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DOUGLAS ORESTES FRANZEN (O����������) H I S T Ó R I A DA EDUCAÇÃO: ��������� �� �������� ���������� 2024 © Do Organizador - 2024 Editoração e capa: Schreiben Imagem da capa: Sardar1dm - Freepik.com Revisão ortográfica/gramatical: os autores Revisão técnica e aceite dos textos para publicação: Douglas Orestes Franzen Livro publicado em: julho de 2024 Conselho Editorial (Editora Schreiben): Dr. Adelar Heinsfeld (UPF) Dr. Airton Spies (EPAGRI) Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS) Dr. Cleber Duarte Coelho (UFSC) Dr. Deivid Alex dos Santos (UEL) Dr. Douglas Orestes Franzen (UCEFF) Dr. Eduardo Ramón Palermo López (MPR - Uruguai) Dr. Fábio Antônio Gabriel (SEED/PR) Dra. Geuciane Felipe Guerim Fernandes (UENP) Dra. Ivânia Campigotto Aquino (UPF) Dr. João Carlos Tedesco (UPF) Dr. Joel Cardoso da Silva (UFPA) Dr. José Antonio Ribeiro de Moura (FEEVALE) Dr. José Raimundo Rodrigues (UFES) Dr. Klebson Souza Santos (UEFS) Dr. Leandro Hahn (UNIARP) Dr. Leandro Mayer (SED-SC) Dra. Marcela Mary José da Silva (UFRB) Dra. Marciane Kessler (URI) Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ) Dra. Natércia de Andrade Lopes Neta (UNEAL) Dr. Odair Neitzel (UFFS) Dr. Wanilton Dudek (UNESPAR) Esta obra é uma produção independente. A exatidão das informações, opiniões e conceitos emitidos, bem como da procedência das tabelas, quadros, mapas e fotografias é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es). Editora Schreiben Linha Cordilheira - SC-163 89896-000 Itapiranga/SC Tel: (49) 3678 7254 editoraschreiben@gmail.com www.editoraschreiben.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F837h Franzen, Douglas Orestes História da Educação : percursos da educação brasileira / Douglas Orestes Franzen. --Itapiranga : Schreiben, 2024. 136 p. ; il.; E.book. Bibliografia e índice remissivo. E-book no formato PDF. EISBN: 978-65-5440-293-4 DOI: 10.29327/5415194 1. Educação. 2. Práticas de Ensino. 3. História da Educação. 4. Instrumento Politico. 5. Educação Inclusiva. I. Título. CDD 370 Bibliotecária responsável Juliane Steffen CRB14/1736 Sumário APRESENTAÇÃO.......................................................................................5 Jenerton Arlan Schütz A DIDÁTICA NA PERSPECTIVA HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA .......................................................13 Carla Maria Leidemer Bruxel A DIMENSÃO EDUCATIVA DA COLUNA “CARTAS À MINHA PRIMA”, EM VIDA DOMÉSTICA (1923-1925)......... 25 Nathalia Araújo Duarte de Gouvêa Michele Ribeiro de Carvalho Cassano Gabrielle Carla Mondêgo Pacheco Pinto Mariana Elena Pinheiro dos Santos de Souza A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA ERA VARGAS: ENTRE MOVIMENTAÇÕES POLÍTICAS, MARCOS LEGAIS E REPERCUSSÕES SÓCIO-HISTÓRICAS................................................36 Ailton Batista de Albuquerque Junior (Roinuj Tamborindeguy) Gabriel Silveira Pereira A ESCOLA CATÓLICA NAS PÁGINAS DA REVISTA VOZES DURANTE O PERÍODO DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1964-1985)..........................46 Darciel Pasinato Carina Malonn Rosangela Fritsch A ATUAÇÃO DO TRADUTOR E INTÉRPRETE DE LIBRAS NO ENSINO SUPERIOR ACONTECE DE FORMA TÉCNICA OU PEDAGÓGICA EM SALA DE AULA INCLUSIVA? UMA ANÁLISE DOCUMENTAL.............................................................61 Ednacelí Abreu Damasceno Tamila Maiane Silva do Nascimento DESVENDANDO AS CONEXÕES ENTRE A FORMAÇÃO E O TRABALHO DE TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LIBRAS E DOCENTES........................................................................70 Cristiane da Penha Nascimento Nogueira Grace Gotelip Cabral A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL: NOTAS E REFLEXÕES SOBRE OS PROCESSOS INCLUSIVOS NO BRASIL...................................................87 Cibele Fernandes da Costa Gabriel Silveira Pereira OS INSTITUTOS FEDERAIS E O PROEJA NO PERCURSO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA NO BRASIL: ENTRE MARCAS E REFLEXOS...............................................................98 Gabriel Silveira Pereira Sita Mara Lopes Sant’ Anna EDUCAÇÃO DO CAMPO E A PEDAGOGIA SOCIALISTA SOVIÉTICA: POSSIBILIDADES DE DIÁLOGOS SOBRE AS TAREFAS SOCIAIS E POLÍTICAS DA ESCOLA PARA UMA OUTRA SOCIEDADE.............. 117 Marizete Andrade Adelar João Pizetta ÍNDICE REMISSIVO................................................................................137 Apresentação O livro que você tem em mãos, organizado com excelência pelo prof. Dr. Douglas Orestes Franzen, oferece um panorama abrangente e multifacetado da evolução da educação no Brasil, explorando desde o impacto das políticas educacionais durante períodos históricos complexos e ambíguos até as experiências contemporâneas em educação inclusiva e as influências internacionais no âmbito da pedagogia. A coletânea de capítulos reflete a diversidade de perspectivas e abordagens que moldam o campo da educação, evidenciando como as transformações sociais, políticas e históricas têm influenciado as práticas pedagógicas e as políticas educacionais no país. Por meio de análises detalhadas e reflexões teóricas, a coletânea “História da Educação: percursos da educação brasileira” propõe um diálogo entre passado e presente, oferecendo uma visão crítica sobre as mudanças e continuidades na história da educação brasileira. Ele é uma fonte valiosa para acadêmicos, profissionais da educação e todos que se interessam por compreender as dinâmicas que moldam o sistema educacional e suas implicações sociais e políticas. Nessa direção, o primeiro capítulo do livro intitula-se: “A didática na perspectiva histórica e contemporânea”, e é escrito por Carla Maria Leidemer Bruxel. A autora explora a didática como uma disciplina pedagógica crucial que estabelece a conexão entre teoria e prática no processo de ensino e aprendizagem. A didática é abordada em sua totalidade, considerando suas condições, princípios, finalidades, objetivos, métodos e a organização do processo educativo. O capítulo tem como objetivo investigar a evolução histórica da didática e sua importância para o desenvolvimento das práticas educacionais contemporâneas. Para isso, a autora realiza uma pesquisa bibliográfica exploratória e constrói um texto teórico-reflexivo. Através dessa análise, o capítulo oferece uma reflexão aprofundada sobre como as práticas didáticas atuais são influenciadas pela teoria e história da disciplina. O capítulo é fundamental para entender como a didática molda as práticas de ensino modernas e contribui para a formação de um conhecimento pedagógico robusto. A discussão apresentada não apenas fundamenta a prática educativa, mas também proporciona uma base sólida para pesquisas futuras na área da educação. O segundo capítulo, escrito por Nathalia Araújo Duarte de Gouvêa, 5 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Michele Ribeiro de Carvalho Cassano, Gabrielle Carla Mondêgo Pacheco Pinto e Mariana Elena Pinheiro dos Santos de Souza, explora a coluna “Cartas à minha prima”, publicada na revista Vida Doméstica entre 1923 e 1925. A coluna, que segue a forma de uma correspondência informal, reflete a tentativa de educar as mulheres através da escrita epistolar. A revista Vida Doméstica, editada pela Sociedade Gráfica Vida Doméstica, teve grande longevidade e foi um marco no cenário editorial brasileiro. Dessa forma, o capítulo das autoras examina a revista e a coluna como dispositivos não-formais de educação, abordando como tais publicações desempenhavam um papel educativo para as mulheres, destacando tanto aspectos de moda e beleza quanto questões de emancipação feminina. A pesquisa destaca que, enquanto periódicos femininos anteriores eram breves e muitas vezes anônimos, Vida Doméstica se destacou por sua duração e impacto, refletindo uma evolução na forma como a educação feminina era abordada. Além disso, o estudo contextualiza a coluna dentro da história da educação para mulheres no Brasil, evidenciando como a imprensa feminina foi crucial para a educação e a formação de identidades femininas. Outrossim, o capítulo também discute a natureza das “Cartas à minha prima” como uma forma de escrita pedagógica, analisando seu papel na promoção de normas sociais e educacionais para as mulheres. O terceiro capítulo do livro, intitulado “A educação brasileira na Era Vargas: entre movimentações políticas, marcos legais e repercussões sócio históricas”, foi escrito por Ailton Batista de Albuquerque Junior (Roinuj Tamborindeguy) e Gabriel Silveira Pereira. Este capítulo analisa os principais eventos políticos e econômicos durante a Era Vargas e suas consequências para a educação brasileira, focando particularmente no período revolucionário de 1930, que marcou o fim da República Velha ou República dos Coronéis. A importância deste capítulo reside na compreensão das mudanças significativas ocorridas na educação brasileira devido às políticas educacionais adotadas durante o governo de Getúlio Vargas. A pesquisa ainda explora como as fases do governo Vargas impactaram a educação e quais foram as contribuições duradouras para a educação contemporânea. Além disso, o capítulo contextualiza a crise econômica global do final dos anos 1920, que afetou severamente o Brasil, destacando a dependência do país das exportações e a crise do setor cafeeiro. Com a Revolução de 1930, Vargas implementou políticas públicas que promoveram uma reconfiguração política e econômica, mudando o foco do rural para o urbano e do agropecuário para o industrial. Nessa direção, os autores discutem a influência de Vargas e como suas políticas não só reformaram a estrutura educacional, mas também tiveram repercussões nas relações trabalhistas e na construção do conceito de “novo 6 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira homem” durante o Estado Novo. Por fim, o capítulo analisa as transformações que ocorreram na educação brasileira nesse período e a relevância das reformas e marcos legais estabelecidos, ressaltando a importância de entender essas mudanças para compreender a educação contemporânea no Brasil. Em relação ao quarto capítulo deste livro, escrito por Darciel Pasinato, Carina Malonn e Rosangela Fritsch, objetiva analisar como a Revista Vozes representava as escolas católicas durante o período da Ditadura Civil-Militar no Brasil. O estudo adota uma abordagem bibliográfico-documental e foca no conceito de representação discutido por Chartier. Conforme os autores, a Revista Vozes, que começou a circular em 1907, desempenhou um papel significativo ao fornecer suporte financeiro para escolas católicas e expandir sua influência através de assinaturas e propaganda. A revista era promovida pela hierarquia da Igreja no Brasil, incluindo arcebispos, bispos e padres, e influenciava a educação católica no país. Não obstante, os autores também exploram como a Ditadura contribuiu para a privatização e censura da educação, refletindo um retrocesso na capacidade crítica do país e a restrição da liberdade acadêmica. Os autores organizam o estudo em três seções principais: aspectos teórico-metodológicos, o surgimento da Revista Vozes, e a representação da escola católica nas páginas da revista durante o período da Ditadura. Na sequência, o leitor encontra o capítulo intitulado “A atuação do tradutor e intérprete de libras no ensino superior acontece de forma técnica ou pedagógica em sala de aula inclusiva? uma análise documental”, escrito por Ednaceli Abreu Damasceno e Tamila Maiane Silva do Nascimento. Este capítulo, em especial, tem como objetivo analisar o papel e a atuação do Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) – TILSP – na educação superior. O capítulo se baseia em fontes documentais, como leis e decretos, para explorar a importância desse profissional como mediador entre alunos surdos, professores e estudantes ouvintes, promovendo a inclusão pedagógica e social dos surdos. A metodologia empregada no estudo consiste em uma análise documental e revisão bibliográfica, focando na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), e na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei da Inclusão). Essas leis são fundamentais para entender a modalidade de educação bilíngue para surdos e a necessidade legal e social de incluir o tradutor intérprete em sala de aula. O aumento significativo de alunos com surdez destaca a relevância deste profissional para o apoio educacional e social desses estudantes. Ademais, o capítulo propõe uma discussão e interpretação dos dados, 7 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) com base em citações e diálogos com diversos autores, para entender se a atuação do TILSP é predominantemente técnica ou pedagógica. A análise visa aprofundar a compreensão das atribuições e competências desse profissional no meio acadêmico e seu impacto no processo de ensino e aprendizagem. O capítulo que segue, escrito por Cristiane da Penha Nascimento Nogueira e Grace Gotelip Cabral explora a atuação e a formação de Tradutores e Intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras) – TILSP – e docentes no contexto da inclusão de alunos surdos na Educação Básica. Com base na Lei nº 13.146 (2015), que garante a inclusão social e cidadania das pessoas com deficiência, e em conceitos de Paulo Freire sobre a inclusão como movimento educacional, social e político, o capítulo discute a importância do bilinguismo no ambiente escolar. Entende-se que o Estatuto dos Direitos das Pessoas com Deficiência de 2015 assegura a oferta de educação bilíngue, com a Libras como primeira língua e a Língua Portuguesa como segunda. Apesar do reconhecimento oficial da Libras, a Língua Portuguesa ainda predomina nas práticas pedagógicas, o que evidencia a necessidade de um contexto educacional bilíngue para atender de forma adequada os alunos surdos. Neste cenário, para as autoras, o papel dos TILSP e dos docentes é crucial. O TILSP atua como mediador entre o aluno surdo e o conteúdo curricular, enquanto o professor deve criar um ambiente inclusivo que atenda às necessidades de todos os alunos. O Decreto 5.626 estabelece a necessidade de diversos profissionais para garantir a inclusão dos alunos surdos, incluindo professores de Libras e tradutores intérpretes. Nesse contexto, o capítulo investiga as interconexões entre a formação e a atuação desses profissionais, destacando os conhecimentos necessários, desafios enfrentados e pontos de convergência na prática pedagógica. Conforme as autoras, desde o reconhecimento das Libras em 2002, houve uma crescente demanda por formação contínua para professores e TILSP, envolvendo o aprendizado de Libras, adaptação de materiais didáticos e planejamento de aulas acessíveis. Além disso, a análise se concentra em questões fundamentais sobre a formação desses profissionais e a forma como suas práticas pedagógicas contribuem para a qualidade do ensino. O estudo busca compreender como a formação e o trabalho colaborativo entre professores e TILSP podem melhorar o processo de ensino-aprendizagem e atender de maneira eficaz às necessidades dos alunos surdos. Já o sétimo capítulo, forjado por Cibele Fernandes da Costa e Gabriel Silveira Pereira, constitui-se em uma reflexão sobre a História da Educação Especial no Brasil, ancorado em discussões teóricas desenvolvidas anteriormente 8 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira e nas experiências práticas dos próprios autores com a educação inclusiva. O texto visa reavaliar o percurso histórico das pessoas com deficiência e sua interação com a educação, focando na vivência atual dos educandos em salas de aula comuns. Em vez de criar uma linha do tempo detalhada da Educação Especial, o capítulo busca articular como as percepções e práticas passadas influenciam a educação contemporânea. O texto examina como fontes históricas anteriores às constituições nacionais moldaram as práticas educativas e ainda influenciam as estruturas sociais e educacionais atuais. Nesse sentido, os autores destacam que, apesar do avanço na inclusão e das mudanças nas políticas educacionais, muitos preconceitos e desigualdades persistem, refletindo um processo histórico de exclusão e marginalização das pessoas com deficiência. O objetivo é evidenciar como esses resquícios históricos ainda afetam a educação e a vida cotidiana dos alunos com deficiência, e como a educação brasileira tem lidado com esses desafios. Ao que segue, o penúltimo capítulo é escrito por Gabriel Silveira Pereira e Sita Mara Lopes Sant’ Anna, baseado na dissertação de mestrado “Concepções sobre o Currículo Integrado: a configuração da EJA no PROEJA”, oferece uma análise histórica e legal da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil. O foco principal está na criação dos Institutos Federais e no Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), abordando as especificidades e implicações desses modelos educacionais. O texto busca destacar como as conjunturas históricas e políticas justificaram a criação dos Institutos Federais e do PROEJA, bem como os possíveis conflitos e tensões que esses modelos enfrentam em relação às memórias históricas, concepções e ideologias diversas. Os autores utilizam a ideia de que o currículo e as políticas educacionais podem ser vistos como “territórios de disputas”, conforme mencionado por Miguel Arroyo. A criação e desenvolvimento dos Institutos Federais e do PROEJA, que visam transformar a realidade social e oferecer educação a públicos historicamente excluídos, frequentemente entram em conflito com agendas neoliberais que promovem a educação sob a lógica de mercado. Ademais, o texto também reflete sobre a escolha teórica e o compromisso ético e político dos próprios autores, destacando a importância dos Institutos Federais como instituições contra-hegemônicas, que buscam promover a equidade e construir uma sociedade mais justa, humana e solidária. Por fim, o último capítulo intitula-se “Educação do Campo e a Pedagogia Socialista Soviética: possibilidades de diálogos sobre as tarefas sociais e políticas da escola para uma outra sociedade”, foi escrito pelos professores Marizete 9 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Andrade e Adelar João Pizetta. Neste escrito, os autores exploram a interseção entre a Pedagogia Socialista Soviética e a Educação do Campo no Brasil, com ênfase nas tarefas sociais e políticas da escola em contextos revolucionários e transformadores. A Pedagogia Socialista Soviética, que emergiu após a Revolução Russa de Outubro, enfrentou uma série de desafios e desenvolvimentos teóricos e práticos ao longo de seu percurso, particularmente entre 1917 e 1931. Durante este período, a pedagogia soviética buscou criar um sistema educacional alinhado com a construção de uma nova sociedade socialista, enfrentando obstáculos e críticas às concepções educacionais e sociais anteriores. O capítulo se propõe a analisar como os princípios e as experiências da Pedagogia Socialista Soviética podem oferecer inspirações para a Educação do Campo, um movimento político-pedagógico que surge do campesinato brasileiro e busca transformar a educação e a sociedade a partir de suas próprias bases. O texto inicia com uma revisão dos conceitos de Pedagogia Socialista Soviética e Educação do Campo, oferecendo uma base teórica para a análise subsequente. A seguir, explora as possibilidades de diálogo entre as duas abordagens, com foco na coletividade e auto-organização no contexto escolar. Ademais, os autores discutem como a Pedagogia Socialista Soviética, com seu objetivo de formar uma nova geração comprometida com a transformação social, pode dialogar com os princípios da Educação do Campo, que busca adaptar a educação às necessidades e realidades do campesinato. A reflexão é orientada por uma perspectiva qualitativa e crítica, destacando os pontos de convergência e as possíveis influências recíprocas entre esses dois movimentos educacionais. À luz das discussões e estudos apresentados nos capítulos que compõem esta obra, sigo para a escrita das respectivas considerações. Face ao exposto, torna-se evidente que a educação é um campo dinâmico e em constante transformação, moldado por forças políticas, sociais e históricas que impactam suas práticas e políticas, o que demonstra a complexidade e a relevância dos debates contemporâneos sobre inclusão, equidade e qualidade educacional. Os autores desta coletânea contribuíram com reflexões críticas e inovadoras, abordando como as políticas educacionais, as reformas históricas e as influências internacionais têm moldado o cenário educacional no Brasil. Cada capítulo não só narra a evolução histórica e as mudanças nas práticas pedagógicas, mas também examina os desafios e as oportunidades que surgem com a busca por uma educação mais inclusiva e acessível. Na leitura dos capítulos percebemos como diferentes contextos históricos e ideológicos podem oferecer insights valiosos para o desenvolvimento de 10 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira práticas pedagógicas que atendam às necessidades específicas dos estudantes e promovam uma transformação social positiva. Nessa direção, este livro é um testemunho do compromisso dos pesquisadores com a compreensão e a melhoria do sistema educacional brasileiro. Ele oferece uma visão abrangente e crítica que pode servir como uma base sólida para futuras investigações e práticas educacionais. A esperança é que as discussões e análises aqui apresentadas inspirem ações concretas para enfrentar os desafios atuais e promover uma educação potente para as novas gerações, afinal, como lembra Hannah Arendt (A crise na educação): “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o suficiente para assumirmos a responsabilidade por ele”. Ao findar esta escrita, não poderia deixar de registrar a minha sincera gratidão ao Prof. Dr. Douglas Orestes Franzen pelo honroso convite para escrever esta apresentação. Considero que ser convidado a escrever uma apresentação de livro é sempre um presente, uma experiência e manifesto a minha alegria por esse reconhecimento. Afinal, a oportunidade de colaborar com uma obra tão significativa para o debate educacional é uma grande honra e um privilégio. Da mesma forma, gostaria de expressar minha profunda gratidão a todos os autores, que são pessoas dispostas a “pensar outramente” - como escreve o sociólogo francês Touraine. Os autores literalmente enfrentaram o desafio de escrever e publicar, ampliando o debate acerca do que se pesquisa e da inquietação que move cada pesquisador. Por fim, desejo aos leitores desta coletânea de textos tempo e silêncio para que possam, no âmbito da leitura, transitar por caminhos que ajudem a produzir outras formas de pensar e ser; que a leitura possa ser uma aventura nas complexidades e desafios da educação com um espírito de curiosidade e comprometimento. Espero sinceramente que este livro não apenas ofereça uma visão crítica e abrangente, mas também inspire novas ideias e práticas. Que ele se torne um farol de esperança e inovação para todos nós que buscamos construir um sistema educacional capaz de alargar o horizonte cultural, relacional e expressivo, pois, é na educação que pessoas com experiências diversificadas se confrontam no diálogo aventuroso da aprendizagem coletiva, em que cada um, a seu modo, dá testemunho das múltiplas possibilidades humanas. Esta coletânea reflete o compromisso coletivo dos pesquisadores com um futuro melhor para todos. Boa leitura! Prof. Dr. Jenerton Arlan Schütz 11 12 A DIDÁTICA NA PERSPECTIVA HISTÓRICA E CONTEMPORÂNEA Carla Maria Leidemer Bruxel1 Considerações iniciais A didática é uma área da pedagogia que estuda os fundamentos teóricos e práticos relacionados aos desenvolvimentos dos processos de ensino e de aprendizagem. A didática é importante na formação do docente, pois contribui na ampliação de sua capacidade reflexiva e crítica, e possibilita o conhecimento do contexto educativo em que desempenha suas funções, por meio de análise da prática de ensino. Esta análise favorece o planejamento, a organização e o desenvolvimento de situações de ensino que envolvem a apropriação de conhecimentos pelos estudantes. Este estudo envolve a compreensão de que o contexto educativo é formado por sujeitos de diferentes estruturas sociais. Sabe-se que há uma relação relevante entre o contexto social e cultural em que os estudantes vivem e a motivação para a aprendizagem, o que interfere no desempenho escolar. Quanto maior a renda familiar, melhores são as condições de acesso ao ensino de qualidade e, por outro lado, a pobreza e a desigualdade social contribuem com a desmotivação para a aprendizagem. Conforme Libâneo (2006), a educação é um fenômeno social que faz parte das relações sociais econômicas políticas culturais de uma determinada sociedade, sendo que as finalidades da educação estão subordinadas à estrutura e dinâmica das relações entre as classes sociais. Entende-se que o professor necessita conhecer a realidade escolar, ou seja, os sujeitos que integram a comunidade escolar, para que possa planejar e dirigir situações de ensino e aprendizagem conforme às reais necessidades dos educandos, pensando principalmente naqueles de classes sociais menos favorecidas. A didática, nessa perspectiva, é importante no processo de ensino e aprendizagem, pois contribui para o desenvolvimento de métodos que favorecem o desenvolvimento de atividades cognitivas tornando o processo de ensino e aprendizagem mais eficiente e prazeroso. 1 Mestre em Educação nas Ciências (Unijuí). Professora Substituta de Pedagogia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, Farroupilha. E-mail: carla.bruxel@ iffarroupilha.edu.br. 13 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) A didática é uma disciplina pedagógica que opera na interligação entre a teoria e a prática e tem como objeto de estudo o processo de ensino e aprendizagem na sua integralidade, ou seja, se ocupa de estudar as condições, princípios, finalidades, objetivos, métodos e a organização de todo o processo de ensino e aprendizagem. A partir disso, esta pesquisa tem como objetivo investigar a história da didática e sua importância para o desenvolvimento de práticas de ensino e aprendizagem na contemporaneidade. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, do tipo exploratória, na forma de construção de um texto teórico-reflexivo, cujas discussões fundamentam-se em Veiga (1988), Albuquerque (2002), Libâneo (2006, 2012), Matos et al. (2021), Tardif (2002), entre outros. Na sequência são apresentadas as reflexões que emergiram a partir do objetivo que orienta esta pesquisa. Perspectiva histórica da didática A história da didática é ampla e complexa e está ligada ao desenvolvimento da educação ao longo dos séculos. Na Grécia Antiga, a educação era valorizada e centrada na formação do cidadão e, nesse contexto, Platão e Aristóteles foram influentes na concepção educacional ao desenvolver ideias e métodos de ensino autênticos. Mais tarde, o método socrático baseado em perguntas e respostas manteve uma influência duradoura. “Os gregos criaram uma pedagogia da eficiência individual e, concomitantemente, da liberdade e da convivência social e política” (Gadotti, 2003, p. 30). Estes estudiosos desenvolveram modelos de educação que influenciaram as práticas de ensino ao longo dos tempos. Durante a idade média, a educação esteve fortemente vinculado à igreja, enquanto que no início do período moderno, com o Renascimento houve um surgimento do interesse pelas artes, ciências e humanidades. Nesse período, Comenius enfatiza a importância de uma educação universal e acessível para todos, ao desenvolver métodos de ensino mais sistemáticos (Albuquerque, 2002). É importante mencionar que a palavra didática surge do grego “didaktiké”, que tem como significado ampliado de “arte de ensinar tudo a todos”. Com a publicação da obra “Didática Magna” de Comenius, o conceito de didática ganha força e notoriedade no campo educacional em nível mundial e traz a prática do ensino como pauta fundamental. Conforme Comenius, Nós ousamos prometer uma didática magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e discentes se molestam ou enfadam, mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a piedade mais profunda (Comenius, 2001, p. 13). 14 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Durante o Iluminismo a ênfase na razão e na ciência trouxeram mudanças significativas na educação e pensadores como Rousseau e Pestalozzi enfatizam a importância da experiência prática e da observação para a aprendizagem, contribuindo assim para o desenvolvimento de métodos educacionais mais centrados no aluno (Albuquerque, 2002). No século XIX, surge a defesa e a implantação da educação pública em larga escala em muitos países ocidentais e defensores do movimento Escola Nova como Dewey deixam impactos duradouros na didática, constituindo indiscutivelmente uma real e ampla inovação no ensino (Baltar, 1985). No século XX, a didática continua a evoluir com o surgimento de diferentes abordagens pedagógicas, tais como behaviorismo, construtivismo e cognitivismo, bem como correntes educacionais progressistas. Estudiosos como Piaget, Vygotsky e Brunet contribuíram para uma compreensão mais profunda do processo de aprendizagem e desenvolvimento do ser humano influenciando também o pensamento pedagógico e a didática de ensino e de aprendizagem desenvolvida nas instituições de ensino. No século XXI, com o avanço da tecnologia a educação passa por uma revolução digital, sendo que novas abordagens de ensino e aprendizagem surgem, por exemplo, a aprendizagem online, a aprendizagem baseada em projetos e a personalização do ensino. De modo geral, a história da didática reflete a evolução das práticas educacionais ao longo do tempo e sofre influências de uma variedade de correntes filosóficas, teorias e avanços sociais e tecnológicos. Da mesma forma, a história da didática no Brasil é marcada por diferentes influências e evoluções ao longo do tempo. No período Colonial (1500-1822), a educação era voltada principalmente para a catequese e a instrução religiosa, conduzida pelos jesuítas. O plano de ensino, nessa época, era consubstanciado no rádio studiorum, que visava a formação do homem universal, humanista e cristão. A ação pedagógica se caracteriza, neste período, pelas formas dogmáticas do pensamento em detrimento do pensamento crítico (Veiga, 1988). Durante a idade média, a educação esteve fortemente vinculada à igreja e no período imperial no Brasil, há uma forte influência religiosa, porém surge a defesa de uma educação laica. A educação que era centralizada e controlada pelo governo imperial, passa por dificuldades e é marcada por debates sobre a importância do ensino técnico e profissional em detrimento da educação humanística. Nesse período, suprime-se o ensino religioso das escolas públicas e é aprovada a Lei Benjamin Constant, que defende o ensino gratuito e obrigatório em todos os graus, sob influência do positivismo (Veiga, 1988). Nesse contexto histórico, 15 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) A didática é compreendida como um conjunto de regras que visam assegurar aos futuros professores as orientações necessárias ao trabalho docente. A atividade do docente é entendida como inteiramente autônoma em face da política, dissociada das questões entre escola e sociedade. Uma didática que separa teoria e prática (Veiga, 1988, p. 36). No período da República Velha (1889-1930) há uma forte influência positivista e a educação é vista como meio de modernização do país e de promoção da cidadania. Nesse cenário, A didática é entendida como um conjunto de ideias e métodos, privilegiando a dimensão técnica do processo de ensino, fundamentada nos pressupostos psicológicos, psicopedagógicos e experimentais, cientificamente validados na experiência e constituídas em teoria, ignorando o contexto político econômico (Veiga, 1998, p. 38). Aos poucos, os ideais da Escola Nova ganharam espaço ao defender métodos mais ativos de ensino, baseados na experiência e na participação dos alunos. A valorização da criança, como ser dotado de capacidades individuais, cuja liberdade de iniciativa, de autonomia e de interesses devem ser respeitados, são características marcantes da Escola Nova (Veiga, 1988). Assim, passa-se a concepção de que os problemas educacionais estão relacionados às técnicas de ensino, sem considerar-se aspectos políticos, econômicos e sociais que envolvem o processo de ensino e de aprendizagem (Veiga, 1988). O período do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), é marcado pela centralização do ensino, maior intervenção do Estado na educação, expansão do ensino público e uma preocupação crescente com a formação de professores. Nesse momento da história, é criado o Ministério da Educação e Saúde Pública e, no ano de 1932, é lançado o Manifesto dos Pioneiros Escola Nova, que preconiza a reconstrução social da escola na sociedade urbana e industrial (Veiga, 1988). A didática, nesse contexto, inspirou-se no liberalismo e no pragmatismo, priorizando os processos metodológicos sem considerar o processo de apropriação do conhecimento. Ademais, a didática sofre influência das teorias educacionais internacionais, como o construtivismo e o behaviorismo. A educação tornou-se um campo de estudo mais especializado, com a criação de faculdades de educação. Durante a Ditadura Militar no Brasil (1945-1964) o governo foi marcado pelo autoritarismo e repressão política, o que influenciou profundamente a educação. Houve um foco na formação de mão de obra para o mercado de trabalho, com ênfase em disciplina e ordem. A didática, nesse viés, assume os pressupostos da pedagogia tecnicista que tem “como preocupações básicas a eficácia e a eficiência de ensino” (Veiga, 1988, p. 41). Na didática tecnicista o professor e os estudantes deixam se ser o centro de ensino e este lugar passa a ser ocupado pelas técnicas de ensino (Albuquerque, 2002). Da mesma forma, 16 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Na didática tecnicista, a desvinculação entre teoria e prática é mais acentuada. O professor torna-se mero executor de objetivos instrucionais, de estratégias de ensino e de avaliação. Acentua seu formalismo didático por meio dos planos elaborados segundo normas prefixadas. A didática é concebida como estratégia para o alcance dos produtos previstos para o processo ensino-aprendizagem (Veiga, 1988, p. 41). Como é possível observar, no decorrer dos anos, a didática no Brasil foi influenciada por diferentes correntes pedagógicas e políticas educacionais, refletindo as mudanças sociais, econômicas e políticas do país. No período de Redemocratização (1985 até hoje), após o fim da ditadura, houve um processo de redemocratização e reformas educacionais que propulsionaram a expansão do ensino fundamental e a implementação de políticas de inclusão e a diversificação curricular. A educação passa a ser vista como direito social, contudo, a didática ainda é “[...] desvinculada do contexto social mais amplo, possibilitando a formação do professor técnico, mero executor de atividades rotineiras, acríticas e burocráticas” (Veiga, 1988, p. 47). Para avançar em termos de compreensão da didática como forma de promoção de educação de qualidade, é necessário que se tenha a clareza de que a educação é uma prática social em que o aluno se apropria dos conhecimentos por intermediação do professor. Este tem como função intermediar situações de aprendizagem e motivar os alunos por meio da proposição de situações desafiadoras, vinculadas com a realidade social em que eles estão inseridos. A didática tem uma importante contribuição a dar em função de esclarecer o papel sócio-político da educação, da escola e, mais especificamente, do ensino e da aprendizagem, de acordo com os pressupostos de uma pedagogia transformadora: é o de trabalhar no sentido de ir além dos métodos e técnicas procurando associar escola-sociedade, teoria-prática, conteúdo-forma, técnico-político, ensino-pesquisa, professor-aluno (Albuquerque, 2002, p. 56). A didática, no cenário atual, envolve ações e reflexões sobre a prática pedagógica, e está relacionada com a concepção de educação que o professor possui. Ressalta-se que a concepção do professor sobre educação interfere no planejamento e no desenvolvimento das ações pedagógicas que visam a formação integral dos estudantes. Nessa perspectiva, o professor que olha para o contexto local e global em que desenvolve suas atividades de ensino precisa considerar que aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos influenciam os modos de vida dos estudantes e suas concepções sobre o mundo. Dessa forma, [...] o professor ao trabalhar o processo de ensino-aprendizagem, deve ter consciência de que o objeto da Didática é o “como ensinar” e essa forma de ensinar está articulada a uma prática social, seu pressuposto e sua finalidade; e também que está diante de um aluno real, um ser que possui uma história de vida que a traz consigo e que também é sujeito desse processo, carecendo de uma formação integral (Albuquerque, 2002, p. 56). 17 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) A prática docente, atualmente, é desafiadora e complexa; as instituições de ensino passam por imposição de políticas educacionais que exigem altos índices em avaliações e que ao mesmo tempo mensuram o conhecimento dos estudantes e o trabalho realizado pelos professores. Estes não dispõem de espaço e tempo necessário para cumprir com o que seria a função da escola, que é a de universalizar a educação básica de qualidade para todos e motivar os estudantes para a aprendizagem. Da mesma forma, o avanço das tecnologias e a disseminação de informações de forma acelerada são também desafios que limitam o processo de ensino e aprendizagem, visto que o professor nem sempre conta com os recursos necessários para atualizar seus conhecimentos e para estar preparado para compartilhar essas informações com seus estudantes. Esses desafios exigem repensar a prática pedagógica e a formação de professores para que possam atender as demandas atuais dos processos de ensino e aprendizagem, com vistas à educação de qualidade para todos. A Didática e os saberes docentes Conforme esclarecido anteriormente, a didática é objeto de estudo no Brasil desde a chegada dos Jesuítas ao Brasil em 1549. Desde essa época até os dias atuais, diversas correntes educacionais influenciam o desenvolvimento da didática no Brasil, gerando interesse de diversos autores que se ocupam dos estudos que envolvem a didática e os saberes docentes, entre eles, Veiga (1988), Matos et al. (2021), e Tardif (2002). No decorrer da história da educação brasileira, a didática foi modificada conforme os ideais e moldes da sociedade em que o ensino foi desenvolvido. Portanto, a didática assim como a construção dos currículos escolares atende, no decorrer da história da educação brasileira, aos interesses de uma classe social dominante e às conveniências governamentais. Reitera-se que a palavra didática provém do grego didaktiké, cujo significado está relacionado com a arte de ensinar. O uso desse termo ampliouse com o surgimento da obra de Jan Amos Comenius (1592-1670), Didática Magna, ou Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos, publicada em 1657 (Matos et al., 2021, p. 504). Atualmente a palavra didática apresenta muitas definições, quando usada na área educacional, contudo, normalmente ela é definida como ciência, técnica ou arte de ensinar. Por algum período o ensino didático contemplou métodos e técnicas de ensino e passou a ser visto como um conjunto de estratégias de ensino, confundindo-se com a metodologia de ensino (Matos et al., 2021). É importante esclarecer que a metodologia de ensino define as técnicas e estratégias de ensino influenciadas por diferentes tendências metodológicas no decorrer da história. Por outro lado, a didática se ocupa de 18 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira aspectos que envolvem a atuação do professor em sala de aula, o planejamento e a reflexão sobre a sua prática. A didática refere-se ao estudo e aplicação de métodos e técnicas para melhorar o processo de ensino e aprendizagem, por meio de análise dos desafios e dificuldades que o ensino de cada disciplina apresenta e propõe soluções para superá-las. A metodologia estuda os métodos de ensino, classificando-os e descrevendo-os sem fazer julgamentos de valor. Os métodos de ensino são os caminhos que devem ser seguidos para que se possam alcançar os objetivos de ensino e de aprendizagem. Pode-se dizer que “[...] a didática está relacionada às experiências de aprendizagem vividas e às atividades realizadas pelo próprio discente, com atividades voltadas para suas necessidades educativas movidas, e não somente por parte dos docentes” (Matos et al., 2021, p. 514). Em resumo, a didática está mais relacionada à aplicação prática do ensino, enquanto a metodologia é uma abordagem teórica e analítica dos métodos de ensino. Esclarecido isso, é importante frisar que a prática pedagógica exige rigorosidade metódica, quer dizer, fundamenta-se numa proposta de ensino que considere o estudante como sujeito curioso no qual se propõe o aprofundamento crítico da compreensão do objeto de conhecimento e isso exige constante formação docente. Dessa maneira, é importante que o professor se constitua como um pesquisador capaz de criar no seu aluno um processo de educação continuada dentro e fora do âmbito escolar. O respeito ao saber do educando é essencial, pois toda aprendizagem requer um conhecimento prévio assim um ponto de partida tem uma aprendizagem efetiva deve ser a realidade do estudante, e o professor ao respeitar os saberes dos estudantes enquanto ensina aprende (Freire, 2006). O professor é um ser social político e histórico e em sua prática pedagógica ele mobiliza saberes que são construídos em diferentes instâncias, como por exemplo, na família e na escola em que se formou, na cultura pessoal e na universidade. Tudo isso se constitui num saber plural desenvolvido durante sua carreira profissional e a sua vida pessoal. Nesse sentido, pode-se “situar o saber do professor na interface entre o individual e o social, entre o ator e o sistema, a fim de captar a sua natureza social e individual como um todo” (Tardif, 2002, p. 16). Portanto, deve-se considerar que o conhecimento relacionado ao trabalho do professor e os saberes do seu cotidiano são indispensáveis à sua prática, sendo que este não é apenas um transmissor de saberes de outros grupos. [...] esses saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões. (Tardif, 2002, p. 49). 