de si mesmo, afastando-se dos objetos como sua condição ontológica47. Não é sem razão, portanto, como já demonstramos anteriormente em nossa dissertação de mestrado, que o filósofo foi o responsável por, de maneira inédita, determinar um conceito filosófico que explicava as diferenças entre os seres humanos que a todo o tempo intrigavam o velho mundo europeu a partir dos primeiros relatos das colonizações, fabricando, pois, distinções qualitativas sob a justificativa das diferenças raciais. Diante dos olhos do próprio autor, esse contingente de outros-que-ele não passavam de “degradação animalesca da Segundo o autor em sua célebre obra em questão, “A unidade sintética da consciência é, portanto, uma condição objetiva de todo o conhecimento, de que preciso não apenas para mim a fim de conhecer um objeto, mas sob qual toda intuição tem que estar a fim de tornar-se objeto para mim, pois de outra maneira e sem essa síntese o múltiplo não se reuniria numa consciência” (Kant, 1983, p. 87, grifo do autor), mas que, caso não o tivesse feito, faríamos nós. 47 123 humanidade” (Kant, 2010, p. 31) por não reproduzirem seu modelo civilizatório arregimentado sob as bases de um Estado-europeu. E é a partir disso, que Denise considerará ser herança do kantismo dois pilares ontoespistemológicos modernos fundamentais, a saber separabilidade e determinabilidade. Segundo nossa autora, dois elementos entrelaçados do programa kantiano continuam a influenciar projetos epistemológicos e éticos contemporâneos: (a) separabilidade, isto é, a ideia de que tudo o que pode ser conhecido sobre as coisas do mundo deve ser compreendido pelas formas (espaço e tempo) da intuição e as categorias do Entendimento (quantidade, qualidade, relação, modalidade) –, todas as demais categorias a respeito das coisas do mundo permanecem inacessíveis e, portanto, irrelevantes para o conhecimento; e ,consequentemente, (b) determinabilidade, a ideia de que o conhecimento resulta da capacidade do Entendimento de produzir conceitos formais que podem ser usados para determinar (isto é, decidir) a verdadeira natureza das impressões sensíveis reunidas pelas formas da intuição” (Silva, 2019a, p. 39). Ora, como nos explica Marco Antonio Valentim, esse tipo de formulação da filosofia transcendental vai se fundamentar na possibilidade mesma de uma recusa irrestrita a se “contaminar” com exterioridades, que, nos termos de Husserl (apud Valentim, 2018, p. 20), proporia uma “aniquilação do mundo das coisas”. Isso quer dizer, categoricamente, que a tendência aniquiladora desta ontoepistemologia moderna se faz afirmar senão como sua condição de existência. É preciso se apartar das exterioridades, das afetabilidades, para que se garanta a segurança do núcleo que se pretende intocado pela ameaça da morte, que só seria possível aos outros que europeus e que assegure, aos senhores do Entendimento, a “Excepcionalidade do homem – sua alma, livre arbítrio, capacidade de raciocinar etc.” (Silva, 2016, p. 59, tradução nossa). Entretanto, os princípios racionais universais do Entendimento explicariam muito bem uma certa natureza de uma parte dos seres humanos enquanto fenômenos determinados por eles e, aquilo que motiva grandes batalhas na tradição filosófica, a saber, a tópica da liberdade, restaria confinada quando muito, nos muros da razão. Ou, na pior dos pesadelos kantianos, na liberdade sem lei daqueles que ainda não foram contemplados pela “sociabilidade insociável” que faz um cálculo das vontades e motivações coletivas. 124 Mas, Denise nos mostra que, como resultado dessa conta kantiana herdeira do princípio da Mathesis universalis, os dois pilares garantem, ao sujeito do Entendimento, uma soberania dos demais objetos e entes do mundo, e uma separação entre grupos humanos. Uns mais próximos da liberdade, outros menos, a depender de seu espaço e tempo na ordenação cosmológica da vida na Terra. Colado aos dois primeiros pilares resultantes do sistema filosófico kantiano, que não resolvem a contento o problema da liberdade que é constantemente ameaçada pelas leis exteriores da natureza, aparece no horizonte da ontologia moderna um terceiro, desta vez à pena de Hegel. Neste passo - que é um dos principais da tese filosófica de Denise para mostrar um ponto de inflexão que abrirá margem às teorias do racismo científico do séc. XIX -, suas análises dão conta de, a partir da leitura da Fenomenologia do Espírito, considerar que a liberdade, antes restringida pela exterioridade, passou a se expressar fazendo as pazes com razão. O que Denise considera ser a poesis interiorizada de Kant, a saber, “formulações filosóficas que descrevem a razão como a força produtiva que opera primeira e principalmente a partir dos limites da mente racional” (Silva, 2022, p. 24), transfiguram-se em poesis transcendental: Hegel reconstituiu o universal formal kantiano (“razão pura”), isto é, o transcendental, como coisa (desejante viva) histórica, a saber, a força (interior-temporal) produtiva, o “espírito”, o Eu transcendental. Ao resolver a razão em liberdade, a natureza em história, o espaço em tempo, as coisas do mundo em sujeito (pensante, do conhecimento, atuante, desejante ou vivente), Hegel reescreveu a peça da razão como poesis transcendental (Silva, 2022, p. 179). A consciência, quanto mais autorreflexiva, toma a forma poderosa de não apenas produzir-se a si mesma, mas ordenar, categorizar, historicizar e atualizar as manifestações do corpo, da mente, do espaço, do tempo, da Natureza e da Razão - vistas como distintas por seu antecessor - num mesmo princípio: o Espírito. A sua fenomenologia se desenrola, então, por meio dos atos históricos e progressivos, tendo como sua mola de propulsão a ideia central da superação de um estágio anterior em direção às possibilidades de um outro e novo estágio. Tal processo dialético que, n’A ciência da lógica será encarado como Aufhebung, consistiria em precisar estes estágios de desenvolvimento de todas as coisas e gentes observáveis no mundo e, por consequência de uma lógica 125 interna ao sistema hegeliano, caracterizá-las qualitativamente pela historicidade manejadas por uma razão científica. A partir dessa transformação proposta por Hegel, Denise identifica que, aliado aos dois primeiros pilares kantianos, está posto um terceiro: a sequencialidade. É