Nádia da Cruz Senna
Estágio Pós-Doutoral na
Universidade do Algarve
(2016), Doutora em
Ciências da Comunicação
pela Universidade de São
Paulo (ECA/USP 2008),
mestre em Multimeios
pela Universidade
Estadual de Campinas
(1999), especialista em
arte-educação (1991) e
bacharel em Pintura (1989)
pela Universidade Federal
de Pelotas, graduada
em Engenharia Civil pela
Fundação Universidade
Federal do Rio Grande
(1984). Atualmente é
professora associada
do Centro de Artes, da
Universidade Federal de
Pelotas, atuando junto
aos cursos de graduação
e no PPGAVI/Mestrado
em artes visuais (UFPel.
alecrins@hotmail.com
https://orcid.org/
0000-0002-5036-7076
Ursula Rosa da Silva
Licenciatura Plena em
Filosofia pela Universidade
de Caxias do Sul (1988),
mestrado em Filosofia pela
Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande
do Sul (1992), Doutora em
História pela Pontifícia
Universidade Católica
do Rio Grande do Sul
(2002) e Doutorado em
Educação (UFPEL/2009).
Professora Titular da
Universidade Federal de
Pelotas, atuando nesta
universidade desde 1995.
Atualmente é vice-reitora
da UFPel e foi Diretora
do Centro de Artes da
UFPel, de 2013 a 2021. É
professora do PPGAVI/
Mestrado em Artes Visuais
(UFPel), atuando na linha
de Ensino da Arte e
Educação Estética.
ursularsilva@gmail.com
https://orcid.org/
0000-0003-0815-6942
São duas mulheres artistas; entre elas quase um século, um
oceano e um continente, uma não sabe da outra, mas guardam
em comum uma forma de pensar e construir arte a partir de
práticas cotidianas conectadas com o feminino e a natureza,
onde o jardim se configura como espaço de cultivo da arte. Esse
encontro é proposto pelo grupo de pesquisa Caixa de Pandora
(CNPq/UFPel): estudos em Arte, Gênero e Memória, segundo o
viés teórico do Museu Feminista Virtual (MFV), concebido por
Griselda Pollock (2010). O MFV é um laboratório poético, que
rompe com a tradição, a censura e o apagamento. Em sua ousadia,
constitui-se como um território de diálogo, pois permite elaborar
alianças e conexões entre diferentes trajetórias e processos
criativos, para formular perguntas, estudar mulheres artistas e
perceber as transformações e transgressões instauradas.
Entre Lourdes Castro e
Ana Paula Barbosa
O jardim como poética
Between Lourdes Castro and
Ana Paula Barbosa
The garden as poetic
Resumo: O artigo apresenta o encontro entre Lourdes Castro, reconhecida artista
portuguesa, com Ana Paula Barbosa, jovem artista do Sul do Brasil, a partir da
proposição teórica do Museu Feminista Virtual. A abordagem estabelece uma
conexão para destacar afinidades entre processos, reflexões e invenções artísticas
que envolvem a natureza, as práticas cotidianas, a memória e os afetos.
Palavras Chave: arte e natureza; mulheres artistas; práticas cotidianas.
Abstract: This paper presents the meeting between Lourdes Castro, a recognized
Portuguese artist, and Ana Paula Barbosa, a young artist from southern Brazil,
based on the theoretical proposition of the Museu Feminista Virtual [Virtual Feminist
Museum]. The approach establishes a connection to highlight links between artistic
processes, critical reflection and inventions that involve nature, everyday practices,
memory and affection.
Keywords: Art and nature. Women artists. Everyday practices.
92
issn: 2358-2529
A primeira
A água desliza pela canaleta escavada em torno da casa. Ela
retira uma pedra ali, outra mais adiante, remove raízes, para que
o fluxo percorra a trilha por inteiro ao longo do sítio que fica no
Caniço, Ilha da Madeira. Os cuidados com o jardim tomam boa
parte do seu dia. É preciso limpar, varrer as folhas secas, alguns
gravetos e pinhas vão ajudar a aquecer a casa, queimando na
lareira, espalhando um cheiro bom. Rega os vasos com a água
que sobrou na bacia, separa bulbos e inspeciona raízes, é preciso
que tenham um certo tamanho para que as mudas possam
ser plantadas na terra e cumpram o ciclo. Ela sente as coisas
por inteiro, o perfume, os sons, o vento, conhece cada pedra,
conhece a terra, repete gestos que lhe são próprios há muitas
décadas. Esse gosto vem de longe, remete à infância passada
na fazenda do avô. No seu exercício de cartografar a poesia do
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
93
cotidiano, Lourdes Castro abre um dos seus muitos álbuns. Velhas
fotografias, em preto e branco, evocam familiares, ela mesma em
menina, com um regador na mão, amigos e lembranças:
Tinha a vindima, a “panha” da cana-de-açúcar, o jardim. Eu
reparava: como a palmeira cresceu! Havia um celeiro, muitas
mangueiras, um punhado delas, inteiro. Um pé de cardeal
vermelho vivo, e um outro com pétalas bem recortadas da
flor que pendia. Uma goiabeira. Uma árvore com flores cor de
rosa. Boninas à sombra, no caminho até o palheiro, atraindo os
besouros ao fim da tarde. Um ligustro ao pé do muro. A figueira.