19 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) O professor, nas circunstâncias e no contexto em que atua profissionalmente, interage constantemente com outros autores envolvidos com o processo de ensino e aprendizagem. Essa experiência permite a construção de um conjunto de saberes sobre elementos e os atores envolvidos nas práticas educacionais. Esses conhecimentos mobilizam sua prática e são utilizados e produzidos no âmbito de suas tarefas cotidianas (Tardif, 2002). Ressalta-se que, ainda que o professor tenha certa autonomia em sua prática pedagógica, seus saberes são influenciados pela organização da instituição em que atua e dos currículos pré-estabelecidos por ela. Contudo, o professor se constitui como sujeito de fazeres e saberes que são referências de sua própria ação e dos seus pensamentos. Percebe-se que, nas instituições de ensino, a interação entre professores e estudantes carece de renovação nos processos educacionais e se faz necessário a reconstrução cultural em diferentes áreas do conhecimento. Os professores têm a função de criar e recriar modos de propiciar aprendizagem mais efetivas que considerarem aspectos cognitivos e socioafetivos. E assim, o conteúdo da aula que se relaciona às diversas áreas do conhecimento e a dialogicidade na relação cotidiana do professor e estudantes são essenciais para a construção de novos conhecimentos. [...] para se ter nas instituições que formam professores a instauração de novo modo de pensar e fazer a formação de docentes para a educação básica, e definir melhor o valor e o papel da Didática e da aprendizagem das práticas educacionais nessa formação, há que haver alguma ação coletiva que permita trazer à tona contribuições dos fundamentos da Didática como campo de conhecimento e também suas contribuições a cada uma das áreas de conhecimento que são objeto da formação de docentes para a educação básica em seus diferentes níveis (por exemplo, relativos à aquisição da leitura e escrita, à aprendizagem da matemática, das humanidades, ciências biológicas, ciências exatas, artes, etc.). Isso implica ações que alcancem profissionais de variados campos de conhecimento, o que demanda interlocução das teorias e práticas didáticas com conteúdos diversos, em perspectivas interdisciplinares (Gatti, 2017, p. 3). A didática tem extrema relevância na formação do professor, uma vez que propicia o desenvolvimento de capacidade crítica e reflexiva sobre a realidade do ensino, e potencializa a criação de atividades e situações de ensino, nas quais o aluno se apropria de novos conhecimentos. O professor ao ter clareza do que é didática e de suas contribuições ao processo de ensino, será capaz de planejar, organizar, desenvolver e avaliar prática de ensino com vistas a reconstrução constante dos seus saberes, o que lhe possibilitará auxiliar os alunos a se apropriarem do conhecimento de modo mais efetivo e significativo. O conhecimento se torna efetivo quando o estudante é capaz de utilizálo para resolver situações ou problemas do seu cotidiano com o uso desse conhecimento. Um conhecimento se torna significativo quando uma nova ideia 20 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira se relaciona aos conhecimentos prévios dos estudantes em uma situação proposta pelo professor que seja relevante para eles. Num processo dialógico, os estudantes ampliam e atualizam seus conhecimentos anteriores e desenvolvem habilidades relacionadas à reflexão e ao envolvimento ativo com seu processo de formação. A didática e a diversidade social A diversidade social no ambiente escolar é uma realidade que reflete as diferentes origens, contextos culturais, familiares, econômicos e sociais dos estudantes e de suas famílias. Essa diversidade apresenta desafios que precisam ser enfrentados para que se possa garantir uma educação inclusiva e equitativa, por isso envolve o conhecimento didático do professor para que possa contribuir com a formação de todos os estudantes independente da classe social, étnica ou cultural em que se encontra inserido. Isso requer uma abordagem didática que valorize e respeite as diferentes tradições, línguas e costumes, promovendo a interculturalidade e o diálogo entre os diferentes grupos. As disparidades socioeconômicas entre os alunos podem afetar sua confiança na potencialidade de aprendizagem, sua autoestima e consequentemente a motivação para a aprendizagem. É importante que a escola esteja ciente dessas diferenças e implemente políticas e programas que ajudem a reduzir as desigualdades e ofereçam suporte aos alunos em situação de vulnerabilidade. Os educadores brasileiros lutam constantemente por uma escola pública gratuita e de qualidade para toda a população (Libâneo, 2012). A função da escola, nesse contexto, enquanto espaço planejado e organizado, consiste em promover o ensino e a aprendizagem para que ocorra a apropriação dos conhecimentos historicamente produzidos. O conhecimento didático do professor é essencial, pois está relacionado com a função social e pedagógica do ensino e pode contribuir para a universalização do acesso e da permanência, para a educação de qualidade através do atendimento às diferenças sociais e culturais, e a formação para a cidadania crítica (Libâneo, 2012). Sabe-se que as instituições de ensino necessitam prover recursos e apoio adequados para garantir a participação plena de todos os estudantes no ambiente escolar. Da mesma forma, cabe à escola promover a formação didática dos profissionais que nela atuam, bem como reuniões pedagógicas sistemáticas para que se aprimore a função didática da instituição, visto que a reflexão sobre a prática pedagógica envolve também sua concepção de educação e a compreensão do cenário político, social, cultural e econômico em que os sujeitos estão inseridos. As necessidades especiais, a diversidade de gênero e orientação sexual, a religiosidade são também aspectos que necessitam ser contemplados no 21 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) planejamento didático, pois é fundamental promover um ambiente seguro e acolhedor para todos os estudantes, independentemente de suas necessidades especiais, de sua identidade de gênero ou orientação sexual e de sua religião, combatendo assim toda forma de preconceito e a discriminação. A escola deve ser um espaço onde todas as crenças sejam respeitadas, onde haja a promoção da tolerância religiosa e do respeito mútuo. Ao reconhecer e valorizar a diversidade social na escola, os professores criam ambientes mais inclusivos e promovem o respeito mútuo, a compreensão intercultural e o sucesso acadêmico de todos os alunos. Nesse sentido, “[...] falar de igualdade é considerar, ao mesmo tempo, a diferença, pois, se a escola recebe sujeitos muito diferentes entre si, ela precisa enfrentar a realidade da diversidade como condição para ser integradora de todos” (Libâneo, 2012, p. 26). Isso não só beneficia os próprios alunos, mas também contribui para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e equitativa. A importância da didática nas diferentes classes sociais reside no reconhecimento das disparidades socioeconômicas e culturais presentes na sociedade. A didática, que se refere às estratégias e aos métodos de ensino, deve ser sensível e adaptável às necessidades específicas dos diferentes grupos sociais. Libâneo (2012) defende uma escola que saiba articular a formação cultural e científica dos estudantes com as práticas socioculturais que são permeadas de diferenças, valores e formas de conhecimento local e cotidiano. Nesse viés, a didática adotada pelo professor necessita ser inclusiva e abordar questões socioeconômicas, linguísticas e culturais conforme a demanda dos estudantes e utilizar-se de recursos que promovam a inclusão. A didática desempenha um papel essencial na redução das desigualdades educacionais e oferece oportunidades equitativas de aprendizagem para os estudantes independentemente de sua origem socioeconômica. Dessa maneira, o conhecimento didático pode contribuir no desenvolvimento de estratégias que valorizem e respeitem a diversidade cultural e linguística presente nas diversas classes sociais. O planejamento do ensino para as diferentes classes sociais favorece o desenvolvimento de uma educação de qualidade e equitativa, contribuindo inclusive para a melhoria das relações humanas. Considerações Finais Esta pesquisa teve como objetivo investigar a história da didática e sua importância para o desenvolvimento de práticas de ensino e aprendizagem na contemporaneidade. Para isso, foram tecidas algumas reflexões que permitiram ampliar a compreensão do que é didática, de sua origem e de sua importância no contexto educacional. É importante lembrar que este estudo não se limita a 22 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira aprofundar a temática, mas construir possibilidades dialógicas para seguir os estudos que envolvem a temática. Estudar a didática requer o envolvimento com a prática pedagógica e o olhar crítico para as diferentes correntes e teorias pedagógicas que influenciam os processos educativos. Conhecer a evolução da concepção de didática ao longo do tempo permite melhor compreender as correntes educacionais que influenciam as práticas pedagógicas atuais. Ao compreender as abordagens pedagógicas e didáticas contemporâneas é possível reorganizar o processo de ensino e adaptá-lo conforme a realidade do contexto educativo em que se desenvolve o ensino e a aprendizagem. A relação entre a didática e os saberes docentes é intrínseca e complexa, pois a didática está intimamente ligada à prática de ensino e ao desenvolvimento das habilidades pedagógicas dos professores. Os saberes docentes incluem o conhecimento pedagógico, que se refere à compreensão dos processos de ensino e aprendizagem, bem como das estratégias e métodos de ensino eficazes. A didática fornece aos professores ferramentas e estruturas para desenvolver esse conhecimento e os auxilia na tarefa de planejar e proporcionar aulas mais dinâmicas e eficazes. A relação entre a didática e a diversidade social é crucial porque a didática não apenas molda a forma como o conhecimento é transmitido, mas também influencia como os alunos se relacionam com esse conhecimento e com o mundo ao seu redor. Sabe-se que a adaptação curricular é essencial no processo de ensino e de aprendizagem, uma vez que a diversidade social se manifesta em diferentes contextos culturais, étnicos, linguísticos, socioeconômicos. A didática precisa levar em consideração essa diversidade ao planejar e implementar o currículo e garantir que o conteúdo seja relevante e significativo para todos os alunos, independentemente de suas origens. A didática desempenha um papel fundamental na organização dos processos educativos ao favorecer o planejamento curricular; a didática fornece um conjunto de princípios, teorias e métodos que os educadores utilizam para planejar o currículo escolar. Isso inclui a seleção e organização dos conteúdos a serem ensinados, a definição de objetivos de aprendizagem, a escolha de estratégias de ensino e avaliação, bem como a sequenciação das atividades ao longo do tempo. Ademais, favorece a seleção de métodos e estratégias de ensino, auxilia no planejamento e na organização do ambiente de aprendizagem e na adaptação curricular conforme as necessidades dos Alunos. Assim, a didática possibilita a organização dos processos educativos ao oferecer aos educadores um conjunto de princípios, teorias e práticas que orientam o planejamento, implementação, avaliação e aprimoramento do ensino e da aprendizagem em contextos diversos. Portanto, a didática não se limita à prática de ensino, mas se propõe a compreender a relação que se estabelece entre professor, estudantes e o conhecimento a ser apropriado. 23 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Referências ALBUQUERQUE, Marluce Jacques de. Retrospectiva histórica da didática e o educador. In: Educação: teorias e práticas. Unicamp, ano 2, nº 2, 2002. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/7548/7548.PDF. Acesso em: 13 maio 2024. BALTAR, Maria José. A didática: considerações sobre sua história. 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Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/YkhJTPw545x8jwpGFsXT3Ct/ abstract/?lang=pt#. Acesso em: 13 maio 2024. MATOS, Euzene Mendonça Barbosa; MATOS, Benedito de Sousa; ALVES, Francisco Regis Vieira Alves. A didática e a prática pedagógica dos docentes: dimensões constitutivas e a construção de conhecimentos. Revista IberoAmericana de Humanidades, Ciências e Educação- REASE. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/download/1388/603/2702. Acesso em: 07 maio 2024. TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação de Professores. Petrópolis: Vozes, 2002. 24 A DIMENSÃO EDUCATIVA DA COLUNA “CARTAS À MINHA PRIMA”, EM VIDA DOMÉSTICA (1923-1925) Nathalia Araújo Duarte de Gouvêa1 Michele Ribeiro de Carvalho Cassano2 Gabrielle Carla Mondêgo Pacheco Pinto3 Mariana Elena Pinheiro dos Santos de Souza4 Introdução “Querida Carmen”. Era assim que a coluna “”Cartas à minha prima”” se iniciava, tal qual as orientações para a escrita de uma carta informal, como seria a conversa entre duas primas. A forma de despedida também seguia as convenções para a troca de correspondência: “Beijo da tua prima muito amiga, Didi”. Isto, por si só, já poderia demonstrar uma intenção educativa quanto às regras da língua portuguesa, mas esta dimensão parece ir muito além disto, como buscaremos demonstrar ao longo do texto. Este texto propõe sobrelevar aspectos da coluna “Cartas à minha prima”, que circulou de 1923 a 1925, na revista Vida Doméstica. Busca-se destacar formas de educabilidade para as mulheres à luz da escrita epistolar. Neste sentido, considera-se a referida coluna como um “dispositivo não-formal de educação” (Magaldi e Xavier, 2008). Vida Doméstica (1920-1962) foi o primeiro empreendimento periódico da Sociedade Gráfica Vida Doméstica, editora responsável por outras revistas 1 Mestre em Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PGL/UERJ) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professora Assistente de Língua Inglesa da UERJ. E-mail: natgouvea@gmail.com. 2 Pós-doutoranda em Educação no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Técnica Universitária Superior da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: mmichelerj@gmail.com. 3 Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (ProPEd-UERJ) e Professora Adjunta de Língua Inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: pacheco.gabrielle@uerj.br. 4 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação (ProPEdUERJ), bolsista de doutorado Capes e Professora dos Anos Iniciais do CAp-UFRJ. E-mail: marianaepss@gmail.com. 25 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) que compuseram o cenário editorial brasileiro entre 1920 e 1963. A revista em destaque foi a de maior longevidade no âmbito da editora, o que pode justificar o nome da Sociedade Gráfica, uma vez que circulou durante o tempo de existência da própria editora - de 1920 a 1963. Contudo, Vida Doméstica não foi a primeira empreitada a buscar o público feminino. Ainda no século XIX, observam-se impressos femininos que dedicavam-se a conteúdos sobre moda, beleza e culinária, entendendo a mulher como pertencente à vida social (Buitoni, 2009). Apenas em 1852, com o surgimento do carioca O Jornal das Senhoras5 (1852 – 1855), as questões relativas à emancipação feminina foram discutidas. A imprensa feminina funcionava em condições precárias e, diferentemente de Vida Doméstica, os periódicos tinham curta duração, até mesmo porque a maioria de suas colaboradoras se mantinha no anonimato ou lançava mão de pseudônimos6. Já na primeira metade do século XX, estes periódicos femininos se destacam por duas vertentes: a moda e o culto à beleza feminina, especialmente através das fotografias7, divulgando padrões de comportamento e beleza a serem seguidos pelas leitoras; e a reivindicação dos direitos das mulheres, destacandose o direito ao voto (Pinto, 2023). No que tange à historiografia da educação para mulheres, é possível observar, entre outros aspectos, a condição desigual em relação aos homens. O acesso a uma educação secundária, por exemplo, só seria dado às mulheres às custas de sua formação para o magistério. Ainda que a lei de Instrução Pública de 1827 tenha “Manda[do] crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império” (Brasil, 1827), convém destacar que às mulheres estava reservado o espaço doméstico. Com relação ao acesso a livros, por exemplo, poucas eram aquelas que tinham essa possibilidade. Filhas e esposas não deveriam sequer tocar nos livros, muito menos lê-los. É a partir dos ideais positivistas que este cenário se modifica, em certa medida. De acordo com a cartilha positivista, as mulheres deveriam ter o mínimo de instrução para a manutenção da ordem familiar, núcleo pelo qual eram responsáveis (Pacheco, 2015). 5 O periódico circulou entre 1852 e 1855, sob direção de Joana Paula Manso de Noronha, em um primeiro momento; por Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Vellasco; e encerrando os trabalhos sob a redação de Gervásia Nunezia Pires dos Santos Neves. 6 Segundo Alberti (2004), pseudônimos são os nomes utilizados por escritores para ocultar o nome verdadeiro a fim de não revelar a autoria do material. 7 Santos (2011, p. 39) comenta que Vida Doméstica, já neste momento, destacava-se por sua estética: “Nos anos 1920, um diferencial estético da revista em relação às concorrentes do mercado era a presença maciça de fotografias, assim como a presença de páginas coloridas, o que representava uma grande inovação técnica para a época.” 26 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Desta forma, os impressos e a imprensa cumpriram papel fundamental na sociedade brasileira nos séculos XIX e XX. Assim, justifica-se a predileção pela imprensa por conta da função que este dispositivo desempenhou na educação de mulheres. Nos limites deste estudo, focalizaremos a revista Vida Doméstica, considerando o recorte temporal que parte de 1923 e se estende até 1925, compreendendo o período integral de veiculação da coluna. A primeira publicação de “Cartas à minha prima” se dá na edição 64 de Vida Doméstica, de 03 de novembro de 1923. Angela de Castro Gomes organizou a obra Escrita de Si, Escrita da História (2004). Em sua introdução, a historiadora chama atenção para o fato de que cartas, diários íntimos e memórias “sempre tiveram autores e leitores, mas na última década, no Brasil e no mundo, ganharam reconhecimento e visibilidade bem maior” (Gomes, 2004, p. 8). Ela também indica que há um “novo espaço de investigação histórica - aquele do privado, de onde deriva a presença de mulheres e dos chamados homens comuns” (p. 9), uma entrada na questão de gênero. No entanto, a mesma alerta para o ponto da ilusão autobiográfica pois há um risco para o pesquisador: o efeito de verdade que a sinceridade da narrativa epistolar é capaz de produzir (p. 10). Vemos isso no caso de a coluna “Cartas à minha prima” fazer circular supostas cartas assinadas por uma mulher, nomeada Didi, e seu autor ser, na verdade, o jornalista da revista Vida Doméstica, Mario Poppe8. Assim, é preciso concordar com Maria Lúcia Pallares-Burke (1998) em seu artigo A imprensa periódica como uma empresa educativa no século XIX ao asseverar que “romances, jornais, revistas, sermões, teatro, pinturas, etc têm tido sua quota de participação no processo educacional e podem, pois, ter muito a dizer sobre o modo complexo pelo qual as culturas são produzidas, mantidas e transformadas” (Pallares-Burke, 1998, p. 145). Em seu artigo sobre romances epistolares, Marisa Lajolo (2002) complementa tal argumento mencionando que o artifício epistolar apresenta dimensões pedagógicas, termo que a pesquisadora entende como outra forma de falar das dimensões ideológicas de tal gênero (Lajolo, 2002, p. 74). Como as pesquisas no campo da História da Educação demonstram que muitos impressos e a imprensa tiveram um compromisso com a educação, tal trabalho investigativo revela-se substancial e instigante. Além disso, justifica-se a predileção pela revista em tela por conta de dois aspectos, que compreendem a pesquisa de uma das autoras que recai na análise de outra revista publicada pela mesma editora de Vida Doméstica e, ainda, a inserção das autoras no campo da 8 Mário Poppe (?-1942): foi jornalista e crítico literário paulista. Além de Vida Doméstica, onde colaborou em outras colunas, Poppe atuou na revista FonFon e publicou, ainda na década de 1920, o volume “Do que elas gostam”, livro de crônicas, assuntos mundanos, observações e flagrantes da vida social, conforme noticia a edição 4675 de A Noite. 27 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) História da Imprensa feminina, a partir de um projeto de extensão9 que se dedica ao estudo de mulheres e suas representações diversas na imprensa. De caráter histórico-documental, esta pesquisa parte dos preceitos da História Cultural, com especial ênfase nas discussões de Chartier (2004) sobre representação, tendo em vista que as escritas de si podem revelar recortes de espaço e tempo. Desta maneira, estabelece diálogo com os estudos de Angela de Castro Gomes (2004) e Marisa Lajolo (2002) sobre as escritas de si, em especial a escrita epistolar; e Dulcília Buitoni (2009) e Liana Santos (2011), em referência à imprensa feminina. No que concerne à metodologia, lança-se mão dos estudos de Peter Burke (2005), acerca do cruzamento de fontes; e de Maria Lúcia Pallares-Burke (1998), a respeito da tomada da imprensa e de outros objetos midiáticos como possíveis dispositivos educacionais. Destaca-se, ainda, o estudo seminal de Ana Luiza Martins (2001) sobre a manipulação de revistas na condição de fontes históricas válidas. A Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) se converte no principal acervo para esta pesquisa. Das 58 edições de Vida Doméstica, que contemplam os anos de 1923 a 1925, período elencado para este estudo, serão observadas 14, que compreendem a publicação da coluna “Cartas à minha prima”. Deste modo, propõe-se a organização deste artigo em 2 seções, as quais se dispõem da seguinte forma: na primeira seção, focaliza-se a revista Vida Doméstica, trazendo aspectos de sua composição e modos de operar com a fonte; em seguida, a análise recai na dimensão educativa da coluna “Cartas à minha prima”, tomada como objeto e fonte. Espera-se, enfim, que este capítulo integre os estudos que tomam a imprensa feminina e a educação para mulheres como objeto. Vida Doméstica (1920-1962): revista semanal illustrada Apontamentos sobre a operação historiográfica com os periódicos Para fins de tratamento e análise do periódico em tela, convém apresentar o modus operandi utilizado. Isto é, a operação historiográfica empreendida nestes impressos. Sabe-se que a escrita positivista da História tem como característica o privilégio atribuído aos chamados grandes eventos históricos, com ênfase nos “heróis”, nas datas e nos documentos ditos oficiais. Após a guinada da História, em especial, com o surgimento do Movimento da Escola dos Annales, em 1929, contudo, esse tipo de narrativa da História, passa a dar lugar a uma História-problema, prestando destaque à história dos sujeitos comuns e a elementos não considerados oficiais, isto é, os de uso comum 9 Trata-se do projeto “Páginas de Mulheres na Imprensa” (2024), de origem no Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). O projeto busca iluminar, entre outros, a produção de, sobre e para mulheres na imprensa periódica. 28 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira e cotidiano. A revista passou, então, a figurar como um gênero impresso de reconhecido valor, o que corrobora a escolha por se estudar este objeto. De acordo com Martins (2001, p. 21), este tipo de periódico é capaz de “‘documentar’ o passado através de registros múltiplos: do textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àquele de seus consumidores”. Destarte, manipular periódicos é uma forma de lidar com os diversos elementos que os constituem como material impresso de amplitude e relevo para se analisar alguns elementos históricos. Deste modo, entende-se que, a partir da mirada a um aspecto constitutivo de Vida Doméstica, é possível de se observar elementos que deem a ver o que era esperado sobre o público feminino, por exemplo; marcas ou produtos que circulavam, à época; a moeda corrente; questões de cunho social, cultural, político e econômico, dentre outros. Vida Doméstica: a revista para o mulherio brasileiro Lançada em março de 1920, Vida Doméstica foi uma revista de relevo no cenário editorial e cultural do início até pouco mais da metade do século XX. Além da duração de pouco mais de 40 anos, com publicação mensal, após quinzenal e, ainda, semanal, o periódico foi responsável por formar o gosto de diversas mulheres brasileiras, por meio de seções de cunho educativo, instrutivo e moralizante. Fundada por Jesus Gonçalves Fidalgo, Vida Doméstica foi publicada pela denominada Jesus & Jarque até a década de 1940, quando é criada a Sociedade Gráfica Vida Doméstica - década em que outras duas revistas passaram a fazer parte do rol de publicações da editora. Tem-se a hipótese de que o nome da referida sociedade gráfica tem a ver com o fato de a única revista editada por ela, até aquele momento, ter relativa projeção no mercado editorial. A respeito das finalidades de criação de Vida Doméstica, Santos (2011, p. 40) sublinha a posição do fundador: O interesse de colocar no mercado uma publicação fundamentada nos preceitos morais mais elevados, incluindo, até mesmo, o que ele apresenta como “preconceitos”, sem nenhuma conotação negativa, que deveriam ser incorporados pela mulher e pela família como um todo. Seu discurso parecia se direcionar fundamentalmente às atividades desempenhadas no espaço do “LAR”. O tom moralizante e religioso10 que acompanhou a publicação, com especial ênfase a partir dos anos de 1930, parece ter conduzido o conteúdo 10 Em 1920, a revista já apresentava fortes indícios desse caráter religioso, a exemplo da coluna “Religião”, que, de maneira geral, apresentava preceitos para a vida em sociedade, de acordo com as instituições inspiradas na fé cristã - o casamento, a maternidade, a caridade e a benevolência, para citar alguns. 29 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) circulante na revista, possibilitando ao periódico adquirir caráter moral e instrutivo. Nas edições em que a trajetória do periódico era apresentada, o compromisso cristão e moralizante estava posto. Desta maneira, Vida Doméstica cumpriu com seu papel instrutivo, direcionando suas publicações a diversos aspectos que viriam fomentar a formação feminina esperada. A título de exemplo, uma das seções instrutivas da revista foi a Nos domínios do idioma, de Sebastião Valença, que tencionava ensinar/ aprimorar o uso da língua portuguesa; de viés moralizante, havia crônicas, contos e histórias diversas, como, por exemplo, o artigo intitulado Como se arranja uma casa, a partir do qual “as mulheres educadas, de elevado sentimento artístico” (Vida Doméstica, ed. 95, dez. 1925, p. 120-21) aprenderiam a cuidar e a organizar o lar; de maneira aproximada, havia as de cunho educativo, como, por exemplo, a elencada para este estudo, “Cartas à minha prima”. Dado os mais de 40 anos de circulação de Vida Doméstica, é possível pressupor que tenha passado por diversas fases. De fato, a revista sofreu alterações de diferentes naturezas, como na sua composição, na sua periodicidade, no seu corpo editorial e, é claro, no seu conteúdo. Inicialmente, a revista parecia apostar em assuntos como avicultura, pecuária, indústria, fotografia e economia, por exemplo. Contudo, ao longo dos anos, as seções foram se transformando em busca de um público mais bem-definido, a saber, as mulheres. Assim, em 1923, por exemplo, surgem seções como “Cartas à minha prima”. Focalize-se, enfim, a referida seção. A dimensão educativa de “Cartas à minha prima” Por entre as cartas supostamente enviadas a Carmen por sua prima Didi, muitos foram os aspectos que contribuíram, de forma bastante significativa, para que se pudesse tomar a coluna como uma das formas de educabilidade presentes em Vida Doméstica. Apesar de utilizar-se de jargão pertencente ao nicho social feminino à época - “minha querida”, diminutivos diversos e substantivos femininos de maneira geral -, “Didi” era, conforme visto, o pseudônimo utilizado pelo colaborador da revista Mario Poppe. Uma vez examinadas as 14 cartas escritas, que compreendem os anos de 1923 e 1925, observou-se as seguintes temáticas, elencadas na tabela a seguir: 30 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Tabela 1 - temas principais observáveis na coluna “Cartas à minha prima” (1923-25) Edição 62 Ano 1923 Temáticas Regras de comportamento 65 1923 Regras de comportamento 66 1923 Críticas às opiniões dos leitores 68-69 1923 Superioridade dos costumes da Província 70-71 1923 Crítica às tradições brasileiras (Natal) Regras de comportamento Relacionamentos 72 1924 Regras de comportamento 74 1924 Crítica às tradições brasileiras (Carnaval) Regras de comportamento 75 1924 Festividades Regras de comportamento 79 1924 Relacionamentos Casamento 80 1924 Educação Casamento 81 1924 Maternidade Críticas à educação pública 82 1924 Leitura e educação para mulheres 85 1925 Relacionamentos Fonte: Tabela elaborada pelas autoras a partir de pesquisa junto à Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional A predileção por tratar de educação, comportamentos e casamento não era por acaso. De mãos dadas com os preceitos cristãos, que incluem a moral e os bons costumes, as cartas revelam a modulação de caráter que a coluna tentava inculcar nas leitoras. A edição 38, de 1923, já anuncia a nova proposta da revista: “Magazine mensal dedicada às familias e a vida no lar unica, no seu genero, publicada no Brasil, offerecendo leitura sã variada, instructiva e util.” (Vida Doméstica, edição 38, p.2). Outro indício de mudanças na finalidade da revista é encontrado - a partir do escopo eleito para este estudo -, na edição 79, onde lê-se “Vida Doméstica Revista do lar e da mulher”. A inscrição, encontrada em todas as outras edições analisadas, endossa o argumento da educação e da instrução para mulheres. Desde a primeira coluna, as regras de comportamento para mulheres e críticas à falta de decoro das pessoas na cidade grande (Rio de Janeiro) estão muito presentes nas cartas de Didi. Na primeira missiva, há a contextualização de que a troca de cartas se dá por conta da viagem de Didi e Laura para o Rio de Janeiro. Assim, Didi envia à Carmen suas impressões da estadia no Rio. 31 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) As regras de comportamento aparecem não apenas nas dicas de bons modos, mas também nas críticas às condutas dos sujeitos da cidade grande, principalmente as das mulheres. Tais críticas incluem o fato de que “[ellas] desconhecem que não devemos gesticular com exagero, nem elevar a voz…” e, também, “ellas vão desconhecendo, de todo, o recato predicado, necessário a toda mulher que se deseja fazer respeitar” (Vida Doméstica, edição 64, p.13). As críticas à falta de decoro são fortes e aparecem em muitas cartas: “Eu tenho que a moda do cabello cortado, ou aparado, para a mulher é de muito mau gosto, por isso, perdemos a distincção do nosso sexo” (Vida Doméstica, edição 65, p.16) e até “mas não posso nem devo contrariar papae e mamãe” (Vida Doméstica, edição 70/71, p.33). Didi também faz claras distinções sobre as formas de celebrar algumas festas populares, apresentando horror ao desregramento dessa sociedade em comentários ácidos à época do Natal e do Carnaval. Sobre o Natal, há menções sobre a religião também como “essa gente que abomina os filhos, que regula o número de filhos, e que faz desapparecer os filhos, não póde sentir a suave beleza que a religião empresta a este grande dia das suas celebrações” (Vida Doméstica, edição 70/71, p. 33). Já o Carnaval, “é pretexto para o completo e absoluto desregramento de alma” (Vida Doméstica, edição 74, p. 39) e, nessa mesma edição, Didi elenca as muitas formas desse desregramento referindo-se a temas como trajes, nudez, relacionamentos efêmeros e faz comparação novamente aos bons costumes da província e ensinamentos da Igreja. Alguns aspectos da composição da coluna chamam atenção. Além da diferenciação da fonte, numa tentativa de aproximação com a letra cursiva, as edições 85, 82 e 81 trazem, na ilustração, - em posição central - a figura de um homem. Seja ele um adulto ou até mesmo um bebê, conforme observado na edição 81. Os relacionamentos aparecem nas cartas escritas por Didi em duas vertentes - os familiares e os amorosos. Os familiares comentam a maternidade, a relação entre irmãos, além da relação entre as primas. Armando, noivo de Carmen, é a figura masculina que é referida quando se trata de relacionamentos amorosos. Diferente dos demais homens que fazem parte da sociedade do Rio de Janeiro, Armando é cuidadoso, respeitoso e “não forma na casta dos encantadores, os previlegiados que desfructam as graças das melindrosas e das senhoras que costumam trocar de esposos quando estão em sociedade.” (Vida Doméstica, edição 85, p. 81) Seguindo a tendência classista e, em certa medida, aversiva ao Rio de Janeiro, Didi comenta a respeito de suas impressões (negativas) em relação ao casamento, afirmando que “o casamento para esta gente é não é uma eleição, uma escolha de coração, mas apenas um contracto regulado por clausulas rigidas 32 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira e frias, sendo a principal, a importancia do dote.” (edição 80, p. 26). Convém ressaltar que o próprio Código Civil, promulgado em 1916, previa o contrato do casamento e o dote, que poderia ser instituído para “validar as doações nupciais feitas às filhas e as doações feitas aos filhos por ocasião de se casarem, ou estabelecerem economia separada (art. 313).” (Brasil, 1916) Para Didi, Carmen está salvaguardada na província, já que não cultua uma “falsa educação”, como se percebe no Rio de Janeiro. Com críticas severas à maternidade e à escolarização das crianças, tanto das elites quanto das classes médias, Didi estabelece um panorama pouco favorável à vida da prima, se, ao casar-se com Armando, viessem morar na cidade. Na carta publicada na edição 81, comenta em relação à educação das moças: Como ja sabem ler e escrever e contam nos dedos, entendem que não mais carecem de escola, abandonam os livros de estudos e apanham o primeiro romance sentimental que lhes cáe ao alcance das mãos. E as meninas se fazem moças ! Discutem assumptos improprios, commentam as noticias policiaes publicadas com revoltantes detalhes nos jornaes, enfeitam-se para a caça ao marido e perdem a cabeça e o juizo. Vão para os campos de football aos domingos e se fazem “torcedoras”’ de um club qualquer, salientando-se pela falta de compustura, pois, de busto alçado, olhos esgazeantes e voz em falsete, gritam pelo nome dos jogadores e insultam os adversarios, em “calão” grosseiro. Horrivel, minha querida! Outro aspecto relevante mencionado por Didi é a leitura das mulheres. Sob a justificativa de enviar sugestões para a “priminha Júlia”, Didi demonstra seu posicionamento acerca das práticas de leitura para as moças, evidenciando que “a mulher pode e deve ler tudo”, pois “penso que, nenhum livro é nocivo ou perigoso para uma mulher convenientemente formada, educada, que tem juizo e sabe analysar e seleccionar as ideias”, já que “o tempo da mulher escrava de todas as convencões as mais grosseiras ja pasou - Abroquilada na sua ignorancia a mulher não tinha o direito de pensar, nem viver. Não era pessoa, era coisa” (Edição 82, p. 39). Por meio de uma crítica à posição da mulher em sociedade, expressava sua opinião deixando clara a importância de uma boa educação para a escolha dos livros que comporiam a biblioteca feminina. Considerações finais Iniciar um texto pode ser considerado uma tarefa desafiadora, mas concluí-lo também não é muito fácil. Entretanto, a angústia provocada pela folha em branco é substituída pelo prazer de escrever, após todo o trabalho de pesquisa e análise das fontes. Por vezes, a escolha do objeto de pesquisa já se mostra um grande desafio, considerando os acervos e algumas dificuldades, que mesmo a digitalização dos originais não consegue suprimir. 33 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) “Beijos, beijos, muitos beijos da tua… Didi”, com esta despedida termina a última carta de Didi para sua prima Carmen, localizada em fevereiro de 1925. Muitas foram as cartas enviadas para Carmen, com reflexões sobre diferentes assuntos, pretensamente de interesse feminino, escolhidos pela equipe editorial e pelo autor, Mario Poppe. O interesse em educar e instruir as mulheres, escolhendo narrar aquilo que não se deve fazer, parece ser uma estratégia para instigar a leitura da coluna e, consequentemente, fidelizar as leitoras. Em uma visada retrospectiva, buscou-se refletir sobre a imprensa literária e cultural periódica a partir de meados do século XIX. Para tanto, o texto foi organizado em duas seções, além da introdução e das considerações finais. Na primeira seção, intitulada Vida Doméstica (1920-1962): revista semanal illustrada, buscou-se apresentar o periódico em questão, realizando reflexões quanto à operação historiográfica com os periódicos e a sua destinação ao público-leitor feminino. Já a segunda seção, A dimensão educativa de “Cartas à minha prima”, é dedicada à analisar, de forma mais direta, a coluna em destaque, considerando a escolha da escrita epistolar como forma de aproximação com as leitoras, ainda que o autor de tais cartas fosse um homem, Mario Poppe. A análise dos assuntos tratados nas diversas “cartas publicadas” sob o pseudônimo de Didi revela uma preocupação com os comportamentos e as formas de se relacionar familiar e socialmente da parcela feminina da população. Neste estudo, os interesses e escolhas das pesquisadoras definiram o curso da pesquisa, sem a pretensão de apresentar um texto definitivo, mas antes, uma reflexão sobre as produções para as leitoras de jornais e revistas no período que compreende a década de 1920. Espera-se, assim, que os resultados alcançados contribuam com estudos no âmbito da imprensa feminina e da educação para mulheres. Referências Bibliográficas BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. Tradução: Sérgio Goes de Paula. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de Maria Manuela Galhardo - 2ª ed. Lisboa: Difusão Editora, 2002. GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. LAJOLO, Marisa. Romance epistolar: o voyeurismo e a sedução dos leitores. Rio de Janeiro: Matraga, v. 1, n. 14, p. 61-75, jan-dez. 2002. PACHECO, Gabrielle Carla Mondêgo. Os deveres do pequeno cidadão em Alma Infantil: versos para uso das escolas (1912). 2015. 141 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de 34 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A imprensa periódica como uma empresa educativa no século XIX. In: São Paulo: Cadernos De Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), n. 104, p. 144–161, jul. 1998. PINTO, Gabrielle Carla Mondêgo Pacheco. Júlia Lopes de Almeida: escritora, mãe e esposa laureada nas páginas de A Violeta (1920-1934). Tese (Doutorado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. SOUZA, Mariana Elena Pinheiro dos Santos de. Divertir, educar e instruir: Vida Infantil (1947-1950). Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. SOUZA, Mariana Elena Pinheiro dos Santos de. O Jovem em Revista: Vida Juvenil (1949-1959). Anais do XI Congresso Brasileiro de História da Educação, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2022. 35 A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NA ERA VARGAS: ENTRE MOVIMENTAÇÕES POLÍTICAS, MARCOS LEGAIS E REPERCUSSÕES SÓCIO-HISTÓRICAS Ailton Batista de Albuquerque Junior (Roinuj Tamborindeguy)1 Gabriel Silveira Pereira2 1. Introdução O presente estudo tem como objetivo analisar os principais eventos políticos e econômicos, além de suas consequências para a educação brasileira, em virtude do movimento revolucionário de 1930, findando a República Velha ou República dos Coronéis. A relevância deste tema justifica-se pela busca em compreender o período histórico e as vicissitudes da época, como o Pós–Revolução de 1930; as políticas educacionais adotadas no governo Vargas e a concepção de instituições que imprimiram transformações na educação brasileira. De antemão, circunscrevemos que a Era Vargas compreende três recortes temporais, a saber: o Governo Provisório (1930-1934), o Governo Constitucional (1934-1937) e o Estado Novo (1937-1945). Por conseguinte, emergiu a questãonorteadora e/ou problema da pesquisa: quais as contribuições dos governos 1 Doutorando em Educação (UFU) e Mestrando em Educação Profissional e Tecnológica (IFES/IFCE). Mestre Políticas Públicas (UFC). Especialização em Gestão Escolar (FVJ); Educação a Distância (UCAM); Educação Inclusiva (FESL); Gestão Pública (UNILAB); Gênero e Diversidade na Escola (UFC); Psicopedagogia (UCAM); Neuropsicopedagogia (FLATED); Educação Infantil (FLATED); Serviço Social e Políticas Públicas (INTERVALE/MG); Serviço Social Organizacional (INTERVALE/MG); Metodologia da Língua Portuguesa (INTERVALE/MG); Docência na Educação Básica (IFMG); Gênero, Diversidade e Direitos Humanos (UNILAB); Gestão Empresarial (Intervale/MG); Educação de Jovens e Adultos (IFRO); Metodologia da Educação a Distância (Intervale); Ciências da Natureza e suas Tecnologias (UFPI); Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (UFPI); Matemáticas e suas Tecnologias (UFPI); Linguagens e suas Tecnologias (UFPI); Pedagogia Empresarial (Intervale/MG). Educação Digital (SESI-SC). pedagogo.uece@ hotmail.com. 2 Mestre e Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (PPGED/UERGS). Licenciado em Letras e Tecnólogo em Processos Gerenciais pelo Centro Universitário Cenecista de Osório (UNICNEC). Técnico Administrativo em Educação do IFRS Campus Osório. gabriel. pereira@osorio.ifrs.edu.br. 36 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Vargas para a educação contemporânea? De fato, o presidente Getúlio Vargas foi o que mais tempo esteve no poder em todo o período republicano brasileiro. Assim, Teixeira (2000) pontua que a influência da Era Vargas foi além de quinze anos, prolongando-se até bem depois do seu último mandato, concluindo com sua trágica morte, em virtude do acometimento do suicídio. Para adentramos nesse recorte temporal, demarcamos que no final dos anos 1920 - período de grave crise econômica - o Brasil, bem como outras nações dependiam de exportações, enfrentando dificuldades face à superprodução da indústria norte-americana, a queda da Bolsa da Bolsa de Valores de Nova York e a falência de empresas e bancos, levando milhões de trabalhadores norteamericanos ao desemprego, afetando arduamente a cafeicultura e a diversidade de setores da economia brasileira (Cotrim, 2005). Destarte, a partir da Revolução de 1930 e seus desdobramentos, Vargas implementou alterações significativas mediante políticas públicas para atendimento à nova configuração do país, reconfigurando o eixo político do rural para o urbano e o eixo econômico do agropecuário para o industrial (Ibid.). Para tanto, neste escrito apresentaremos relações históricas e políticas da Era Vargas, tendo por ênfase observâncias do contexto da Educação, mas sem perder de vista também constituições que se deram em paralelo e que, nesta, foram impressos de forma significativa e de grifos presentes, tais como as relações trabalhistas e o conceito de novo homem do Estado Novo. 1.1 Percurso metodológico Quanto à abordagem metodológica recorremos à pesquisa qualitativa, caracterizando-se por um conjunto de diferentes técnicas interpretativas, buscando descrever um sistema complexo que não poderá apenas ser traduzido em números. Logo, essa tipologia de pesquisa busca traduzir aspectos intrínsecos aos fenômenos do mundo social (Maanen, 1979). Quanto aos objetivos, esta pesquisa é explicativa, pois pretende identificar os fatores que determinam e/ou que contribuíram com a erosão dos direitos sociais no período demarcado. Portanto, pelas vias analíticas de Gil (2022), configura o tipo de investigação mais complexa e delicada, aprofundando o conhecimento da realidade e explicando as razões e os porquês das coisas. No tocante aos procedimentos técnicos, utilizamos a pesquisa bibliográfica, posto que Gil (2022) circunscreve que a sua principal vantagem reside na possibilidade de o investigador acadêmico efetuar a cobertura de uma pluralidade de fenômenos, com maior amplitude do que aquela que trata dados diretamente inqueridos aos sujeitos. 37 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) 2. Contextualização Política É com Getúlio Vargas, com a Revolução de 1930, que ocorre a centralização política e econômica do Brasil. Portanto, esse governo emerge com a intenção de proporcionar colossais vicissitudes no país, consequentemente diminuindo a autonomia dos governos estaduais. Em síntese, depreende-se que esse período do Governo sofreu reverberações em todos os âmbitos, incluindo a pasta da Educação, que passou a ser regulamentada por leis federais, válidas para o país. Ao assumir a presidência da República, Vargas efetuou profundas transformações nesse decurso temporal, enfrentando uma gama de resistências. Contudo, tomou medidas para a concentração do controle do país em suas mãos, por meio de uma política autoritária, com centralização administrativa. Em contrapartida, reconstruiu os sistemas políticos, sociais e econômicos do Brasil, por meio da inclusão de demandas voltadas às políticas públicas de direitos trabalhistas, impulsionadas gradativamente pelo aumento da oferta de vagas em escolas e o florescimento do pensamento científico no âmbito urbano (Oliveira et al, 2023). Em 1930, o governo inaugurou o Ministério da Educação e Saúde Pública, implantando a Reforma Francisco Campos no ano subsequente, que estabeleceu o ensino secundário e superior no Brasil (Shiroma; Moraes; Evangelista, 2011). Contudo, mesmo com certos avanços, o proletariado ainda não recebia um ensino público de qualidade, estando este, portanto, muito aquém da educação oferecida às elites dirigentes. Sumariamente, circunscrevemos que a década de 1930 como recorte analítico, haja vista que são nesses circuitos que pela primeira vez o governo federal brasileiro toma medidas centralizadoras no tocante à Educação. À face do exposto, até o desenlace de 1920 esse setor não era prerrogativa exclusiva dos estados, que possuíam autonomia financeira e pedagógica. Não obstante, após a Revolução de 1930, o governo criou medidas unificadoras, reduzindo a autonomia dos estados. A rigor, o ministro da educação Francisco Campos ao baixar o Decreto Nº 19.851, de 11 de abril de 1931, teceu novos rumos para o ensino secundário (atual Ensino Médio) e superior. À vista da presente legislação, o ensino secundário foi organizado em dois segmentos, tendo o primeiro ciclo denominado fundamental a vigência de 5 anos, seguindo o curso complementar com a duração de 2 anos, que tinha como finalidade realizar a especialização dos alunos, em uma das três áreas de atuação, a saber: o ensino pré-jurídico, pré-médico e/ou pré-politécnico. 38 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira 2. 1 A Reforma Francisco Campos Indiscutivelmente, a Reforma Francisco Campos, em 1931 rompeu com os tradicionais exames parcelados oriundos das aulas avulsas, implantando a frequência obrigatória às aulas. Isto posto, esse ordenamento jurídico traçou inovações que permanecem até os dias atuais como a seriação; a criação de bancas examinadoras; 75% de frequência obrigatória nos cursos (outrora denominava-se ¼ de presencialidade); a criação do cargo de inspetor; a introdução da educação física durante todo o ensino o secundário e a inserção do ensino de Língua Portuguesa em todos os anos do Curso Fundamental (Dallabrida, 2009). Nesses termos, a visibilidade à disciplina Língua Portuguesa ilustrava o nacionalismo trazido pela Revolução de 30, transversalizado no ensino de Canto Orfeônico, História e Geografia. A autor sustenta que essa reforma defendeu a modernização do ensino secundário, em nível nacional, imprimindo a organicidade desse sistema, por meio de estratégias escolares diversificadas, como a seriação do currículo, a frequência obrigatória dos educandos, a imposição de avaliação discente regular e a reestruturação do sistema de inspeção federal. Daí, a cultura escolar gestada por essas concepções buscava a produção de um habitus burguês nos alunos secundaristas, através da educação integral com práticas de disciplinamentos e de autogovernos. À propósito, a União destinava pouquíssimos recursos à etapa do ensino secundário, haja vista que aplicava seus esforços no ensino superior e no ensino médio técnico-industrial. Por isso, os Municípios gerenciavam quase que exclusivamente do ensino primário; ficando aos Estados a competência com o ensino primário e médio. Portanto, caberia aos particulares atuarem, sobretudo no ensino secundário acadêmico, no normal e no superior (Rocha; Severino; Rodriguez, 2020). Petitat (1994) demarca que as inovações trazidas pelo Decreto Nº 19.890, de 18 de abril de 1931, não são exclusivas no contexto brasileiro, pois essa legislação imprime os circuitos do mundo contemporâneo ocidental em uma perspectiva burguesa sob o signo de uma cultura escolar disciplinante, visivelmente contrastantes às práticas educativas medievais. Outrossim, a Reforma de 1931 suprimiu a disciplina de Instrução Moral e Cívica, inserida no ensino secundário brasileiro pela Reforma Rocha Vaz (1925). Destarte, esse conteúdo curricular foi redimensionado pela Educação Religiosa, reincorporado nas escolas primárias, normais e secundárias como reverberação do pacto firmado entre o Governo Provisório de Vargas e a Igreja Católica (Moraes, 2000). Com efeito, a Reforma Francisco Campos firmou a modernização do ensino secundário no Brasil, ao imprimir a organicidade atravessada por múltiplas 39 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) estratégias escolares, quais sejam: a seriação curricular, a frequência compulsória dos educandos e a criação de um sistema de avaliação. Nesses termos, a reforma assinala uma inflexão expressiva na história do ensino secundário brasileiro, rompendo com estruturas seculares na escolarização formal brasileira. Outrossim, as aludidas medidas a produção de discentes secundaristas autorregulados e produtivos, sintonizados com os circuitos da sociedade disciplinar e capitalista que se consolidava no cenário brasileiro na década de 1930. Em 1932, com a criação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, consolidava-se diferentes concepções ideológicas, buscando reconstruir uma educação comprometida com o respeito às singularidades da sociedade brasileira. Nessa óptica, Fernando de Azevedo redigiu o documento assinalado por 26 militantes, dentre eles: Roquette Pinto, Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Delgado de Carvalho, Cecília Meireles e Hermes Lima. Sumariamente, a reforma Francisco Campos significou uma inovação para a educação brasileira, após a revolução de 30, no contexto do processo de integração política do país. Nesse âmbito, houve um avanço no desejo pelas reformas educacionais e pela regulamentação do ensino, consistindo em uma série decretos, entre os quais são relevantes destacar o Decreto Nº 19.850, de 11 de abril de 1931, criando o Conselho Nacional de Educação; o Decreto Nº 19.851, de 11 de abril de 1931, dispondo sobre a organização do ensino superior no Brasil, adotando o regime universitário; o Decreto Nº 19.852, de 11 de abril de 1931, acerca da organização da Universidade do Rio de janeiro; o Decreto Nº 19.890, de 18 de abril de 1931, regulamentando a organização do ensino secundário; o Decreto Nº 19.941, de 30 de abril de 1931, instituindo o ensino religioso como matéria facultativa nas escolas públicas do país; o Decreto Nº 20.158, de 30 de junho de 1931, organizando o ensino comercial e regulamentou a profissão de contador e o Decreto Nº 21.241, de 14 de abril de 1932, consolidando as disposições no tocante à organização do ensino secundário (Romanelli, 2005). 2.2 A Reforma de Capanema Em 1942, com o advento da Reforma Gustavo Capanema, que criou a Lei Orgânica do Ensino Secundário (LOES), houve pequenos ajustes na divisão outrora imposta pela Reforma Francisco Campos, criando-se um ciclo ginasial, de 4 anos, e o ciclo colegial, de 3 anos. Assim, essa readaptação esteve vigente na estrutura do ensino brasileiro até limiar dos anos de 1970, em que por intermédio da Lei nº 5.692/1971 (Brasil, 1971), criou-se o 1º grau, com a junção do curso primário com o ciclo ginasial, e o ciclo colegial denominou-se 2º grau. Frente àquele contexto histórico, o ensino secundário representava a formação para as 40 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira elites dirigentes que pretendiam realizar cursos superiores no Brasil e na França (Dallabrida, 2001). Grosso modo, a LOES teve pujante contribuição com a criação do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), de viés profissionalizante. Nesses termos, é fato que o ensino secundário possuía como meta preparar para os sujeitos para o ingresso no curso superior. Fundante se faz considerar que: [...] a ascensão de Capanema esteve amparada na larga influência das organizações católicas sobre a sociedade política após a “revolução de 1930”, promovida pela vontade de clérigos e leigos em acionar um projeto de restauração do poder da Igreja no mundo moderno. O agir do Estado sobre a questão social em muito estava concentrado neste aparato administrativo que, deve-se lembrar, não tomava decisões apenas sobre a educação, mas também sobre a saúde, a cultura e a assistência social. Sendo assim, continuamente, o ministério dirigido por Gustavo Capanema tornou-se alvo das correntes de opinião e interesses, mais conservadoras ou progressistas, existentes na sociedade brasileira (Montalvão, 2021, p. 05). Neste contexto, observar as relações de movimentos religiosos mais conservadores na política e, especialmente através das grandes áreas, tais como educação, saúde e assistência social, mostra-se uma questão que não é de hoje e que há muito vem se apresentando nas dinâmicas políticas e de desenvolvimento social. Sendo também objeto que requer considerável atenção, atentar-se às 3. O Estado Novo e a educação na Constituição Federal de 1937 No tocante ao Estado Novo, vemos como importante sublinhar que a este período, como não poderia ser diferente dado esse movimento inculcado da inauguração de um novo tempo, exigia-se também que houvesse um Novo Homem. Imprimia-se a ideia de que aquele homem frágil fosse transformado em alguém forte, ágil, resistente, que trabalhasse em prol do Estado e, em reflexo disso, de si. Inspirado em ideias autoritárias vindas da Europa, o Estado era visto aqui como onipresente em todos os projetos, enquanto ao homem estava destinado um lugar passivo, de colaborador (Prado, 2008). Faz-se fundante contextualizar que: O período do Estado Novo (1937-1945) caracteriza-se pela ausência de prerrogativas democráticas e pela implantação de um modelo de modernização conservadora e pela instalação de um governo que deu atenção especial à utilização de recursos de propaganda e de divulgação ideológicas, em busca de consenso e de legitimidade (Prado, 2007, p. 01). Observa-se, no entanto, que “censura e produção cultural formaram as duas faces de uma mesma moeda estadonovista e compõem um tema até hoje propiciador de debates, haja vista o inusitado dessa convivência” (Prado, 41 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) 2007, p. 03). Assim, utilizavam-se de recursos até então pouco explorados com a intenção de divulgar favoravelmente o Governo, reforçando o patriotismo, a ideia de se fazer junto e de estar em colaboração social. A educação, como recurso político, estava marcada pela busca do consenso, vista pelo Governo como fundamental para que esse processo se desenvolvesse (Prado, 2008), sendo valorizada pelas vias dos resultados desta para o próprio movimento de fortalecimento do Governo no Estado. A ideologia autoritária do Estado Novo não dava espaço ao dissenso. Naquela conjuntura, frente à ideologia do Estado que se identificava com a nação e de um povo que teria aberto mão do direito ao voto e às liberdades democráticas em troca das supostas garantias materiais oferecidas pelo governo forte e pelo carisma de Vargas, opiniões contrárias eram desqualificadas e a simples menção ao modelo de governo liberal era identificada com projetos retrógrados de pessoas e grupos que haviam perdido privilégios com a implantação do Estado Novo (Prado, 2007, p. 11). A formação para o trabalho é colocada para a Educação como um dos pontos-chave a serem priorizados, e junto dessa relacionavam-se mobilizações para que se enxergasse que a vida no Estado Novo era a representação do melhor que se poderia ter. O compromisso com o trabalho, assim como o compromisso político, marca deste nacionalismo, não poderiam ser perdidos de vista. Estavam impressos na ideologia do Estado Novo (Prado, 2008). A Constituição Federal de 1937, escrita por Francisco de Campos e outorgada por Vargas, também dava ampla atuação ao presidente. Entre as presenças marcantes em seu texto, profere a permissão de estabelecimentos de ensino públicos e privados a ministrarem aulas, determinando ao Poder Público a incumbência na oferta somente do ensino primário. Dessarte, nesses circuitos visualiza-se uma segmentação dicotômica na educação brasileira ao oferecer ao proletariado um currículo com formação para o exercício do trabalho braçal e aos filhos da burguesia uma formação mais abrangente e intelectual. É fato que a Constituição de 1937 trouxe como dever do Poder Público, disponibilizar escolas vocacionais e pré-vocacionais para as “classes menos favorecidas”. Por conseguinte, mesmo que de forma excludente e discriminatória houve ampliação do acesso à educação formal (Regattieri; Castro, 2010). Conforme Wermelinger, Machado e Amâncio Filho (2007, p. 214), “mérito inquestionável dessa Constituição foi eliminar a referência que se fazia, sempre, ao ensino profissionalizante como destinado aos desfavorecidos da fortuna ou desvalidos da sorte”, fator que em termos discursivos precisa ser destacado, mas que, ainda, no que tange ao desenvolvimento e a qualificação de processos pedagógicos pela equidade mostra-se muito distante de efetivas considerações. 42 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira 4. Outras reflexões e destaques sobre a Era Vargas Em síntese, vislumbramos a Reforma Francisco Campos como uma prescrição do habitus burguês frente ao ensino secundário, com fulcro em uma educação integral, contemplando as dimensões físicas, patrióticas e intelectuais, inundada de uma práxis pedagógica autodisciplinar e autorregulatória. Além disso, essas modificações no ensino, redefiniram, o currículo de ensino secundário ao fortalecer as Ciências Físicas e Naturais, denotando uma concepção burguesa. Contudo, verificou-se a valorização da Língua Portuguesa, incluindo-a em todas as etapas do Curso Fundamental. Portanto, de forma extraordinária, essa reforma uniformizou as bases e fundamentos dos procedimentos administrativos, didáticos e pedagógicos para o ensino secundário em todos os estabelecimentos educacionais brasileiros daquele nível. Em linhas gerais, a Reforma Francisco Campos acreditava que a educação seria mola propulsora para solucionar revezes de ordem social, econômica e política do país. Não obstante, para a construção de propostas curriculares inclusivas, democráticas e críticas, urge considerar que contemporaneamente se sobrepõe o esfacelamento conhecimento que encolhe a formação integral dos sujeitos aos ditames do capital em um viés epistemológico mormente reduzido. Com firmeza, acreditamos que realizar uma política nacional de educação requer além de criar legislação, destinar financiamentos conforme as amplas demandas em todos os níveis, modalidades e formatos educacionais. Por conseguinte, há descomunais desafios na implementação de políticas públicas educacionais no Brasil, visto que o país possui dimensões continentais, atravessado por 26 estados, além do Distrito Federal, perfilando 5.568 municípios (Messora, 2017). Sumariamente, compartilhamos com as premissas de Shiroma, Moraes e Evangelista (2011) que enxergam como fora do comum a edição de tantos documentos legais frente aos objetos jurídicos da reforma educacional em curso. Nessa acepção, depreende-se que em relação ao processo histórico da política educacional no Brasil, evidencia-se que a educação pública de qualidade não se mostrou grande preocupação e/ou de fato prioridade no interstício de 1930 a 1990, sendo possível aliás, trazer à baila questionamentos concernentes à atuação de órgãos multilaterais que conduzem a educação nacional e os países da América Latina e Caribe, hodiernamente. 5. Considerações finais Ao direcionarmos nossos olhares para a Era Vargas em observância aos períodos vivenciados, reconhecemos um expressivo número de elementos que repercutem fortemente até os dias atuais. Se perguntarmos sobre pontos 43 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) marcantes, o contexto trabalhista talvez seja um dos mais citados. Ainda assim, ao mobilizarmos as investigações que conduziram a escrita deste texto, vemos na Educação um contexto de profundas reflexões e impactos desta passagem. Nesta relação, não é difícil perceber que mesmo o lugar do trabalho na sociedade atravessou o contexto da Educação de forma bastante intensa nos períodos, assumindo centralidade nas formações, especialmente das classes menos favorecidas e das quais se exigia uma maior força de produção em prol da “sociedade” (ou melhor, leia-se aqui: do próprio Estado). Embora conquistas consideráveis estejam presentes neste período em diferentes contextos, tais como o da Educação, do Trabalho e da Previdência, precisamos também considerar todos os jogos políticos e administrativos que compuseram cada processo e, em certa medida, as manipulações chanceladas por propagandas e pelo forte contexto de imprensa que tiveram manifestos. O fato é que ainda hoje a população sofre com a dificuldade de acesso a políticas públicas e na Educação isso não é diferente. Os desafios para a classe popular, no campo e na cidade, destacam disparidades alarmantes e entristecedoras, que requerem para além de atuação efetiva e significativa, o desenvolvimento e a garantia da continuidade de políticas públicas engajadas com a transformação da realidade social. Referências BRASIL. Decreto Nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do Ensino Secundário. Rio de Janeiro, 1931. BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Rio de Janeiro, 1937. BRASIL. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus, e dá outras providências. Brasília, DF, 1971. CAMPOS, F. Exposição de motivos. Ministério da Educação e da Saúde Pública. Rio de Janeiro, 1931. COTRIM, G. V. História Global, Brasil e Geral. São Paulo: Saraiva, 2005. DALLABRIDA, N. A fabricação escolar das elites: o Ginásio Catarinense na Primeira República. Florianópolis: Cidade Futura, 2001. DALLABRIDA, N. 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Acesso em: 27 mai. 2024. 45 A ESCOLA CATÓLICA NAS PÁGINAS DA REVISTA VOZES DURANTE O PERÍODO DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (1964-1985)1 Darciel Pasinato2 Carina Malonn3 Rosangela Fritsch4 Introdução O objetivo deste capítulo é analisar as representações de escola católica nas páginas da Revista Vozes durante o período da Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985). O estudo é de natureza bibliográfico-documental, tendo como foco o conceito de representação (Chartier, 1988, 1991, 2009). A Revista Vozes começou a circular no território brasileiro a partir de 1907. Nesse período, as escolas católicas, ao assinarem o periódico, constituíam sua base financeira, contribuindo também para sua expansão a diversos docentes, que passaram a assinar a revista em virtude do contato com ela nas escolas. Ademais, para expandir as vendas, o periódico convocava seus leitores a promover a multiplicação das assinaturas. E parte da hierarquia da Igreja no Brasil (arcebispos, bispos e padres) colaborava com a propaganda do impresso e tinha suas opiniões pessoais sobre determinados assuntos publicadas. A política editorial da Revista Vozes até 1966 foi conservadora, no que diz respeito ao âmbito político. No contexto dos anos 1930 até 1950, o periódico adotou posicionamentos favoráveis a regimes autoritários, como o de António de 1 Este texto é fruto de uma pesquisa de doutorado, desenvolvida junto ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). 2 Pós-doutor em Educação (UFSM) e Doutor em Educação (UNISINOS). Pesquisador e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: darcielpasinato1986@gmail.com. 3 Doutoranda e mestre em Educação (UNISINOS). Professora e gestora da rede pública e privada do Rio Grande do Sul. E-mail: carina.malonn@gmail.com. 4 Pós-doutora em Educação (U.Porto/Portugal) e Doutora em Educação (UNISINOS). Pesquisadora e professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: rosangelaf@unisinos.br. 46 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Oliveira Salazar, em Portugal, e de Francisco Franco Bahamonde, na Espanha, tendo ainda apoiado em 1936 uma postura ambígua frente ao nazifascismo. Além disso, acompanhando boa parte do meio católico brasileiro, no início da década de 1960, o anticomunismo destacou-se na revista, apoiando, inclusive, o golpe civil-militar de 1964 no Brasil (Andreo, 2015). No período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), houve um reforço da privatização do ensino. Os mecanismos utilizados para isso foram: “[...] o aumento de repasses dos fundos públicos federais, destinados a escolas privadas e a criação de uma porcentagem de 5% do Fundo Nacional do Ensino Superior para as escolas superiores privadas” (Comparato, 1987, p. 110). Até então, o Fundo Nacional de Ensino Superior financiava apenas o ensino público, mas, após o golpe civil-militar, passou a financiar as universidades e escolas privadas também. Em dois artigos, a Constituição Federal de 1967 reafirma o direito de todos à educação, a liberdade da iniciativa privada, a obrigatoriedade do ensino primário e a liberdade de cátedra (Brasil, 1967). Não havia referência à gratuidade do ensino, à vinculação orçamentária e a sua organização em sistemas. Horta (2001) lembra que a gratuidade foi substituída, no Ensino Médio e Superior, pela concessão de bolsas a estudantes carentes de recursos, exigindo aproveitamento e reembolso no caso do Ensino Superior. Nessa conjuntura, a Ditadura brasileira provocou um retrocesso no desenvolvimento da capacidade crítica do país, a exemplo da censura ao ensino de primeiro e segundo graus. Smolentzov e Moterani (2013, p. 20) enfatizam que “[...] os livros didáticos eram objeto de suspeição, do mesmo modo que era suspeita, e não sem razão, toda organização escolar consolidada pela ditadura”. Considerando o contexto de cerceamento da liberdade e as tendências à privatização e à censura da educação, organizamos este estudo da seguinte forma: além da introdução e das considerações finais, o texto está dividido em três seções. São elas: aspectos teórico-metodológicos; surgimento da Revista Vozes; e a escola católica nas lentes da Revista Vozes (1964-1985). Aspectos teórico-metodológicos Esta pesquisa é de natureza bibliográfico-documental, tendo como foco o conceito de representação (Chartier, 1988, 1991, 2009). A Revista Vozes representa, enquanto documento, um recorte que permite ao historiador a reconstituição de ideias, pensamentos e mentalidades. É importante destacar que o periódico estava presente, entre 1964 e 1985, nas paróquias, escolas e universidades, ou seja, em várias regiões do território brasileiro e inclusive no exterior. O conceito de representação compõe o repertório teórico que sustenta a discussão ora proposta. Essa noção é importante por permitir articular as 47 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção a partir dos quais eles classificam, julgam e agem (Chartier, 2009). Nas palavras de Chartier (1991), a noção de representação não nos afasta do real nem do social, mas auxilia os historiadores a se desfazerem da ideia limitada do real, insistindo na força das representações, sejam elas interiorizadas ou objetivadas. As representações não são simples imagens; possuem energia própria e levam a crer que o mundo é o que dizem que é. Coordenar a história da cultura escrita utilizando como pedra fundamental a história das representações é vincular o poder dos escritos ao das imagens por meio das categorias mentais, que são as matrizes das classificações e dos julgamentos. A representação por ser alterada pela ação da imaginação, que faz tomar o logro pela verdade, ostentando os signos visíveis como provas de uma realidade falsa. Desse modo, a história deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se edifica um sentido: rompendo com a antiga ideia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, dirige-se às práticas que dão significado ao mundo (Chartier, 1988). Portanto, a tarefa do historiador é refazer as variações que diferenciam os espaços legíveis, ou seja, os textos nas suas formas discursivas e materiais, concebendo as leituras como práticas concretas e como procedimentos de interpretação. Dessa ótica, a leitura constitui uma prática encarnada em gestos e espaços. O pesquisador que trabalha com documentos precisa ter critérios bem definidos em seu arcabouço teórico e metodológico antes de fazer uma análise em profundidade do material. Assim, pode localizar os textos pertinentes e avaliar a sua credibilidade. Por outro lado, Cellard (2008) destaca que o pesquisador necessita compreender o sentido da mensagem e ficar contente com o que tiver à mão, tais como fragmentos e passagens difíceis de interpretar e repletas de termos e conceitos estranhos que foram redigidos por um desconhecido. A observação do contexto, no qual foi produzido o documento e no qual mergulhava seu autor e aqueles a quem foi destinado, é relevante em todas as etapas de uma análise documental, independentemente da época em que o texto foi escrito. Logo, o pesquisador não pode desconsiderar a conjuntura política, econômica, social e cultural que propiciou a produção de determinado documento. No caso dos artigos da Revista Vozes, estes foram produzidos ao longo da Ditadura brasileira, período autoritário em que muitos periódicos foram censurados. Como os colaboradores dessa revista, que incluíam padres, bispos e professores, tinham algum vínculo com a Igreja Católica, seus trabalhos costumavam ser publicados após a revisão dos editores, havendo, inclusive, alguns textos traduzidos para a língua portuguesa. 48 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira A leitura de um documento provoca algumas questões essenciais para sua classificação: “Qual a forma material que o mesmo apresenta; qual o conteúdo que disponibiliza para pesquisa; e quais seus objetivos ou os propósitos de quem o elaborou e de quem o lê ou o interpreta” (Samara; Tupy, 2010, p. 70). O uso de um documento como fonte de pesquisa histórica depende muito das respostas encontradas a essas perguntas. Também é preciso ressaltar, conforme enfatiza Bacellar (2005), que as leituras feitas no documento de arquivo deixam claro que o pesquisador precisa compreender a ortografia e a gramática diferenciada, como foi o caso dos artigos da Revista Vozes, utilizados nesta pesquisa. “Mesmo documentos datilografados ou jornais têm escritura distinta, e com tais características devemos fazer a transcrição. Contudo, para o documento manuscrito é preciso, antes de tudo, acostumar-se com a caligrafia” (Bacellar, 2005, p. 55). Todo pesquisador já se deparou alguma vez com caligrafias complicadas de ler, que exigem esforço para sua interpretação. Entretanto, evidentemente não devemos escolher fontes pela sua maior ou menor facilidade de leitura. O surgimento da Revista Vozes A Revista Vozes tem sua origem quando os franciscanos, sob a liderança de frei Inácio Hinte, fundaram uma revista cuja primeira edição foi impressa em julho de 1907. De periodicidade mensal, a Revista Vozes teve seu nome inspirado no jornal alemão Stimmen der Zeit (Vozes do Tempo), muito lido pelos franciscanos daquele período, possuía mais de setenta páginas no formato americano (14 x 21 cm), contando com ilustrações. De acordo com Andrades (2001, p. 33), no editorial do primeiro número, a opção plural da revista é clara: “[...] a Vozes de Petrópolis terá caráter geral e não puramente religioso. Trará a nossa revista artigos variados que terão o cunho da atualidade”. O periódico publicava também capítulos de livros traduzidos. Essa prática de publicar romances em capítulos na revista, “[...] deixando o leitor aguardar ansiosamente a próxima edição, era usual nas primeiras décadas do século XX” (Tannús, 2008, p. 135). Além dos romances, trazia matérias da cidade de Petrópolis. Depois as notícias locais foram deixadas de lado, e o impresso passou a ter caráter nacional. Neotti (2007, p. 49) destaca que, “[...] até os anos 1940, a Vozes de Petrópolis foi a única, digamos assim, revista da elite intelectual católica”. Com a chegada de outras ordens religiosas, como os maristas, os jesuítas e as congregações femininas, multiplicaram-se as escolas. Por um período longo, as escolas católicas foram a base financeira da revista por meio do sistema de assinaturas, incentivando diversos professores a assiná-la devido ao contato com a publicação no ambiente escolar. 49 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Em meados dos anos 1960, a Revista Vozes defendeu o golpe de 1964, pois, segundo Andreo (2014, p. 2), “[...] era contrária ao diálogo entre cristãos e marxistas, configurando-se como antirrevolucionária, anticomunista, além de ferrenhamente crítica às religiões de ascendência africana”. Em 1966, os assuntos de vínculo católico apareciam ainda em grande proporção no periódico, mas começavam a conviver com temáticas culturais e com abordagens e análises de questões ligadas aos problemas sociais do Brasil e do exterior. Andreo (2015) recorda que a posição católica quanto ao anticomunismo era reiterada e justificada: a ausência de liberdade de credo era o ponto atacado pela argumentação apresentada na revista. Em várias situações, foi abordado o perigo de deixar entrar o “mundo vermelho” no país. No cenário rural, essa questão também se fez presente, sendo descrita nos textos publicados como uma verdadeira ameaça à democracia vigente no período. A partir da década de 1970, por causa da Ditadura brasileira, as abordagens sociopolíticas desaparecem dos espaços de destaque do impresso, além de haver uma mudança importante no tom dos debates quanto aos recortes temáticos. Em 1964, ocorreu o golpe civil-militar que instituiu a Ditadura no Brasil até 1985. No início do golpe, ainda existiam resquícios de liberdade e espaço para algumas manifestações. Em relação à educação, não ocorreu qualquer debate, e os interesses privatistas (escolas privadas) foram preservados pelo Estado autoritário. Embora muitos agentes estatais dessem relevância à educação em seus discursos, ela deixou “[...] de ser considerada um tema importante por muitos intelectuais de esquerda, que acabam se engajando na resistência armada ao regime” (Gomes, 2005, p. 12). Para a maioria dos intelectuais representantes da Igreja Católica, a escola privada permitiria o resgate das tradições do nosso passado, o que significaria a superação da crise moral, e a escola, na concepção dos liberais, seria a chave da emancipação nacional, assim como ocorrera nos anos 1930. Dessa forma, os grupos em conflito elaboraram seus discursos em concordância com seus interesses de classe, procurando associar seus objetivos aos interesses do povo brasileiro, como se fossem uma coisa só. Apesar disso, a escola que se configurou a partir desse debate e dos movimentos relacionados não se estabeleceu de um momento para o outro, mas se constituiu em projetos de classe historicamente deliberados pelas forças dos grupos políticos envolvidos. No que se refere à educação católica, a Revista Vozes projetava se firmar e reconquistar seu domínio, ao mesmo tempo que não ficava ausente dos debates em oposição ao ideário liberal de pensar a educação. Em resumo, estes eram os propósitos perseguidos pelos franciscanos: difundir a boa moral católica; divulgar a produção da editora por meio da apresentação e do comentário de 50 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira obras; e transmitir aos leitores da sociedade leiga e eclesiástica o conhecimento selecionado pelos editores (Tannús, 2008). A longa duração da Revista Vozes (1907-2003), mesmo passando por diversas reestruturações tanto na sua forma quanto na sua essência, deve-se a aberturas ocorridas dentro da própria Igreja Católica. O desejo de renovação da Igreja para preservar o status quo por intermédio de políticas de restauração, ditadas pelo Vaticano, possibilitou a aproximação da Igreja com os civis, estimulando um grupo de intelectuais que preservaram os princípios católicos em todos os níveis da sociedade. A escola católica nas lentes da Revista Vozes (1964-1985) A partir de 1966, a Revista Vozes passou a contar com uma seção de dezesseis páginas denominada Cadernos da Associação de Educação Católica (AEC) do Brasil, em que eram discutidos assuntos ligados à educação básica sob o viés da Igreja Católica fazendo a defesa da escola católica. Neste tópico, traremos conteúdos publicados na seção supracitada, tendo como referência categorias de análise inspiradas nos títulos dos artigos: a) vocação catequética da escola católica; b) conceitos básicos para uma pastoral do colégio católico; c) colégios em leilão; d) palavra de Deus e a escola cristã; e) escolas católicas: manter ou suprir; f) transformação da escola católica; e g) público e privado na educação brasileira. No artigo Vocação catequética da escola católica, o padre Hugo Paiva5 (1966, p. 382) afirma que a escola católica nos anos 1960, “[...] pelo menos nos países do chamado mundo livre, sempre foi distinguida pela Igreja como instrumento por excelência da educação da fé”. Paiva (1966, p. 383) menciona, ainda, que, sobre as escolas católicas, recai “[...] o peso da evangelização da juventude, mas a maior parte dos jovens não frequenta atualmente nossas escolas”. Além disso, o Estado disponibilizava poucos recursos para atender as escolas católicas e deveria investir mais nos colégios e em outros setores da educação, como na escola pública, onde a Igreja está ausente (Paiva, 1966). Nessa perspectiva, a vocação catequética da escola católica está ligada à Igreja quando a escola ajuda a infância e a juventude, devendo proteger a sociedade, muitas vezes contrária à religião, e auxiliar a distinguir os valores humanos. No dizer de Paiva (1966, p. 383), “[...] salvaguardar a fé e a pureza 5 Fundou o Instituto Superior de Pastoral Catequética (ISPAC) no Rio de Janeiro, em 1963, com auxílio e incentivo de D. Helder Câmara. O ISPAC pretendia apresentar uma reflexão catequética na perspectiva da realidade nacional, e seus cursos foram organizados tendo como modelo o ensino na Europa, em especial no Instituto Superior de Pastoral de Paris, onde tanto Hugo Paiva quanto os demais professores da instituição se formaram. 