este pilar síntese que poderá atestar que, observadas e cumpridas as condições deste edifício, haverá àqueles que moram em sua cobertura, àqueles que compram suas varandas-gourmet, àqueles que se aglomeram nas comunidades, àqueles que sentem o desespero nos campos de refugiados em tendas puídas e àqueles que ocupam as ruas e habitam as florestas do mundo aparentemente despossuídos de tudo. Quanto mais perto de arranhar o céu, mais perto do Espírito que garante lugar privilegiado de acesso aos mecanismos jurídico, econômicos e morais do Estado. Denise, deste modo, nos informa que a contribuição decisiva de Hegel para a “representação moderna, como defendo, não é estabelecer como as configurações da Europa pós-iluminista difere-se de outras configurações anteriores ou coexistentes, mas sim estabelecer o porquê” (Silva 2022, p. 201). E esta motivação acontece, uma vez que, para Hegel, a Europa pós-iluminista atesta a realização do “espírito”, pois ali a “Ideia” – ou seja, a razão enquanto liberdade – é observável nas configurações sociais, onde o “Espírito” é reconhecido como o Eu (regente e produtor) transcendental, e quando a autoconsciência entende sua causa e essência, a saber: a transcendentalidade, isto é, no momento da “vida ética”. Em outras palavras, quando Hegel remolda a autoconsciência como homo historicus – a coisa (interiortemporal) autodeterminada, cuja vontade e ação atualizam somente o “Espírito” – ele também estabelece a universalidade e a historicidade como os princípios que marcam a “diferença intrínseca” da Europa pósiluminista (Silva, 2022, p. 205). A narrativa inscrita nos anais da filosofia moderna que encontra seu ápice no pensamento hegeliano constitui-se numa espécie de álbum de memórias do sujeito eurocêntrico, o Homo Modernus. Uma mesa em que só alguns sorvemse de um baquete de dignidades, enquanto outros mantém aquela comensalidade senão através de seu trabalho, vida e espíritos expropriados. Como consequência desse sistema, não apenas estariam condenadas as humanidades outras que europeias, mas também o mundo todo, conforme nos explica Valentim: 126 Longe de apontar para algo remoto, tal hipótese já era em si mesma aniquiladora: no conceito de “mundo exterior”, esse tópos pretensamente neutro, aniquilava-se – colocando “entre parênteses” – uma multiplicidade inumerável de “mundos divergentes” (apud Stengers, 2005), neutralizados em sua potência própria de mundanização pela “consciência absoluta”, emancipada, do povo universal. Se se o considera em vista de seu impacto imanente sobre outros povos, humanos e não-humanos, que desde sempre manteve excluídos e assujeitados à produção do sentido “em geral”, dificilmente escapa à evidência de que o pensamento transcendental opera como um dispositivo de aniquilação ontológica. Adversária da onto-teo-logia, a tese moderna do “isolamento metafísico do homem” (apud Heidegger, 1190, p. 172), é, ao mesmo tempo, etno-eco-cida (Valentim, 2018, p. 21). Tal aniquilação ontológica logrará maior êxito quando no ofuscamento do discurso filosófico ante ao florescimento dos discursos científicos do século XIX e XX48, aquelas gradações que antes forjavam a ontologia do sujeito histórico passaram a motivar as investigações das ciências naturais e antropológicas ao se perguntarem, primeiro, pelas disposições biológicas do ser humano (gramática das diferenças raciais) para, depois, aliá-las às disposições societais (gramática das diferenças culturais) – todas ligadas, obviamente, à reprodução do Estado liberal moderno e seu aparato ético, jurídico e econômico. Assim, toda uma ideia entorno do darwinismo social se desdobra, mostrando que, na linha ascendente e evolutiva da história do mundo, as colonizações seriam justificáveis para um melhoramento cultural daqueles cujos hábitos assombram as etiquetas modernas, mas que também garantem o acúmulo de capital, fonte da expropriação das colônias. Isso, mais tarde, conceberá países de primeiro e terceiro mundos. Para não repetirmos a já exaustiva história do “fardo do homem branco”, limitamo-nos aqui a exprimir, nas palavras da nossa filósofa, a ideia das distinções culturais que, diante da pretensa universalidade humanista, faz do racismo científico algo moralmente obsoleto: Ao mobilizar o cultural com o intuito de encarcerar os “outros da Europa” dentro das suas tradições e assim, de manter a Europa pósiluminista no momento da transparência, esses projetos científicos sociais [antropologia e sociologia] abordaram seus objetos sempre-já como coisas raciais. Isso não ocorreu porque as versões dessas disciplinas falharam em recusar o “pecado original”, isto é, a escrita do homem como efeito das ferramentas do nomos produtivo, ou seja, a O que os físicos Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, em seu livro O grande projeto, de 2011, considerarão, presunçosamente, ser a de morte da filosofia. 48 127 razão científica como máscara do Espírito, mas sim porque, conforme o rejeitaram, incorporaram a diferença racial como traço substantivo do corpo humano. Se este não tivesse sido o caso, não teria sido possível esculpir seus próprios nichos de modo a não os distinguir da história (Silva, 2022, p. 293, grifos nossos). É por esse horizonte inscrito desde já na aniquilação de outras entidades, outras ontologias e outras espiritualidades que, quando estamos diante dos apartheids, dos genocídios humanos e outro-que-humanos, dos naufrágios, do atraso das vacinas, dos inúmeros tiros, balas perdidas, lagrimas de familiares que sepultam seus mais novos ou mais velhos por conta da “violência urbana” ou do campo, das hordas de animais que são transformados em carne para uma certa produtividade pop da agroindústria, das pessoas sendo pesadas por @ ou alimentadas por ração, enfim, de todo esses futuros interrompidos, a tudo isso, não existem maiores comoções dos senhores da razão transcendental. Afinal de contas, segundo Denise, exatamente porque o arsenal da racialidade assegura o lugar da mente e configuração social da Europa pós-iluminista na transparência, ao passo que escreve os “outros da Europa” numa dimensão não abarcada pela transcendentalidade, o posicionamento subalterno dos últimos não provoca a crise ética esperada pelas pessoas que argumentam que a subjugação racial contradiz os princípios éticos modernos (Silva, 2022, p. 326, grifos nossos). Por isso, sempre que pensarmos o primeiro mundo, sempre que aludirmos à emancipação do sujeito, sempre que clamarmos pela dignidade, devemos lembrar que as condições para que pensemos estes termos é forjada pela ontoepistemologia moderna e seu duplo: a dialética racial49 e sua capacidade de só pensar no humano. Só existem raças porque, antes, o sujeito da transparência se fez em discurso que perpassou os domínios das ciências naturais e sociais conjugadas na inscrição do sujeito moderno naquilo que Denise conceberá por “Tese da Transparência”. Só pode existir liberdade (autodeterminação), portanto, se existir uma comparação com os “outros” afetáveis que foram mapeados primeiro pelo léxico filosófico moderno e, depois, científico que fizeram nascer as diferenças físicas, Cf. Silva (2019a, p. 139): “as quais explicam as diferenças econômicas resultantes de séculos de expropriação da terra do nativo e do trabalho do escravo, primeiro como diferença racial e, depois, diferença cultural”. 49 128 raciais, sociais, jurídicas e econômicas como operação das leis naturais atreladas às capacidades mentais do ser humano, e não como uma consequência de uma operação ontológica que, ao separar os humanos dos não humanos, separava os primeiros entre si. A tradição filosófica chegada ao seu ponto ótimo com Kant e Hegel se traduz em evidências naturais pela autoridade do discurso científico em sua mudança de paradigmas, instaurando de forma contumaz a ideia mesma de uma filosofia essencialmente anti-cosmopolítica. Concluiu-se, como vimos, a montagem final do espetáculo moderno das ontologias coloniais. Uma crença verdadeira e justificada senão por fabulações especistas e racistas. As liberdades modernas, além de serem construídas a partir do uso e abuso de combustíveis fósseis (Chakrabarty, 2013), é primordialmente assentada nos corpos dos outros afetáveis, combustíveis viventes. Trata-se, sobremaneira daquilo que Cida Bento (2022) chama de pacto narcísico da branquitude que, no caso do Brasil, será exitoso, porque os brancos, em sua maioria, ao não se reconhecerem como parte essencial nas desigualdades raciais, não as associam à história branca vivida no país e ao racismo. Além disso, a ausência de compromisso moral e o distanciamento psicológico em relação aos excluídos são características [desse] pacto narcísico (Bento, 2022, p. 121). A explicação, portanto, é friamente justificável, pois filosoficamente moderna e possível, uma vez que estes condenados contitu[em] tanto uma forma social quanto unidades geográfica e historicamente separadas que, como tal, ocupam posições diferentes perante a noção ética de humanidade – identificada com as particularidades das coletividades branco-europeias (Silva, 2019a, p. 43). Os que são produzidos como restos, os outros que são obrigados a pagar com sua vida para que haja a construção do mundo moderno (tanto entidades humanas ou extra-humanas) estarão eternamente inscritas num ordenamento que os compromete a saldar uma dívida impossível, uma dívida impagável. Tal ordenamento que foi começado na estrutura da acumulação de recursos para sustentar um projeto do capital insuflado pela sanha colonialista, muitas vezes é esquecido por uma certa fortuna crítica que, por demais histórica no sentido 129 progressivo, parece esquecer a materialidade do que foi o colonialismo, este que usou de todas as suas armas para extrair todos os valores do trabalho de outrem. 4.3.2 O contragolpe da Poética Negra Feminista: liberar a imaginação do Entendimento Diante desse esquecimento suspeito, Denise oferece à noção marxista de “acumulação primitiva” uma crítica que marca a lembrança de que só existem as estruturas do capitalismo, porque houve o trabalho escravo como essencial e inerente à sua reprodutibilidade. Assim, a coletânea que é nomeada Dívida Impagável (2019a) é animada por também questionar, novamente, a história como flecha do tempo. O experimento especulativo é inspirado nas personagens de Octavia Butler, especialmente Dana, da obra Kindred (2017). Tentando não entregar ao máximo os detalhes do excelente livro de Butler às pessoas que ainda não tiveram oportunidade e a sorte de ler a obra em questão, dizemos apenas que a protagonista viaja contra sua vontade no “tempo-espaço” descobrindo que sua vida permanece atada ao seu “passado” que fora compartilhado por outras pessoas seviciadas pela violência escravocrata dos Estados Unidos – e tais viagens sustentam a própria existência de Dana no “presente”, pois precisa salvar um antepassado da morte para que consiga sobreviver. Todavia, este trabalho gera mais danos à própria existência da protagonista. Essa inspiração literária traria a forte noção de que os efeitos da expropriação e violências totais coloniais não estão no passado, porque, como atestamos, o passado não passou. O passado tem se atualizado permanentemente na medida em que suas práticas nocivas continuam a ser reproduzidas pelas estruturas que protegem a propriedade privada – estruturas estas que são forjadas no interior da ontoepistemologia moderna: econômica, social e jurídica, uma vez que são todas políticas no sentido foucaultiano de viver e deixar morrer. Contra essa genealogia que nada mais faz do que desvelar o DNA da racialidade, uma estratégia de enfrentamento insurgente pode ser traduzida numa Poética Negra Feminista, cuja “força radical da Negridade reside na virada do pensamento; o conhecer e 130 o estudar conduzidos pela Negridade anunciam o Fim do Mundo como o conhecemos” (Silva, 2019a, p. 91, grifo da autora). Não é sem razão que a categoria da Negridade aparece aqui. No texto a que aludimos, de 2019, Denise Ferreira da Silva diz que a diferença racial observável por tal categoria funciona justamente porque “oclui a violência total absolutamente necessária para que tal expropriação ocorra, uma violência autorizada pelas formas jurídicas modernas” (Silva, 2019a, p. 139). Se assim é, apenas a categoria da Negridade, quando trazida à Poética Negra Feminista proposta pela autora, é capaz de, por sua força, “desestabilizar o programa ético regido pela determinabilidade ao expor a violência que a mesma refigura” (Silva, 2019a, p. 139). Poderíamos nos perguntar, somadas a ela, quais demais estratégias poderiam estar em coalizão para fraturarem