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Revista de Direito Econômico e Socioambiental ISSN 2179-8214 Licenciado sob uma Licença Creative Commons REVISTA DE DIREITO ECONÔMICO E SOCIOAMBIENTAL vol. 8 | n. 2 | maio/agosto 2017 | ISSN 2179-8214 Periodicidade quadrimestral | www.pucpr.br/direitoeconomico Curitiba | Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCPR Revista de Direito Econômico e Socioambiental doi: 10.7213/rev.dir.econ.soc.v8i2.16076 ISSN 2179-8214 Licenciado sob uma Licença Creative Commons Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR Criminal liability of legal entities for environmental crimes in the vision of the Brazilian Federal Supreme Court: an analysis of the RE 548181/PR Beatriz Costa * Escola Superior Dom Helder Câmara (Brasil) biaambiental@yahoo.com.br Clarice Gomes Marotta* * Escola Superior Dom Helder Câmara (Brasil) clarmarotta@gmail.com Recebido: 23/06/2016 Received: 06/23/2016 Aprovado: 01/09/2017 Approved: 09/01/2017 Como citar este artigo/How to cite this article: COSTA, Beatriz; MAROTTA, Clarice Gomes. Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358377, maio/ago. 2017. doi: 10.7213/rev.dir.econ.soc.v8i2.16076 * Professora do Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara (Belo Horizonte – MG, Brasil). Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pró-reitora de pesquisa da Escola Superior Dom Helder Câmara. E-mail: biaambiental@yahoo.com.br. ** Mestranda em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara (Belo Horizonte – MG, Brasil). Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Especialista em Direito Público pelo Instituto de Educação Continuada; e em Direito, impacto e recuperação ambiental, pela Fundação Gorceix e Fundação Escola do Ministério Público de Minas Gerais. E-mail: clarmarotta@gmail.com. Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 359 Resumo A preocupação básica deste artigo é refletir sobre a aplicação da opção política criminal brasileira de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica por crimes ambientais, através do estudo das decisões emanadas pelos Tribunais Superiores em relação ao tema e, especialmente, da decisão prolatada no Recurso Extraordinário n. 548181/ PR, adotada como marco teórico. Para tanto, empregamos o método dedutivo, com utilização da técnica de pesquisa documental – aos sítios dos tribunais – e bibliográfica, considerando-se as contribuições de autores consagrados da doutrina nacional. Concluímos que o Judiciário vem se adaptando para dar efetividade à decisão do legislador brasileiro, especialmente ao superar a teoria da dupla imputação. Por outro lado, há divergências acerca da compatibilidade ou não da responsabilização de empresas com a dogmática penal, em especial no que se refere à conduta (dolo e culpa), à culpabilidade e à pena, que exigem aprofundamento nos estudos sobre o tema, com a construção de uma teoria do crime voltada especialmente às pessoas jurídicas. Palavras-chave: responsabilidade penal da pessoa jurídica; crimes ambientais; Supremo Tribunal Federal; teoria do crime; política criminal. Abstract The basic concern of this paper is to discuss the application of the Brazilian criminal political option to criminally responsible legal entities for environmental crimes by studying the decisions of the Superior Courts and especially the decision in RE 548181/ PR, adopted as a theoretical framework. Therefore, it uses the deductive method, using documentary research - to the sites of the courts - and literature, considering the contributions of renowned authors of the national doctrine. We conclude that the Judiciary has adapted to ensure effectiveness to the decision of the Brazilian legislator, especially in overcoming the theory of double charging. On the other hand, there are disagreements about the compatibility or not of the liability of legal entities with criminal dogmatic, especially with regard to the conduct (intent and fault), the culpability and penalty, requiring profound studies on the subject, with the construction of a crime theory especially thought to corporation. Keywords: criminal liability of legal entities; environmental crimes; Brazilian Federal Supreme Court; crime theory; criminal policy. Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1. Aspectos doutrinários. 2.2. A decisão no RE 548181/PR como ruptura com o sistema de dupla imputação. 3. Conclusão. 4. Referências. Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 360 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. 1. Introdução A proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, alcançou status constitucional, cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Além disso, a Magna Carta de 88 previu a responsabilidade civil, penal e administrativa, de forma cumulativa, aos infratores, pessoas físicas ou jurídicas, em decorrência das condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente. O presente artigo objetiva o estudo da posição do Supremo Tribunal Federal - STF acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica em matéria ambiental, expressa na decisão do Recurso Extraordinário n. 548181/ PR, tendo em vista a opção de política criminal do legislador brasileiro e as críticas levantadas pela doutrina, em especial por penalistas. Nessa perspectiva, construímos a seguinte questão, que norteou este trabalho: Qual o atual entendimento do STF em relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica pela pratica de crimes contra o meio ambiente? A