51 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) do adolescente em condições favoráveis à eclosão da verdadeira liberdade, a educação do senso religioso e da fé”. No texto Conceitos básicos para uma pastoral do colégio católico, o professor Guilhermo Marshall6 (1968, p. 478) defende que, na prática, “[...] a sociedade em que vivem nossos alunos é de grande mobilidade social, o que traz consigo dificuldades de adaptação ao passar a um nível social, mas, ao mesmo tempo, traz apreço pela cultura”. Em sua ótica, os alunos sobre os quais é exercida uma ação pastoral não são pagãos nem cristãos formados, mas trazem certa bagagem cristã recebida de seus pais e do ambiente. Desse cristianismo familiar podem-se destacar as seguintes características: 1) É um cristianismo no qual a fé, mais que uma opção pessoal, é uma tradição cultural. Recebe-se por herança e transmite-se em um contexto cultural. Não há no indivíduo um momento de conversão nem uma atitude missionária subsequente; 2) A religião de nossos alunos e de suas famílias é uma religião em que predomina a prática sacramental, sendo que o sacramento é a forma que se tem para acreditar que se possui essa fé. Não são o cume de uma vida de fé, mas simplesmente ritos pelos quais há mister passar, como por exemplo, a comunhão (Marshall, 1968, p. 479). Nessa perspectiva, os alunos e suas famílias têm sido objeto de uma ação pastoral da Igreja concentrada sobre a infância e o elemento feminino (missas de domingo), o que desfigurou certas expressões de fé em virtude da tentativa de dar tudo na infância. Essas características culturais e religiosas em que vivem os estudantes junto aos quais se quer desenvolver a ação pastoral irão levá-los a uma maturidade cristã que realiza neles a síntese entre os valores humanos e os valores cristãos (Marshall, 1968). Em outro artigo publicado na Revista Vozes, intitulado Colégios em leilão, Dom Alfredo Vicente Scherer7 (1969) salienta que a Igreja Católica no Brasil reconhece o direito de manter escolas. Criando-as, exerce a missão que é essencial e própria, pois se sente mandatária dos pais que confiam seus filhos no exercício de um direito natural deles de educar, anterior ao Estado. Nessa tarefa, “[...] a Igreja não ambiciona firmar um domínio, mas deseja servir as famílias, 6 Foi professor e chefe do Laboratório de Sistemas Complexos, Departamento de Ciência da Computação, na Faculdade de Ciências Exatas e Natureza da Universidade de Buenos Aires. Também atuou como professor visitante do Departamento de Matemática da Universidade da Califórnia. 7 Eleito bispo, foi nomeado em junho de 1946 bispo-auxiliar da Arquidiocese de Porto Alegre. Em 1952 integrou a comissão central para a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e, após sua fundação em outubro daquele ano, foi escolhido para dirigir um dos órgãos, o Secretariado Nacional do Apostolado dos Leigos. À frente da Arquidiocese de Porto Alegre, organizou em 1957 o Secretariado de Ação Social, que edificou e dirigiu a Cidade de Deus, constituída de casas para populações de baixa renda. 52 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira a infância e a juventude, além de colaborar com o Estado, para propagar a instrução e a educação integral para todos os cidadãos” (Scherer, 1969, p. 466). Assim, as escolas próprias não representam uma forma de evangelização. Scherer (1969) defende que, no final da década de 1960, a escola católica tem sua importância capital, uma vez que pode contribuir para realizar a missão do povo de Deus, ajudando a aproximar a Igreja e a comunidade dos homens, em benefício de ambos. Na visão católica, a escola apropria-se da formação de caráter e personalidade da juventude. O papel da escola é importante, porém tem influência parcial e limitada. Nesse sentido, A diminuição da eficiência da escola na formação da personalidade, é portanto, uma das causas secundárias da menor preocupação da Igreja pela fundação de novos educandários próprios. Outra, mais grave e decisiva, é que com todos os esforços dispendidos, a ação educadora nas nossas escolas atinge somente uma parcela pequena das crianças e jovens, filhos de famílias católicas (Scherer, 1969, p. 467). A esse respeito, salientamos que, no final da década de 1960, a maioria dos jovens em idade escolar estudava em escolas públicas pelo fato de os governos democráticos (antes do golpe civil-militar de 1964) terem investido recursos em tais instituições, o que contribuiu para a expansão da escola pública nas décadas de 1950 e 1960. Outro tema abordado em relação ao ensino nas escolas católicas são as matérias estudadas. No artigo Palavra de Deus e a escola cristã, a irmã Sylvia Villac (1966), defensora das escolas privadas confessionais, destaca essa questão ao utilizar a seguinte expressão: ensino das disciplinas profanas. O trabalho dos professores e alunos pode tornar-se na prática “[...] uma atividade santa, da própria santidade de Deus. Para que se realize no homem este mistério da vida nova, é mister a fé, e o meio para se chegar à fé é a palavra, isto é, a catequese8” (Villac, 1966, p. 600). Na perspectiva de Villac (1966), para que a palavra de Deus salve o ensino profano, é necessário: a) que o ensino religioso seja realmente catequético, isto é, transmite, fielmente a Palavra de Deus; b) que a escola leve a sério o ensino catequético, tão a sério quanto o ensino profano, ou mais que ele; c) que a catequista viva realmente a Palavra que ele transmite (Villac, 1966, p. 600). 8 “A catequese pode muito bem desempenhar esse papel, pois a revelação, que transmite, situa-se além de todos os métodos particulares utilizados para transmiti-la e além de toda especialização. Dirige-se ao centro mesmo do homem, ao seu coração, no sentido bíblico do termo. Penetra-se mais profundamente que a Matemática, a Literatura e a História. Na medida em que é Palavra de Deus, a catequese é capaz de animar pelo interior qualquer disciplina e de unificar os conhecimentos, realizando sua síntese” (Villac, 1966, p. 599). 53 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Nesse sentido, Villac (1966, p. 600) conclui seu raciocínio: “[...] só assim a Palavra de Deus e a Escola Cristã se interpenetrarão e os educadores viverão realmente a Palavra de Deus no seio da Escola Cristã”. Ainda no que concerne às disciplinas estudadas na escola católica, destacamos o ensino religioso. Sobre essa questão, Cury (2004) aborda que o ensino religioso é mais do que aparenta ser, ou seja, mais do que um componente curricular em escolas. De acordo com Cury (2004, p. 183), “[...] por trás dele se oculta uma dialética entre secularização e laicidade no interior de contextos históricos e culturais precisos”. Após a Proclamação da República em 1889, o Estado brasileiro se tornou laico e equidistante dos cultos religiosos, sem assumir nenhum deles como religião oficial. Quanto ao ensino religioso nas escolas públicas, na década de 1960, a discussão resumiu-se à questão da remuneração de seus professores pelo Estado. A Igreja Católica aproveitou o momento para ampliar os benefícios estatais à sua atuação religiosa e educacional. A carta promulgada em 1967 determinou que “[...] o ensino religioso, de matrícula facultativa, [...] constituiria disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio” (Cunha, 2007, p. 297). Entretanto, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961 permaneceu em vigor, vedando que o ônus do ensino religioso fosse assumido pelos poderes públicos. Essa questão viria a mudar quatro anos mais tarde. Ressaltamos que, em 1971, foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino de 1º e 2º graus, que tratou do ensino religioso em parágrafo único, ao lado de outras disciplinas, e revogou o artigo da LDB de 1961 que impossibilitava a remuneração dos professores de ensino religioso pelos poderes públicos. A legislação ficou omissa sobre essa questão. Cunha (2007) menciona que, em consequência, os dirigentes católicos passaram a cercar governadores e prefeitos para obter o deslocamento de professores do quadro do magistério para o ensino religioso, assim como para promover o pagamento de seus próprios agentes nas escolas públicas e privadas. Mesmo com o fim da Ditadura Civil-Militar brasileira em 1985, o ensino religioso permaneceu e resistiu à crítica promovida pelos grupos progressistas. Consolidando seu espaço, a Igreja Católica passou a desenvolver um movimento, primeiramente no campo religioso e depois no campo político. Conseguiu, assim, lograr a modificação da Lei n.º 9.394/96, menos de um ano após a sua promulgação, obtendo a retirada da restrição ao pagamento dos professores de ensino religioso nas escolas públicas e outras vantagens institucionais. Em outro artigo publicado na Revista Vozes, intitulado Escolas católicas: manter ou suprir, Terence O’Brien (1967) salienta que a eficácia da escola católica é contestada com base na necessidade de essas instituições existirem ou não, 54 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira chegando a haver um número significativo de católicos que as estimam como inúteis. O’Brien (1967) enfatiza que a escola católica não se desenvolveu ao longo da década de 1960 pelos seguintes fatores: utilização da maior parte dos fundos recebidos apenas para manter e ampliar as estruturas físicas das escolas; influência externa da luta entre educadores liberais e conservadores para que as verbas fossem destinadas somente às escolas públicas; relação entre a escola e a família; e educação cristã atrelada exclusivamente ao ensino catequético. No artigo denominado A transformação da escola católica, o monsenhor Paul Guyon (1967) defende que a educação cristã é responsável pela formação e pelo desenvolvimento das pessoas, de maneira que estas sejam capazes de viver por Deus e pela humanidade, em vez de viverem por elas mesmas. Essa formação, que ocorre por intermédio de temáticas e atividades diversas, requer que os professores tenham adquirido uma maturidade cristã e uma compreensão de seus alunos. Isso resulta em uma atmosfera conveniente na escola, adequada para o desabrochar dessas personalidades (Guyon, 1967). A educação cristã também deve conduzir ao amadurecimento da fé. Essa fé não consiste somente nos verdadeiros ensinamentos de Cristo e sua Igreja, incluindo também “[...] a confiança total depositada na pessoa de Cristo, a aceitação de sua lei de amor e dos artigos que dela decorrem e que se encontram resumidos nas bem-aventuranças” (Guyon, 1967, p. 474). Além disso, Guyon (1967) ressalta que os meios utilizados na educação cristã não são os mesmos empregados na pedagogia escolar. Nessa perspectiva, destacamos que a escola católica não deve monopolizar todas as atenções da Igreja Católica. No final da década de 1960, a maioria dos estudantes católicos frequentava as escolas públicas. Também é preciso considerar o nível socioeconômico das escolas católicas e das famílias que nelas mantêm seus filhos, o que, no Brasil, constitui fonte de críticas contra o sistema escolar católico. Geralmente as escolas privadas são mais bem aparelhadas com bibliotecas, laboratórios de leitura, oficinas de trabalho, ginásio para esportes, piscinas, teatros, refeitório e outras comodidades. E a seleção dos alunos acontece com base em três quesitos: potencial acadêmico, tipo de currículo e anuidade. Dessa maneira, uma escola católica é considerada privilegiada para determinada faixa social e fechada para uma classe mais pobre (Guyon, 1967). Em outro artigo denominado Público e privado na educação brasileira, o professor Lauro de Oliveira Lima9 (1968) descreve que as tradicionais escolas 9 Formou-se em Direito e Filosofia e foi diretor do ensino secundário do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Trabalhou no MEC no início dos planos nacionais de alfabetização e foi cassado pelo governo militar em 1964. 55 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) católicas são resultado de uma mistura de ruralismo e urbanismo comercial. Por isso, diante da popularização promovida pelo Estado, não conseguem o equilíbrio tradicional mantido tanto tempo pelos grupos católicos. Lima (1968, p. 917) destaca, ainda, que “[...] o fenômeno da estatização não é senão a vitória da comunidade urbana sobre o clã rural” e que a escola privada perde sua funcionalidade histórica com o desaparecimento de sua clientela. O Ministério da Educação (MEC) não tinha boas relações com o sindicato de professores, mas prestigiava “[...] todos os movimentos empreendidos pelo sindicato patronal, desde os pretensos congressos de educadores, até o aumento de anuidades contra as quais lutavam unidos pais e estudantes cristãos” (Lima, 1968, p. 918). Em todas as resoluções do MEC, era escutado o sindicato dos professores de estabelecimentos de ensino; jamais o dos mestres assalariados. Em relação às bolsas de estudo nas escolas católicas, salientamos que o aluno em posse de uma bolsa governamental procurava a escola de preferência de sua família, sem levar em conta a complexidade de um sistema burocrático nacional de distribuição de bolsas e as relações paternalistas que esta técnica estabelecia. A defesa do sistema de bolsas de estudo ocorria por meio do slogan de que a educação particular é barata e a pública, cara. A escola católica não remunerava os membros da ordem religiosa que mantinham a escola. Os empresários do ensino privado, por outro lado, conservavam o magistério leigo nas condições mais precárias, pois não era aceitável que o barateamento fosse à custa de seus lucros. A partir do golpe civil-militar de 1964, as empresas de educação conseguiram se expandir, uma vez que o Estado criou mecanismos expressivos de ordem legal, como a Constituição Federal de 1967, que abriu espaço à iniciativa privada na educação, tornando esta um negócio lucrativo. Os governos militares tentaram se eximir de financiar a educação pública e estabeleceram as condições legais para viabilizar a transferência de recursos públicos para a rede privada. A Constituição Federal de 1967 deixou claro o descompromisso do Estado com relação ao financiamento da educação pública, bem como o incentivo à privatização do ensino. Extinguiu os percentuais mínimos dos recursos a serem aplicados na educação pela União, pelo Distrito Federal e pelos Estados, mantendo apenas a obrigatoriedade financeira dos Municípios, no valor de 20% da receita tributária municipal por ano, que deveria ser investido no ensino primário (Brasil, 1967). O que o documento assegurou foi o ensino livre à iniciativa privada, com amparo técnico e financeiro do Poder Público, inclusive por meio de bolsas de estudo, evidenciando o estímulo à privatização. 56 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Considerações finais As leis impostas pela Ditadura brasileira ao ensino e à formação profissional inauguraram uma série de ações que levaram o Estado a executar um papel na reprodução ampliada do capital, papel esse que se prolongou além do processo de qualificação dos educandos e trabalhadores, visto que tais políticas setoriais atingiram a pesquisa científica, as inovações tecnológicas, a assistência social e o consumo coletivo. Nesse cenário, a legislação foi decisiva para a reprodução estendida da força de trabalho. A política social dos governos militares, adotada desde 1964, implicou a preponderância de aparatos repressivos contra as classes populares, com o intuito de separar suas organizações e suas lutas por alterações estruturais na sociedade brasileira. Em resumo, no campo da educação, as heranças legais da Ditadura resultaram na privatização do ensino e na proletarização de boa parte da categoria de docentes do país. No final do século XX, a História Cultural lançou um novo olhar em relação aos periódicos. Essa visão foi além de seus conteúdos, sua forma de produção, sua materialidade, suas habilidades de circulação e seus leitores, como foi o caso da Revista Vozes. Direcionou-se para que as representações, na perspectiva de Chartier (1988, 1991, 2009), fossem elas individuais ou culturais, proporcionassem a leitura sob novas lentes de documentos que antes haviam sido preteridos ao esquecimento. Portanto, o pesquisador do início do século XXI tem um olhar de ressignificação sobre esses documentos, uma vez que elabora recortes, no tempo e no espaço, que o impulsionam a uma nova problemática – a de lidar com o passado no presente. A partir dos anos 1970, com o crescimento da censura e da repressão, que atingiu diversos membros do baixo clero e setores católicos leigos, a Revista Vozes adotou a prática de relegar seus posicionamentos sociopolíticos à seção de menor destaque, Ideias e Fatos. Ao mesmo tempo, sem mudar sua linha editorial, passou a evidenciar a necessidade de um caráter democrático e, sobretudo, de um desenvolvimento econômico nacional, contrapondo-se ao modelo de desenvolvimento econômico baseado na exportação de bens primários e alteração de capitais estrangeiros no país, que acreditava estar sendo colocado em prática pela Ditadura brasileira. A Revista Vozes traz em suas páginas que o ensino católico foi julgado pelas elites como de excelente qualidade, em razão da dedicação dos educadores católicos, e que, por sua vez, a Igreja Católica estava convencida a preservar sua influência formando os futuros quadros dirigentes do país. Sendo assim, a escola católica servia aos interesses do Estado, aos das classes dominantes e médias e aos seus próprios interesses. A partir de 1960, em razão do crescimento 57 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) demográfico da classe média e da rede pública de ensino, a Igreja vai perdendo influência significativa no ensino secundário. Por fim, a expansão da escola pública, o crescimento do setor privado na educação, a escassez de recursos para a manutenção e a falta de uma política clara por parte da Igreja Católica para sua presença na área da educação geraram situações difíceis para a escola católica. Por esses motivos, diversas delas finalizaram suas atividades. Ademais, cabe mencionar que pessoas não aderentes ao catolicismo se tornaram cada vez mais numerosas nas escolas católicas, até mesmo nos quadros dirigentes das suas instituições educacionais, fazendo com que os conflitos crescessem, ora com alunos e familiares devido ao aumento das mensalidades, ora com os docentes devido às diferenças salariais entre educadores católicos e não católicos. Referências ANDRADES, Marcelo Ferreira de. Do claustro à universidade: as estratégias editoriais da Editora Vozes na Gestão de Frei Ludovico Gomes de Castro (1962-1986). 2001. 362f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2001. ANDREO, Igor Luis. O debate acerca da diversidade étnica nas revistas católicas Vozes (Brasil) e Christus (México) entre os anos 1966 a 1970: um estudo histórico-comparativo. In: ENCONTRO INTERNACIONAL ANPHLAC, 11., 2014, Niterói. 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A metodologia utilizada, será uma análise documental e revisão bibliográfica a partir da seleção de decretos, e leis vigentes, como corpus integrante deste trabalho, onde busca se compreender e discernir sobre a atuação do intérprete se acontece de forma técnica ou pedagógica, baseado nisso será realizado uma discussão e interpretação desses dados a partir de citações e diálogos com autores fundamentando teoricamente as análises. No que se refere à análise documental, gostaria de destacar que foram utilizadas como base para a construção deste texto, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos e se aprofundar sobre a lei da inclusão nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que garante a inclusão da pessoa com deficiência e a necessidade legal e social do atendimento com o tradutor intérprete em sala de aula, o que se torna essencial devido o aumento significativo de alunos com surdez na sociedade que precisam desse apoio, também será abordado sobre as atribuições e competências deste no meio acadêmico. No que tange a revisão bibliográfica, encontramos nos estudos de Quadros (2007) explicando que o tradutor intérprete pode integrar elementos 1 Universidade Federal do Acre. Email: ednaceli@yahoo.com.br. 2 Universidade Federal do Acre. Email: tamila.nascimento@ufac.br. 61 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) pedagógicos durante sua atuação em ambientes educacionais, uma vez que esse processo é intrinsecamente complexo e demanda cuidado e comprometimento, outro autor importante a mencionar será a visão de Lacerda 2011 quando fala sobre o trabalho colaborativo que o tradutor e intérprete desenvolve juntamente com o professor, fazendo adaptações necessárias para conseguir um bom desempenho no processo de ensino e aprendizagem transmitido ao aluno, sendo assim, podemos afirmar que para que isso aconteça o TILSP necessita atuar de forma pedagógica, somos levados a entender quando ele diz que a atuação não necessita somente de técnica que a grande importância nesse processo é o aprender, (CUNHA, 2021) discute sobre a importância da atuação do intérprete de libras no processo de ensino e aprendizagem do aluno surdo dando apoio ao professor com práticas educativas eficientes para um bom desempenho acadêmico. Veremos também outros pesquisadores da área da educação brasileira que nos ajudaram a pensar um pouco mais sobre a atuação do tradutor e intérprete em sala de aula no ensino superior. 2. O papel do tradutor e intérprete de Libras no Ensino Superior É indiscutível que o intérprete desempenha um papel fundamental na promoção da inclusão e acessibilidade para as pessoas surdas. Desse modo, a lei nº 10.436, em 24 de abril de 2002 reconheceu a Libras como a língua oficial das pessoas surdas no país e também estabeleceu a profissão de Tradutor e Intérprete de Libras que passou a ganhar ainda mais destaque, pois, tornou se obrigatória a presença deles em instituições de ensino públicas e privadas, e em diferentes contextos ganhando cada vez mais importância e reconhecimento, no entanto, a demanda por esses profissionais aumentou consideravelmente por que o acesso à educação e aos serviços públicos para pessoas surdas era bastante limitado comparado ao que é hoje. Atualmente, é possível encontrá-los em diversos setores, principalmente nas universidades, facilitando o acesso e garantia da comunicação e inclusão de pessoas surdas com a criação dos núcleos para a inclusão de pessoas com deficiência responsáveis por atender e romper barreiras de acesso e comunicação por intermédio do atendimento e informação. Vale lembrar que foi através do Plano ``Viver sem Limite``, mediante o Decreto 7.612, de 17 de novembro de 2011 que surgiram os núcleos de acessibilidade que têm como finalidade garantir e aprimorar o acesso dos estudantes com deficiência a todos os espaços, ambientes, ações e processos desenvolvidos nas instituições federais de ensino superior, buscando seu pleno desenvolvimento acadêmico. (BRASIL, 2011). Um exemplo disso está na Universidade Federal do Acre com o surgimento do Núcleo de Apoio à Inclusão 62 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira – (NAI) através da Resolução nº 14, de 30 de abril de 2008, que tem como objetivo promover ações afirmativas de acesso e inclusão social que buscam garantir a igualdade de oportunidades aos estudantes (UFAC, 2013, p.57), sendo assim a intenção é assegurar que os alunos com surdez tenham igualdade de oportunidades no acesso à educação e em outros aspectos da sociedade tendo também como objetivo combater as desigualdades profundas que muitas vezes são resultado de preconceitos e barreiras estruturais. O núcleo dispõe de profissionais qualificados para atuar, como por exemplo os tradutores e intérpretes de libras em todos os espaços acadêmicos a fim de permitir acessibilidade aos que necessitam, a atuação desse profissional se deu início a partir do edital número 01/2013 - NUPS que tinha como finalidade a inserção desse técnico de nível médio de acordo com a demanda gerada, a fim de contribuir no desenvolvimento e aperfeiçoamento acadêmico do aluno surdo. Sobremodo a atuação que prevalece em sala de aula é feita de maneira pedagógica, contradizendo o Código Brasileiro de Ocupações (CBO) que tem como atribuição de cargo nível médio para atuar na tradução e interpretação das atividades de ensino, pesquisa e extensão, no entanto, isso é apenas uma das realidades que prevalece até os dias atuais em nível nacional das universidades brasileiras. Ainda no que se refere ao ensino superior a inserção desse profissional foi regulamentada pela Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, ou Lei de Inclusão que determina que os governos ofertem educação bilíngue, com Libras como primeira língua e a modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas. Além do mais, a lei da inclusão foi um marco importante na educação brasileira pois estabelece que as instituições de educação superior adotem medidas de acessibilidade a fim de garantir a participação e a permanência de estudantes com deficiência e assegurando que eles possam usufruir de forma igualitária os benefícios oferecidos pela educação superior. Um ponto essencial a ser citado foi a disponibilização de profissionais tradutores e intérpretes de Libras a fim de garantir que a comunicação ocorra em diferentes contextos e permite que os estudantes surdos possam ser incluídos em sala de aula e acompanhe de forma adequada às atividades acadêmicas facilitando a interação com o meio acadêmico. entende-se que o processo de inclusão do surdo no ambiente escolar necessita de práticas educativas que sejam direcionadas à qualidade das relações estabelecidas neste ambiente, sendo elas a capacitação para o domínio e o uso da Libras pelos professores, apoio do intérprete, estas são condições necessárias (CUNHA, 2021, p. 10). 63 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Sabemos que se torna essencial a presença desse profissional para o apoio na inclusão e acessibilidade dos alunos surdos com práticas educativas, permitindo assim que eles tenham acesso igualitário ao currículo e participem plenamente da vida acadêmica e social e que é de extrema importância que os professores tomem conhecimento sobre a língua de sinais sempre buscando conhecimento e meios para que ocorra uma interação eficaz. 2.1 Referências da LDB sobre a acessibilidade da pessoa surda Um ponto importante que faz parte desse processo de ensino é a contribuição da Lei nº 9.394 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 no que se concerne a inclusão desse profissional no ensino superior. Ao analisá-la, percebeu - se que não trata especificamente da profissão de tradutor, mas cita a lei nº 14.191, de 2021 que oferta a educação bilíngue de surdos e a lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui a inclusão da pessoa com deficiência colaborando na abertura de novos olhares e caminhos para o acesso a inclusão e acessibilidade. Isso é importante para essas pessoas que utilizam a Libras e precisam do apoio de tradutores e intérpretes, sendo abordados alguns dos pontos relevantes no que se trata a inclusão do intérprete de Libras no ensino superior, tais como o acesso à educação, educação Inclusiva, a adaptação curricular e atendimento especializado para alunos com surdez. No capítulo IV, o parágrafo único do artigo 27 da LDB de 1996, diz que, é dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação. Isso nos mostra que o acesso à educação deve ser garantido a todos, sem discriminação, incluindo também o direito a acessibilidade e a inclusão de pessoas usuárias de Libras no ensino superior. Sobre a adaptação curricular e atendimento educacional especializado, a LDB de 1996 no Capítulo III, art. 4º, inciso III (BRASIL,1996), diz que as escolas e instituições de ensino devem oferecer atendimento educacional especializado aos alunos com deficiência, preferencialmente na escola regular. Essa provisão abre espaço para a presença de intérpretes de Libras nas salas de aula, auxiliando os estudantes surdos em seu processo de ensino e aprendizagem. Dando continuidade a esse ponto, a LDB de 1996 criou um ambiente propício para o ingresso do intérprete de Libras no ensino superior, estabelecendo os princípios de igualdade, inclusão e acesso à educação, ajudando a promover a acessibilidade e garantindo o direito dos alunos a uma educação de qualidade. 64 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira 2.2 Educação inclusiva sob a perspectiva de um direito de ensino e aprendizagem de qualidade para todos Podemos iniciar afirmando que foi através do movimento da escola nova com as reformas educacionais que houve uma grande mudança na educação, pois é a partir daí que ela é vista como direito garantido a todos e sendo dever do estado assegurar esse direito e obrigatoriedade da escola pública e gratuita. Com essa mudança significativa a educação inclusiva passou a ganhar mais vigor e reconhecimento, pois não se podia excluir as pessoas ditas como incapazes de frequentar o meio acadêmico. Nesse contexto da educação inclusiva e da aprendizagem de pessoas surdas que usam Libras, podemos tomar como base as ideias de Saviani 2011, que podem nos ajudar a entender esse processo de ensino e aprendizagem a fim de garantir que seja acessível e significativo para esses alunos. Isso pode envolver a adaptação de estratégias pedagógicas que levem em consideração a língua e a cultura surda, bem como a criação de um ambiente de aprendizagem inclusivo que respeite as particularidades dos alunos surdos. Um conceito central na pedagogia de Saviani é a “conexão entre ensino e aprendizagem”, onde ele enfatiza que o processo de ensino deve ser organizado de modo que as atividades propostas estimulam a reflexão e a compreensão crítica dos alunos (SAVIANI, 2011, p.13) sobremodo, para que isso ocorra é necessário que o tradutor e intérprete esteja trabalhando juntamente com o professor de forma a mediar esse conhecimento no qual seja adquirido de maneira eficaz e de qualidade, para tal esses alunos não devem apenas ser um receptor de conhecimento, porém devem ser incentivados a questionar, problematizar o que estão aprendendo, prolongando seu processo de aprendizagem. O importante é aprender a aprender, isto é, aprender a estudar, a buscar conhecimentos, a lidar com situações novas. E o papel do professor deixa de ser o daquele que ensina para ser o de auxiliar o aluno em seu próprio processo de aprendizagem (SAVIANI, 2011, p.431). Percebemos a importância da relação entre ensino e aprendizagem, e a forma que é planejada a aula pelo professor tendo como foco central a aprendizagem, uma vez que valorize a construção ativa do conhecimento pelo aluno e o desenvolvimento de novas habilidades para aprender ao longo de seus estudos acadêmicos. 2.3 Uma breve descrição sobre atuação do Tradutor Intérprete de Libras tanto na abordagem técnica quanto pedagógica Quando falamos sobre a atuação do tradutor e intérprete de Libras é importante elucidar acerca da função desenvolvida em sala de aula de que forma acontece e se ele desenvolve um trabalho técnico de interpretação e tradução ou 65 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) apenas pedagógico deste, sendo assim, precisamos entender primeiramente o conceito de cada uma dessas abordagens. Pode se afirmar que o trabalho de caráter técnico se dar por meio de interpretações e tradução da Língua Brasileira de Sinais para a Língua Portuguesa (ou vice-versa) de forma mais direta e literal, ou seja, em alguns momentos em sala de aula é necessário fazer o uso técnico traduzindo o significado literal das palavras de forma objetiva e precisa a fim de transmitir o conteúdo ministrado pelo professor regente em Libras, tirando dúvidas do surdo e promovendo a interação e facilitando a comunicação para com os demais alunos. A função de interpretação é considerada um “trabalho puramente técnico” (AMPESSAM; GUIMARÃES; LUCHI, 2013, p. 26), sendo considerado a questão de que a interpretação da língua de sinais em sala de aula não é para ensinar conteúdo, mas para transferir enunciados da língua de origem para a língua de chegada, pensando por esse lado deduz-se que a atuação é um trabalho técnico, mas não tão somente isso ele se faz também realize um trabalho pedagógico visto que, “ao integrar o espaço educacional, o intérprete passa a fazer parte dele Lacerda (2003, p. 125)``. Por isso, a atuação é vista como fundamental para promover a educação inclusiva para que todas as pessoas possam se beneficiar plenamente do processo educacional. O intérprete também precisa ter conhecimento técnico para que suas escolhas sejam apropriadas tecnicamente. Portanto, “o ato de interpretar envolve processos altamente complexos”. (QUADROS, 2007, p.27). É necessário perceber a complexidade inerente à interpretação, pois não se trata apenas de atribuir significado a algo, mas sim de uma atividade intelectual multifacetada que requer conhecimento diversos e uma compreensão plena das informações transmitidas, desse modo, apesar de sua atuação ser predominantemente técnica, o tradutor e intérprete pode incorporar aspectos pedagógicos em seu trabalho, especialmente nesses ambientes educacionais. No que se concerne sobre a atuação pedagógica do tradutor e intérprete de Libras, ela está mais voltada para o contexto de ensino e aprendizagem do aluno surdo pois a prática não se limita apenas em traduzir o conteúdo, mas como um mediador entre o aluno surdo e o professor, auxiliando na compreensão do conteúdo, esclarecendo dúvidas e garantindo que o estudante surdo participe ativamente das atividades em sala de aula contribuindo para tornar o lugar de aprendizado mais inclusivo e proporcionando uma experiência educacional mais enriquecedora para o aluno, de acordo com Lacerda et al. (2011, p. 5): “o objetivo principal não é apenas traduzir, mas buscar, juntamente com o professor, meios diferenciados de ensino para que o aluno surdo possa ser favorecido por uma aprendizagem especificamente elaborada e pensada, e, consequentemente, eficiente”. 66 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira No entanto, o intérprete deve estar ciente desse processo de aprendizagem e colaborar juntamente com professor modos de adaptações necessárias para efetuar tal perspectiva. Sendo assim, o trabalho do intérprete em sala de aula inclusiva não é somente um trabalho técnico, mas também pode ser considerado um trabalho pedagógico, pois ele não apenas traduz o conteúdo, mas também atua como mediador na relação entre o aluno surdo e o professor, garantindo a compreensão do conteúdo e auxiliando no processo de ensino e aprendizagem, e muitas vezes, essas duas abordagens se complementam, a integração desses dois aspectos é fundamental para garantir a acessibilidade e o melhor desempenho e interação educacional para com o aluno surdo. Do ponto de vista analisado é encontrado dentro da LDB de 1996, dentre outros documentos legislativos sobre as abordagens técnica e pedagógica desenvolvida por esse profissional, constata se que não foi encontrada nenhuma alusão que distingue a atuação do intérprete de Libras. Sendo assim, na Legislação Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), a Lei nº 12.319 que regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais e outras normativas que temos como referência na promoção da inclusão e acessibilidade, também não institui essa distinção, podendo assim afirmar, que a atuação técnica ou pedagógica do intérprete de Libras pode variar de acordo com o contexto em que ele está inserido. Afirmando a importância do profissional para manter o acesso e permanência dos alunos surdos nesses espaços educacionais. 3. Considerações finais O trabalho de pesquisa aqui exposto trata de como acontece a atuação do profissional tradutor e intérprete de língua de sinais em sala de aula em nível superior, e de que forma acontece, se a abordagem utilizada é por meio técnico ou pedagógico em busca de compreender melhor esse processo de educação do aluno surdo, com isso foi feito uma análise documental de algumas leis, tais como a LDBEN de 1996 no que se refere ao ensino bilíngue e acesso a inclusão desse profissional de forma que inclua a pessoa surda no ambiente acadêmico buscando investigar a importância da atuação no processo de ensino e aprendizagem, foi visto sobre a lei da inclusão e a lei que insere o tradutor no ensino superior de forma a garantir a acessibilidade a comunicação e informação. Sobre os resultados encontrados, podemos dizer que as análises apontam que ainda não existe uma distinção na lei sobre o trabalho ser técnico ou pedagógico, porém, de acordo com a contratação desses profissionais a mesma é de nível técnico, já no que se refere à atuação as duas abordagens técnica e pedagógica estão profundamente conectadas uma dependendo da outra, 67 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) pois para que haja compreensão do que é dito e trabalhado pelo professor é necessário adaptações adequadas no uso de alguns termos para que a interação na comunicação ocorra de forma clara e consiga atingir o objetivo esperado no processo de ensino e aprendizagem do aluno. Conclui-se que faz se necessário reflexões aprofundadas sobre a importância das legislações atuais e ações a fim de promover uma educação bilíngue. No mais, espera se que as discussões e reflexões aqui demonstrados ajudem no debate e contribua para futuras pesquisas e aprofundamento da temática que tem grande importância na educação brasileira, pois ainda existe muitas lacunas que necessitam ser estudada a fim de ampliar o conhecimento sobre a temática abordada. Referências AMPESSAM, João Paulo; GUIMARÃES, Juliana Souza Pereira; LUCHI, Marcos. Intérpretes educacionais de LIBRAS: orientações para a prática profissional. Florianópolis: DIOESC, 2013. BRASIL. Lei n° 13.146, de 6 de Julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, 2015. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. CUNHA, Douglas da Silva. A importância do trabalho do intérprete de libras no processo de ensino e aprendizagem do aluno surdo na escola regular: em análise a voz do surdo/ Douglas da Silva Cunha. - Patos, 2021. DEFICIÊNCIA, Viver sem Limite – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com / Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD) • VIVER SEM LIMITE – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência: SDH-PR/SNPD, 2013. LACERDA, C.B.F. O intérprete educacional de Língua de Sinais no Ensino Fundamental: refletindo sobre limites e possibilidades. In: LODI, A.C.B; HARRISON, K.M.P; CAMPOS, S.R.L; TESKE, O.(orgs). Letramento e minorias. 2. ed. Porto Alegre: Mediação, 2003. p. 120-128. LACERDA, C.B.F.; SANTOS, L. F. dos; CAETANO, J. F. Estratégias metodológicas para o ensino de alunos surdos. In: Coleção UAB – UFSCar. Língua de Sinais Brasileira: uma introdução. São Carlos: Departamento de Produção Gráfica da USFCar, 2011. Lei n°10.436, de 24 de abril de 2002. Língua brasileira de sinais – LIBRAS. Brasília, 2002. 68 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Lei nº 12.319. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Brasília, 2010. Lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), para dispor sobre a modalidade de educação bilíngue de surdos. Brasilia, 2021. QUADROS, Ronice Müller de. O tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais e língua portuguesa. 2.ed. Brasília: MEC; SEESP, 2007. SAVIANI, De. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3.ed. Campinas: Autores Associados, 2011. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2011. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. 