os pilares que sustentam este mundo neocolonial e capitalista como o conhecemos, exprimido entre tantas outras torturas e desgraças, pelas palavras encobridoras que restam num “umbral” de que nos fala Cusicanqui; pela morte, pelo apagamento e pela impossibilidade de realizar qualquer justiça, uma vez que não há, de maneira sincera, maiores perturbações éticas quando israel fuzila os refugiados que buscam se alimentar pela distribuição de ajuda humanitária na Palestina, por tantos outros que são desalojados de suas terras pela sanha dos minerais que dão vida às placas eletrônicas de celulares no Congo, pelas notícias semanais de que jovens negros são assassinados ou que povos indígenas são contaminados pelos rejeitos de garimpo ilegal que infestam seus já diminuídos territórios e por uma tristeza tão absoluta que os retira da vida pelo suicídio. Sair desse horizonte sistemático e sumário da morte, pois como nos ensina o samba, camarão que dorme, a onda leva, é preciso. Porque é possível imaginarmos mundos em que nossa condição, aquela que nos põe a todos como vivos, não seja uma maquiagem ou, ainda, a insistência numa luta crítica, ainda que meritosa, mas inútil, no final das contas, pela inclusão a um sistema desde já construído para nos matar. Ou, mais precisamente: Quanto tempo ainda será necessário para finalmente reconhecerem que as condições sob as quais reescrevem sua própria história não são propriamente suas, que a diferença que os marca como sujeitos subalternos também institui o lugar dos que os exploram e os dominam? Mais de cinquenta anos já se passaram desde que Fanon 131 delimitou as figuras somente capazes de irromper na representação moderna, os espécimes do homo modernus, isto é, as figuras cujas configurações sociais e corporais não soletram o nome próprio do homem, ou seja, os sujeitos subalternos globais (Silva, 2022, p. 436) Se somos cabra marcado para morrer, como imaginar outramente? Quanto tempo teremos, ainda? A coalização de que tanto somos pacientes devém de práticas da ancestralidade, do sonho e de uma pedagogia revolucionária da lembrança que nos (re)ensina nossa imanência à vida, que é sempre compartilhada e implicada continuamente. É sobre esse “continuum” que Denise desenvolverá a ideia de uma diferença sem separabilidade que “vislumbra o que torna-se acessível à imaginação, o tipo de abertura ética que pode ser vislumbrada com a dissolução do jugo do Entendimento e a entrega do Mundo à imaginação” (Silva, 2019a, p. 44). A este expediente imaginativo necessário como uma possibilidade de fugir à iminência da morte provocada, Denise nomeia de Corpus Infinitum. Tal ideia emerge pelo questionamento crítico e radical à noção estruturante da temporalidade, tal como pressuposta pela filosofia kantiana. Assim, Denise nos diz que a crítica marxista à noção da racialidade é insuficiente, pois considera que a violência total utilizada pelo colonialismo resta como uma fase, um período histórico já superado, tendo se refinado e transformado em outras violências como a islamofobia, a crise dos refugiados e as limpezas étnicas. Contudo, o que Denise sugere, é que os efeitos da racialidade estão sempre atualizados, mesmo que por outros nomes. Ou seja, o princípio que dispõe das vidas outras que europeias, que as torna governáveis, controláveis, enfim, matáveis, é o que estrutura todo o sistema capitalista e não apenas no seu primeiro momento de acumulação primitiva. Ou seja, “a violência racial e colonial [atua] como uma sobra ideológica, oportunista, do capital global” (Silva, 2020, p. 207). O que Denise propõe, como forma de superar essa linearidade temporal que nada mais faz do que reforçar o princípio racial e perpetuá-lo, além de aprisionar a imaginação nos domínios ontológicos modernos50, é conceber um O que, inclusive, seria mascarado pelo princípio da democracia liberal que aparentemente oferece a oportunidade de todos participarem das decisões políticas, mas que, por este mesmo princípio aprisionar a imaginação de modo que a impeça de conceber formas outras das que estamos acostumados e anestesiados por ele, constitui, enquanto noção de tempo, uma violência antinegra, cf. Warren (2024). Agradeço ao Bruno Amorim pela tradução e indicação 50 132 pensamento poético capaz de mobilizar o que existe como plenum a fim de pensar outramente o mundo, porque este pensamento “revela a linguagem de assimilação e o impulso para proteger o ‘modo de vida’ branco/europeu como uma repetição dos termos e da lógica aplicada há um século” (Silva, 2020, p. 213). Assim, segundo nossa autora, uma vez que o que acontece ocorre no plenum, ele é ao mesmo tempo expressão de, e expresso por, seja lá o que existe debaixo, acima e ao lado; o que já se foi, e o que ainda está por vir. Quando um modo de pensamento diagrama o capital global junto a tantos instantes e instâncias repetitivos da aplicação do maquinário colonial-racial, ele não pode ser indiferente à violência racial em todas suas iterações e expressões (Silva, 2020, p. 214). A esta imageação do plenum, um dos caminhos propostos por Denise que se somam com as ideias de viver outramente, ao partir de uma premissa temporal outra que kantiana e hegeliana, assim como Silvia Cusicanqui, e que, no final das contas, destrua este mundo como o conhecemos, reside formular a tentativa especulativa, num primeiro momento, de liberar todo o potencial imaginativo das amarras das leis do Entendimento e da transparência51. Na aula intitulada “As implicações filosóficas” do curso “Luz Negra”, ministrado na Universidade de São Paulo em dezembro de 201952 - lugar de excelência do colonialismo, como nos conta Nego Bispo -, Denise nos convoca a pensar qual deste texto, que ajuda a dar uma dimensão do problema da temporalidade e seus desdobramentos. Importante salientar que, na ocasião da defesa desta tese, na arguição do prof. Wanderson Flor do Nascimento, ficou evidente que, se tomarmos tal asserção às últimas consequências, estaremos certamente ingênuos, para não assumirmos equivocados, diante da possibilidade de que Denise estaria nos levando a crer que a imaginação seria capaz de, mesmo que separada do Entendimento e da transparência, fabular potenciais não violentos por si mesma. E, sabemos: se tem uma coisa que a imaginação é capaz de fazer, é de criar horrores, inclusive