relevância do tema provém da opção do legislador brasileiro pela referida responsabilização, de sua importância prática a fim de evitar impunidade, assim como da enorme discussão que essa previsão gerou, especialmente entre estudiosos do direito penal. Fato é que doutrina e jurisprudência se debruçaram sobre o tema, seja para rechaçar a sua aplicação, seja para buscar meios de compatibilizar a punição criminal da pessoa jurídica com a dogmática penal e suas garantias. A controvérsia, no entanto, encontra-se longe de apresentar uma solução pacífica. Nesse contexto, os objetivos específicos adotados passam, em primeiro plano, pela investigação dos entraves dogmáticos e dos argumentos favoráveis à responsabilização penal da pessoa jurídica. Em seguida, buscamos o direcionamento seguido pelos tribunais superiores, para chegar ao objetivo geral, através da análise da decisão ora adotada como paradigma. Para alcançar o objetivo proposto, utilizamos como recurso metodológico da pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados na literatura, artigos científicos Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 361 divulgados no meio eletrônico e jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, através do método dedutivo. 2. Desenvolvimento 2.1 Aspectos doutrinários A crise ambiental e a possibilidade de escassez de recursos naturais alçaram a proteção ao meio ambiente a mandamento constitucional, justificando o estabelecimento de diversas garantias, além de inovações em alguns aspectos – como a previsão de responsabilização criminal da pessoa jurídica -, na tentativa de se dar maior efetividade a este direito, umbilicalmente ligado ao direito à vida (COSTA, 2013). Édis Milaré exalta a proteção ambiental promovida pela Constituição e conclama todos a se engajarem na importante tarefa de implementar a legislação protetiva: A Constituição de 1988 pode muito bem ser denominada “verde”, tal o destaque (em boa hora) que dá à proteção do meio ambiente [...] Não basta, entretanto, apenas legislar. É fundamental que todas as pessoas e autoridades responsáveis se lancem ao trabalho de tirar essas regras do limbo da teoria para a existência efetiva da vida real; na verdade, o maior dos problemas ambientais brasileiros é o desrespeito generalizado, impunido ou impunível, à legislação vigente. É preciso, numa palavra, ultrapassar a ineficaz retórica ecológica – tão inócua quanto aborrecida – e chegar às ações concretas em favor do ambiente e da vida. Do contrário, em breve, nova modalidade de poluição – a “poluição regulamentar” – ocupará o centro de nossas preocupações [...] (MILARÉ, 2014, p. 160-161 e 169-171). A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 173, § 5º, previu a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular, ao dispor que a lei estabelecerá a responsabilidade das empresas, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza. Adotou novamente dita responsabilidade no art. 225, §3º, dessa vez no capítulo voltado à proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, prevendo que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 362 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (BRASIL, 1988). Em 12 de fevereiro de 1998, com a publicação da Lei n.º 9.605, a responsabilidade penal das empresas foi regulamentada em seu art. 3º, com o estabelecimento de algumas especificações: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”. Dispõe a lei, ainda, no parágrafo único, que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato” (BRASIL, 1998, grifo nosso). Diante do tratamento legislativo dado ao tema, a doutrina pátria se dividiu e passou a questionar a possibilidade ou não da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Sobre os referidos dispositivos ensina Zaffaroni1: [...] Es más o menos claro que la introducción de la responsabilidad penal de las personas jurídicas en el texto del art. 3.º de la ley 9.605 tiene una predominante influencia francesa, es decir, del vigente código penal francés (Especialmente el art. 121-2, cfr. “Code Pénal – Noveau Code Pénal/ Ancien Code Pénal”, París, Dalloz, 1995-1996, p. 7), que la consagra dejando de lado la máxima societas delinquere non potest, que había sido dominante en el derecho penal continental europeo. De este modo, opta por la solución aceptada largamente en el derecho anglosajón, que consagraba la responsabilidad penal de las personas jurídicas sin mayores obstáculos. Puede afirmarse, por tanto, que el debate alrededor de este tema (responsabilidad o no responsabilidad) reproduce en buena parte en el derecho penal la vieja “É mais ou menos claro que a introdução da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no texto do art. 3.º da lei 9.605 tem uma predominante influência francesa, a saber, do vigente código penal francês (especialmente o artigo 121-2, cf. "Código Penal - Novo Código Penal / Antigo Código Penal", Paris, Dalloz, 1995 -1996, p. 7), que a consagra, deixando de lado a máxima societas delinquere non potest, que tinha sido dominante no direito penal continental europeu. Assim, opta pela solução amplamente aceita no direito anglosaxão, que consagrava a responsabilidade penal das pessoas jurídicas sem grandes obstáculos. Pode-se afirmar, portanto, que o debate em torno deste tema (responsabilidade ou não responsabilidade) reproduz em boa parte no direito penal a velha discussão do direito privado acerca da teoria da realidade (GIERKE) ou da ficção (SAVIGNY) acerca das pessoas jurídicas” (tradução nossa). 