36a ed. São Paulo: Autores Associados, 2003. UNIVERSIDADE FEDERAL DO DO ACRE. Regimento Geral da Universidade Federal do Acre. Rio Branco: Ufac, 2013. 120f. UFAC – RESOLUÇÃO NORMATIVA/Conselho Universitario, Resolução nº 10, de 18 de setembro de 2008. Disponivel em: http://www2.ufac.br/site/ ocs/conselho-universitario/resolucoes/resolucoes-de-2008/resolucao-no-10de-18-de-setembro-de-2008 Acessado em: 18/08/2023. 69 DESVENDANDO AS CONEXÕES ENTRE A FORMAÇÃO E O TRABALHO DE TRADUTORES/INTÉRPRETES DE LIBRAS E DOCENTES Cristiane da Penha Nascimento Nogueira1 Grace Gotelip Cabral2 Introdução A política educacional vigente no país preconiza a inclusão de todas as crianças na Educação Básica, sejam estas com deficiência ou não. De acordo com a Lei nº 13.146 (Brasil, 2015), a inclusão da pessoa com deficiência é “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. De acordo com Freire (1996), a inclusão além de um movimento educacional é também social e política que vem defender o direito de todos os indivíduos participarem, de uma forma consciente e responsável, na sociedade de que fazem parte, e de serem aceitos e respeitados naquilo que os diferencia dos outros. De acordo com Freire (ibden), a inclusão é um movimento educacional, mas também social e político que defende o direito de todos os indivíduos a participarem, de uma forma consciente e responsável, da sociedade e de serem aceitos e respeitados naquilo que os diferencia dos outros. O Estatuto dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2015, garante a “oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua” (Brasil, 2015). Como primeira língua ela é considerada como língua de aquisição natural, enquanto a Língua Portuguesa é a língua de aprendizagem sistemática, conceituada por isso como segunda língua para aqueles que têm a Libras como primeira língua. 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE/UFAC, Docente de Libras no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre – IFAC, cristiane. nogueira@ifac.edu.br. 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG, docente associada na Universidade Federal do Acre - UFAC e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação PPGE/UFAC, grace.cabral@ufac.br. 70 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Contudo, ainda que a Libras seja reconhecida no ambiente educacional, a Língua Portuguesa oral e escrita predomina no saber e no fazer dos professores e professoras no interior das salas de aula, fazendo-se necessário o ensino em um contexto bilíngue. O bilinguismo é uma proposta que possibilita ao aluno surdo a aprendizagem de duas línguas no espaço escolar. A partir da inclusão de pessoas com deficiência auditiva no contexto educacional dois profissionais vem ganhando destaque, os tradutores intérpretes de Língua Brasileira de Sinais – Libras/Português - TILSP e os docentes que realizam ações conjuntas em sala de aula. O trabalho conjunto desses profissionais tem como objetivo que os alunos surdos tenham acesso ao currículo escolar de forma acessível e significativa, possibilitando que se desenvolvam academicamente. Para garantir que esses alunos Surdos tenham acesso aos conteúdos curriculares, o Tradutor Intérprete de Libras-Português é o profissional que tem por atribuição assegurar esse direito, utilizando seu conhecimento, técnica e fluência em Libras nas aulas. Na outra ponta temos o professor responsável por estabelecer um ambiente inclusivo que atenda às necessidades de todos os alunos presentes em sua sala de aula. Para atingir os objetivos do processo inclusivo são necessárias mudanças dentro da escola, que são implementadas através de uma reflexão comprometida e responsável dos participantes da realidade inclusiva. Além da garantia de direito de acesso aos conteúdos em sua primeira língua, o Decreto 5.626 assevera em seu art. 14 que, quanto aos anos finais do Ensino Fundamental, que as instituições devem: III - prover as escolas com: a) professor de Libras ou instrutor de Libras; b) tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa; c) professor para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para pessoas surdas; e d) professor regente de classe com conhecimento acerca da singularidade linguística manifestada pelos alunos surdos. Compreende-se nesse contexto que para a realização de um trabalho pedagógico de qualidade, são necessários profissionais com formação adequada para que junto aos professores das áreas específicas possam desenvolver uma prática pedagógica consistente, utilizando estratégias que favoreçam o processo de ensino-aprendizagem dos estudantes surdos. Nesse artigo propõe-se explorar as interconexões entre a formação e o trabalho desses profissionais, destacando os saberes necessários, os desafios enfrentados e os pontos de convergência entre a formação dos TILSP e os docentes que trabalham em salas de aula com alunos com deficiência auditiva. Com o cenário da inclusão escolar instalado, a partir da década de 1990, a demanda por formação de profissionais para trabalharem atendendo 71 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) as demandas especificas ficou cada vez mais urgente. Nesse contexto após o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais – Libras, no ano de 2002, às pessoas surdas puderam enfim ter assegurado seu direito a uma educação onde os conteúdos curriculares fossem apresentados através da língua de sinais. Com a crescente demanda, professores e TILSP tiveram que participar de formações continuadas que eram ofertadas pelas secretarias de educação dos estados visando o aprendizado da Libras, a adaptação de materiais didáticos, o conhecimento de cultura surda e planejamento de aulas acessíveis. Nesse contexto para obter sucesso no processo de ensino-aprendizagem, tanto o professor de áreas específicas quanto o TILSP precisam alinhar os conhecimentos técnicos e pedagógicos para obterem êxito no processo. Entretanto, algumas questões trazem inquietações: qual é e como se dá a formação desses profissionais? De que forma os dois profissionais (professor e TILSP) conduzem suas práticas pedagógicas? Essas práticas confluem para que o trabalho ocorra com qualidade no cotidiano da sala de aula? Essas são questões que balizaram o estudo com o objetivo de desvendar as conexões existentes entre a formação do professor e do TILSP que podem desencadear a melhoria da qualidade do processo de ensino-aprendizagem. O trabalho e a formação do Tradutor Intérprete de Libras- Língua Portuguesa Durante muitas décadas no Brasil, as discussões sobre a educação do surdo se limitavam a escolha de práticas educacionais que o professor considerava mais adequada para atender esse aluno. Nesse contexto, algumas questões emergiam: ir pelo viés do oralismo ou da comunicação total (bilinguismo)? Qual língua escolher para que o aluno aprenda de forma significativa? O português oral, o português escrito ou a Libras? Qual seria mais adequada para o pleno desenvolvimento do (a) estudante surdo (a)? Lacerda e Lodi (2012) defendem um modelo de educação bilíngue em que os estudantes surdos possam ter contato, o mais precocemente possível, com a Libras, língua que lhes é acessível. Ao contemplar o direito linguístico das pessoas surdas proporciona-se também o contato com diferentes interlocutores, com aspectos culturais e identitários, e o acesso aos conhecimentos que serão a base para todo seu aprendizado ao longo do processo de escolarização. Até meados dos anos 2000 a Libras não era reconhecida como meio formal de comunicação entre às pessoas surdas e, portanto, o tradutor intérprete não tinha também esse reconhecimento como profissional. Antes de qualquer norma escrita na legislação brasileira esses profissionais se limitavam a um contexto religioso, de maneira social ou assistencialista às pessoas surdas, que 72 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira geralmente eram seus familiares. De acordo com Lacerda (2008) eles não tinham acesso ao “preparo ou reflexão sobre como desenvolver essas práticas, quais as implicações de seu trabalho, etc.” (p. 15). De acordo com art. 17 do decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 “a formação do tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa deve efetivarse por meio de curso superior de Tradução e Interpretação, com habilitação em Libras - Língua Portuguesa”. Na sequência o art. 18 fez ressalvas que serviram para o período (2005-2015) sobre quem poderia ocupar os cargos que viessem a ser criados em concursos em âmbito municipal, estadual e federal. Assim o art. 18 disciplinou o perfil de formação desejável para esse profissional. Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, a formação de tradutor e intérprete de Libras - Língua Portuguesa, em nível médio, deve ser realizada por meio de: I - Cursos de educação profissional; II - Cursos de extensão universitária; e III - Cursos de formação continuada promovidos por instituições de ensino superior e instituições credenciadas por secretarias de educação. (BRASIL, 2005, art. 18) Ainda em conformidade com o supracitado decreto, a Educação Bilíngue para surdos deve se configurar da seguinte maneira: Art. 22. As instituições federais de ensino responsáveis pela educação básica devem garantir a inclusão de alunos surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de: I - Escolas e classes de educação bilíngue, abertas a alunos surdos e ouvintes, com professores bilíngues, na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental; II - Escolas bilíngues ou escolas comuns da rede regular de ensino, abertas a alunos surdos e ouvintes, para os anos finais do ensino fundamental, ensino médio ou educação profissional, com docentes das diferentes áreas do conhecimento, cientes da singularidade linguística dos alunos surdos, bem como com a presença de tradutores e intérpretes de Libras - Língua Portuguesa. § 1º São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo. Para se tornar tradutor e intérprete de Libras é necessário ter participado de cursos reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC), vinculados às secretarias de Educação dos estados da federação, para que preencham a esse prérequisito. Também é importante participar de formação continuada que prime pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional, desenvolvendo habilidades interpessoais, conhecimentos acerca da cultura e identidade surda. Na esteira das discussões sobre a formação, retornando ao art. 17, a legislação estabeleceu que no período de 10 (dez) anos, a partir de 22 de 73 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) dezembro de 2005, a formação do profissional tradutor intérprete deveria ser em curso superior de tradução e interpretação com qualificação especial em Libra Português. O objetivo deste requisito é garantir uma formação sólida e completa que inclua os conhecimentos linguísticos, culturais e técnicos necessários ao exercício profissional. No ano de 2008 a Universidade Federal de Santa Catarina, a partir da adesão ao “Plano Viver sem Limites”3, instituído pelo Governo Federal, abriu polos de oferecimento do curso em Letras/Libras Bacharelado com o objetivo de formar profissionais tradutores intérpretes para a atuação em diversos contextos. Diante da ausência de cursos de bacharelado ofertados para a formação do Tradutor Intérprete de Libras/Português – TILSP em todo o território nacional, cada estado foi se organizando de uma forma com o propósito de cumprir as exigências mínimas para que esses profissionais fossem ocupando os cargos disponíveis. Nesse quesito, são as Secretarias de Estado de Educação quem mais absorve os TILSP em seus quadros, pois é na área educacional, especialmente nos anos finais do Ensino Fundamental e no Médio que surgem a maior demanda visto que estes profissionais desempenham um papel fundamental na intermediação entre professor, aluno e o conhecimento. No estado do Acre, os profissionais tradutores intérpretes são contratados como Professor tradutor intérprete. Este cargo foi criado e descrito no Plano de Cargos Carreiras e Remunerações – PCCR pela Lei Complementar nº 274, de 09 de janeiro de 2014 que em sua alínea d dispõe que o “professor tradutor intérprete educacional em LIBRAS, formação mínima de nível superior e outras formações específicas exigidas em legislação federal.” (LC 274, 2014, art. 6, alínea d). Vale ressaltar que a partir de um panorama histórico o trabalho dos TILSP nas escolas do Acre teve início adotando o Oralismo, filosofia educacional surgida na Alemanha com Samuel Heiniek, que adotava o ensino da língua oral e preteria a língua de sinais. Heiniek também foi o fundador da primeira escola para alunos surdos baseada na filosofia Oralista. No Acre, essa atividade laboral começou no ano de 1997 na cidade de Rio Branco, capital, com os primeiros cursos de Libras sendo oferecidos primeiramente pela Igreja Batista do Bosque (IBB), porém sem certificação. Neste contexto o trabalho dos intérpretes era voltado primordialmente à interpretação religiosa. Nos anos seguintes, em especial em 1999, houve uma parceria entre Secretaria Estadual de Educação (SEE) e a Igreja Batista do Bosque (IBB) e a partir daí passou-se a adotar uma nova abordagem metodológica e realizar a 3 Plano Viver sem Limites - O Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência ou Plano Viver sem Limite – PVSL foi instituído pelo Decreto 7.612, de 2011, com o intuito de promover nacionalmente o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência. Revogado pelo Decreto nº 11.793/2023. 74 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira certificação para seus participantes. O intuito ter profissionais certificados que pudessem prestar serviços nas escolas públicas que passaram a receber os alunos surdos nas salas de aulas das escolas inclusivas. Há que se ressaltar que havia uma necessidade urgente em formar novos profissionais de uma maneira oficial para serem contratados como professores intérpretes, assim como eram os eram efetivos e que acabaram preenchendo essa lacuna, porém como eram poucos e com uma a inclusão em expansão se fez urgente o a oferta de formação técnica básica em Libras para atender aquele contexto. Na capital, essa atividade teve início alcançando as filosofias de ensino para surdos, desde a comunicação total até a Libras em contexto nos seus níveis fonológicos, mórficos, sintáticos e semânticos e pragmáticos, reconhecida por lei e aplicada pela linguística como língua. Todo esse movimento, inserido num forte contesto de implementação de políticas de inclusão, permitiu que muitos intérpretes passassem a exercer profissionalmente essa função em escolas estaduais. Assim, o fato da Secretaria de Estado de Educação do Acre - SEE ter admitido esses profissionais oralistas nas salas de aulas das escolas da rede para desempenharem a função de tradutor intérprete de Libras - TILSP, culturalmente eles passaram a ser denominados de professor intérprete. Somente no ano 2000 aconteceu a primeira contratação do professor intérprete de Libras, que também realizava a capacitação de Libras no Estado do Acre para instituições governamentais e não-governamentais. A necessidade de criação desse cargo se deu a partir do reconhecimento da profissão do profissional TILSP na Lei nº 12.319, de 1 de setembro de 2010, lei que recentemente, foi alterada pela Lei nº 14.704, de 25 de outubro de 2023, pois a partir da vigência da legislação expressa a SEE passou a contratar professores licenciados, com certificação em tradução e interpretação da Libras para prestarem serviço nas escolas estaduais. Em conformidade com a legislação, a formação destes especialistas deve incluir conhecimentos linguísticos, culturais e pedagógicos, para que às necessidades das pessoas Surdas sejam mais bem atendidas e garantam a participação efetiva dos mesmos na sociedade. De acordo com a literatura da área, quanto aos aspectos técnicos linguísticos, o TILSP deve ter o nível de domínio linguístico compatível com o contexto no qual o serviço será prestado (Quadros, 2004, p.63). Ele deve estar em constante busca por aperfeiçoamento, entendendo que para uma boa atuação tanto o conhecimento linguístico e da cultura surda devem se fazer presentes no dia a dia profissional, quanto o conhecimento pedagógico para planejar e organizar o conteúdo que o professor trabalhará em sala de aula, pois de acordo com Lacerda 75 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Essa prática permite que a intérprete colabore discutindo possibilidades de certos conteúdos serem abordados, considerando seus conhecimentos sobre a surdez/falta de audição, o modo de significar dos alunos surdos que ela acompanha mais de perto e, ao mesmo tempo, facilitando seu desempenho como intérprete, já que conhece os argumentos antecipadamente. (Lacerda, 2008, p. 26). O conhecimento técnico do TILSP aliado ao conhecimento do professor favorece o ambiente de aprendizagem em que alunos surdos compreendem e interagem dinamicamente em sala de aula. Diante do exposto, a formação docente precisa proporcionar aos futuros professores informações que os instiguem a refletir sobre sua prática profissional, dando-lhes oportunidade de serem atuantes diante dos desafios apresentados pela inclusão escolar de pessoas com deficiência. O trabalho e a formação docente para atuar na Educação Inclusiva Em conformidade com a Resolução nº 02, de 01 de julho de 2015 que trata da formação inicial e continuada para profissionais que atuam no Magistério da Educação Básica, parágrafo 1º, art. 2º assevera que No exercício da docência, a ação do profissional do magistério da educação básica é permeada por dimensões técnicas, políticas, éticas e estéticas por meio de sólida formação, envolvendo o domínio e manejo de conteúdos e metodologias, diversas linguagens, tecnologias e inovações, contribuindo para ampliar a visão e a atuação desse profissional” (Brasil, 2015). Nesse sentido, espera-se de todo professor que fez a formação inicial em cursos de graduação que ele tenha adquirido conhecimentos acerca do uso adequado e coerente de metodologias, tecnologias, diversas linguagens, e que esses conhecimentos sejam manifestos e aprimorados no seu desenvolvimento profissional. Esse domínio é essencial e lhe dará mais segurança no desenvolvimento da prática pedagógica e maturidade para lidar com as turmas, mesmo diante daquelas que apresentam tantas diferenças. Ainda em conformidade com a Resolução nº 02/2015 para ser docente é necessário estar preparado para desenvolver funções de magistério nas diferentes etapas de escolarização, bem como nas distintas modalidades: educação infantil, ensino fundamental, ensino médio – e modalidades – educação de jovens e adultos, educação especial, educação profissional e técnica de nível médio, educação escolar indígena, educação do campo, educação escolar quilombola e educação a distância (Brasil, 2015). Grifo nosso. Estes profissionais são licenciados que ao desenvolverem suas atividades nas escolas comuns atenderão a uma diversidade de alunos, que no caso 76 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira específico deste estudo trata-se de estudantes que também integram a Educação Especial, a saber, alunos Surdos. Assim, os alunos Surdos, presentes em salas de aula com sua Língua Brasileira de Sinais tornam-se um desafio àqueles profissionais que tiveram pouco ou nenhum contato com essa realidade durante seu período de formação. Vale ressaltar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - (Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996 (LDBEN) em seu art. 59 resguarda que os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação [...] professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns;” (Brasil, LDBEN, 1996, art. 59, III). Assim sendo, os docentes que trabalham diretamente com alunos públicoalvo da Educação Especial necessitam, além da formação inicial realizada em cursos de licenciatura de uma formação especializada adequada às necessidades especificas de estudantes com deficiência. De acordo com Pimenta (1996) muitas vezes essa formação, por conta de uma “perspectiva burocrática e cartorial” colabora para a construção de um “currículo formal com conteúdos e atividades de estágios distanciados da realidade das escolas” (Pimenta, 1996, p.73). A limitação de uma formação desconectada da realidade é que ela deixa de contribuir efetivamente no fazer profissional do professor que, por não saber como agir diante de uma realidade diferente daquela posta em sua formação inicial, demora muito até encontrar respostas para seus questionamentos e compreender como atender aquele aluno que se apresenta diante dele, principalmente o aluno que fala uma língua distinta da utilizada pelo professor. Logo, ambos os profissionais, ao longo do seu processo de formação, inicial e continuada, devem adquirir saberes e desenvolverem estratégias que são importantes e farão toda a diferença no cotidiano da sala de aula. A formação inicial especifica, conectada a realidade da sala de aula da Educação Inclusiva, será sempre a mais adequada para que todos os profissionais que trabalham na Educação Especial possam se desenvolver profissionalmente e refletir sobre seu próprio trabalho, nisso reside também o caráter humanizador do processo educacional, pois a educação é um processo humanizador, por essência” (Pimenta, 1996, p. 79). Esses saberes muitas vezes precisam ser comprovados com avaliação específica. Esse é o caso do TILSP que por força do Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, deveria ser submetido ao exame de proficiência, PROLIBRAS e apresentar o parecer de uma banca avaliadora para poder trabalhar como tradutor intérprete. 77 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) O exame de proficiência em tradução e interpretação de Libras Língua Portuguesa deve ser realizado por banca examinadora de amplo conhecimento dessa função, constituída por docentes surdos, linguistas e tradutores e intérpretes de Libras de instituições de educação superior. (Decreto nº 5.626/2005, 2005, art. 8º, § 3º). Por outro lado, em consonância com a Lei nº 14.704 de 25 de dezembro de 2023, quando se tratar de docentes, essa comprovação se dará apenas por meio de certificações. Seguiu-se então com essas exigências até o dia 22 de dezembro do ano de 2015, data limite estabelecida para o encerramento do PROLIBRAS. Assim, com o “fim” da exigência do PROLIBRAS novos desafios foram postos. Até dezembro de 2015 a seleção e as contratações via concurso ou por outro modelo de contrato de trabalho acabavam sendo mais fáceis de serem geridas. Com a finalização do prazo, o que se observou, então, foi a não exigência de exame que comprovasse que aquele profissional possuía proficiência ou domínio técnico da Língua Brasileira de Sinais. Entre os anos de 2015 e 2023 não houve a possibilidade de implantação de um novo sistema capaz de assegurar que o profissional contratado cumprisse com as demandas linguísticas apresentadas pelas pessoas surdas em diversos contextos, e, principalmente, na área educacional. A tentativa de mudança nesse paradigma ocorreu somente a partir da atualização da legislação e a aprovação da Lei nº 14.704 de 25 de outubro de 2023. O TILSP que atua em outras áreas, acaba tendo menos necessidades de atualizações do que os que trabalham diretamente com a interpretação em sala de aula. A própria formação para exercer a profissão nesse campo se faz diferente, uma vez que o TILSP lida não apenas com a Língua Brasileira de Sinais, mas com as demandas didático-pedagógicas. Retomando o Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005, o parágrafo 1º do art. 21, inciso II e III menciona que nas instituições de Educação Básica e de Ensino Superior, os TILSP trabalhariam “nas salas de aula para viabilizar o acesso dos alunos aos conhecimentos e conteúdos curriculares, em todas as atividades didático-pedagógicas;” e “III - no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades fim da instituição de ensino.” O TILSP no desenvolvimento profissional necessita muito mais que o manuseio técnico da Libras. Ele precisa fazer uso de material didático desenvolvido pelo professor regente para as suas aulas, ter conhecimento do vocabulário específico das diferentes áreas. o que contribui para que ele tenha clareza do conteúdo trabalhado pelo professor. Para tanto, torna-se fundamental a formação adequada para o atendimento das demandas postas pela rotina da sala de aula. 78 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Para os docentes, faz-se necessário criar as condições para reflexão e construção teórica de uma educação inclusiva efetiva, onde ele exerça um protagonismo, proporcionando articulação entre o conhecimento, a experiência e as necessidades que se apresentam no contexto pedagógico. Isso dará aos professores mais autonomia para fazer escolhas mais concretas em seu cotidiano laboral. De acordo com Pletsch (2009), podemos dizer que o professor deve valorizar a diversidade como aspecto importante no processo de ensino-aprendizagem. Além disso, necessita ser capaz de construir estratégias de ensino, bem como adaptar atividades e conteúdos, não só em relação aos alunos considerados especiais, mas para a prática educativa como um todo, diminuindo, assim, a segregação, a evasão e o fracasso escolar.” (Pletsch, 2009, p. 147) Nesse sentido, é requerido de um professor que desenvolva uma ação crítico-reflexiva de sua prática pedagógica permanentemente, entendendo que esse habito é saudável para um trabalho que contribua para uma educação realmente inclusiva. Assim de acordo com Bourdieu habitus constitui um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações - e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (Bourdieu, 1983, p. 65) A partir desse ponto, com todo esse conhecimento agregado, seu desafio é ampliar seu círculo de conhecimentos no planejamento e desenvolvimento de atividades pedagógicas e culturais, pois a partir do conceito de habitus o professor pode utilizar-se dessa lente poderosa para analisar a sala de aula e o seu fazer cotidiano. O habitus, como sistema de disposições adquiridas, molda a forma como as pessoas percebem, avaliam e agem no mundo porque é o resultado da socialização e das experiências individuais. Em contexto educativo, o hábito de um professor influencia profundamente as suas práticas pedagógicas, decisões e interações com os alunos, colegas e comunidade escolar. Nóvoa adverte que a formação precisa ser e ter uma perspectiva críticoreflexiva que “forneça aos professores os meios de um pensamento autônomo e que facilite as dinâmicas de formação auto participada” (Nóvoa, 1992, p 25). Esse processo de reflexão crítica tem como base a pedagogia de Freire (2005) e parte da premissa que essa formação crítica deve conduzir ao desenvolvimento de cidadãos que sejam capazes de analisar suas realidades social, histórica e cultural, criando possibilidades para nelas interferirem e transformá-la. Dessa forma, alunos e professores nas relações dialógicas dentro e fora da sala de aula conquistam uma maior autonomia e emancipação. 79 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Se este professor, no desenvolvimento de sua atividade profissional acreditar que seu trabalho se limita à preparação para a gestão da sala de aula, ele acaba deixando de lado outras dimensões fundamentais, como a sua participação na formulação e implementação do projeto político-pedagógico da escola, uma atividade que se insere na dimensão política do ato de ensinar e de suma importância para toda a comunidade escolar e para a sociedade. Seguindo na perspectiva de Freire (ibden) o professor crítico-reflexivo possui como uma de suas principais características a preocupação com as consequências éticas e morais de suas ações na prática social. Observa-se, que um educador crítico-reflexivo insere seu trabalho em sala de aula e seu compromisso com a aprendizagem do estudante, diretamente na esfera política e vice-versa. Ele concebe os alunos como agentes críticos, o conhecimento se torna uma preocupação central e por isso ele problematiza o que ensina, desenvolve a capacidade de dialogar e argumentar sempre a favor de um mundo melhor e mais inclusivo para todas as pessoas, sempre preocupado com as consequências éticas e morais de suas ações na prática social. É preciso destacar, ainda, que as relações construídas e sua participação efetiva faz com que ele desenvolva uma atitude investigativa que numa perspectiva dialética articule a teoria e a prática pedagógica, ampliando a visão para a necessidade, inclusive, do uso das tecnologias digitais de informação e comunicação e incorporando-as de forma a promover o processo de ensinoaprendizagem, mesmo quando o estudante apresenta surdes ou outra deficiência, pois como aponta Páez (2001) atender a diversidade é atender as crianças com deficiência, mas também todas as outras diversidades que aparecem cotidianamente na comunidade. Uma escola ou uma sala de aula inclusiva acolhe e atende a todos os estudantes em suas necessidades particulares e individuais num ambiente essencialmente heterogêneo e coletivo. Para Freire é necessário saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas possibilitar sua produção e construção (1996, p. 47). Isso se torna ainda mais desafiador no contexto de salas de aula com alunos surdos incluídos. Cabe ao professor e ao TILSP ao entrar em sala de aula criar um ambiente aberto a indagações, a curiosidade, às perguntas dos alunos e suas inibições, considerando que o seu trabalho é ensinar e não transferir conhecimento. Tanto os professores quanto os tradutores intérpretes compartilham de desafios intrínsecos na sua profissionalidade e profissionalização. Dentre os desafios encontrados pelos docentes os de maiores impactos em sala de aula, certamente, são as barreiras linguísticas e culturais presentes. Geralmente nas salas de aulas das escolas brasileiras, os professores que estão à frente do processo de ensino-aprendizagem não têm conhecimentos linguísticos necessários para dialogar com o aluno surdo. 80 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira A escassez de profissionais qualificados na área de tradução e interpretação da Libras ainda é um gargalo enfrentado por muitos estados brasileiros. No caso do estado do Acre, especialmente nos municípios de difícil acesso (aqueles aonde se chega somente por via fluvial ou aérea em voos fretados), as dificuldades são ainda maiores para se fazer chegar a formação, pois além das dificuldades de acesso relatadas, a instabilidade ou ausência de sinal da internet acabam dificultando até mesmo a oferta de cursos na modalidade a distância. Um outro ponto que merece destaque é a questão relacionada a adaptação de materiais didáticos para o uso nas aulas em que alunos surdos estejam presentes. Por outro lado, fica o questionamento quem deve produzir esses materiais adaptados? Se o professor elaborar o material didático para o uso nas aulas, o TILSP conseguirá utiliza-lo? Dentro do ambiente escolar a sinergia entre intérpretes de Libras e docentes é essencial para criar um espaço inclusivo e promover o sucesso acadêmico de todos os alunos surdos. A colaboração entre tradutores/intérpretes e professores, a concepção conjunta de salas de aula inclusivas e a implementação de estratégias de ensino que valorizem a diversidade são aspectos importantes para garantir uma aprendizagem eficaz. Frente ao exposto alguns aspectos importantes precisam ser considerados: o processo de comunicação, o currículo, os materiais didáticos adaptados e a transposição didática. A comunicação aberta e colaboração contínua entre TILSP e professores é condição para que eles consigam construir suas práticas pedagógicas. A construção desses canais de comunicação passa pela colaboração contínua no ato de ensinar, compreensão das necessidades especiais dos alunos surdos, discussão de estratégias de ensino e adaptação nos planejamentos e planos, sempre que necessário. Por isso é necessária a participação de ambos no processo de planejamento do ensino, discutindo ativamente e, antecipadamente, as orientações curriculares, conteúdo a ser trabalhado, os objetivos da aula, as estratégias de ensino, os recursos didáticos de forma a tornar o conhecimento acessível a todos e uma avaliação formativa que prime pelo processo e não somente pelo resultado. Intérpretes e professores devem trabalhar juntos e atentos às mudanças e adaptações necessárias, tanto nos procedimentos quanto nos recursos de ensino para que atendam às necessidades especificas dos alunos surdos atendidos. De acordo com Franco (2007, online) “as adaptações curriculares, de planejamento, objetivos, atividades e formas de avaliação, no currículo como um todo, ou em aspectos dele, são para acomodar os alunos com necessidades especiais...”, ou seja, servem para propiciar ao aluno com deficiência equidade no processo de ensino-aprendizagem dos conteúdos propostos. 81 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Mais uma vez é preciso destacar que para que haja de fato a inclusão do aluno surdo é necessário realizar adaptações no currículo que é pensado e elaborado de modo a favorecer sua aquisição por meio da Língua Portuguesa e não da Libras. Daí a necessidade de que os métodos e materiais curriculares permitam ao professor, tradutor intérprete ao aluno surdo a imersão na cultura surda e a construção do conhecimento a partir de sua língua natural ou mais acessível. A Língua Portuguesa poderá ser ensinada como segunda língua, na modalidade escrita. No que tange as discussões sobre o currículo e os conteúdos de ensino nele previstos, Libâneo (2013, p.132) adverte que a prática educacional tem por finalidade alcançar os objetivos sistematizados propostos pelo docente e que tais objetivos educacionais têm por proposito desenvolver as demais qualidades que os indivíduos possuem. Assim, para a formulação dos objetivos educacionais há que se considerar: os valores e ideias proclamados na legislação educacional e que expressam os propósitos das forças políticas dominantes no sistema social [...] os conteúdos básicos das ciências, produzidos e elaborados no decurso da prática social da humanidade [...] as necessidades e expectativas de formação cultural exigidas pela população majoritária da sociedade, decorrentes das condições concretas de vida e de trabalho e das lutas pela democratização (LIBÂNEO, 2013, p. 133). Portanto, os conteúdos constituem a base central da instrução com objetivo que são traduzidos pelos conhecimentos sistematizados e habilidade que se refere diretamente aos objetivos propostos e viabilizados pelos métodos de transmissão e assimilação dos conteúdos (p.131). Todavia, se professores e tradutor intérprete não conseguirem realizar a transposição didática, considerando as necessidades especificas da turma e a presença do aluno surdo, os resultados serão frustrantes. Para Almeida (2007) transposição didática é um conjunto de ações transformadoras necessárias para tornar o conhecimento científico, inicialmente sempre muito complexo, em um conhecimento que possa ser mais facilmente assimilado pelo aluno, sem perder suas características científicas. E esse é o grande desafio proposto ao professor e ao tradutor intérprete. Ambos precisarão dar um tratamento especial ao conhecimento e o transformá-lo em algo significativo para o aluno. Esse trabalho tem início antes mesmo da intervenção em sala de aula, começa na seleção do conhecimento a ser trabalhado, no planejamento dos procedimentos, materiais e recursos que serão utilizados na sala de aula, tudo com a finalidade de transformá-lo em um saber possível de ser ensinado. No que concerne ao material e recursos didáticos, segundo Bandeira (2009, p. 14) ele “pode ser definido amplamente como produtos pedagógicos 82 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira utilizados na educação e, especificamente, como o material instrucional que se elabora com a finalidade didática.”, ou seja, no campo da formação didáticopedagógica compreende-se como material didático todo e qualquer material elaborado com a finalidade de qualificar, aprimorar, dar suporte, facilitar o processo de ensino e a aprendizagem significativa por parte do estudante. Para Freitas (2007) os materiais didáticos, também conhecidos como recursos e/ou tecnologias educacionais, “são todo e qualquer recurso utilizado em um procedimento de ensino, visando à estimulação do aluno e à sua aproximação do conteúdo”. Logo, a vinculação entre os conteúdos, objetivos e métodos caracterizase por sua relação de interdependência, e interfere de forma direta no desenvolvimento do estudante e no processo de ensino-aprendizagem. Para Libâneo (2013, p.150) “na vida cotidiana estamos sempre perseguindo objetivos. Mas estes não se realizam por si mesmos, sendo necessária a nossa atuação, ou seja, a organização de uma sequência de ações para atingi-los”. Entretanto, para que professor e o tradutor intérprete alcancem sucesso no processo de ensino-aprendizagem é necessária a mudança de postura frente a atividade de ensinar. primeiramente precisam desenvolver as habilidades profissionais em conjunto, a partir da troca de experiencias como um fator importante para a aprendizagem do estudante surdo. Nesse sentido, a participação em eventos, as formações continuadas, workshops, entre outros possibilitam o desenvolvimento de atitudes favoráveis a um ambiente educacional inclusivo. Um outro aspecto importante a ser desenvolvido por ambos os profissionais é a flexibilização, ou seja, a capacidade de se adaptar às necessidades especiais dos alunos surdos. Isto inclui ser capaz de ajustar o espaço, o ritmo da aula, fornecer materiais complementares e estar aberto a mudanças sempre que necessário. A educação inclusiva está consolidada com marcos legais sólidos e depende significativamente da inovação contínua tanto dos professores como dos tradutores/intérpretes de Libras. À medida que a sociedade evolui, surgem novas tecnologias, métodos de ensino e descobertas relacionadas à aprendizagem e ao engajamento, torna-se necessário que os profissionais se atualizem continuamente para atender às novas necessidades dos alunos. A tecnologia desempenha um papel cada vez mais importante e é uma grande aliada na educação inclusiva, assim professores e intérpretes devem estar atualizados com as mais recentes ferramentas e recursos tecnológicos disponíveis para apoiar a aprendizagem de alunos com deficiência auditiva e outras necessidades especiais. Tão importante quanto a tecnologia, as novas abordagens pedagógicas são ferramentas importantes para atender à diversidade dos alunos. 83 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Considerações Finais Este artigo buscou fazer uma reflexão sobre o trabalho de professores e dos TILSP, no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem, com o objetivo de identificar as necessidades formativas e os desafios enfrentados por esses profissionais no trabalho em salas de aula com alunos surdos incluídos. Compreende-se que no cenário atual do ponto de vista teórico a inclusão, educação inclusiva, materiais e/ou recursos adaptados são temas recorrentes nos documentos normativos, curriculares, bibliográficos, contudo, em descompasso e, às vezes, sem nenhuma conexão com o trabalho desenvolvido em salas de aula com alunos incluídos e com as necessidades formativas de professores e TILSP. Numa perspectiva abrangente das interações entre a formação e o trabalho de TILSP e professores, nota-se à necessidade de se instituir práticas colaborativas de planejamento para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem significativo, mediado por intervenções pedagógicas e um ambiente educacional de fato inclusivo onde os saberes e os fazeres são compartilhados. Frente aos desafios apontados no texto, a formação didático-pedagógica urge como uma necessidade premente para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes para garantir o acesso com qualidade aos conhecimentos científicos, independentemente da deficiência do estudante. É indiscutível que a Educação Inclusiva está consolidada nos documentos normativos, porém, a inclusão efetiva está intimamente conectada com a formação inicial e continuada dos profissionais que nela atuam, dependendo disso, em grande parte, o aprimoramento dos processos de aprendizagem dos alunos com deficiência. Referências ACRE. 