artisticamente, como Denise parece ingenuamente supor ser capaz quando da liberação da imaginação do Entendimento. De pronto, acolhemos o problema e reconhecemos que ele surge, talvez, de uma leitura um tanto quanto apressada e apaixonada demais pelo trabalho de Denise Ferreira da Silva. Mas o que podemos, por ora, resguardar de interessante, é que conjugada da alegria, da possibilidade cosmopolítica de promover condições de pensabilidade para outros mundos possíveis e da própria leitura apressada e apaixonada, é que até então, nos limites históricos que temos acesso, não apareceu ainda, tamanha potência crítica que visa textualmente destruir os pilares ontoespistemológicos modernos que forjaram todo tipo de infortúnio da tristeza e da destituição da vida enquanto festa da alegria. Se teremos tempo ou não para fazê-lo, pelo menos dedicamos tempo para pensá-lo. 51 Curso que compreendeu quatro aulas que se encontram registradas em vídeos hospedados no canal do YouTube sob responsabilidade do Centro Maria Antônia da USP. Vide: https://www.youtube.com/@centrouniversitariomariaan4481/videos 52 133 seria a proposta de um femismo de recusa e rebelião. Ora, se o colonialismo expropriou o valor do trabalho e do corpo de homens, mas sobretudo mulheres, além de vidas não humanas por meio da violência total, se assim é, o desafio que a poética negra feminista escolheu para si mesma: como recuperar aquilo que foi engolfado, não o “outro” do Eu, porque esse outro é desenhado nos mesmos termos do pensamento moderno, mas aquilo que o pensamento moderno aponta como perigoso; aquilo que se esconde no excesso, na violência; aquilo que torna a violência sempre necessária, repetitiva. Aquilo que é construído como excesso, como excessivamente violento. Já que a Negridade significa violência, vamos ver o que essa violência é capaz de fazer, se ela é ativada pelo nível do pensamento. (Silva, 2019b, 27’55’’). Tal violência, em resposta, é uma forma de extrair do excesso, aquilo que está posto como ameaça ao núcleo da transparência moderna, do Uno e da Humanidade exclusiva, em suma, a maior dignidade da “dignidade exclusiva da natureza humana” de que nos falava Lévi-Strauss (2017), aquilo do seu potencial mais inventivo. Se estamos aqui pelas formas de resistência; da passagem, de geração em geração, de um princípio de insistência pela vida que, apesar de todas as violências totais, dos apagamentos, das mortes e das batalhas, pulsa; se estamos em vias de pensar mundos novos, enfim, é mandatório que tentemos abrir brechas para extrair da imaginação o que ela pode nos oferecer de melhor. Vibrando junto à ideia de Suzanne Roussi-Césaire de que podemos esperar dos artistas todos os milagres, podemos imaginar que Denise se inspira nela quando propõe que a poética negra feminista consegue não apenas fabular um mundo outro, mas começa a fazê-lo por meio de uma proposição de intervenção por um caminho das obras de arte: que tipo de obras de arte são capazes de uma perspectiva crítica representacional pós-colonial, inclusive avançado sobre os limites dos estudos pós-coloniais e sua gramática moderna? Se o objetivo é ir além da denúncia e mover-se para desmantelar e contra-atacar a violência epistêmica, o que uma arte anti-colonial pode ser em termos de representação? Por enquanto e dentro dos limites deste texto minha resposta a esta pergunta é: uma obra de arte anti-colonial questiona cada modo, cada forma de apresentação, transformando-a num confronto – que é a apresentação como recusa da representação” (Silva, 2021, p. 291, grifos nossos) Se a ideia de dívida impagável se caracteriza por uma relação jurídica que distingue, pelo contrato, pessoas na relação do capital começado nas colônias 134 de exploração, além de não haver condições materiais possíveis para a reparação do que já foi expropriado pela violência total (Silva, 2019a), o capital nada mais faz do que perpetuar a sua herança maldita. Mas (há) a saída é especular mundos outros que não se sustentem naquelas bases ontológicas e epistemológicas que insistem em reproduzir diferenças. Não é significar a todo momento, violentar com a determinabilidade e fechar-se em teorias e conceitos que aprisionam a própria capacidade imaginativa de uma novidade. Trata-se de implicar e fabular uma temporalidade e espacialidade outras que deem conta de ultrapassar a necessidade da exclusão, da limpeza étnica e da separabilidade, condições necessariamente vinculadas a este mundo que precisa acabar. 4.4 Dos Outros de que fomos tornados aos Demais que podemos ser Podemos tomar o pronome indefinido “Outros” como preenchido de definição, no sentido de que, quando tornado adjetivo pelos edifícios monstruosos erigidos pela vontade de tudo dominar do saber científico e sua alma metafísica – que a tudo mastiga como sendo seu objeto metabólico -, o subproduto desta espécie de fagocitose ou, nos termos de Denise, engolfamento, é justamente o que é predicado àqueles (todos) que não são eles mesmos agentes deste metabolismo: nós. Nós tornados Outros-que dignos de compartilhar os benefícios da operação de nutrição ontológica moderna. Outros que eles, outros que europeus, outros que a norma. Diante do que vivemos, de pensar que pelo compartilhamento de mundos podemos, de fato, ser muitos, podemos, de direito, sermos os demais. Aquelas que, sabendo dos limites, constroem caminhos. Se Exu é a boca que antes tudo comia, mas que aprendeu a vomitar para saber dos seus próprios limites, nós assim deveríamos - em franca reverência que nos é sempre devida-, observar essa conta: vomitar todas as pretensões a que fomos tornados, mesmo que com promessas ilusórias de a tudo dominar, catequizados pelo desejo do engolfamento total para sermos senhores e supremos de tudo e, finalmente saber que, sem limite, sem disciplina que nos congregará aos todos demais, seremos apenas excrementos de um, agora sim, metabolismo total: o fim do mundo pela catástrofe da guerra daqueles que sabem que podem mais contra aqueles que ainda imaginam estar sozinhos, posto que isolados. O lance é não virar suco! 135 FIGURA 6 – Blue Marble – a primeira foto da Terra em sua orientação original FONTE: NASA (1972) 136 PEQUENO ENSAIO PARA UMA ALEGRIA It’s after the end of the world Don’t you know that yet? Sun Ra Não há fim para o que um mundo