Alfarrobeiras ao pé do portão da entrada. Pitangas, das pretas,
jacarandá, jasmim. E a canforeira, enorme, plantada pelo tio Luiz.
Para ir ao banho, descíamos pela rocha, pelo areal, passávamos
pelos funchos bravos, atravessávamos as bananeiras, já lá em
baixo, estávamos na praia. (CASTRO, 2010, [s.p.], depoimento
para o filme de Catarina Mourão).
A percepção das sombras, a captura dos contornos, o grande
livro “O herbário das sombras”, a coleta e a guarda, tudo se
mantém, pois, essas coisas fazem parte da verdade dos dias.
Assim é a arte de Lourdes Castro, nascida no Funchal, em 1930.
Sua trajetória compreende uma formação que passa pela Escola
de Belas Artes de Lisboa, nos anos 50 do século XX, estudo
defasado em função do academicismo próprio da instituição e
do conservadorismo imposto pela ditadura que se vivia na época.
O vanguardismo de Castro vai contar com o apoio da Fundação
Calouste Gulbenkian, que lhe proporcionou uma bolsa de estudos
para se aprimorar em Paris. Ela viverá a efervescência dos
anos 60, junto com outros artistas, experimentará as inovações
estéticas, culturais e políticas que impuseram essa virada no
mundo. A pesquisa em torno das sombras se inicia e lhe rende
os primeiros convites para exposições em galerias e museus. O
investimento na poética segue sobre outros suportes e ações,
94
issn: 2358-2529
ela trabalha com publicações, objetos, livros de artista e no
“teatro das sombras”, em que atua como protagonista de sua
obra, explorando o lirismo das atividades domésticas. Ganha
reconhecimento internacional, maturidade e saudades de casa.
O retorno à ilha da Madeira se dá no final dos anos 70, quando
inicia um novo projeto com seu companheiro Manuel Zimbro, a
construção de uma casa e um jardim, que assumem como “uma
pintura de um hectare”. Sobre essa percepção poética, está
assentada toda a sua produção, seus projetos, seu modo de
viver, sem distinções, nem hierarquias: “A minha pintura é essa:
o viver, o estar cá” (2010).
O reconhecimento da beleza e da presença da natureza motivou
a construção do Grande Herbário das Sombras, um catálogo
minucioso sobre a flora encontrada na ilha, que a artista inicia em
1972, durante um período de férias passado no local. As sombras
são capturadas pela sensibilidade do papel heliográfico à luz solar,
um gesto simples, porém executado com cuidado e plasticidade,
esperando a melhor hora para alcançar maior ou menor nitidez, que
joga com a distância, com sobreposições para produzir nuances e
evocações, que se ampliam pela adição das etiquetas com dados
científicos, nome vulgar e habitat (Figuras 1, 2).
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
95
Figura 2. Lourdes Castro, Herbário (imagem e etiqueta), 1972. Fonte: https://
www.bestnetleiloes.com/pt/leiloes/arte-e-livros-134/lourdes-castro-43.
Figura 1. Lourdes Castro, Echium Nervosum, 1972. Fonte: https://www.wikiart.org/
en/lourdes-castro/echium-nervosum-1972.
96
issn: 2358-2529
Essa capacidade para articular contradições, a presença pela
sombra, efêmero e memória, anima a sua pesquisa criativa e revela
que a sofisticação está na intenção, no modo de operar. A busca
não é pelo efeito espetacular, ao contrário a intenção é capturar
a singeleza da flor, ou do arranjo floral, que ela mesma projetou,
como em Sombras à volta de um centro (Figuras 3, 4).