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Trata-se, portanto, de uma mobilização de aportes teóricos com a intenção de retomar no percurso da história os lugares e as percepções em torno das pessoas com deficiência em encontro com a educação contemporânea, a escola atual e a vivência dos educandos em classes comuns. Embora a ideia central seja a de transitar e olhar para a educação especial no Brasil, viu-se na construção deste exercício a necessidade de situar fontes basilares as quais antecedem as constituições nacionais, mas, inegavelmente, em alguma medida, fundamentam existências e recorrências impressas na história do país e em práticas/processos que, mesmo com o passar dos anos, ainda mantém-se em vigência nas estruturas sociais. Expõe-se, assim, não a intenção de constituir uma linha do tempo e, ponto a ponto, a partir desta, justificar aparecimentos e recorrências que foram 1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (PPGED/UERGS), Especialista em Educação Especial pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Licenciada em Pedagogia pelas Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Professora de AEE (Atendimento Educacional Especializado) no Colégio Santa Teresinha (Rede Notre Dame). E-mail: belefc79@gmail.com. 2 Mestre e Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (PPGED/UERGS). Licenciado em Letras e Tecnólogo em Processos Gerenciais pelo Centro Universitário Cenecista de Osório (UNICNEC). Técnico Administrativo em Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - IFRS Campus Osório. E-mail: gabriel.pereira@ osorio.ifrs.edu.br. 87 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) desenhando a Educação Especial, mas sim a ideia de articular no contexto atual perspectivas e até mesmo preconceitos vivenciados que são resquícios (e mais do que isso, marcas de recorrência) de um processo histórico desigual e desumano. Para tanto, urge neste material o interesse de explicitar para os leitores compreensões que ajudam a evidenciar como se deu o percurso histórico de (sobre) vivência das pessoas com deficiência e as relações com os espaços e contextos educativos até os dias atuais e, em certo passo, também relacionar no desenvolvimento da educação brasileira os pontos de encontro e/ou desconexão gerados. 2. Antes de falarmos sobre a Educação Especial no Brasil Tendo por compreensão que os processos pedagógicos da educação especial se desenvolvem em um movimento sensível e dialógico de compreensão do outro, reconhecer isso em um processo histórico precisa ser ponto de referência. Nesse sentido, na busca pela compreensão das marcas do tempo histórico, precisamos manter em vista nosso olhar para o sujeito, ou seja, para as pessoas com deficiência. Antes de falarmos em educação especial, precisamos situar este lugar e, especialmente, para quem é constituído. Assim, na movimentação sugerida, vemo-nos com o compromisso de retomar o percurso humano trilhado por cada pessoa com deficiência, (re)vendo na estrutura social violentos processos de estigmatização e de extremo impacto. Punições de diversas ordens e a própria morte são marcas que não podem ser vistas e avaliadas simplesmente como passadas, de outros tempos, mas referidas pelas repercussões que ainda vemos nos dias atuais. Bianchetti (1995) relaciona, por exemplo, características da sociedade primitiva, tais como os padrões de sobrevivência marcados por competência e capacidade plena para destacar concepções que marcam os primórdios e que diretamente têm impacto no campo das deficiências. Conforme este autor, “a questão da deficiência ou a emergência da educação especial, só será compreendida se inserida no amplo espectro do processo histórico de como os homens foram atendendo às suas necessidades básicas e, por decorrência, como foram construindo a sua existência” (Bianchetti, 1995, p. 8). Dito isso, reafirma-se o quanto o desencadear dos tempos e dos processos históricos veio se relacionando com as pessoas com deficiência, com registros distintos de cultura para cultura de como era concebido o nascimento e a vida dessas pessoas. Entre marcos temporais e simbolismos, urge destacar que a relação da deficiência com o pecado também se amplia à medida que a Idade Média avança e, como destaca Bianchetti (1995), essa perspectiva vinha ainda de muito antes, fazendo referência, numa dimensão bíblica, aos 22 milagres com curas atribuídos 88 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira a Jesus, dos quais 8 davam-se em torno de pessoas surdas, mudas e gagas. O autor também destaca o lugar da igreja na relação com a deficiência ao conceber que as seriam sinais para que as pessoas não deixassem de fazer caridade, sublinhando que é apenas a partir do Século XVI que as questões da deficiência começam a passar da ordem da igreja também para a relação com a Medicina. Diante dos estudos teóricos produzidos, Capellini e Mendes destacam que: [...] até o século XVIII, a exclusão acontecia amplamente, ou seja, pessoas com necessidades especiais eram excluídas da sociedade para qualquer tipo de atividade, pois eram consideradas inválidas, sem utilidade e incapazes para trabalhar, características estas atribuídas indistintamente a todos que tivessem alguma deficiência. Nesta fase, nenhuma atenção educacional era promovida (Capellini; Mendes, 1995, p. 3). Neste breve movimento temporal, consegue-se, em alguma medida, já entender quais as bases que dão sustento à educação voltada às pessoas com deficiência, base essa que em Capellini e Mendes (1995) podemos perceber que até o século XVIII de nada tinha a intenção de ser educacional. Tem-se construído até aí um longo percurso de discriminação, preconceito, desatenção e violência extrema, com tentativas de invisibilização e verdadeiros processos de apagamentos. 3. A Educação Especial no Brasil: marcas históricas A educação especial no Brasil iniciou no final do século XVIII e começo do século XIX bastante relacionada aos hospitais e tratamento clínico das pessoas com deficiência. Em 1730, em Vila Rica, havia a Irmandade de Santa Ana, que previa no artigo 2° do seu estatuto “uma casa de expostos e asilo para desvalidos” (Januzzi, 2004). Conforme explicitado por Kassar (2012, p. 835), “o país é construído a partir da diversidade de populações e de suas histórias, mas de forma extremamente desigual”. Assim, “findado o regime escravocrata, muitas famílias não foram incorporadas diretamente ao setor produtivo, passando a sobreviver nas grandes cidades, sem acesso a condições de vida minimamente satisfatórias” (Kassar, 2012, 835). Em 1854, é criado o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, sob manutenção e administração do poder central. Esse instituto, o qual veio em 1889 a chamar-se Instituto dos Meninos Cegos, em 1890 mudou a nomenclatura para Instituto Nacional dos Cegos e, por fim, Instituto Benjamin Constant em 1891. Essa instituição teve sua origem ligada ao cego brasileiro José Álvares de Azevedo, que estudou em Paris no Instituto dos Jovens Cegos (Januzzi, 2004). O Instituto funcionava sob regime de internato e destinava-se ao ensino primário e alguns ramos do ensino secundário: Educação moral e religiosa, 89 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) música, ofícios fabris e trabalhos manuais. Também dava a possibilidade dos alunos serem “repetidores”, e depois de dois anos nessa função, tornavamse professores da instituição. Em 1872, 18 anos após a fundação, fez-se um levantamento, onde foi observado que dos 64 alunos matriculados até então, apenas 16 haviam concluído seus estudos (Januzzi, 2004). Em 1857, foi fundado o Instituto dos Surdos-Mudos (ISM), que posteriormente mudou seu nome para Instituto Nacional dos Surdos-Mudos (INSM), o qual em 1957, 100 anos após sua fundação, veio a chamar-se Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines). O ISM em sua época de fundação foi administrado pelo educador francês Edouard Hüet, surdo congênito, que iniciou os trabalhos em uma sala improvisada com dois alunos. Posteriormente, em 1862, passou a ser dirigido por Manuel de Magalhães Couto e veio a conquistar seu prédio próprio em 1915. Porém, o atendimento na época era bastante precário e limitado (Januzzi, 2004). Reúne-se no quadro a seguir, a partir dos estudos de Januzzi (2004), outros marcos temporais de relação com a Educação na virada do Século XIX para o Século XX: Quadro 1 - A Educação Especial entre os Séculos XIX e XX Ano Acontecimento Histórico 1874 Presença de deficientes mentais no Hospital Juliano Moreira, na Bahia. 1886 Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. 1887 Atendimento de deficientes mentais, físicos e visuais na Escola México, no Rio de Janeiro. 1892 Atendimento para deficientes auditivos e mentais na Unidade Educacional Euclides da Cunha, em Manaus. 1898 Atendimentos para deficientes físicos e visuais, no Ginásio Estadual Orsina da Fonseca, no Rio de Janeiro. 1903 Fundação do Pavilhão Bourneville, a primeira Escola Especial para Crianças Anormaes. 1909 Atendimento para deficientes da comunicação e mentais, na Escola Borges de Medeiros, em Encruzilhada do Sul. Atendimento para deficientes da comunicação, auditivos e mental no Grupo Escolar Delfina Dias Ferraz, em Montenegro. Fonte: Autores (2024) a partir dos estudos de Januzzi (2004). É importante destacar que, “na República, a massa de brasileiros desempregada e considerada iletrada foi identificada como marginal e seus hábitos vistos como indecentes e de transgressão aos bons costumes, aos olhos de uma elite que tomava seu país como atrasado em relação à Europa” (Kassar, 90 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira 2012, p. 835). Com isso, faz-se fundamental ter-se em vista que no repercutir do desenvolvimento da Educação Especial nestes anos o olhar sobre a pessoa com deficiência também se situava, em boa parte, nesta concepção de marginalidade. A visão de marginalidade foi direcionada tanto aos adultos das camadas pobres quanto a seus filhos. Para não pertencer a esse grupo, a criança deveria estar enquadrada em requisitos de convivência social, que envolviam aspectos como: vestimenta adequada, boa higiene, bons modos e boa aparência. [...] No conjunto de crianças marginais encontravam-se também crianças com deficiências (Kassar, 2012, p. 835). O número de instituições para pessoas com deficiência é ampliado ao longo dos anos, em especial a partir de 1920, inclusive em estados como Minas Gerais, o qual anteriormente recebia os alunos com deficiência em instituições psiquiátricas, juntamente com adultos tidos como “loucos”, assim pode-se dizer que “as medidas mais concretas referentes à criação da Educação Especial ocorreram nas décadas de 20 e 30 do século XX. Nessa época implantaram-se as primeiras classes de Educação Especial num contexto de superação da política de governadores” (Capellini; Mendes, 1995, p. 7). De acordo com as autoras: Com o movimento da escola Nova e o “Entusiasmo pedagógico”, Oliveira (1996) relata que a partir de 1930, as preocupações educacionais, adquirem um enfoque ”técnico-pedagógico”, começando a aparecer as propostas de pesquisas científicas, iniciando uma preocupação com a redução das desigualdades. Esta situação influenciou fortemente a educação dos indivíduos com necessidades educacionais especiais, embora muitas vezes a ênfase no desenvolvimento global do educando, visando diminuir as diferenças por meio de uma educação apropriada, acabou levando a uma rotulação e a propostas de ensino individualizado; que de certa maneira, quando não efetivadas, acabaram contribuindo para a segregação dos “ditos diferentes” (Capellini; Mendes, 1995, p. 7) As autoras também complementam que, no período de 1937 a 1945, o Brasil, na vivência do Estado Novo, apresenta um retrocesso no processo de democratização do ensino, haja vista toda a política centralizadora ali instaurada, ponto que precisa ser evidenciado neste movimento que situamos de continuidades e descontinuidades, avanços e retrocessos e, durante as décadas de 1960 e 1970, “[...] o atendimento educacional dos alunos com necessidades educacionais especiais apresentou pequenas modificações, resultantes da luta por efetivação de seus direitos enquanto pessoas e, principalmente, pelo processo de democratização da educação” (Capellini; Mendes, 1995, p. 8). Outra referência importante é que: 91 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, formulada após a Segunda Guerra Mundial, a preocupação com a não discriminação passa a ser ressaltada, inclusive a discriminação na educação, como atesta a Convenção de 1960 (Convention against Discrimination in Education), adotada pelo Brasil em 1968 (Kassar, 2012, p. 837). Neste percurso histórico e em referência a esses períodos, observa-se que “ao longo de todo o século XX, as estatísticas brasileiras foram registrando paulatinamente a ampliação do atendimento educacional no país” (Kassar, 2012, p. 836). E, também, “[...] pouco a pouco, através das ONGs como a Sociedade Pestalozzi, a AACD (Associação de Assistência à Criança Defeituosa) e a APAE (Associação de Pais e Amigos do Excepcional), a questão da deficiência foi saindo do âmbito da saúde para o âmbito da educação” (Capellini; Mendes, 1995, p. 8). De acordo com Capellini e Mendes (1995) as sementes da política da Educação inclusiva foram lançadas no Brasil, em 1990, com a participação na Conferência Mundial Sobre Educação para Todos na cidade de Jomtiem, na Tailândia. A Declaração Jomtien (1990) objetivou criar o projeto de Educação para Todos, reconhecendo o desafio em promover a educação para crianças, jovens e adultos com necessidades especiais no sistema de ensino regular. Ainda, definiu a política para inspirar a ação dos governos, de organizações internacionais e nacionais de ajuda, de organizações nãogovernamentais e de outros organismos para promoção dos princípios, políticas e práticas voltadas para as necessidades educativas especiais (Sousa, 2020, p. 168). Cabe evidenciar que desde 1988, com a redemocratização do país e a promulgação da Constituição Cidadã, o Brasil passou por uma série de governos, de José Sarney ao terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vivendo períodos conturbados em sua história política, como o golpe sofrido pela Presidenta Dilma Rousseff em seu segundo mandato, e o início do Governo do então vicepresidente Michel Temer, sucedido com a eleição de Jair Messias Bolsonaro. Com perspectivas heterogêneas e escolhas políticas de vínculos diversificados, vimos na recente história da Educação Especial um conjunto de leis e/ou ordenamentos jurídicos bastante extensos e que, em alguma medida, em seu extrato, demonstram significativos avanços na concepção da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Dia a dia, podem ser observados inúmeros novos projetos e iniciativas voltados aos direitos da pessoa com deficiência e, com esses, repercussões. No quadro a seguir, reúnem-se alguns marcos temporais deste último período com vistas a contextualizar o desenvolvimento da Educação Especial no campo legal brasileiro: 92 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Quadro 2 - A Educação Especial no Brasil: alguns marcos jurídicos Ano Leis, Pareceres e outros ordenamentos jurídicos 1988 Constituição Federal e a garantia de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. 1994 Declaração de Salamanca. 1994 Política Nacional de Educação Especial. 1996 Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). 1999 Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999 - relativo à Política Nacional para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência. 2001 Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001 - Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Decreto nº 3.956/2001 - promulga, no Brasil, a Convenção da Guatemala (1999). 2002 Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 - Reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão. 2007 Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007 - implementa o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, o qual sublinha o atendimento às necessidades educacionais especiais dos alunos para fortalecer a inclusão educacional nas escolas públicas. 2008 Decreto Legislativo n° 186, de 2008 - aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. 2008 Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva 2009 Resolução CNE/CEB nº 4, de 2 de outubro de 2009 - institui as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. 2011 Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Viver Sem Limite) 2011 Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011 - dispõe sobre a Educação Especial e o Atendimento Educacional Especializado. 2012 Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012 - institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. 2014 Plano Nacional de Educação (PNE) - define as bases da política educacional brasileira até 2024. 2015 Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 – Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI). 2016 Lei nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016 - dispõe sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de Nível Médio e Superior das instituições federais de ensino. 2023 Decreto nº 11.793/2023, de 23 de novembro de 2023 – institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Novo Viver sem Limite. Fonte: Autores (2024) 93 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) A intenção de retomar este conjunto de marcos jurídicos e pedagógicos neste texto embora não seja de produzir uma análise crítica de cada um deles no que tange ao seu teor e no que concerne ao alcance de suas repercussões, está em apresentar as movimentações recentes da História da Educação Especial, concebendo que os marcos legais reúnem e retratam as diversidades de momentos políticos e sociais e, ao mesmo tempo, representam processos em movimentação. Ainda que se identifiquem pontos de evolução e involução, os avanços legais são nítidos, mesmo que estes não representem, na prática e na totalidade, os resultados esperados em termos de qualificação dos processos educacionais, da equidade e do compromisso com os direitos da pessoa com deficiência. Vê-se à frente um longo caminho a percorrer e, olhando para o percurso já trilhado, percebem-se ainda amarras que mesmo no desencadear do tempo não se desfizeram. Na análise do tempo presente, jamais se pode perder de vista as heranças históricas e as perspectivas impressas e expressas nos caminhos pelos quais se passou e que por eles ainda podem retornar. Atentar-se aos diferentes campos que situam a Educação Especial em seu desenvolvimento também é fundante na observância dos momentos e percursos vivenciados. Retoma-se que: Os aspectos históricos revelam diversos modelos educativos da pessoa com deficiência em nosso país. No paradigma da exclusão, o deficiente era considerado incapaz, inválido e não cabia a ele fazer parte do sistema escolar, fosse ele regular ou especial. [...] No modelo da institucionalização a pessoa com deficiência era vista pela ótica médica e assistencialista, logo, competia a estas pessoas espaços segregados socialmente, como hospitais, asilos, conventos, onde recebiam o básico para sua sobrevivência e atendimento ou tratamento médico, eram então vistos como pacientes e não como educandos. [...] No modelo integracionista também se vivenciava a segregação do deficiente, mesmo com o surgimento da concepção do direito à educação destes, os espaços educativos restringiamse às instituições especializadas ou mesmo classes especiais nas escolas regulares (Sousa, 2020, p. 171). Com base nesses diferentes trilhares, é que se reitera neste e com este texto a necessária luta por uma educação inclusiva, a qual deve seguir ativa, engajada e comprometida, haja vista que, como se viu, “no Brasil [e na história da humanidade], a pessoa com deficiência foi maltratada por séculos, sendo relegada à categoria dos miseráveis e impactada pela exclusão do convívio social e educacional” (Conte; Habowski, 2021, p 1394). 94 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira 4. O texto finaliza, mas a luta continua… Como um escrito em defesa e valorização da Educação Inclusiva, este capítulo buscou transitar por vias históricas e legais com vistas a contextualizar, nas dinâmicas do vivenciado, as violências e os desafios enfrentados especialmente pelas pessoas com deficiência ao longo do tempo. Portanto, para além de um material teórico de síntese e reflexão crítica, fundamenta-se como um convite ao engajamento político e à participação social na luta pela melhoria dos processos educacionais voltados às pessoas com deficiência e/ou necessidades educacionais específicas. Pela transformação da realidade social e sempre em compromisso com a equidade é que se toma a liberdade de finalizar este texto com um convite à continuidade, mantendo-nos, enquanto autores, esperançosos de que as discussões aqui produzidas sejam alimentadas pelas experiências e os processos transformadores diários do ambiente escolar. Que cada novo processo, recurso, metodologia, atitude e prática acessível sejam incorporados à transformação histórica da Educação Especial. Agradecimentos Este texto resulta de relações estabelecidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), aos quais se direcionam os agradecimentos. Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. BRASIL. Política Nacional de Educação Especial. Brasília: 1994. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDBEN). Brasília, 1996. BRASIL. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. 2. ed. Brasília, 1997. BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Brasília: 1999. BRASIL. Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009. Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília: 2009. 95 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) BRASIL. Decreto Nº 3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Guatemala: 2001. BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001 - Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Brasília: 2001. BRASIL. Lei Nº. 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e dá outras providências. Brasília, 2002. BRASIL. Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. Brasília: 2007. BRASIL. Decreto Legislativo n° 186, de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Brasília: 2008. BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: 2008. BRASIL. Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial e o atendimento educacional especializado. Brasília: 2011. BRASIL. Decreto n° 7612, de 17 de novembro de 2011. Institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite. Brasília: 2011. BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Brasília: 2012. BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Brasília: 2014. BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. 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UNESP/Bauru.1995. Disponível em: https:// histedbrantigo.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario7/ TRABALHOS/V/Vera%20lucia%20messias%20fialho%20capellini.pdf. Acesso em 29 mai. 2024. CONTE, Elaine; HABOWSKI, Adilson Cristiano. Educação inclusiva: diferentes configurações, olhares e mundos possíveis. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, v. 21, n. 70, p. 1388-1412, jul. 2021. Disponível em: http://educa.fcc. org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-416X2021000301388&lng=pt &nrm=iso. Acesso em: 29 mai. 2024. JANNUZZI, G. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. Campinas: Autores Associados, 2004. KASSAR, M. C. M.. Educação especial no Brasil: desigualdades e desafios no reconhecimento da diversidade. Educação & Sociedade, v. 33, n. 120, p. 833–849, jul. 2012. Disponível em:https://www.scielo.br/j/es/a/9GqQTbYV 8QjfVWpqjdyFHDP/#ModalHowcite. Acesso em: 29 mai. 2024. SOUSA, Lazaro Mourão de. EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL: o que a história nos conta sobre a educação da pessoa com deficiência. Revista Bibliomar, v. 19, n. 1, p. 159–173, 30 Jun. 2020. Disponível em: https:// periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/bibliomar/article/view/13636. Acesso em: 29 mai. 2024. UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, Jomtien, 1990. Brasília: Unesco, 1990. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-mundial-sobreeducacao-para-todos-conferencia-de-jomtien-1990. Acesso em: 31 mai. 2024. 97 OS INSTITUTOS FEDERAIS E O PROEJA NO PERCURSO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA NO BRASIL: ENTRE MARCAS E REFLEXOS Gabriel Silveira Pereira1 Sita Mara Lopes Sant’ Anna2 1. Palavras iniciais Este texto, o qual integra, em boa parte, a dissertação de mestrado intitulada Concepções sobre o Currículo Integrado: a configuração da EJA no PROEJA3, publicada em 2020, tem por intenção apresentar um panorama histórico e legal no que tange ao percurso da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil, de modo a encontrar na criação dos Institutos Federais, as especificidades desse modelo educacional e estabelecer neste movimento interlocuções com a criação do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), objeto de investigação da pesquisa desenvolvida. Urge destacar que este escrito não tem a pretensão de apenas apresentar uma linha do tempo e/ou relacionar momentos históricos com períodos políticos que marcam a trajetória da educação brasileira, mas também de evidenciar na relação entre as conjunturas históricas e políticas questões que justificam a criação dos Institutos Federais e de programas como o PROEJA e que também, em alguma medida, podem entrar em choque com estas políticas no que concerne a memórias históricas, concepções e diferentes ideologias. 1 Mestre e Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (PPGED/UERGS). Licenciado em Letras e Tecnólogo em Processos Gerenciais pelo Centro Universitário Cenecista de Osório (UNICNEC). Técnico Administrativo em Educação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - IFRS Campus Osório. E-mail: gabriel.pereira@ osorio.ifrs.edu.br. 2 Professora Adjunta da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado e Doutorado Profissional (PPGED/UERGS). Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: sita-santanna@uergs.edu.br. 3 Dissertação disponível em: https://proppg.uergs.edu.br/mestrados/ppged/dissertacoese-produtos. 98 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Parafraseando Miguel Arroyo, refere-se que da mesma forma que o currículo pode ser concebido como um território de disputas, o desenvolvimento de uma política como a dos IFs, engajada com a transformação da realidade social, e do PROEJA, voltada a públicos que, marcadamente, tiveram cerceado o seu direito à educação, tende a gerar, no mínimo, tensionamentos, haja vista que estes modelos educacionais públicos e gratuitos mostram-se entraves para grupos que, por exemplo, veem numa agenda neoliberal o melhor caminho para a educação brasileira. Explicita-se também que o campo teórico pelo qual se conduz este texto é resultado de escolhas que, na constituição dos pesquisadores que o escrevem, dão-se em intencionalidade e com compromisso ético e político, reconhecendo na gênese dos Institutos Federais princípios e concepções de imprescindibilidade, que fundamentam as bases desta instituição em um movimento contra-hegemônico em favor da equidade e por uma sociedade mais justa, humana e solidária. 2. A Educação Profissional e Tecnológica no Brasil Em se tratando do ensino profissional no Brasil, seu desenvolvimento sempre ocorreu relacionado “a uma determinada concepção de formação, notadamente voltado para atender certos interesses que, em geral nunca trataram o processo de aprendizagem como constitutivo da formação humana” (Silva; Souza; Machado, 2012, p. 87). Com isso, vê-se ao longo da história uma série de relações do quem se forma com o “para quê?” e “para quem?”. Voltado a uma formação com o objetivo de simplesmente produzir mão de obra, esse ensino surgiu muito distante da ideia de formação integral dos sujeitos, mais aproximado ao assistencialismo do que à educação propriamente dita, como se pode depreender das ideias de Vieira (2012, p. 170-171), que afirma que “o ensino profissionalizante iniciou-se com característica assistencialista, baseada no auxílio aos desamparados, que viam nesse tipo de ensino uma forma rápida de adquirir uma profissão e um trabalho”. Ainda, conforme Bitencourt (2012, p. 197): Historicamente, o ensino profissional sempre esteve incumbido de capacitar pessoas nas mais diversas áreas, mesmo que para isso não levasse em consideração a formação integral do trabalhador. Na verdade, ele era associado unicamente à formação de mão de obra e ao esforço manual físico, que, desde o princípio, haviam sido reservados às classes menos favorecidas da sociedade, herança escravista da época colonial. Aos poucos essa realidade foi sendo transformada, e mudaram-se os rumos. Com base nos aspectos históricos apresentados, não é difícil perceber o porquê de a Educação Profissional ainda ser considerada, por muitos, como 99 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) uma formação apenas prática, na qual não há necessidade de haver a articulação de diferentes tipos de conhecimentos para a promoção de uma formação ampla, com vistas à formação integral dos sujeitos. Sustentar a idéia de que a educação profissional é para as mãos, para as atividades e que, portanto, não é necessário determinado conhecimento – caso da Matemática, caso das Línguas, caso da História, Filosofia, etc., porque eles serão práticos e necessitarão de um conhecimento que se traduz em atividades e não de um conhecimento que se traduz na aprendizagem de conceitos – é algo errado (Pacheco, 2011, p. 26). A partir das relações e das considerações apresentadas, entende-se que ter um panorama a respeito do histórico da Educação Profissional no Brasil possa proporcionar mais clareza quanto ao caminho que foi percorrido até que se chegasse aonde atualmente se está. Com base no exposto, apresenta-se a seguir uma sequência de quadros e discussões com os quais se poderá acompanhar o itinerário legal que constituiu a Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. Salienta-se, nesse sentido, que os quadros 1, 2 e 3 foram delimitados a partir do Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil (Ministério da Educação, 2018), com vistas a considerar o desenvolvimento histórico da EPT, com início no ano de 1909: Quadro 1 - Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil (1909 - 1950) Ano Quadro histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil 1909 O presidente Nilo Peçanha assina o Decreto nº 7.566 em 23 de setembro, criando as já mencionadas 19 “Escolas de Aprendizes e Artífices”. 1927 O Decreto nº 5.241, de 27 de agosto de 1927, definiu que “o ensino profissional é obrigatório nas escolas primárias subvencionadas ou mantidas pela União”. A Constituição Federal promulgada pelo Governo Getúlio Vargas tratou da educação profissional e industrial em seu Art. 129. Enfatizou o dever de Estado e definiu que as indústrias e os sindicatos econômicos deveriam criar escolas de aprendizes na esfera 1937 da sua especialidade. A Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937 transformou as escolas de aprendizes e artífices mantidas pela União em liceus industriais e instituiu novos liceus, para propagação nacional “do ensino profissional, de todos os ramos e graus” (Art. 37). O Decreto-Lei nº 4.073, de 30 de janeiro de 1942, conhecido como Lei Orgânica do Ensino Industrial, definiu que o ensino industrial será ministrado em dois ciclos: o primeiro ciclo abrange o ensino industrial básico, o ensino de mestria, o ensino artesanal e a aprendizagem; o segundo ciclo compreende o ensino técnico e o ensino pedagógico. O Decreto-Lei nº 4.127/42, que estabeleceu as bases de organização da rede federal 1942 de estabelecimentos de ensino industrial, constituída de escolas técnicas, industriais, artesanais e de aprendizagem, extinguiu os liceus industriais, transformou em escolas industriais e técnicas, as quais passaram a oferecer formação profissional nos dois ciclos do ensino industrial. Foi criado o SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) pelo Decreto-Lei nº 4.048, de 22 de janeiro de 1942 100 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira O Decreto-Lei nº 9.613/46, conhecido como Lei Orgânica do Ensino Agrícola, tratou dos estabelecimentos de ensino agrícola federais. Foi criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – Senac, pelo DecretoLei nº 8.621, de 10 de janeiro de 1946, bem como a aprendizagem dos comerciários 1946 foi regulamentada pelo Decreto-Lei nº 8.621, do mesmo dia 10 de janeiro de 1946. A Constituição de 1946 definiu que “as empresas industriais e comerciais são obrigadas a ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, pela forma que a lei estabelecer, respeitados os direitos dos professores”. Fonte: Adaptado de MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil. Brasília, 2018. A partir do primeiro quadro, que contempla os primeiros quarenta anos da EPT no Brasil, é possível observar o marco da cronologia da Educação Profissional e Tecnológica do país, visto na criação das Escolas de Aprendizes Artífices. Ainda, pode-se constatar que essa se torna responsável por atender o período abrangido entre 1909 e 1942, ano no qual passa a vigorar a lei orgânica do ensino industrial. Considera-se, no entanto, que o referido quadro não apresenta menção a outras Leis Orgânicas, também estabelecidas no período e que, na concepção do pesquisador, deveriam ter sido contempladas, a exemplo da Lei Orgânica do Ensino Comercial (Decreto-Lei 6.141/1943), a qual visava, entre outras finalidades, “formar profissionais aptos ao exercício de atividades específicas no comércio e bem assim de funções auxiliares de caráter administrativo nos negócios públicos e privados”, e a Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-Lei 8.530/1946), que apresentava, entre outras finalidades, a de “prover à formação do pessoal docente necessário às escolas primárias”. Em sequência, apresenta-se o quadro histórico referente aos movimentos legais que marcaram a EPT na segunda metade do século XX: 101 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Quadro 2 - Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil (1951 – 1999) 1959 Foram instituídas as escolas técnicas federais como autarquias, a partir das escolas industriais e técnicas mantidas pelo Governo Federal. Em 20 de dezembro foi promulgada a Lei nº 4.024/61. Essa foi a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), passou a permitir que concluintes 1961 de cursos de educação profissional, organizados nos termos das Leis Orgânicas do Ensino Profissional, pudessem continuar estudos no ensino superior 1967 As fazendas-modelo foram transferidas do Ministério da Agricultura para o MEC e passaram a ser denominadas escolas agrícolas. 1968 A Lei Federal nº 5.540, de 28 de novembro de 1968 permite oferta de cursos superiores destinados à formação de Tecnólogos. A Lei nº 5.692/71 definiu que todo o ensino de segundo grau, hoje denominado 1971 ensino médio, deveria conduzir o educando à conclusão de uma habilitação profissional técnica ou, ao menos, de auxiliar técnico (habilitação parcial). 1975 A Lei Federal nº 6.297, de 11 de dezembro de 1975, definiu incentivos fiscais no imposto de renda de pessoas jurídicas (IRPJ) para treinamento profissional pelas empresas. As Escolas Técnicas Federais do Paraná, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais foram 1978 transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets), pela Lei nº 6.545, de 30 de junho. 1982 A Lei nº 7.044/82 reformulou a Lei nº 5.692/71 e retirou a obrigatoriedade da habilitação profissional no ensino de segundo grau. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) foi criado pela Lei nº 8.315, de 23 1991 de dezembro de 1991, nos termos do art. 62 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em formato institucional similar ao do Senai e do Senac. Foi instituído o Sistema Nacional de Educação Tecnológica, integrado pela Rede Federal e pelas redes ou escolas congêneres dos Estados, dos Municípios e 1994 do Distrito Federal. Na Rede Federal houve transformação gradativa das escolas técnicas federais e das escolas agrícolas federais em Cefets. Em 20 de dezembro de 1996 foi promulgada a segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que dedicou o Capítulo III do seu Título VI à educação 1996 profissional. Posteriormente esse capítulo foi denominado “Da Educação Profissional e Tecnológica” pela Lei nº 11.741/2008, que incluí a seção IV-A no Capítulo II, para tratar especificamente da educação profissional técnica de nível médio; Foram definidas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional de 1999 Nível Técnico, pela Resolução CNE/CEB nº 04/99, com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 16/99. Fonte: Adaptado de MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil. Brasília, 2018. Em relação ao quadro, chama-se a atenção, inicialmente, para a criação da Lei de Diretrizes e Bases (Brasil, 1961), que se sustenta, em boa parte, em bases conservadoras, abrindo margem, inclusive, para a privatização do ensino (Buffa; Nosella, 1997). Ainda, faz-se necessário destacar que, no período, a Lei de Diretrizes e Bases de 1971 (Brasil, 1971) e, na sequência, a LDBEN (Brasil, 1996) passam a vigorar no país. Considerando a sequência histórica, apresenta-se, abaixo, os principais tópicos da constituição da EPT ocorridos no Brasil a partir dos anos 2000: 102 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Quadro 3 - Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil (2000 a 2017) Foram definidas as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação 2002 Profissional de Nível Tecnológico pela Resolução CNE/CP nº 03/2002, com fundamento no Parecer CNE/CP nº 29/2002. A Resolução CNE/CEB nº 1/2004, de 21 de janeiro de 2004, definiu diretrizes 2004 nacionais para estágios supervisionados de estudantes de educação profissional e de ensino médio. A Resolução CNE/CEB nº 1/2005, de 3 de fevereiro de 2005, com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 39/2004, de 8 de dezembro de 2004, atualizou as 2005 Diretrizes Curriculares Nacionais definidas para o Ensino Médio e para a Educação Profissional Técnica de nível médio. A Resolução CNE/CEB nº 3/2008, de 9 de julho de 2008, com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 11/2008, de 16 de junho de 2008, disciplinou a instituição e a implantação do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos de Nível Médio – CNCT nas redes públicas e privadas de Educação Profissional”. 2008 Lei 11.741 introduziu importantes alterações no Capítulo III do Título V da LDB, o qual passou a tratar “da Educação Profissional e Tecnológica”, além de introduzir uma nova Seção no Capítulo II do mesmo título, a seção IV-A, quarta “da Educação Profissional Técnica de Nível Médio”. Foram definidas as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação 2012 Profissional Técnica de Nível Médio, pela Resolução CNE/CEB nº 6/2012 com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 11/2012. Em 25 de junho de 2014 foi sancionada a Lei nº 13.005/2014, que aprovou o novo Plano Nacional de Educação prevê “oferecer, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) das matrículas de educação de jovens e adultos, nos ensinos fundamental e 2014 médio, na forma integrada à educação profissional”. E, prevê “triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% (cinquenta por cento) da expansão no segmento público”. Lei nº 13.415/2007, que introduziu alterações na LDB (Lei nº 9394/1996), incluindo o itinerário formativo “Formação Técnica e Profissional” no ensino médio. A nova redação da LDB refere-se aos critérios a serem adotados pelos sistemas de ensino em relação à oferta da ênfase técnica e profissional, a qual deverá considerar “a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em 2017 ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional”, bem como “a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade”. Fonte: Adaptado de MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil. Brasília, 2018. Em relação ao último quadro apresentado, obtido a partir de publicação do Ministério da Educação, de modo a registrar o Histórico da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil, chama-se a atenção para a inexistência de menção a dois Decretos que marcam a criação do PROEJA, em ênfase no presente estudo, bem como ao Decreto n.