vivo Exigirá de você Lauren Olamina pelas mãos de Octávia Butler Pela profecia O mundo ia se acabar Pelo vagabundo Deixa o mundo como está Pelo ser humano Pelo cano o mundo vai (ou não) Pelo cirandeiro O mundo inteiro vai rodar Ciranda do mundo – Edu Krieger O que pode um acontecimento? No momento em que inicio estas linhas, acreditem ou não as nossas leitoras e os nossos leitores, tinha acabado de prestar atenção aos ecos que vinham da sala e chegavam aos meus ouvidos. Por meio do maior jornal televisivo do país - o mesmo que confessadamente foi um dos porta-vozes do apoio midiático brasileiro ao golpe cívico-militar de 1º de abril de 1964 e que, ontem, completava 60 anos -, este mesmo jornal de dimensões nacionais, divulgou duas notícias seguidas que demoraram muito para acontecer. Mas, antes tarde do que nunca, certo? A primeira notícia nos contou que hoje, dia 2 de abril de 2024, numa decisão inédita do Estado brasileiro, a Comissão de Anistia, amparada no monumental e triste Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade 53, concedeu a primeira reparação coletiva aos povos indígenas Krenak e Guarani Kaiowá. Ambos padeceram sob o céu infernal dos anos de chumbo, tendo seus parentes sofrido torturas, desaparecimentos e sendo expulsos forçadamente de Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv 53 137 seus territórios-mãe. A decisão inédita e importante foi adiada especialmente em 2022, quando os membros da Comissão, que foram destacados pelo ex-governo que se abateu sobre o Brasil de 2019 a 2022, rejeitaram o pedido de anistia. Entretanto, somente agora, passados um pouco das tragédias institucionais mais recentes, é que os parentes indígenas conseguem alcançar alguma coisa perto da justiça e, talvez, um pingo de alegria pela memória de seus ancestrais tornadas lembráveis pelo aparato estatal, este que antes das reparações, só faz ser conhecido por suas históricas repressões desde 22 de abril de 1500. Na ritualística que abriu a reunião54, a liderança Djanira Krenak, acompanhada de um maracá e das vibrações de parte da plateia indígena que dançava, promoveu uma espécie de bênção dos trabalhos. Ao falar, posteriormente, a líder matriarcal relembrou emocionada a época das expulsões promovidas pelos militares: “Não tem terra de vocês mais, quem toma conta agora é os brancos. [...] Diz que nós não tem terra, mas nós tem terra, sim! [...] É nossa terra sagrada, nossa pedra sagrada, nosso rio sagrado... Dói muito falar nisso, né... Porque a gente perdeu parente, e perdeu o nosso Rio Watu [...] Toda vida o índio foi morto por causa de terra. [...] A gente índio é discriminado. Eles matam a gente como mata cachorro, sabe? Igualzim cachorro, quando policial mata, eles num respeita a gente”. Ao final da reunião, num gesto menos poético e um tanto quanto dramático, Eneá de Stutz, que preside a referida comissão, se ajoelhou e proferiu estas palavras: “Peço permissão para me ajoelhar com a sua benção. Em nome do Estado brasileiro, eu quero pedir perdão por todo sofrimento que o seu povo passou. A senhora, como liderança matriarcal dos Krenak, por favor, leve o respeito, nossas homenagens e um sincero pedido de desculpas para que isso nunca mais aconteça.” A segunda notícia, também resultado dos porões da ditadura, dá conta de que a tortura seguida do assassinato e desaparecimento do deputado Rubens Paiva, em janeiro de 1971, nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro, Importante registrar que a sessão plenária foi transmitida ao vivo pelo canal oficial no YouTube do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e sua gravação pode ser acessada neste link, que foi consultado no dia 02 de abril de 2024, mesmo dia do acontecimento: https://www.youtube.com/watch?v=H4ZRyd03TVE 54 138 será novamente investigada, a pedido do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Enquanto ouvia essas notícias e, depois de um dia todo às voltas com a redação da versão preliminar e final deste trabalho, me lembrei que, cerca de dois anos antes, enquanto redigia a nota de rodapé 26 do segundo capítulo dedicado a Frantz Fanon, à página 68 deste texto, considerava que, diante do genocídio cotidiano de indígenas e pessoas negras no Brasil, a única alternativa era uma proposta de um mundo outro. O tempo das revoluções pode já ter passado e, o que vimos pensando aqui, é uma pequena contribuição-síntese das leituras, das tristezas e das alegrias de viver coletivamente com aquelas e aqueles com as quais tenho a sorte de encontrar. Por óbvio, as notícias que nos motivam agora, a redigir estas linhas, estão longe de realizar uma justiça completa, uma alegria completa ou uma reparação completa, dado que foram muitas e enormes as existências humanas e ditas não humanas que se perderam no passar dos séculos em que um projeto de vida que não é alargado para todos continua a reinar. Talvez menos impávido, porque estamos aqui, ainda, vivendo e querendo outra coisa, mas, ainda assim, presente. Entretanto, ainda que presente e aterrador, podemos sentir que algo está se passando e fazendo com que, gradativamente, ainda que lentamente, ele perca seu brilho. Face a esta presença tão incômoda, tão pesada, que nos tira o sossego e nos aliena da alegria, nos instiga à competição e nos acostuma a uma enciclopédia de outros males, frente a tudo isso, é bom para as nossas saúdes almejar que isso acabe. Que isso passe. E, como nos diz Déborah Danowski (2022, p. 71, grifos nossos): “Para que uma coisa se passe, para que haja uma saída, basta um diferencial de esperança, que no fim das contas podemos definir como qualquer pequena inclinação da alma em direção àquilo que amplia nossa existência e, portanto, em direção à alegria.” Costumo pensar que a alegria genuína de um pedaço do mundo pertence às crianças, às bichas e ao povo de Axé, porque elas, as crianças, e nós, crianças que fomos, bichas e povo de Axé que somos, a todo tempo atacados pelas ameaças catastróficas da sociedade que nos retira os direitos à infância, ao cuidado, à expressão de nosso ser, à conexão com o nosso sagrado e, em suma, ao mundo, continuamos sorrindo, brincando, fabulando, dançando, 139 cantando, batendo palmas, abrindo os leques, escorregando, dando piruetas e respondendo com nossas vidas. Esta alegria pequena dos dias, dos encontros, das