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
97
Figura 4. Lourdes Castro, Sombras à volta de um centro, 1975. Fonte: https://
gulbenkian.pt/wp-content/uploads/2021/06/Lourdes-Castro_Sombras_
Malmequeres_Foto-Filipe-Braga_1226x1600-1200x1566.jpg
98
issn: 2358-2529
Figura 3. Lourdes Castro, Sombras à volta de um centro, 1980.
Fonte: http://www.32bienal.org.br/pt/itinerancia/o/3341/
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
99
Essa outra vertente da pesquisa inicia-se nos anos 80, quando a artista
ainda morava em Paris e pretende retomar com mais intensidade na
nova casa, na ilha da Madeira, por conta da profusão de espécies
que lhe rodeiam. Aqui, as sombras são capturadas pelo desenho.
“Pouso a jarra com as flores, a base da jarra é o centro, a luz vem
de cima, as sombras das flores projetam-se à volta, envolvidas pelo
espaço do papel” (FRAZÃO, 2012, p. 79, depoimento). O processo
é descrito de modo breve. No entanto, o tempo de construção é de
outra ordem, de novo o cuidado e o rigor da composição perpassam
escolhas que vão desde o recipiente, o arranjo, o lugar de captura,
a incidência da luz, os materiais utilizados, até alcançar o gesto
gráfico que fixa as formas. O doméstico, os fazeres do feminino
envolvidos na ornamentação do lar, o tema floral, os materiais de
desenho e aquarela. Aqui, tudo aquilo que o sistema convencionou
e desqualificou, como próprio da “amadora”, é resgatado pela artista
em um engajamento ao projeto feminista da arte, a sutileza quase faz
passar desapercebida a insubordinação, necessária para desmontar
juízos parciais e reducionistas.
Castro encena o prosaico doméstico para nos fazer repensar
nossa relação com o mundo, para ativar nossa percepção para os
mais insignificantes momentos, aqueles nos quais, efetivamente,
construímos e damos sentido à vida. Sua pesquisa poética avança
sobre intimidades, apropriando-se dos gestos banais e de fazeres
ancestrais do feminino, propondo deslocamentos, fazendo aflorar
as memórias, os guardados, sensibilidades e afetos.
O jardim envolve a casa por inteiro, as árvores frondosas acompanham
a lateral desde o portão, pinheiros, castanheiras, carvalhos. Os
arbustos, as ervas e as flores dominam as proximidades, avançam
pela varanda, invadem janelas e espalham-se em vasos e prateleiras
pelo interior da casa, realizando o desejo da artista:
100
issn: 2358-2529
Vem ver a pintura que estou a fazer. Um bocado grande, não
cabe em museu nenhum. É tão pequena, tão pequenina que
todos que passam por aqui nem dão por isso. Uma tela com
forma esquisita. O que vale é que não é necessário esticála. Por si só, ela está sempre pronta a receber pinceladas,
ventos, estações, chuva, sol... O jardim é a minha pintura
(CASTRO, 2010, [s.p.]).
Ela ainda está lá, sentada sob a sombra de uma árvore, apreciando
a paisagem, as cores do dia, o horizonte azul recortado pelas
montanhas…com a pintura que se está a fazer; que é sua, e que
partilha conosco (Figura 5).
Figura 5: Lourdes Castro em sua casa, por ocasião do recebimento da medalha
de Mérito Cultural, em 2021. Fonte: https://www.rtp.pt/madeira/cultura/lourdescastro-condecorada-pela-cultura-vdeo-_60448
A segunda
Ana Paula Barbosa nos conta que o jardim sempre foi o “seu”
espaço da casa. Aprendeu com as tias e avós a arte do cultivo,
o cuidado com as plantas. Só mais tarde foi perceber que esse
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
101
fazer envolvia sensibilidades, ações e relações que lhe permitiam
desenvolver uma poética, cultivar a arte (Figura 6). Cultivo é
conceito tomado em forma alargada, para acompanhar desde
o cuidado com o germinar, o cultivo dos gestos, o cultivo dos
sentidos, o cultivo de um mundo melhor. Esse foi um processo
que tivemos o prazer de acompanhar e ver o seu desenvolvimento.
A artista Ana Paula Barbosa, nasceu em Pelotas, RS, em 1984, e
fez conosco a graduação e o mestrado em Artes Visuais, UFPel.
Procuro revelar detalhes que passam invisíveis no movimento
diário de nossas vidas aceleradas, com a intenção de criar
e produzir arte, gerando uma descontinuidade no gesto de
cultivo habitual, na forma convencional de cuidar de uma
planta. (BARBOSA, 2014, p.14).