º 5.154, de 23 de julho de 2004 (Brasil, 2004), anterior à criação do Programa, mas que já demarcava a articulação de cursos de Educação Profissional com cursos de Educação de Jovens e Adultos. 103 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Dessa forma, em complemento ao quadro apresentado, acrescenta-se o quadro abaixo de modo a registrar o surgimento do Programa: Quadro 4 – Histórico de criação do PROEJA Ano Quadro histórico do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) 2004 A partir do Decreto N.º 5.154, de 23 de julho de 2004, regulamenta-se o § 2° do art. 36 e os arts. 39 a 41 da Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e dá outras providências. 2005 A partir do Decreto Nº 5.478, de 24 de junho de 2005 institui-se, no âmbito das instituições federais de educação tecnológica, o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA. 2006 A partir do Decreto Nº 5.840, de 13 de julho de 2006, revoga-se o Decreto Nº 5.478, de 24 de junho de 2005 e é Instituído, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA, e dá outras providências. Fonte: Pereira (2020) 2.1 O percurso histórico da EPT e os sentidos da profissionalização Ao discorrer a respeito da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil, vê-se como fundamental que se compreenda os sentidos da profissionalização, bem como das relações estabelecidas pelas mediações históricas de trabalho e educação. Assim, destaca-se que, de acordo com Manfredi (2002, p. 39): Historicamente, as profissões surgem, por um lado, das preocupações com a satisfação das necessidades advindas com a transformação dos processos produtivos e, por outro, da crescente complexidade e diversificação das funções de comando, de controle, de defesa e de preservação social, nas diferentes formações sociais. Diante do apresentado pela autora, cabe destacar que o percurso histórico da Educação Profissional esteve sempre atrelado aos referidos processos produtivos, bem como às diferentes concepções de governo. Assim, pode-se dizer que “A Educação Profissional no Brasil apresenta-se como reflexo da história mais ampla que constitui a própria sociedade brasileira” (Roballo; Lottermann, 2016, p. 37). Tendo mencionado o reflexo da história, há ainda de se chamar a atenção para a importância de sua compreensão em relação aos momentos pelos quais o país passou e vem passando. Dessa forma, faz-se necessário compreender o percurso histórico da Educação Profissional, relacionando-o com os momentos históricos e políticos do país, sem perder a compreensão de que “o tecido 104 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira histórico sobre o qual nos movemos, ao contrário da aparente evidência e clareza, é opaco, reificado e fetichizado” (Frigotto, 1998, p. 47). Com vistas a ter acesso a uma breve cronologia da Educação Profissional e Tecnológica no país, considerar-se-á a criação das Escolas de Aprendizes Artífices como marco da EPT. Assim, destaca-se que, entre 1909 e 1942, até que entrasse em vigor a lei orgânica do ensino industrial, as escolas de aprendizes artífices atenderam um total de 141 mil alunos, a partir do oferecimento de ofícios como alfaiataria e sapataria (Manfredi, 2002). De acordo com a autora: A finalidade educacional das escolas de aprendizes era a formação de operários e de contramestres, por meio do ensino prático e de conhecimentos técnicos transmitidos aos menores em oficinas de trabalhos manuais ou mecânicos mais convenientes e necessários ao Estado da Federação em que a escola funcionasse, consultando, quando possível, as especificidades das indústrias locais. (Manfredi, 2002, p. 83 - 84). Em relação a essas escolas, consideradas como o marco da EPT, Roballo e Lottermann (2016) destacam que suas constituições se deram a partir de um caráter assistencialista, característica comum já nos liceus, de modo que o ensino profissional primário era destinado, de forma gratuita, aos mais pobres, para que pudessem a partir do trabalho serem distanciados do ócio. Ressalta-se, ainda, que, de acordo com os autores, “[…] A Educação Profissional ocupou lugar subalterno e as iniciativas de formação para o trabalho manual sempre tiveram como referência a inserção subordinada dos trabalhadores e de seus filhos no sistema de produção das riquezas do país” (Roballo; Lottermann, 2016, p. 37). Conforme Silva e Baracho (2007, p. 10), em âmbito federal, a criação de 19 Escolas de Aprendizes e Artífices, a partir da assinatura de um decreto, em 1909, pelo então Presidente da República, Nilo Peçanha, marca oficialmente a implantação do ensino técnico federal no Brasil. O Decreto n° 7.566, de 23 de setembro de 1909, partia da consideração de “que o augmento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletarias os meios de vencer as dificuldades sempre presentes na lueta pela existencia (Brasil, 1909). Essas considerações, marcadas a partir do Decreto demonstravam a ideia que se tinha ao oportunizar a Educação Profissional, assim como outras tantas concepções que foram surgindo em meio ao percurso histórico. Para Garcia (2012, p. 113): A trajetória da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, desde o Decreto n° 7.566, de 23 de setembro de 1909, até a atualidade, é demarcada por modelos e concepções que são estritamente vinculadas às conduções dos governos e que ensejaram, no ordenamento legal brasileiro, a sustentação de distintas concepções. 105 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) A partir das ideias dos autores, evidencia-se o lugar da Educação Profissional, bem como, em certa medida, as características do público ao qual se destinava atender, bem como os objetivos dessas formações, possibilitando que se pense a respeito da dualidade constituída e perpassada pelas formações proporcionadas no país. Considerando a referida dualidade, cabe destacar que “o Brasil teve ao longo da história, uma educação dual, em uma sociedade igualmente cindida, entre privilegiados e aqueles que dependem muitas vezes da sorte para continuar vivendo” (Roballo; Lottermann, 2016, p. 51). Destaca-se que esta relação ainda precisa ser incessantemente retomada, tendo por base que reflexos deste choque seguem presentes e expressos em concepções e rumos pensados para a educação profissional. Nos anos nos quais as escolas de aprendizes artífices foram responsáveis pela profissionalização de sujeitos mais empobrecidos, surge a Constituição de 1937 (Brasil, 1937), a qual passa a, oficialmente, marcar essa característica de formação, como se pode depreender das ideias de Franco (1998, p. 123): Mantendo a dualidade intrínseca à formação social brasileira, entre trabalho manual e trabalho intelectual, a Constituição de 1937 destina a formação profissional para ‘as classes menos favorecidas’ (art. 129) e serve de base para a organização dualista do sistema nacional de ensino: o ensino primário e profissional para as classes trabalhadoras e o ensino secundário e a formação geral ou intelectual para as elites. Com o passar dos anos, considerando as concepções dos períodos, bem como as mudanças sociais, a Educação Profissional foi sofrendo alterações em seus focos e possibilidades. De acordo com Vieira (2012, p. 171), “A partir de 1930, o ensino técnico profissionalizante tornou-se estratégico para o país no atendimento à qualificação de mão de obra para a indústria emergente”. Em se tratando da Era Vargas, cabe destacar que, em seu início, criouse o Ministério da Educação e Saúde Pública, um marco do período no que se refere à educação. Assim, por conta da ideia política de transformar o país de agrícola em industrial resultou na necessidade de formação de mão de obra para a indústria. Dessa forma, a partir do Decreto 4.073/1942 passou-se a ofertar um ensino industrial voltado a práticas e teorias, pensado de modo que fossem oportunizadas formações para funções que se mostravam necessárias à utilização das tecnologias da época (Roballo; Lottermann, 2016). Ainda, sublinha-se que: […] é após a Revolução de Trinta, com o Governo Vargas (1930 – 1945), que ganha força o ideário liberal que introduz o trabalho como princípio educativo, com suas práticas disciplinares, os valores éticos do trabalho produtivo e os sistemas de ensino voltados para o trabalho na indústria (Franco, 1998, p. 123). 106 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira De acordo com Frigotto (2005, p. 60), “o trabalho como princípio educativo deriva do fato de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempéries e criar seus meios de vida.” Ainda, indo ao encontro e em complemento às ideias do autor, Arroyo (1998, p. 143) salienta que: Quando voltamos nossa reflexão para o trabalho como princípio educativo, terminamos nos aproximando de uma teoria social sobre como se forma o ser humano, como se produz o conhecimento, os valores, as identidades, como se dá o processo de individualização, de constituir-nos sujeitos sociais e culturais, livres e autônomos, e como constituir uma sociedade de indivíduos livres, em relações sociais regidas por princípios éticos, onde o trabalho, a técnica produtiva seja objetivo e ponto de referência para a liberdade pessoal e coletiva. Para Grabowski et al. (2010, p. 145, grifo dos autores): É nas Leis Orgânicas da Educação, da década de quarenta, que o ensino técnico profissional ganha organicidade. A dualidade se expressa pela separação rígida entre o ensino técnico profissional – industrial, comercial e agrícola – e o ensino secundário, este destinado às individualidades condutoras, e o único que conduzia às profissões liberais e/ou universitárias. E é a partir das referidas leis orgânicas, que a mencionada dualidade toma um caráter estrutural, de modo que se demarca a separação entre “[…] os que deveriam ter o ensino secundário e a formação propedêutica para a universidade e os que deveriam ter formação profissional para a produção” (Ciavatta, 2005, p. 87). Destaca-se que “se nos anos 20 e 30 a industrialização no Brasil era incipiente, nos anos 50 e 60, sobretudo pelo esforço desenvolvimentista de J.K., a industrialização brasileira se consolida e se expande” (Buffa; Nosella, 1997, p. 119). Ainda, cabe esclarecer que, de acordo com Ramos (2014, p. 44): A rede de Escolas Técnicas Federais se consolidou em 1959 e ocupou um lugar estratégico na composição da força de trabalho industrial brasileira. Em 1978 algumas dessas escolas são transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET). Ao falar da década de 1960, é preciso que se destaque o papel da Lei de Diretrizes e Bases (Brasil, 1961), que, de acordo com Buffa e Nosella (1997, p. 116), “[…] acabou representando uma vitória das forças conservadoras, pois, ao possibilitar que recursos públicos fossem destinados às escolas particulares, abriu caminho para a privatização do ensino”. Durante os governos militares (1964 – 1985), por conta de projetos nacionais, houve a necessidade de que se desenvolvesse programas voltados à formação de mão de obra. Por conta disso, revitalizou-se o chamado PIPMO 107 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) - Programa Intensivo de Formação de Mão-de-Obra, que também contribuiu com o Sistema S, bem como com o desenvolvimento de empresas privadas e estatais (Manfredi, 2002). De acordo com Franco (1998, p. 123): Com a ditadura iniciada nos anos 60 e a nova fase de expansão do capital no país, há a ideologização ampla dos sistemas de ensino pela influência da ‘teoria do capital humano’ do tecnicismo em educação, pela ênfase na relação escola e mercado de trabalho e na importância da educação para o desenvolvimento econômico. Este período marca o tecnicismo e a formação pensada com vistas no desenvolvimento econômico e nas relações do mercado de trabalho, estando bastante distante da perspectiva de uma educação emancipatória, que desse voz e refletisse na participação social movimentos de transformação sensível e humana. Para Frigotto (1998, p. 38): No Brasil, durante o período da ditadura militar, como mostra Saviani (1988), duas reformas – universitária de 1968 e do 1° e 2° graus em 1971 – estruturam o sistema de ensino dentro dos parâmetros tecnicistas e economicistas, inspirados nesta formulação teórico-ideológica. Conforme Roballo e Lottermann (2016), com a criação do 2° grau profissionalizante, a partir da Lei 5.692 (Brasil, 1971), as desigualdades já existentes acabaram por ser intensificadas, tendo em vista que esse novo 2° grau, que deveria contribuir para o fim da dualidade estrutural, “[…] não conseguiu formar mão de obra para a industrialização e ainda ampliou o fosso que separa o trabalho manual do trabalho intelectual”. (Roballo; Lottermann, 2016, p. 45). Embora a lei que dispunha sobre a transformação de Escolas Técnicas em Centros Federais de Educação Tecnológicas (CEFET´s) tenha sido sancionada em 1978, foi apenas em 1994, no Governo Itamar Franco, que se instituiu o Sistema e o Conselho Federal de Educação Tecnológica (Araújo, 2016). No entanto, de acordo com o autor: A transformação efetiva das Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de Educação Tecnológica só viria a ocorrer no próximo governo, com a lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996). Esta lei, também conhecida como lei Darcy Ribeiro, foi sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional. Evidenciou a preocupação com a formação permanente para atender as necessidades do setor produtivo (Araújo, 2016, p. 31). Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 47) apontam que: 108 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira A transformação dessas Escolas Técnicas Federais em Centros Federais de Educação Tecnológica, pela Lei n. 6.545/78, definiu para essas instituições, além do objetivo de transmitir o ensino técnico, o de atuar no nível superior de graduação, ministrando a Engenharia Industrial, os cursos tecnólogos e as licenciaturas voltadas para a formação de professores do ensino técnico e de cursos tecnólogo, além da extensão e da pós-graduação lato sensu. Considerando o período compreendido entre a Lei 5.692 (Brasil, 1971) e a aprovação da Lei 9.394 (Brasil, 1996), Manfredi (2002) afirma que muitos projetos e perspectivas políticas acabaram por fundar disputas que consideravam desde aspectos voltados à manutenção da dualidade estrutural até as necessidades do mercado de trabalho, havendo uma série de discussões entre atores sociais, como governo, empresários e educadores. A reforma dos ensinos médio e profissional propostas no governo FHC, a partir da regulamentação posta pelo Decreto Federal 2.208 (Brasil, 1997), apresentou a seguinte concepção: […] o ensino médio terá uma única trajetória, articulando conhecimentos e competências para a cidadania e para o trabalho sem ser profissionalizante, ou seja, preparando ‘para a vida’. A Educação Profissional, de caráter complementar, conduzirá ao permanente desenvolvimento das aptidões para a vida produtiva e destinar-se-á a alunos e egressos do ensino fundamental, médio e superior, bem como ao trabalhador em geral, jovem e adulto, independentemente da escolaridade alcançada (Manfredi, 2002, p. 128 – 129). Sobre a política de Educação Profissional do governo FHC, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 38) afirmam que “ela abrangeu ações voltadas para a qualificação e a requalificação profissional, desviando a atenção da sociedade das causas reais do desemprego para a responsabilidade dos próprios trabalhadores.” Os anos de 1990 são marcados por acirradas disputas em torno de projetos diferenciados de educação profissional. Volta ao centro da disputa o que sempre esteve em jogo na história da educação profissional no Brasil: a superação ou aprofundamento da dualidade; com seus desdobramentos (Grabowski et al, 2010, p. 146). Tendo em vista as inúmeras disputas do campo da Educação Profissional, “a partir da revogação do Decreto 2.208/1997, pelo Decreto 5.154/2004, abriuse uma possibilidade de realização de um ensino profissional para além dos interesses do capital”. (Roballo; Lottermann, 2016, p. 51, grifos dos autores). Neste sentido, é importante que se destaque que, de acordo com Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 22), “a gênese das controvérsias que cercam a revogação do Decreto n. 2.208/97 e a publicação do Decreto n. 5.154/2004 está nas lutas sociais dos anos 1980, pela redemocratização do país e pela remoção do entulho autoritário”. 109 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Para os autores, “o debate travado na década de 1980, sobre a possibilidade de uma formação básica que superasse a dualidade entre cultura geral e cultura técnica, introduziu na história da educação brasileira o conceito de politecnia” (Frigotto; Ciavatta; Ramos, 2005, p. 41). De acordo com Roballo e Lottermann (2016, p. 48): Ao contrário do Decreto 2.208/1997, que impedia o Ensino Médio de oferecer a formação técnica, o Decreto 5.154/2004 procurou contemplar, em parte, todos os envolvidos nas discussões, possibilitando a ampliação da oferta do ensino profissional, seja ele integrado, concomitante ou subsequente, o que demonstra uma tentativa de conciliação num cenário controverso no qual foi instituído. No que se refere à Educação Profissional, Ramos (2014, p. 78) afirma que: Uma relevante medida foi a incorporação dos termos do Decreto n. 5.154/2004 na LDB, por meio da Lei n. 11.741, de 16 julho de 2008. A finalidade dessa emenda na LDB é explicitada no caput da lei, quando se diz que esta altera dispositivos da Lei no 9.394/96 para redimensionar, institucionalizar e integrar as ações da educação profissional técnica de nível médio, da educação de jovens e adultos e da educação profissional e tecnológica. Em sequência a este movimento, em 2008, a partir da Lei n° 11.892, de 29 de dezembro (Brasil, 2008), são criados trinta e oito Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF´s), sendo que, no Rio Grande do Sul, foram formados o IFRS, o IFSul e o IFFar, em estrutura multicampi. 3. Os Institutos Federais e o PROEJA Com a criação dos Institutos Federais, inaugurou-se um novo momento da Educação Profissional e Tecnológica, em um processo de transformação que visava romper com a dualidade impressa na história educacional brasileira. Com uma imensa responsabilidade e resultado da relação entre um modelo novo, mas ainda desenvolvido, em boa parte, em estruturas originárias da antiga educação profissional, iniciou-se uma nova fase. Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia atuam em diversos níveis de ensino: desde a formação inicial e continuada até o ensino técnico, o ensino superior e a pós-graduação. Conforme orientação do Ministério da Educação, essas instituições devem estar em sintonia com as necessidades da população atendida e precisam, ao ofertar seus cursos, considerar os arranjos produtivos locais (APLs) para que possam, efetivamente, suprir as demandas regionais. Isso implica uma atuação permanentemente articulada e contextualizada com a sua região de abrangência (Vieira, 2012, p. 168). Pode-se dizer que a criação dos Institutos Federais surgiu com o objetivo de reconstruir a Educação Profissional como política de governo, de modo 110 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira que a integração entre Educação Básica e Educação Profissional pudesse ser consolidada com ênfase na formação integral. Dessa forma, já no início do governo Lula, anunciou-se “a necessidade de reconstrução da Educação Profissional como política de governo, no sentido de corrigir distorções conceituais e práticas adotadas, principalmente pelo governo anterior (Assunção; Rodrigues, 2007, p. 41)”, tendo em vista a persistência da desarticulação entre Educação Profissional e Educação Básica, resquício da antiga gestão. De modo a entender, dentro desse processo de desenvolvimento da Educação Profissional, de que forma se dá o surgimento do PROEJA, é importante que se considere que sua constituição também é resultado de mudanças de concepções, bem como de convergências e divergências de ideias. De acordo com Pereira (2012, p. 139): […] em 24 de junho de 2005, foi assinado o Decreto n°5.478, que instituiu o Proeja no âmbito dos Centros Federais de Educação Tecnológicas (Cefets), das escolas técnicas federais, das escolas agrotécnicas federais e das escolas técnicas vinculadas às universidades federais (Brasil, 2005). Após polêmicos e acalorados debates envolvendo o Ministério da Educação, representantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e outros segmentos sociais, o governo resolveu editar o Decreto n° 5.840/2006, que, entre outras alterações, ampliava o programa para outros sistemas de ensino (Brasil, 2006). Com isso, ficava clara a determinação de implantar uma nova política para o campo da EJA. Para o autor: Ao atribuir à Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica a condição de locus privilegiado para a implementação do Proeja, o Estado reconhece tanto o acúmulo qualitativo dessas instituições em relação à formação profissional quanto a ausência, em seu interior, dos sujeitos com perfil próprio da educação de jovens e adultos (Pereira, 2012, p. 161). Considerar a criação do PROEJA em relação ao desenvolvimento da Educação Profissional no Brasil é ter a possibilidade de perceber o quanto o seu processo de constituição recebe/recebeu influências de concepções políticas e sociais, sofrendo ainda mutações de acordo com o contexto no qual se insere. A criação desse programa, todavia, não se situa exclusivamente como um desdobramento da história da educação profissional no país. Isso porque não se trata apenas de tentar reparar a lacuna causada pelo distanciamento entre formação geral e formação profissional, vivida principalmente pela rede federal de educação profissional e tecnológica na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Trata-se, além disso, do resultado de uma confluência de esforços que se fizeram presentes no âmbito do governo federal, desde o início do governo Lula, para dar resposta às demandas e pressões da sociedade civil na garantia da educação como um direito de todos. (Castro; Machado; Alves, 2010, p. 27). 111 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) O surgimento do PROEJA vem para tentar resolver, até mesmo, distorções no que se refere à dualidade trabalho manual e trabalho intelectual, buscando a formação integral, de modo que seja possível alcançar os objetivos do Programa, por meio da promoção de uma formação integrada, que vise a emancipação dos sujeitos. A partir da constituição da formação integrada, por meio da articulação trabalho e educação, essa proposta “busca romper com uma histórica legitimação da divisão social pela educação com a oferta de uma formação geral para as classes dirigentes e uma formação para a produção para os trabalhadores” (Adriano; Guimarães; Rodrigues, 2010, p. 60). Por isso, vê-se a proposta do PROEJA como fundamental no combate à exclusão social, tendo em vista todos os fatores históricos e sociais que perpassam sua constituição. Ao reconstruir uma síntese de como se deu a trajetória de criação dos Institutos Federais e do PROEJA, olhando para o desenvolvimento da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, reitera-se a necessidade de olhar para esse campo de pesquisa como resultado de uma série de mutações, ao longo dos anos. Nesse sentido, reforça-se que, tendo em vista as diferentes perspectivas e políticas de governo que orientaram o país, avanços e retrocessos puderam ser observados. 4. Considerações finais Ao finalizar este texto, não se pode deixar de evidenciar que a presente pesquisa foi realizada entre os anos de 2018 e 2020, período no qual a palavra retrocesso apareceu com muita ênfase e materialidade no contexto da Educação Profissional e Tecnológica, como também de outros âmbitos da educação brasileira, haja vista a vivência do Governo Bolsonaro e de enorme descaso com a EPT, os IFs e suas estruturas e, no qual se viveu, para além das fragilização das relações institucionais e de depreciações das imagens dos IFs e das Universidades Públicas pelo próprio presidente da época e de seus Ministros (inclusive da Educação), inúmeras tentativas de sucateamento intituladas de “contingenciamentos” e que mascaravam cortes absurdos nesses espaços de educação. Diante do vivido e do que há pela frente, reforça-se com este texto a importância de que as lutas pela educação sejam pautadas pela equidade e pelo compromisso com a emancipação humana, sem perder de vista que a transformação da realidade social é resultado de um processo político, pedagógico e engajado, o qual nos Institutos Federais, no PROEJA e na Educação Pública, precisa ser sempre reafirmado como espaço de repercussão. 112 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Agradecimentos Este texto resulta do trabalho acadêmico desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Programa e Instituições para os quais se registra o agradecimento. Referências ADRIANO, Ione Gomes; GUIMARÃES, Gilma; RODRIGUES, Marina Campos Nori. A implantação do Proeja no IF Goiano campus Rio Verde. 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Basicamente, todas as experiências mais importantes acumuladas pela humanidade no campo educacional foram criticamente enriquecidas e revisadas, ao passo que novos princípios e ideias da Pedagogia Socialista foram desenvolvidas e fortalecidas no movimento em que era imprescindível colocar um sistema de ensino em consonância com a construção de uma sociedade determinada. Pensar a Pedagogia Socialista Soviética é uma tarefa que se formula à luz da compreensão de condições sociais específicas. Por isso, seria uma completa distorção de natureza teórica assumi-la enquanto um manual capaz de ser aplicado em diferentes tempos e espaços. Na verdade, o sentido da Pedagogia Soviética, cujo período de maior capacidade criativa vai de 1917 até 1931, está na formação de um novo homem e de uma nova mulher nos quadros 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais no Programa de Pós-graduação Conhecimento e Inclusão Social em Educação. Professora Adjunta no Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: marizete.silva@ufv.br. 2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor Adjunto no Departamento de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: adelar.pizetta@ufes.br. 117 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) da consolidação de um processo revolucionário. Inclusive, esta era uma das grandes preocupações de Lênin: não apenas manter o povo comprometido com a tarefa de contribuir com as transformações necessárias, mas serem capazes de compreender o significado daquele conjunto de experiências humanamente históricas. Todavia, interpretar a Pedagogia Socialista Soviética a partir deste prisma não antagoniza com a ideia de refletir sobre as possibilidades de inspiração e influências que ela pode realizar em movimentos de transformar a escola e conceber a educação no interior da luta daqueles que se colocam no desafio de questionar as bases constitucionais da sociedade que se afirma sob a propriedade privada e a contradição entre trabalho e capital. Será, portanto, este o nosso ponto de partida para debatermos as possibilidades de diálogos que se colocam entre a construção da Educação do Campo, enquanto movimento político pedagógico que emerge do campesinato brasileiro, e os fundamentos e as experiências da Pedagogia Socialista Soviética. Para tanto, utilizaremos como referência o período de 1917 a 1931, ou seja, da emergência do movimento revolucionário até a primeira reforma educacional, fato que ocorre na mesma ocasião que o fim da atuação de Mosey Mikhailovich Pistrak (1888-1937) no Comissariado Nacional de Educação da União Soviética.3 De natureza qualitativa, o presente estudo será fundamentado no pensamento de Krupskayia (2017), Pistrak (2000, 2013), Makarenko (1965), King (1938), Caldart (2000, 2002, 2009, 2017) e outros. Abordaremos, inicialmente, os conceitos de Pedagogia Socialista Soviética e Educação do Campo como forma de orientar as formulações que seguirão desde um quadro teórico determinado. Posteriormente, nossas reflexões se voltarão para a identificação de pontos de convergência entre a Educação do Campo e os princípios da Pedagogia Socialista Soviética, enfatizando a coletividade e auto-organização no contexto escolar. 2. Pedagogia Socialista Soviética e Educação do Campo: análises conceituais Dividiremos este tópico em duas partes bem definidas. A passagem de uma para a outra será realizada de modo bastante perceptível. Trataremos, em primeiro lugar, da Pedagogia Socialista Soviética e posteriormente da Educação do Campo. Nosso intuito não é apresentar nenhum marco teórico conceitual de ambas as categorias, nem fazermos um lançamento de conceitos formulados por quem dedicou ou têm se dedicado a compreendê-las com profundidade. 3 Criado em 26 de outubro de 1917, o Comissariado Nacional de Educação, cuja abreviatura é NarKomPros, tinha como objetivo reconstruir o sistema educacional russo. Este Departamento substitui o antigo “Ministério da Educação” da época tzarista e passa a cuidar de toda a vida cultural, e não apenas da educação. 118 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Restringiremos a destacar algumas características essenciais que podem conduzir a uma ideia geral de experiências educacionais construídas em lugares e momentos históricos demasiadamente distantes. No ano de 1917, ao assumirem o poder, os bolcheviques declararam que o novo sistema educacional “não encontrava paralelo na história”. As reformas promovidas no campo do ensino tinham como proposição estabelecer uma política nacional baseada na teoria marxista, voltada para a formação de um tipo de sujeito social para um Estado em transição. Ou, conforme expressou Pistrak (2000, p.31): “a formação de um homem que se considere como membro da coletividade internacional constituída pela classe operária em luta contra o regime agonizante e por uma vida nova, por um novo regime social em que as classes sociais não existam mais.” Do ponto de vista retrospectivo, o sistema educacional soviético se revela como um conjunto complexo, suscitando, ocasionalmente, questionamentos sobre a coesão dos objetivos educacionais, tal como proclamado pelos socialistas revolucionários. Entretanto, uma análise mais detalhada evidencia a presença de um caráter medular e uniforme nos pressupostos educacionais. Embora a prática em distintos períodos históricos tenha necessitado de ajustes e divergido das perspectivas teóricas, os fundamentos educacionais mantiveramse consistentes. Tais ajustes não se resumiram a meros impulsos de educadores e teóricos inexperientes. Com efeito, as condições materiais objetivas, em toda sua complexidade, nem sempre permitiram a realização oportuna das tarefas urgentes e necessárias para a consolidação da educação em larga escala. Não é possível identificar uma concepção de Pedagogia Socialista Soviética entre os seus primeiros e principais idealizadores, e é perfeitamente natural que não exista. Colocando como elemento fundante de pensamento para esta discussão a tentativa histórica de construir um sistema educacional em uma sociedade em transição e formação, a Pedagogia Soviética insere-se dentro deste denso movimento transformador, de modo que a realidade determinava o sentido da organização e do conteúdo escolar. Portanto, a prática e a teoria educacional precisavam expressar o caráter revolucionário do Estado proletário. Para trabalhar de forma útil e com sucesso na nova escola soviética, é fundamental compreender o seguinte: primeiramente, sem teoria pedagógica revolucionária não poderá haver prática pedagógica revolucionária. Sem uma teoria de pedagogia social, nossa prática levará a uma acrobacia sem finalidade social e utilizada para resolver os problemas pedagógicos na base das inspirações do momento, caso a caso, e não na base de concepções sociais bem determinadas. (PISTRAK, 2000, p.24). Na fase revolucionária da ditadura do proletariado cercada pelas forças imperialistas, o desenvolvimento da educação das massas, condição 119 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) imprescindível para a consolidação das conquistas e das realizações da revolução social, significava a formação de uma consciência mais nítida e mais exata das finalidades sociais da classe vitoriosa. Por esta razão, assumia-se e qualificava-se a escola enquanto uma arma ideológica da revolução. Portanto, serão as proposições, o jeito de conceber e organizar as instituições de ensino que tornarão possível compreender o que foi a Pedagogia Socialista Soviética. Durante discurso na conferência do Komsomol,4 Lenin declara que não se constrói socialismo limitando-se a conclusões comunistas e a aprendizagem de slogans comunistas, o fundamental é o enriquecimento da mente com o conhecimento de tudo o que fora criado pela humanidade. “Quando alguém diz que é comunista e que, portanto, não precisa de uma sólida base de conhecimento, ele não é, e nunca será, algo próximo a um comunista.” Anatóli Lunacharsky, o primeiro comissário da educação, expressou não tão diferentemente sua ideia sobre educação: “A mais bela conquista do comunismo será um renascimento da arte e das ciências – este é o propósito mais sublime da evolução humana. Marx nos disse que o único objetivo digno da humanidade é o maior alargamento possível de todas as faculdades humanas.”5 Estas perspectivas radicalmente defendidas, sustentam que era necessário educar toda a classe trabalhadora para que tivesse condições de assumir a tarefa histórica e política de serem combatentes em prol da emancipação da humanidade de todas as formas de opressão; era indispensável manter uma constante educação das novas camadas da classe trabalhadora. Todos os elementos, os mais simples e inconscientes desta classe, precisavam ser alcançados por um sistema educacional dinâmico e, por conseguinte, se tornarem aptos a abordar e apresentar soluções para os distintos problemas por eles enfrentados. Deste modo, como ressalta Lênin (1962, p.71), “evitaria a redução da ciência a um mero dogma que só ensina através dos livros, mas também participando igualmente na luta cotidiana pela vida dessas camadas mais humildes e menos conscientes do proletariado”. Diferentemente da tradição secular de educação, as experiências e necessidades resultantes da revolução socialista de outubro na Rússia 4 Sigla para “União Comunista da Juventude Leninista”, uma organização juvenil que existia na União Soviética e em outros países socialistas. Foi fundada em 1918 e era afiliada ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS). O Komsomol tinha como objetivo principal preparar os jovens para se tornarem membros ativos e engajados da sociedade socialista, promovendo ideais comunistas, participação política, educação, trabalho voluntário e atividades culturais. Ao longo dos anos, o Komsomol desempenhou um papel importante na mobilização da juventude para apoiar os objetivos do partido e do Estado soviético. 5 Ver KING, Beatrice. Soviet Education: Its Phases and Purpose.The Slavonic and East European Review, Vol. 17, No. 49 (jul., 1938), pp. 135-150 (16 pages) <https://www.jstor. org/stable/4203464> 120 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira impuseram a compreensão da educação como um grande sistema de meios voltados principalmente para a formação dos novos homens e mulheres, produtos das novas condições sociais, capazes de agir nessas circunstâncias e de assumir compromissos, cada vez maiores e diferentes daqueles existentes, que delas emergiam. Com esse objetivo a educação implicava, evidentemente, na preocupação com o destino de cada indivíduo, mas esse destino estava ligado ao futuro da revolução socialista, que criava as condições de vida. As instituições pedagógicas e educacionais eram, portanto, não apenas objeto do interesse dos pais em relação ao futuro de seus filhos, mas também objeto do interesse de toda a sociedade em relação à realização da obra da revolução socialista (SUCHODOLSKI, 1976). O valor social da escola soviética era a formação de pessoas multilateralmente desenvolvidas, com predisposições sociais conscientes e organizadas, que pudessem pensar o mundo a partir de sua totalidade. Este perfil de sujeito participante ativo da realização da história somente seria forjado na sua relação teórica e prática com a realidade. Em outras palavras, a nova sociedade exigia homens e mulheres com uma visão de mundo reflexiva, mas igualmente requeria dos mesmos o desenvolvimento da capacidade construtiva. Essas pessoas, destaca Krupskaya (2017, p.70), “são necessárias à sociedade socialista, sem elas o socialismo não pode se realizar plenamente”. A formulação de uma concepção da Pedagogia Socialista Soviética é resultado do entendimento dos compromissos formativos fundamentais da escola que estavam colocadas no âmbito do Estado proletário. O grande desafio que emergia era o de articular o domínio das bases da ciência e a vinculação das escolas com a vida através da participação criativa e concreta dos estudantes direcionada para a conexão destas bases com o trabalho, sem jamais desvirtuar das demandas urgentes e os interesses da classe trabalhadora. O trabalho que não acompanha a educação escolar, que não acompanha a educação social e política, permanece como um processo neutro de nenhum valor educativo. Você pode fazer uma pessoa trabalhar o quanto quiser, mas a menos que ela receba uma educação política e moral ao mesmo tempo, a menos que participe da vida pública e política, esse trabalho será nada mais do que um processo neutro que não produz resultados positivos. (MAKARENKO, 1965, p.34). O trabalho colocado em perspectiva pela Pedagogia Socialista Soviética não era o trabalho em sua acepção negativa, não era qualquer tipo de esforço físico, mas o trabalho socialmente útil e necessário de modo a determinar as relações sociais. Colocando-o como elemento integrante da relação estabelecida entre escola e a realidade, ou seja, a vida e suas complexidades, ocorre nesta dimensão integralizadora a unificação entre o ensino e a educação. 