ajudas, dos acodimentos, das preces, das firmezas, dos abraços, das conquistas das amigas e dos amigos, do Axé, do sol e das estrelas, esta alegria que nos chega também pelo passado daquelas e daqueles que tentaram e que se reatualizam em nosso Orí, esta forma de alcançar com o coração aquilo que a mão ainda não toca, como já dizia o belo samba cantado por Dona Ivone Lara, a tudo isso, é que creditamos ser fonte inesgotável da perseverança. Recusando-me a estar fixado nos muros das lamentações que ouvem suplícios de um fim de mundo anunciado e garantido, penso que um antídoto a ele é aquele que já profetizava Assis Valente, eternizado pela voz de Carmem Miranda: não acreditar nessa conversa mole, mas tratando de aproveitar. Dançar o samba em traje de maiô, fazer as pazes com quem temos treta e seguir celebrando, porque o tal do mundo não vai acabar. Não pelo menos enquanto a gente se agarrar nessa alegria. Eis, portanto, a necessidade de um ensaio que a pense. Que a defenda e a defina como umas das poucas oportunidades de sair da grande tristeza que somos insistentemente convidados a partilhar. A partilha não pode ser essa, se nos foi prometida a alegria. Sim, ela é momentânea. E por isso é tão poderosa. A saída é saber aproveitar, desses lampejos que são difíceis e raros, mas existem, e tirar deles a inspiração e a força para o que de nós é exigido, como está posto na epígrafe deste ensaio. O que nos cabe, nesta proposta que conclama à alegria, é vigiar uma certa voz incômoda e contrária a ela, voz que fica ressoando, mais ou menos, na nossa cabeça, aquela voz do colonizador em nós – se nosso inconsciente foi estruturado pelas mãos pretas das empregadas, serviçais e condenados de nossa sociedade marcada pela hierarquia racista e sexista, como bem nos ensinou Lélia González há algumas páginas -, também foi por aqueles que habitam em nós, uma espécie de opressor, que nos move também aos desejos de dominação dos múltiplos e que nos apequena. Como disse Foucault, habita em nossas mentes e espíritos um grande inimigo: o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar do poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora” (Foucault, 1993). 140 Esta atitude que recusa o mundo compartilhado, que distingue por marcas, carros, roupas, viagens, cifras; que nega qualquer capacidade de comunalidade, apegando-se a uma empatia mentirosa, fraca e covarde, está longe de uma alegria que imagine uma ética vibrada na circularidade como um princípio. Ética que nos ensina Sueli Carneiro como cuidado dos outros, em suma, “uma responsabilidade social” (Carneiro, 2023, p. 356); ou, nas palavras de Nêgo Bispo, “muito mais interessante é pensar como vamos cuidar de outra vida quando ela está precisando de cuidados” (Santos, 2023, p. 70). Chega um, chegam todos, portanto! Essa é uma das tarefas mais importantes àquelas pessoas que sentem a coragem de pôr fim a este mundo cindido, este mundo negativamente caótico que adoece a todos. Afinal de contas, como nos interpela Neusa Santos Souza, de que poderia nos servir um saber que fomenta e cristaliza preconceitos? De que poderia servir um saber que nos condena à impotência e à paralisia? De que poderia nos servir um saber que vai na contramão do verbo “fazer”, do verbo “caminhar”? (Souza, 2021, p. 132-133) Caminhemos, pois, com a alegria da feitura. Com aquele caminhar em par, passo a passo, ora tranquilo, ora apressado, ora em franca maratona, em vias de sedimentar um caminho pisado a muitas patas, asas e pés, caminho que interligue fluxos de vida que valham a pena. Em alegria, ciosos de um mundo novo, caminhemos. Caminhemos, começando de novo, num tempo espiralar em que as temporalidades não mais sejam e se façam por violências e superações, num movimento sempre ascendente e único. Caminhemos nos inspirando em temporalidades que nos sugeriram Silvia Cusicanqui e Denise Ferreira da Silva, temperadas de “transconfluências”, ou seja: “somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. A ordem pode ser qualquer uma” (Santos, 2023, p. 49). Uma confluência como rios que se encontram em alegria. Se tudo é água, e se nos fazemos por ela, que nos façamos, também, pela alegria. Uma forma de alegria é receber e compartilhar. Tenho, pelo menos duas vezes ao ano, a oportunidade de preparar nossa casa para estarmos juntos à comunidade de amigas e amigos, celebrando o acontecimento do encontro. 141 Caminhemos para uma grande festa: a experiência de receber pessoas estimadas em casa, preparar as comidas e as bebidas, arrumar as mesas, cadeiras, almofadas, cangas, aparar a grama, acender as luzes, preparar os pratos e talheres e copos. Receber as pessoas amigas e as que são amigas das amigas, que engrandecem o encontro. Ver a casa cheia de gente, de abraços, de sorrisos, de gente mastigando e falando, fila para o banheiro, fogo acesso que esquenta os caldos, as canjicas e os feijões. A festa que se desdobra em várias promessas de encontros futuros. A festa que termina só no outro dia, com as lembranças, recados, pia cheia de louça, as brasas da fogueira julina ainda acesas, as cervejas que ficaram no isopor com gelo de dezembro. A ressaca boa de ver cumprido o encontro. Essa gentileza e convite à comensalidade que descrevo, em que se movem energias e sentimentos, que se compartilham as expectativas e a vida com pessoas queridas é o sentimento que proponho ser a alegria, juntada às das crianças, bichas e povo de Axé. Tal alegria que acabo de relatar é, por óbvio, muito particular e de um microcosmo relacional construído por muitos encontros. Contudo, não deixa de revelar uma possibilidade ampliada de levar este princípio aos mundos outros que podem aparecer como frutos bonitos de uma luta contracolonial, aquela espécie de antídoto que propõe, na coletividade, nas ações e alianças ora mais coesas, ora mais difusas, uma inventividade política, ou melhor, cosmologicamente mais sensível e solidária a todos os entes da Terra. Essa festa, que tem suas regras e observações, afinal de contas, o mundo é grande e cabem todos, é uma festa em que a alegria será o motor da vida. Qualquer que seja a forma, qualquer que seja o risco que a diminua de forma proposital, já é um indício de que precisaremos nos rearranjar e achar, juntas e juntos, uma saída. Antes de um controle, antes de um cerceamento da capacidade de ver e viver, de reconhecer as diversas lutas históricas sumamente importantes que nos ajudaram a chegar até aqui, com suas diferenças e propósitos, antes de tudo isso, a festa emerge como uma capacidade feliz de sobrevivermos e nos autoorganizarmos, porque, em última instância, “a festa é mais forte do que a Lei” (Santos, 2023, p. 44), e a alegria é a energia que anima todas as boas festas. Dançar compartilhados, cantar compartilhados, comer compartilhados. É uma ciranda que, diferentemente das intenções vazias e goodvibes, faça o mundo girar, cosmologicamente, para todos os entes. Uma ciranda do mundo. 