Em torno do jardim, Herbário Afetivo e Jardim suspenso são algumas
das produções que constituem os Sítios de Cultivo, dispositivos
para partilhar e refletir sobre práticas cotidianas, natureza e arte.
Interessa o processo, o cuidado e o envolvimento que se estabelece.
Tem um outro tempo nesse fazer, que se articula com as estações
do ano, com as espécies, com a criação dos suportes, com o
remanejamento de lugares, com a observação atenta e os registros
fotográficos, um tempo feito de esperas e trocas.
O primeiro jardim foi construído em 2007, no quintal da casa da
família, um espaço que funcionava também como ateliê, lugar de
encontro e confissões. A mesa que servia para modelar vasos e
bonecas de barro, também servia de mesa de refeições, para os
lanches e jantares com amigos. Sua dedicação ao espaço, acabou
sendo reconhecida pela família; de fato, o jardim era o seu território de
liberdade e pertencimento. Foi nesse jardim/ateliê que desenvolveu
a série das mulheres receptáculos, modeladas para receberem as
plantas em seus braços e colos, para que germinassem plenas.
Ana Paula Barbosa se insere em uma longínqua linha de mulheres
ceramistas, cuja prática oscila entre o sagrado e o profano, retomando
antigos rituais ligados ao feminino, revivendo com suas figuras a
força das Grandes Mães, o poder de gerar a vida. O barro em sua
materialidade e os processos de modelagem contemplam todos os
elementos da natureza: terra, água, ar e fogo. Experimentar essa força
nos faz imergir em outras dimensões, em um mundo de sensações,
novas ou invocadas, a energia necessária exige concentração, um
mergulho para dentro de si, para que nos reconectemos com esse
elo perdido. São essas raízes ancestrais que as figuras de Barbosa
exaltam com seus relevos e concavidades, evocam a própria
102
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
Figura 6: Ana Paula Barbosa no jardim, 2007. Foto: Barbosa, 2014.
issn: 2358-2529
103
Pachamama, ventre/terra que enaltece a força criativa do feminino
e restabelece conexões com o universo (Figuras 7 e 8).
Figuras 7 e 8: Série mulheres receptáculos, cerâmica 2007-2010. Foto: Barbosa, 2014.
A série construída deixa ver as mutações, fases mais figurativas,
vasos antropomórficos, até alcançar a sutileza das formas, que
em sua redondeza sugerem o feminino, os receptáculos feitos
para receberem as sementes. São potes, vasinhos, cânforas,
peças ovoides, com pequenos orifícios, bacias e tigelas, objetos
cerâmicos identificados com práticas do cuidar, alimentar, acolher
e germinar, presentes no cotidiano das mulheres.
Em torno do jardim, a instalação construída em 2012, reúne alguns
desses objetos cerâmicos, recheados de suculentas e cactáceas,
água, luz artificial e seixos, dispostos sobre o torno onde as peças
foram moldadas. Um minijardim doméstico (Figura 9) transportado
para o espaço da galeria, uma peça viva que precisa de cuidados
para manter seu ciclo.
104
issn: 2358-2529
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
105
Figura 9: Em torno do Jardim, 2012. Foto: Barbosa, 2014.
Em torno do jardim, por ser confeccionado com vasos
diferentes entre si e ser organizado mais abaixo de nossas
cinturas, acaba por nos mover a uma inclinação sobre a peça
em direção ao chão, para podermos observar os vasos e
plantas da obra/jardim. É o movimento que fazemos ao olhar
pequenas plantas que brotam do chão ou onde geralmente
são amanhadas, cultivadas, na terra, no solo. (BARBOSA,
2014, p. 60).
A instalação produz um encantamento. As miniaturas têm esse
poder, são lúdicas, imaginativas, nos fazem rememorar a infância.
Ana Paula Barbosa nos convida a parar e observar, em um
movimento de aproximação, de reverência para com aquilo que
realmente importa, a vida presente em nós, ao nosso redor. Seu
altar celebra a natureza com toda a sua singeleza e exuberância,
uma percepção apreendida e compartilhada.