121 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Há um aspecto especialmente importante na criação da nova escola socialista – o de que somente ela pode ser um instrumento da educação da personalidade humana. Para Krupskaya (2017) as escolas organizadas pelo Estado capitalista se reduzem a instituições de ensino, que priorizam a disciplina coercitiva, que suprime a independência das crianças, restringe o desenvolvimento da personalidade humana, distorcendo-a. Portanto, somente a escola do trabalho, estreitamente vinculada a vida circundante, que dispensa atenção aos interesses das crianças, que oportuniza a elas múltiplos cenários de aplicação das suas forças, é uma escola que tem capacidade de ensinar a vida coletiva, que coloca diante das crianças objetivos elevados e que cria, pela primeira vez, condições para o desenvolvimento da personalidade humana. Neste sentido, como forma de apresentar alguma ideia condensada para fins de demarcação teórico-conceitual de Pedagogia Socialista Soviética, ainda que já tenhamos destacado os limites desta proposição, podemos afirmar que este complexo faz referência a um conjunto de experiências educacionais no âmbito da pedagogia social cujo sentido e objetivos correspondiam às necessidades da sociedade socialista em processo de consolidação revolucionária. Passamos agora para a segunda parte deste tópico: algumas considerações conceituais do que chamamos de Educação do Campo. A apresentação da Educação do Campo, como referência demarcada e idealizada pelo coletivo agrário brasileiro, mediado por organizações políticas da classe camponesa, ocorreu no final dos anos 1990, em meio a um período marcado por avanços profundos e generalizados das iniciativas neoliberais em várias esferas constitucionais do país. Assim, pensar a Educação do Campo implica considerá-la como parte intrínseca das lutas sociais da classe trabalhadora, emergindo de lugares territoriais e políticos específicos, como tentativas históricas de lidar, tanto na prática quanto na teoria, com as produções e reproduções da precarização da vida, cuja contradição entre trabalho e capital é a substância geradora. No pensamento social brasileiro permanecem algumas compreensões de campesinato e camponeses bastante equivocadas ou, por vezes, reacionárias, como àquelas que os identificam como massa homogênea de empobrecidos incapazes de demandar e promover transformações no sentido de alcançar patamares superiores de melhores condições de existência sem que, para isso, sejam empreendidas práticas tutelares e assistencialistas do Estado. Ainda existe outra compreensão, que apresenta a ideia dos camponeses como coletivo potencialmente manipulável e, por consequência, ameaçador da ordem existente, de modo particular, dos conjuntos de determinações políticas e econômicas que sacralizam o direito constitucional à propriedade privada. Distorções teóricas 122 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira como estas, na verdade, têm cumprido papéis bastante funcionais e convenientes para a garantia da não perturbação do modo hegemônico de organização social e da forma predominante de distribuição do patrimônio material socialmente produzido. Fato, é que o campesinato brasileiro se manifesta de uma forma completamente divergente das ideias estabilizadoras da ordem existente. A realidade agrária brasileira é constituída por uma heterogeneidade de trabalhadores que se apresentam em muitos lugares, em distintas circunstâncias, com níveis diferentes de radicalidade e por tempos variados de capacidade organizativa como movimento vivo e criativo. E foi justamente esta força dinâmica que inseriu no contexto político e educacional, em situação inédita na história da educação do país, não apenas um termo referencial para demarcar experiências pedagógicas específicas, mas apresentou e inseriu as próprias experiências em si. A Educação do Campo surge como anúncio de que em diferentes contextos agrários do Brasil manifestavam práticas de ensino, formas de organizar a escola e de conceber a educação fundamentadas por trabalhos humanizantes e humanizadores. Mas a marca registrada dos povos campesinos nestas construções era suficiente para colocá-las no plano da invisibilidade. Assumir estes processos como legítimos significava, ao mesmo tempo, reconhecer o campo como paisagem, mas também como território formativo e histórico. Este foi um dos grandes dilemas do Estado brasileiro até o aparecimento de uma forma mais propositiva e organizada da reflexão pedagógica que surge das diversas experiências educacionais criadas e desenvolvidas pelos trabalhadores camponeses. Para Caldart (2002) o pensamento consequente e profundo do sentido destas práticas assume o campo como lugar que não se reduz a reprodução, mas também é construtor de pedagogias. Por isso que este projeto educativo dialoga com a pedagogia do oprimido na sua insistência de que os oprimidos são sujeitos de sua própria educação, de sua própria libertação e na ênfase que concede a cultura como eixo fundante da formação do ser humano. Esta visão do campo como um espaço que tem suas particularidades e que é ao mesmo tempo um campo de possibilidades de relação dos seres humanos com a produção das condições de existência social confere à Educação do Campo o papel de fomentar reflexões que acumulem força e espaço no sentido de contribuir na desconstrução do imaginário coletivo sobre a visão hierárquica que há entre campo e cidade; sobre a visão tradicional do jeca tatu, do campo como lugar do atraso. A Educação do Campo, indissocia-se da reflexão sobre um novo modelo de desenvolvimento e o papel para o campo nele. (FERNANDES e MOLINA, 2005, p. 68). Desta forma, a Educação do Campo significa pensar o ensino a partir da materialidade de luta dos povos campesinos e de suas referências formativas 123 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) como cultura e trabalho. A escola e as práticas pedagógicas precisam responder às exigências da vida que estão atravessadas pela complexidade do jeito de ser camponês. Isto não significa renunciar ao diálogo com outros espaços e processos exteriores ao universo agrário, pelo contrário, a Educação do Campo é também uma abertura para o mundo e suas contradições. Na verdade, o que está colocado é que os mais importantes elementos e fenômenos orientadores de concepções e fazeres pedagógicos são aqueles que se referem ao destino histórico do campesinato. Trata-se de educar as pessoas a partir de especificidades e intencionalidades. As categorias sociais que matizam a realidade agrária, como a juventude, as mulheres, os negros e as crianças, são sujeitos que possuem demandas, interesses e perspectivas de mundo tomadas como matéria de reflexão para o direcionamento de prática. Isto explicita a dimensão política da Educação do Campo, ou seja, suas intencionalidades. Ainda que a efetivação de propostas educativas situadas no âmbito das lutas sociais seja marcadamente contraditória, feitas de avanços e retrocessos, o sentido é pensar a humanização e suas formas de ocorrência. A proposição de construir uma pedagogia da terra é formar trabalhadores capazes de disputar projetos de campo e de sociedade. Para compreender o significado da Educação do Campo é indispensável reconhecer e entender as lutas históricas dos camponeses que surgiram como resposta às diversas formas de dominação ao longo do tempo e espaço. Ao contrário de outras classes sociais que buscam evitar a proletarização, os camponeses formam uma categoria histórica que, inserida nos movimentos das forças sociais contemporâneas, lutam pela sua própria sobrevivência. A Educação do Campo, portanto, representa um movimento educacional de trabalhadores, cuja identidade é paradoxal, refletindo tanto as condições que reafirma quanto as que nega. Originado das experiências de classe dos camponeses organizados em movimentos sociais, esse movimento pedagógico é também uma força histórica e política, centrada no direito das comunidades campesinas a um projeto educacional que capacita cada indivíduo a buscar a emancipação por meio do pensamento crítico. Segundo Caldart (2009), a Educação do Campo, que emergiu em um contexto histórico e momento específico, não pode ser compreendida isoladamente, nem apenas dentro do âmbito educacional ou dos parâmetros teóricos da pedagogia. Ela representa um movimento real de resistência ao status quo, que interpreta a realidade visando orientar as lutas concretas. Portanto, é essencial analisar a Educação do Campo a partir dessa premissa, em vez de vêla como um projeto pedagógico ideal a ser simplesmente implementado. Dessa forma, é elementar reconhecer que há uma perspectiva de totalidade envolvida na 124 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira origem da Educação do Campo. “Talvez isso incomode a alguns: a Educação do campo não é uma proposta de educação. Mas enquanto crítica da educação em uma realidade historicamente estabelecida, ela afirma e luta por uma concepção de educação (e de campo).” CALDART (2009, p.40). A Educação do Campo, para Arroyo (2011, p. 9): “não fica apenas na denúncia do silenciamento, ela busca o que há de mais perverso nesse esquecimento: o direito à educação que vem sendo negado à população trabalhadora do campo”. Assim, refletir sobre este movimento políticopedagógico implica escutar e compreender a cultura, as interações sociais e educativas dos diversos grupos que compõem o universo agrário. Esse movimento está integrado à luta pela proteção das comunidades camponesas, como parte de um projeto de resistência contra a hegemonia estabelecida. Compreendemos que a construção da Educação do Campo ultrapassa os limites das estruturas pedagógicas e metodológicas tradicionais de um modelo ou projeto educacional, representando também um espaço estratégico para disputas políticas e ideológicas. Esta abordagem abarca questões relacionadas aos conflitos sociais existentes no meio rural, assim como a possibilidade de promover o desenvolvimento humano para uma classe social específica em sua totalidade. Reconhecer o papel fundamental da educação no processo histórico e formativo do ser humano é essencial para compreender sua função na sociedade dividida em classes de proprietários e produtores. 3. O legado da Pedagogia Socialista Soviética para pensar a escola no contexto da Educação do Campo Assumir que as reflexões sobre educação, pedagogia e as intencionalidades da nova escola no pensamento dos expoentes da Pedagogia Socialista Soviética não foram elaboradas com o intuito de conceder um direcionamento prático às atividades docentes fora do contexto de consolidação da revolução russa, não se opõe à possibilidade de investigar como este conjunto de ideias pode influenciar a construção da Educação do Campo na atualidade. A viabilidade de diálogo entre estes dois movimentos políticos-pedagógicos se justifica pela permanência de inúmeros fenômenos que os soviéticos buscaram oferecer, a partir da pedagogia social, respostas que contribuíssem para a superação dentro dos marcos de uma sociedade transitória. Ao tratar da atualidade da obra Fundamentos da escola do Trabalho publicada por Mosey Pistrak em 1924, Caldart (2000) destaca que o elemento indicador de que as reflexões do intelectual russo nos permitem dialogar com as incumbências colocadas para os educadores do nosso tempo são as questões que moveram tanto a sua prática quanto o seu pensamento. Estas questões, mais do que as respostas 125 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) formuladas e concedidas, continuam como desafios extremamente atuais. A principal delas se refere a como vincular a vida escolar com um processo de transformação social, convertendo-a em um lugar de educação do povo para que se reconheça e se assuma como sujeito da construção da nova sociedade. Desde seu momento embrionário uma das grandes preocupações da Educação do Campo foi o de transformar a escola no sentido de ser espaço de produção de conhecimento, de cultura, organização e formação política. Limitar o espaço escolar à formação básica dos filhos e filhas da classe trabalhadora é colocá-la na contramão da Pedagogia Social, isto porque a escola também é um espaço de disputa na luta de classes. Ela foi criada, se especializou, democratizou-se e tornou-se obrigatória dentro do poder hegemônico de um grupo social determinado. Não faria sentido sua existência sem carregar a missão histórica de refletir o seu tempo. Se pode estar a serviço de um regime social específico pode também mover-se para outro lado e alterar sua finalidade. Caldart (2000), ao refletir sobre a relação entre a escola e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, destaca que: Se o que a escola dever fazer, afinal, é ajudar a produzir seres humanos, é preciso de um lado, que ela não se negue a cumprir esta tarefa, o que ainda acontece em muitas escolas atualmente, à medida que ignoram ou não enxergam os sujeitos que estão dentro dela; e, de outro, que aceite entrar no processo e fazer a leitura das demandas e das questões que ela vai colocando em seu movimento, às vezes mais lento, às vezes mais acelerado. Sintonia com seu tempo e com os sujeitos que nela atuam, compromisso político com a humanização em seu sentido mais pleno: é isto afinal que o Movimento quer ver em escolas que se assumem vinculadas a seu projeto ou a seus princípios. (CALDART, 2000, p.46). O compromisso político com a humanização no contexto escolar se apresenta por um lado na busca, dentro do acúmulo científico, das respostas que a humanidade produziu para os mais diferentes desafios que teve que superar. Este exercício constante de ir ao encontro do conhecimento suscita novas questões que exigem novas posturas reflexivas do sujeito. Todavia, este outro momento somente será convertido em compromisso político e de classe se a escola assumir a responsabilidade com a compreensão da realidade viva. As questões que precisam ser substâncias de análise devem ser aquelas que se manifestam no mundo experienciado do indivíduo como dilemas que demarcam nitidamente sua posição neste lugar. É imprescindível entender como surgem e se desenvolvem os fenômenos da materialidade da vida. A distinção entre o que é natural e o que é histórico constitui em uma das chaves mais importantes para orientar o conteúdo e a forma da escola. Na sociedade de classes, uma das estratégias mais exitosas do grupo hegemônico 126 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira é promover a confusão entre o que está dado, ou seja, o que se manifesta fora da existência humana e o que é produto dos intercâmbios, interações, conexões entre indivíduos, grupos e instituições dentro de uma sociedade. Não é interessante para a causa da classe dominante revelar que o ser humano é hábil construtor, mas também, é potencialmente um destruidor. É capaz de findar, inclusive, aquilo que se desenvolveu sem sua criativa atuação. Portanto, tudo que foi humanamente construído pode ser pela mesma condição superado. Paulo Freire (2023) ao apresentar a profunda distinção que existe entre o mundo humano e a vida a-histórica, destaca que os seres humanos ao contrário dos animais, por terem consciência de sua atividade e da realidade a qual estão inseridos, por agirem conforme seus desígnios, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora por meio da transformação que realizam nele, não apenas vivem no mundo, mas também existem nele, e sua existência é histórica. A consciência de si e do mundo é o oposto da alienação. Portanto, concentrar esforços em mudar o conteúdo sem alterar a forma da escola é uma grande armadilha para quem busca desenvolver uma Pedagogia Social. Mais do que apenas conhecer, é essencial agir como participante ativo de um projeto de sociedade nova, orientado pelo princípio da coletividade. Ao tratar a questão do trabalho socialmente necessário da escola, Krupskaya (2017, p.131) ressalta que: “entre as habilidades que devem ser dadas ao estudante pela escola soviética, a habilidade principal é o hábito do ativismo social, porém, não o ativista-solitário, mas o ativista-coletivo”. Diante do modelo que Krupskaia (2017) chamava de “escola neutra”, onde o educador e o aluno estão distantes um do outro, sem solidariedade ou camaradagem entre ambos, a pedagogia socialista não limita a atividade educativa ao professor ou aos alunos. Ela compreende a educação como um processo que ocorre no âmbito de uma coletividade heterogênea, na qual são proporcionadas experiências, recursos e meios para o pleno desenvolvimento das pessoas. A coletividade se torna, ao mesmo tempo, um fim e um meio, fundamentais na educação. É ela que verdadeiramente educa as pessoas, mas respeitando a personalidade de cada aluno. O papel do educador não se restringe apenas ao aluno, mas busca organizar, o meio social no qual este se desenvolve, proporcionando experiências significativas que o auxiliem em seu processo de aprendizagem (TRILLA, 2001). Somente a transformação realizada pelo sujeito coletivo faz sentido quando se busca construir uma sociedade de homens e mulheres emancipados. A unificação de forças que convergem para a mesma direção exige a harmonização de atitudes e uma interpretação compartilhada das razões pelas quais se luta. Nenhuma estratégia se mostra bem-sucedida quando não é possível 127 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) organizar-se a partir de interesses comuns. A psicologia do individualismo é a negação do florescimento material da cooperação e, portanto, precisa ser superada ideologicamente. Para transcender este desafio, a escola desempenha papel estrutural. Como destaca Pistrak (2009, p.121) “A habilidade de trabalhar coletivamente cria-se apenas no processo de trabalho coletivo e segue-se daí mais uma tarefa no campo do trabalho escolar.” A questão da coletividade dos movimentos sociais do campo é uma dimensão pedagógica-política que embasa suas ações na luta por terra, educação, saúde, técnicas produtivas e outras demandas de justiça social. Formar as novas gerações de lutadores e lutadoras implica o desenvolvimento do hábito de agir em conjunto, o que não é uma tarefa simples. Nos tempos dos Pedagogos Soviéticos revolucionários, o comportamento individualista de pequenos proprietários camponeses representava um grande obstáculo para que se pudesse efetivar, em um país predominantemente agrícola, uma república de trabalhadores com espírito coletivo. Diante das condições materiais enfrentadas por aquela geração de educadores duas estratégias se destacaram: a utilização dos livros didáticos e a prática e fortalecimento da auto-organização. Um dos pontos fortes nesta luta deve ser a escola. Os livros didáticos devem ser alimentados da primeira à última linha pelo espírito coletivo. É necessário educar sistematicamente, através dos livros, o hábito nas crianças de abordar cada uma das questões, do ponto de vista dos interesses globais. Passar cada uma das questões mais simples e mais difíceis de tal forma que a criança se habitue a olhar para si mesma como parte do todo – isso nós ainda fazemos muito mal. Precisamos aprender isso. (KRUPSKAYA, 2017, p.132). Os construtores da Educação do Campo, inseridos dentro do Estado capitalista, não possuem a mesma autonomia que tinham os pedagogos soviéticos para formular materiais didáticos compatíveis com as metas da sociedade socialista, de modo a expandir, em muitos espaços da situação didática, os valores e princípios da vida coletiva que, no contexto do início do século XX, eram extremamente necessários e, ao mesmo, problemáticos de se efetivar. No caso brasileiro, na década passada, foi aprovada a resolução n.º 40, de 26 de julho de 2011 que estabelecia o Programa Nacional do Livro Didático do Campo (PNLD Campo) para as escolas do campo - uma das demandas dos movimentos sociais e do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária). O documento delineava dois objetivos. O primeiro almejava aprimorar o ambiente de trabalho dos educadores que lecionam em escolas campesinas conforme com as diretrizes educacionais nacionais voltadas para a Educação do Campo. O segundo visava estabelecer um programa nacional de distribuição de livros didáticos adequados para turmas seriadas do campo, com 128 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira ênfase no atendimento de forma mais eficaz às necessidades educacionais de públicos específicos. No entanto, no ano de 2018, enquanto esperavam o processo de avaliação das coleções para o ano seguinte, os professores foram surpreendidos com o encerramento do Programa do Livro Didático destinado ao Campo. Segundo o Informe n.º 07/2018 COARE/FNDE, “em decorrência de estar em andamento a revisão de marcos legais da educação nacional, não haverá, para 2019, escolha específica de materiais para atendimento das escolas rurais”. Episódios como estes evidenciam a dificuldade de construir experiências voltadas para práticas que se proponham ser mais humanizantes dentro do modo de produção capitalista. Esta condição demanda um permanente movimento de contestação e resistência. É crucial aproveitar as brechas e as contradições do estado para a organização política da classe trabalhadora. Para Freire (2023) a Pedagogia do Oprimido, sendo uma pedagogia humanista e libertadora, apresenta dois momentos diferentes. O primeiro, quando os oprimidos vão descobrindo e conhecendo o mundo da opressão, neste sentido se comprometem, na práxis, com sua transformação; o segundo momento, em que a realidade opressora, uma vez transformada, deixa de ser do oprimido e se converte na pedagogia de toda a humanidade em constante processo de libertação. Portanto, a complexidade da tarefa histórica dos educadores-construtores da Educação do Campo é incompatível com a conduta da espera paciente e confiante da mudança do mundo. A atuação prática precisa ser reveladora da intencionalidade do compromisso político. As respostas para questões como: Por que lutamos? Contra quem lutamos? E com quem lutamos? emergem, como critério de verdade, na ação concreta do universo pedagógico e não no conteúdo do discurso. Outro ponto que a natureza antagônica do Estado capitalista com as demandas proletárias no âmbito da Pedagogia Social evidencia é a necessidade colocada para os educadores e educadoras do campo para atuarem com força criativa na formulação de seus próprios planos, programas e materiais didáticos. Não serão as políticas de governo, por mais progressistas que sejam, que irão destacar e conter como guias referenciais de análise e de debate as questões socialmente sensíveis aos povos que vivem e trabalham na terra, tais quais: a luta pela Reforma Agrária, a defesa dos recursos ambientais, o cooperativismo, associativismo, a riqueza cultural e os hábitos da vida coletiva. Caso, de alguma forma, estas questões se façam presentes a partir de programas oficiais do estado, estarão enquadradas pela perspectiva assistencialista e tutelar. Não serão, assim, colocadas por exclusividade sob a ótica dos lutadores e de sua historicidade. Nesta perspectiva, é indispensável gerar exemplos e conteúdos que possibilitem a reflexão orientada pela prática, a fim de desenvolver ou despertar 129 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) nos trabalhadores o sentido de autoconhecimento e a compreensão do todo. Por isso, a maneira como o ensino é conduzido, a prática docente, o envolvimento dos estudantes e de toda a comunidade escolar dentro da estrutura administrativa da escola são aspectos essenciais na formação dos trabalhadores, permitindo que se reconheçam como membros de uma coletividade composta por sujeitos sociais e políticos engajados na luta pela emancipação. Outra estratégia utilizada pela Pedagogia Socialista Soviética para cultivar o hábito do ativismo coletivo foi a auto-organização. A nova sociedade exigia um tipo diferente de disciplina nas escolas. Lênin, ao dirigir-se à Terceira Conferência dos Komsomols, afirmou, que no lugar da antiga disciplina militar, predominante na sociedade burguesa “nós vamos criar um trabalhador e camponês inteligente. A disciplina tornou-se um assunto politicamente significativo, pois uma disciplina consciente tem um significado político.” Segundo King (1938), nessas circunstâncias, os professores, inclusive muitos contrários ao regime soviético, não podiam ser incumbidos da responsabilidade pela disciplina. Nos primeiros anos, esta prática teve que ser repassada aos alunos. “E de fato, toda a organização da vida escolar foi confiada a eles. Em alguns casos, decidiam o horário e o currículo. Quando um visitante chegava à escola, era um aluno que o recebia, mostrava-lhe a escola e respondia a todas as perguntas.” (KING, 1938, p.141). A questão da auto-organização é central na Pedagogia Socialista Soviética e estava vinculada intrinsicamente à iniciativa pessoal e à atividade das massas na reconstrução da vida e pela construção de um novo regime social. Não se tratava apenas de uma mera colaboração ativa dos trabalhadores nas relações cotidianas exigidas pelo Estado proletário, mas sim do envolvimento imprescindível de todos enquanto participantes da rápida transformação (requeridas pelas circunstâncias) das formas próprias da ordem vigente. Como pontuou Pistrak (2000, p.174), “as massas trabalhadoras utilizando a herança do passado, devem construir, e construir rapidamente, um mundo novo e grandioso. É isto que dá à atualidade soviética um caráter original”. Esperava-se que, conforme essa orientação, os alunos trabalhassem coletivamente e se organizassem autonomamente em assembleias a fim de superar o autoritarismo dos professores da escola burguesa. Os mandatos de representação dos alunos seriam curtos para permitir a alternância. Somente a assembleia dos alunos teria autoridade para analisar certas infrações e pronunciar seu veredito. O papel dos professores se transformava em conselheiro. A visão educacional de Pistrak refletia o projeto da revolução soviética na educação: a formação de indivíduos preocupados com a busca do bem comum, superando o individualismo e o egoísmo. 130 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira A liberdade, no entanto, é apenas um lado da moeda da vida. O outro lado é a responsabilidade. Quando lhes falta a matéria-prima da experiência as crianças só podem cunhar moedas de baixo valor. Quando tentam produzir moedas de valores mais elevados, estas soam falsas. Para deixar a metáfora, tornou-se óbvio com o passar do tempo que as crianças não podiam usar satisfatoriamente uma liberdade completamente desimpedida; que, por falta de experiência, não eram capazes de formar julgamentos ou de tomar decisões em todas e quaisquer situações. O jornal de pedagogia em 1928 criticou severamente as exigências feitas à capacidade de julgamento de crianças bastante pequenas. Criticou severamente a prática de deixar as crianças julgarem e punirem os delitos de seus colegas de classe. Os melhores educadores perceberam as limitações da liberdade, mas aceitaram as condições na escola como um estágio temporário, até que condições sociais e econômicas melhores proporcionassem melhores professores. Estavam ajustando as circunstâncias para cumprir o objetivo imediato a fim de alcançar o propósito final. (KING, 1938, p. 143). Se a finalidade da escola é permitir que os estudantes compreendam a realidade viva, uma de suas responsabilidades é promover o exercício do trabalho e da presença participativa. A auto-organização é acima de tudo um posicionamento político diante da vida, pois exige o reconhecimento do compromisso individual e coletivo com o conjunto de transformações que projetadas no plano ideal precisam ser justificadas na concretude do mundo. Isto também se refere ao tipo de sujeitos que se pretende formar e de mundo que se deseja construir. O fim da sociedade de classes significa o encerramento de relações baseadas em quem comanda e obedece dentro de uma estrutura de poder determinada. Portanto, cabe as escolas oportunizarem os ensaios de autogestão, as mudanças psicológicas para a superação do individualismo e autoritarismo inerentes a sociedade capitalista. Isto não quer dizer que cabe a escola reproduzir o mundo dos adultos, ou seja, a vida política dos adultos em seus espaços. O que se propõe é a diminuição da distância entre a escola e as exigências apresentadas pela vida em suas múltiplas dimensões. Dentre os muitos legados deixados pela Pedagogia Socialista Soviética para os educadores-lutadores da Educação do Campo, a auto-organização tem significativo destaque. A formação de construtores de outro tipo de desenvolvimento agrário requer trabalhadores que tenham conhecimentos profundos dos ideais de sua classe, que saibam trabalhar e tomar decisões coletivamente e tenham firmeza de convicção sobre qual o destino histórico da luta que estão engajados no presente. É preciso organizar as estratégias dentro de condições singulares. Estas lições e o desenvolvimento de tais habilidades precisam ser vivenciadas deste cedo. Caldart (2017), em um ensaio intitulado Caminhos para a transformação da escola: Pedagogia do MST e Pedagogia Socialista Soviética, destaca que no Movimento 131 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a auto-organização dos estudantes logo foi associada ao princípio de que todos os Sem Terra deveriam estar articulados em seus núcleos de base, garantindo assim sua efetiva participação nas diversas instâncias da estrutura organizacional. Ficou claro que a autogestão dos estudantes, com perspectivas de avanços para a constituição de coletivos infantis ou juvenis e seu envolvimento na condução da vida escolar, contribuiria significativamente para a formação no trabalho coletivo É inconcebível a existência dos movimentos sociais sem o desenvolvimento entre sua militância e seus membros do hábito de autodireção. A vitalidade das organizações de classe depende, em grande medida, da participação consciente do coletivo que assegura sua mobilidade. Assim, ao proporcionar às crianças e jovens, de acordo com as condições de cada faixa etária, formas de exercer a autonomia e a prática do trabalho coletivo como valores pedagógicos, estará também assegurando a preparação dos educandos para se engajarem nas organizações políticas mais amplas no futuro. Conforme destacado por Pistrak (2000), é imperioso que as novas gerações assumam a auto-organização com seriedade, compreendendo suas obrigações e responsabilidades. A manutenção do interesse das crianças pela escola, enquanto centro vital, requer o reconhecimento de que, mesmo em tenra idade, são membros ativos da sociedade, com problemas, interesses e objetivos conectados à vida adulta e à sociedade como um todo. Não cabe dentro da Pedagogia Social a negligência a estas questões. As Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) - outra importante experiência educacional voltada para os trabalhadores e trabalhadoras do campo - através da Pedagogia da Alternância têm, do ponto de vista histórico, de forma bastante consolidada a participação dos estudantes na organização escolar baseada na iniciativa pessoal. Na EFA a auto-organização da vida em grupo é uma ferramenta pedagógica complementar que permeia todas as experiências dos estudantes no dia a dia da instituição. Essa prática é fundamentada no princípio político da participação, no qual os alunos são os principais agentes de seu próprio processo de formação, contribuindo para a administração escolar e assumindo de forma consequente e responsável a gestão de suas atividades em diferentes momentos e espaços. Tal abordagem é guiada pelo postulado sociológico da coletividade, reconhecendo que o ser humano, mais do que social, no sentido que precisa dos outros, é comunitário no sentido em que se realiza servindo aos outros. Para fortalecer seu protagonismo, os estudantes se organizam de forma associativa e informal, participando de diversas comissões de trabalho que abrangem desde a articulação até a manutenção do ambiente da EFA. (RACEFFAES e EFA DO BLEY, 2008, p.34). 132 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira Na Educação do Campo a auto-organização implica em promover o desenvolvimento da capacidade do indivíduo de reconhecer a importância de sua participação nos processos sociais aos quais pertence. O cerne dessa formação reside na rejeição tanto da instrumentalização de um indivíduo por outro para propósitos alheios aos seus interesses, quanto da espera paciente e solitária das transformações qualitativas que nos colocarão em patamares superiores de humanização. A questão reside em assumir-se como os únicos capacitados e responsáveis por enfrentar os desafios e realizar as tarefas inerentes à sua classe. Segundo Krupskaya (2017), a habilidade de identificar compromissos sociais e resolvê-los de maneira coletiva, incorporando novas energias, e a capacidade de colaborar com outros grupos interessados na solução dos desafios colocados são funções essenciais da escola. Não se trata da quantidade de problemas sociais que a escola deve resolver – é preferível menos, porém com maior qualidade –, mas sim das competências sociais que ela desenvolve. Portanto, a escola do campo, enquanto alicerce da educação dos camponeses, precisa estar conectada às lutas sociais e aos fundamentos ideológicos desses trabalhadores, à produção real e às atividades socialmente relevantes e concretas; sem essas dimensões, perderia sua relevância. Como pronunciou Lenin no I Congresso do Ensino em 1918: “Nosso trabalho no domínio escolar consiste em derrubar a burguesia e declaramos abertamente que a escola fora da vida, fora da política, é uma mentira e uma hipocrisia”.6 3. Conclusão Passados mais de um século desde a emergência da Pedagogia Socialista Soviética ela permanece como referência de interlocução para as tentativas históricas no campo da Pedagogia Social de conceber a educação e as tarefas da escola. A vitalidade do pensamento revolucionário não se justifica apenas pelo conteúdo de alta densidade convertido em direcionamento para aqueles que precisam se responsabilizar pela formulação e alinhamento de objetivos educacionais a um regime social determinado. A permanência do legado dos pedagogos soviéticos também se justifica pela persistência de muitos fenômenos que foram, naquele tempo de Estado transitório, matéria de enfrentamento. As lições de construções do passado, formuladas no interior de processos revolucionários, ou seja, a partir de condições objetivas mais complexas e avançadas, têm permitido análises da realidade e de elaboração pedagógica para os trabalhadores do presente. No que tange a construção da Educação do Campo, um dos principais legados deixados pela Pedagogia Socialista Soviética foi o de garantir a relação da 6 Ver PISTRAK (2000, p.22). 133 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) escola com a vida, e não somente no âmbito da retórica e do plano ideal, mas em um processo de conversão social, fazendo com que o espaço destinado ao ensino seja transformado em espaço de trabalho e auto-organização, tendo em vista a preparação das gerações mais jovens para a construção de outra sociedade. A recuperação da radicalidade das experiências da Pedagogia Socialista Soviética, especialmente a cultura da coletividade, para pensar o sentido da Educação do Campo nas distintas circunstâncias em que ela se manifesta nos parece tão necessária quanto urgente dada a complexidade dos desafios que enfrentam os proletarizados da terra. A permanência histórica e a emancipação dos trabalhadores camponeses são inconcebíveis sem o desenvolvimento contínuo de uma consciência mais profunda e crítica da realidade. Portanto, a escola precisa responder à exigência de desenvolver sujeitos aptos a criar formas próprias de organização e gerar novos espaços de trabalho coletivo. Referências bibliográficas ARROYO. Miguel. A educação básica e o movimento social do campo. In.: ARROYO. M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C (Org.). Por uma educação do campo. Petrópolis: Vozes, 2011. BRASIL, Lei n.º 40, de 26 de julho de 2011. Dispõe sobre o Programa Nacional do Livro Didático do Campo (PNLD Campo) para as escolas do campo. CALDART, Roseli Salete. Apresentação para Fundamentos da escola do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2000. CALDART, Roseli Salete. Por Uma Educação do Campo: traços de uma identidade em construção. In: KOLLING, Edgar Jorge; CERIOLI, Paulo Ricardo; CALDART, Roseli Salete (Orgs.). 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Brasília, DF: Articulação Nacional “Por uma Educação do Campo”, 2005. KRUPSKAYA, Nadezhda Konstantinovna. A construção da pedagogia socialista. São Paulo: Expressão Popular, 2017. LENIN, Vladimir Ulianov. Sobre la enseñanza y la educación. Varsovia: Schwarz, 1962. MAKARENKO, Anton Semenovich. Problems of Soviet school education. Moscow: Progress Publishers, 1965. PAULO FREIRE. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz E Terra, 2019. PISTRAK, Mosey. Fundamentos da escola do Trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2000. PISTRAK, Moisey Mikhailovich. A Escola-Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009. RACEFFAES e Escola Família Agrícola do Bley. Equipe Pedagógica: o protagonismo juvenil nos CEFFAs. In: Revista da Formação por Alternância, União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil – UNEFAB, Brasília, 2008. KING, Beatrice. Soviet Education: Its Phases and Purpose. The Slavonic and East European Review, v. 17, n. 49, p. 135–150, 1938. SUCHODOLSKI, Bogdan. 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Barcelona: Graó, 2001. 135 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) 136 Índice Remissivo Símbolos LDB 54, 64, 102 A Aluno surdo 61, 62, 63, 66, 67, 68, 71, 80, 82 Aprendizagem 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 62, 64, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 72, 76, 79, 80, 81, 83, 84, 97, 99, 100, 101, 103, 120, 127 Autonomia 16, 20, 38, 79, 128, 132 C Comunidade escolar 13, 64, 79, 80, 130 Constituição 41, 42, 44, 47, 56, 58, 92, 93, 95, 100, 101, 106, 113, 114 Cultura 14, 19, 39, 41, 48, 52, 59, 65, 72, 73, 75, 82, 88, 110, 123, 124, 125, 126, 134 D Didática 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 81, 82, 83, 84, 128 Didática Magna 14, 18, 24 Direitos 26, 37, 38, 70, 74, 91, 92, 94, 101 Ditadura 16, 46, 47, 48, 50, 54, 57, 59 Ditadura Civil-Militar 46, 47, 54 Diversidade 21, 22, 23, 37, 58, 76, 79, 80, 81, 83, 89, 97 Diversidade social 21, 22, 23 Docentes 14, 18, 19, 20, 23, 24, 46, 57, 58, 71, 73, 77, 78, 79, 80, 81, 125 E Educação 1, 13, 16, 24, 25, 27, 31, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 42, 44, 45, 46, 51, 55, 56, 59, 60, 61, 64, 65, 68, 69, 70, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 117, 118, 122, 123, 124, 125, 126, 128, 129, 131, 133, 134, 135 Educação Básica 36, 70, 76, 78, 93, 95, 96, 98, 104, 111, 114 Educação bilíngue 61, 63, 64, 68, 69, 70, 72, 73 Educação brasileira 1, 18, 36, 40, 42, 51, 55, 59, 62, 63, 68, 88, 97, 98, 99, 110, 112, 114 Educação do Campo 118, 122, 123, 124, 125, 126, 128, 129, 131, 133, 134, 135 137 D ouglas o restes F ranzen (o rganizaDor ) Educação Especial 77, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97 Educação Inclusiva 36, 76, 77, 84, 92, 93, 95, 96 Educação para mulheres 26, 28, 31, 34 Educação Profissional 36, 85, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 109, 110, 111, 112, 114, 115 Educação Profissional e Tecnológica 36, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 110, 112, 115 Educação pública 15, 31, 43, 56 Ensino-aprendizagem 17, 71, 72, 79, 80, 81, 83, 84 Ensino Fundamental 68, 71, 74 Ensino superior 39, 40, 62, 63, 64, 67, 73, 102, 110 Era Vargas 36, 37, 43, 45, 106 Escola católica 46, 47, 51, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59 Estado 16, 25, 34, 35, 36, 37, 41, 42, 44, 45, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 64, 74, 75, 91, 100, 105, 111, 119, 120, 121, 122, 123, 128, 129, 130, 133 Estado Novo 36, 37, 41, 42, 45, 91 F Família 19, 29, 55, 56, 64 Formação 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 24, 26, 30, 40, 42, 43, 45, 53, 55, 57, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 119, 120, 121, 123, 126, 130, 131, 132, 133 Formação do professor 17, 20, 45, 72 Formação integrada 112, 113, 114 G Getúlio Vargas 16, 37, 38, 100 Golpe civil-militar 47, 50, 53, 56 H História 1, 24, 27, 28, 35, 39, 44, 45, 53, 57, 58, 59, 87, 94, 97, 100, 115 História Cultural 28, 57 Humanização 124, 126, 133 I Identidade 22, 73, 86, 114, 124, 134 Igreja 32, 39, 41, 46, 48, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 57, 58, 74 Igreja Católica 39, 48, 50, 51, 52, 54, 55, 57, 58 Imprensa 26, 27, 28, 34, 35, 44 Imprensa feminina 26, 28, 34 Inclusão 17, 22, 38, 61, 62, 63, 64, 67, 70, 71, 73, 75, 76, 82, 84, 93, 103 Institutos Federais 98, 99, 110, 112, 113, 114, 115, 116 Intérprete 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 82, 83, 85, 86 138 HistÓria Da eDuCaÇÃo: perCursos Da eDuCaÇÃo brasileira L Lei da inclusão 61, 63, 67 Lei de Diretrizes e Bases 54, 61, 68, 69, 77, 93, 102, 107 Leitura 20, 31, 33, 34, 48, 49, 55, 57, 59, 126 Liberdade 14, 16, 47, 50, 52, 95, 107, 131 Libras 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 78, 81, 82, 83, 84, 85, 93 Língua Brasileira de Sinais 61, 66, 67, 69, 71, 72, 77, 78, 84, 85, 93, 96 Língua Portuguesa 36, 39, 43, 66, 70, 71, 72, 73, 78, 82 M Magistério 26, 54, 56, 76 Marcos legais 83, 94, 129 Ministério da Educação 16, 38, 44, 55, 56, 73, 100, 103, 106, 110, 111, 118 Modernização 16, 39, 41, 44 Mudanças sociais 17, 106 Mulher 26, 27, 29, 31, 32, 33, 117 P Pedagogia 13, 14, 16, 17, 55, 65, 79, 119, 122, 123, 124, 125, 127, 129, 131, 134, 135 Pedagogia Social 126, 127, 129, 132, 133 Pedagogia Socialista Soviética 117, 118, 119, 120, 121, 122, 125, 130, 131, 133, 134 Pessoa com deficiência 61, 64, 70, 88, 91, 92, 94, 97 Prática pedagógica 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 71, 76, 79, 80, 119 Primeira língua 63, 70, 71 Privatização do ensino 47, 56, 57, 102, 107 PROEJA 4, 98, 99, 103, 104, 110, 111, 112, 113, 114 Profissionalização 80, 104, 106 R Reforma Francisco Campos 38, 39, 40, 43 Reformas 17, 40, 65, 108, 119 Revista Vozes 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 54, 57, 59 Revolução de 1930 36, 37, 38 S Sala de aula 19, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 71, 72, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 82 T TILSP 61, 62, 71, 72, 74, 75, 76, 77, 78, 80, 81, 84 Tradutor 61, 62, 64, 65, 66, 67, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 82, 83, 85, 86 V Vida Doméstica 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 34 139