142 FIGURA 7 –Jaider Esbell - A contínua energia da vida FONTE: affect-and-colonialism.net/exhibition/jaider-esbell-transworlds/ 143 EPÍLOGO Cobras-cegas são notívagas. O orangotango é profundamente solitário. Macacos também preferem o isolamento. Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos. Andorinhas copulam no voo. O mundo não é o que pensamos. História Natural, de Carlos Drummond de Andrade Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Lisbon Revisited, de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa Enfim, chegamos às linhas finais deste estudo. Os anos investidos nesta pesquisa pretenderam investigar o que nos parece ser uma radicalidade argumentativa em vias de, ao propor o fim para este mundo, abrir caminhos de possibilidades de viver em outro lugar, outras paisagens de pensamento e imaginação que não se vinculam mais às formas de colonialismo espiritual, conceitual e filosófico que tanto nos fizeram crer ser o caminho mais acertado. Todo nosso texto, até aqui, tentou se articular sobre um fio condutor que, por meio de uma postura anticolonial, pudesse convidar a nossa imaginação a caminhar outras trilhas de mundo. Mundo conjunto, que pode ser outra coisa. Às estruturas da subjugação, pilhagem, dominação e opressão dos corpos e espíritos sucede uma promessa de vida pós-colonial. Vida que, se pensada e alicerçada no viés de uma alegria cosmopolítica, poderá atender a um chamado urgente que tem se mostrado cada vez mais presente na vida daquelas pessoas e daqueles entes que desejam encontrar alguma paz de espírito. Alguma possibilidade de se aliançarem em comunhão. É o que tentamos fazer ao percorrermos, nos caminhos retóricos apresentados, uma concepção de um outro mundo, pós-colonial, realizável e cosmopolitciamente mais generoso. Realizável pelas vontades, pelas imaginações e principalmente pelas práticas. Sejam elas nos cotidianos das nossas relações; sejam nos contextos de promoção do direito à cultura, às infâncias e à educação; seja na batalha árdua e às vezes ingrata das políticas públicas; enfim, seja pela afirmação irrestrita do princípio de que a vida, por ser aquilo que temos de mais precioso e importante, vale a pena ser vivida. 144 É precioso, então, viajarmos na ideia lançada por Sueli Carneiro (2023, p. 334) quando nossa mais velha nos diz que “outros modos de subjetivação” sejam possíveis. Abandonarmos um desejo controlador não é das tarefas mais fáceis, mas quem disse que a vida é fácil? Qual tipo de educação e qual tipo de imaginação é precisa e preciosa para o cumprimento desta tarefa? Obviamente, as que além de questionarem os currículos hegemônicos ou o tal “cânone filosófico”, também sejam populares no sentido de reconhecer que todos os entes envolvidos na cadeia da vida são responsáveis por dignificá-la. Portanto, dever coletivo e comprometido cosmopoliticamente com mundos também coletivizados. A tarefa é descobrir caminhos, sensibilizar e pressionar pela própria ideia de sair do solipcismo uno para um coletivismo pluralista. Tarefa da filosofia pensar isso, ancorado no incômodo da IV CONAPIR, do susto da Torre, das notícias ruins e do medo de morrer em vida. Para concluirmos, então, esta pesquisa tentou oferecer uma possibilidade de imaginar e especular este mundo colonial em ruínas, com os óbvios limites que possui. Ao investigarmos os pressupostos filosóficos apresentados durante todo o percurso, nos foi possível pelo menos fortalecermos conceitualmente tal ideia e tentar antever quais condições de possibilidade são demandadas para chegarmos a outras formas de sociabilidade possíveis. No entanto, reconhecemos que, dos limites de qualquer texto acadêmico, as dificuldades são muito maiores para, eventualmente, vermos as reflexões brotarem a partir do seu ponto final. Mas, nos é também dada a possibilidade de tentar, caminhando caminhos que percorreremos daqui adiante. Assim, o que nos resta a dizer é uma espécie de convite: se a leitora e o leitor nos forem generosos, compreenderão que a tentativa é sempre coletiva e que mais gente, com outras, tantas e bonitas vozes podem se achegar e ajudar na caminhada, porque a vida e o mundo não podem ter fim. 145 REFERÊNCIAS ABSTADO, Claude. Introduction à l’analyse des manifestes. Littérature. No 39. Les manifestes. Paris, 1980. ADAMS, Sandro. Homem marginal e colonialismo interno: uma ausência latino-americana na epistemologia de(s)colonial. Dissertação de Mestrado em Sociologia do Programa de Pós-graduação em Sociologia. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, 2021. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/ppgs/files/2021/09/Dissertacao-Sandro-Adams.pdf Acesso em: 22 de abril de 2022. ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu. Uma crítica xamânica da economia política da natureza. Série Antropologia. 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Afundar-se nas trincheiras da resistência criativa e na fome de um futuro ancestral Um futuro eticamente coerente e comprometido com o pulsar da vida Parir o fim do mundo exige movimentos peristálticos de porvir Buscar no princípio de Exu a pedra que mata hoje o colonialismo lançado num passado cotidianamente presente Parir o fim deste mundo exige alegria no percurso A substituição das trombetas Pela gargalhada ruidosa das crianças, bichas E toda música e corporeidade do povo de AXÉ Parir o fim do mundo para alcançarmos a alegria nos exige plenamente no processo assumindo sinceramente nossas contradições na coletividade da ação e no fluir do movimento Quem sabe este outro mundo Já esteja desenhado nas micro/macro vivências Nos quintais de Dona Marlene Nas sementes de Baobá Que timidamente guardam o gigante