As afinidades entre Lourdes Castro e Ana Paula Barbosa vão se
evidenciando em nosso estudo, o cultivo da arte a partir de um
gesto doméstico, o amor e respeito com as coisas da terra, a coleta
e as formas inventadas para manter e ativar sensibilidades. Barbosa
também construiu um Herbário, que chamou de afetivo; dele já fez
três versões. Seu projeto elege livros e cadernos, escolhidos para
abrigarem flores secas, que ficam prensadas entre as páginas,
alguns contém fotografias do jardim, colagens acidentais, anotações
ligadas a situações vividas, que ao serem acessadas ativam
memórias e afetos (Figura 10). “Plantas e fotografias se misturam
para lembrar o germinar, o lugar que se germina, onde nasce o
amor e as ideias” (2014). O herbário foi fotografado, transformado
em cartão postal e disponibilizado como Jardim Itinerante (2013),
em uma outra ação de partilha.
106
issn: 2358-2529
Figura 10: Herbário Afetivo, 2012. Foto: Barbosa, 2014.
Jardim suspenso (2013) é um vídeo tomado a partir de um ângulo
do jardim, com a câmera estática, apesar da curta duração, por
conta do processo de edição, seu tempo de captura é expandido,
fica em suspenso para dar conta das coisas ínfimas que animam o
lugar. Percebemos os pequenos insetos, a brisa que agita as folhas
e as roupas no varal, um broto novo que surge. “Quando me ocupo
dos afazeres de um lugar como este, o tempo se dilata e é preciso
diminuir a velocidade para perceber as necessidades das plantas,
pois tudo se movimenta e transforma muito lentamente em um
universo vegetal” (2014, p. 85-86). Então, é preciso desacelerar,
demorar-se vendo, sentindo, para entender que existem outros
ritmos possíveis, que podemos fazer outras escolhas e retomar
antigas conexões.
As duas
Lourdes Castro e Ana Paula Barbosa cultivam uma arte que
resgata e valora práticas cotidianas articuladas com o feminino, o
cuidado com as plantas, o encantamento com a natureza, os álbuns
de guardados. Nesse encontro que promovemos, percebemos
o quanto elas têm em comum apesar da distância temporal e
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
107
geográfica. Seus gestos partem do banal para dar projeção à
poesia e aos sentidos que envolvem as coisas mais simples, do
dia a dia. Em sua insubordinação, ultrapassam regramentos e
reinventam modos de percepção, compartilham afetos e ativismos
em busca de conexões mais harmoniosas, ressignificando espaço,
tempo, ritos e mitos.
A ponte que estabelecemos entre elas, possibilitada pelo Museu
Feminista Virtual, reuniu a poética do jardim que envolve a casa,
com a do minijardim, que andamos em torno, a reverência diante
dessas obras e processos é a mesma. A conexão se funda no
caráter vivo da arte, na capacidade irrestrita para transcender
fronteiras de toda espécie, para solicitar uma interpretação ativa
com novos efeitos e significados. Nesse processo de inventariar
obras e mulheres artistas, descobrimos poéticas centradas no
feminino, nas memórias e nas práticas cotidianas, como nessas
duas artistas. Em Castro e Barbosa os processos do fazer celebram
gestos e objetos ínfimos, sem estabelecer distinção entre o que
é da arte e o que é da rotina. Para elas: artística é a percepção, a
apropriação, a partilha, o viver.
108
issn: 2358-2529
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ana Paula. Sítios de Cultivo. 160 f. 2014. Dissertação. (Mestrado em
Artes Visuais) Universidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em
Artes. Pelotas, 2014.
CASTRO, Lourdes; ZIMBRO, Manuel. À luz da sombra. Museu de Arte Contemporânea
de Serralves. Porto: Fundação Serralves, 2010.
FRAZÃO, Joana. Lourdes Castro: apontamentos para compreensão da obra. 206
f. 2012. Dissertação (Humanidades: História e arqueologia), Faculdade de Letras,
Universidade do Porto. Porto, 2012.
LOURDES CASTRO: PELAS SOMBRAS. Direção de Catarina Mourão. Portugal,
2010. DVD (83 min.).
POLLOCK, Griselda. Encuentros em el museo feminista virtual: tiempo, espacio y
el archivo. Madrid: Ed. Cátedra, 2010.
SENNA, Nádia; SILVA, Ursula. Transgressões de Pandora: subjetividades e polifonia.
Pelotas: Ed. UFPEL, 2018. e-Book. Disponível em: <http://guaiaca.ufpel.edu.br/
handle/prefix/4190> Acesso em: 09 nov. 2020.
edição 16 • junho de 2021
Nádia da Cruz Senna; Ursula Rosa da Silva
Artigo recebido em 11 out. 2020 e aprovado em 03 dez. 2020
109