1 Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 363 discusión del derecho privado acerca de la teoría de la realidad (GIERKE) o de la ficción (SAVIGNY) respecto dellas personas jurídicas [...] (ZAFFARONI,2010, p.49). É possível pinçar do trecho citado importantes pontos de partida para a análise da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil. Primeiramente, é interessante contextualizar a previsão brasileira em relação ao que vem sendo adotado em outras ordens jurídicas. Vladimir Passos de Freitas anota que os países que adotam o sistema da Common Law, como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Austrália, promovem a responsabilização criminal das corporações de forma tranquila. O autor cita o primeiro precedente, datado de 23 de fevereiro de 1909, da Suprema Corte dos EUA, no caso New York Central & Hudson River Railroad versus Estados Unidos, onde se entendeu que, se a lei prevê que a pessoa pode cometer crime, sem distinguir entre pessoas físicas ou jurídicas, não caberia ao intérprete fazê-lo (FREITAS, 2001). Luiz Luisi (2010, p. 30-36) anota que, em grande parte do território norte-americano, existe a previsão de responsabilidade da pessoa jurídica, tendo como fundamento a Strict Liability2, que seria um sistema baseado na responsabilidade objetiva. Prossegue no campo do direito comparado ao lembrar que “no mundo latino a responsabilidade penal da pessoa jurídica aparece, por primeira vez, no Código de Defesa Social de Cuba, cuja entrada em vigor ocorreu em 09.10.1958” (LUISI, 2010, p. 31). Essa legislação foi revogada com a instituição do regime socialista. O próximo país a ser lembrado por Luiz Luisi (2010, p. 30-36) é justamente a França que, de acordo com o entendimento de Zaffaroni, acima citado, teria sido a verdadeira inspiração do nosso legislador. Tal posição nos parece verdadeira, já que este vem a ser o sistema que mais se assemelha ao nosso, por conta da vedação à responsabilização penal objetiva. Luiz Regis Prado também busca estudar o sistema adotado pelo legislador francês, no qual se estabeleceram normas processuais para o julgamento das infrações cometidas por pessoas jurídicas, sendo os crimes e as penas expressamente previstos. Enfatizou o autor que o Direito francês 2 Responsabilidade estrita (tradução nossa). Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 364 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. diverge do anglo-saxão ao trazer uma responsabilidade penal subjetiva, utilizando-se da chamada responsabilidade por ricochete, de empréstimo, subsequente ou por procuração, na qual a vontade da pessoa física é comunicada à pessoa jurídica, mediante mecanismo conhecido como emprunt de criminalité3 (PRADO, 2011, p. 144-151). Luisi finaliza afirmando que “outros países - como, por exemplo, a Holanda e a Dinamarca – incluem nas suas legislações penais a responsabilidade penal da pessoa jurídica” e que essa responsabilização “tem ganhado espaço, tendo sido recomendada em encontros internacionais” (LUISI, 2010, p. 35), sem se descuidar, no entanto, de considerável resistência a essa corrente, que resultou em sua rejeição na legislação da Alemanha, Espanha, Bolívia, Colômbia, Peru, Nicarágua e Costa Rica. Essa digressão é importante para que se entenda que a opção legislativa brasileira de responsabilização penal da pessoa jurídica, ainda que possa sofrer duras críticas, encontra ressonância em um movimento internacional. A despeito disso, alguns autores afirmam que sequer se poderia falar em opção legislativa pela dita responsabilização, posto que a Constituição Federal de 1988 teria previsto a responsabilidade penal para a pessoa física e a administrativa para a pessoa jurídica. Tal posicionamento encontra contraponto imediato na existência de vasta gama de sanções administrativas aplicáveis às pessoas naturais. No entanto, diversos doutrinadores concordam que a responsabilidade penal da pessoa jurídica fere o sistema de garantias do Direito Penal, sendo incompatível com a ordem jurídica brasileira, na qual vigoraria o brocardo societas delinquere non potest4. Nesse sentido, um dos argumentos seria a ofensa ao princípio constitucional da pessoalidade da pena, que estabelece que esta não passará da pessoa do condenado (art. 5º, inciso XLV, da CF/88). Ou seja, a sanção penal deve recair exclusivamente sobre os autores materiais dos delitos e não sobre todos os membros de uma pessoa jurídica (LUISI, 2011, p. 39). Também se pontua que as pessoas jurídicas não possuem capacidade de ação (comportamento humano, voluntário, consciente e voltado para determinado fim), de conduta (dolo ou culpa) ou de culpabilidade 3 4 Empréstimo de criminalidade (tradução nossa). Sociedades não podem delinquir (tradução nossa). Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 365 (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa). Por outro lado, seria inútil a aplicação da pena, pois não seriam alcançados os objetivos de prevenção geral 5 e especial 6 , reafirmação do ordenamento jurídico e ressocialização (DOTTI, 2011). Outra forte crítica à disciplina da responsabilidade penal da pessoa jurídica trazida na Lei n.º 9.605/98 é a ausência de previsão expressa de quais seriam os crimes passíveis de serem cometidos pelos entes morais e a regulamentação desse tipo de responsabilidade, como feito no Direito francês (ZAFFARONI, 2011, p. 62-63). Como se não bastasse, haveria a afronta ao princípio da subsidiariedade do direito penal 7 , vez que o direito administrativo seria suficiente para punir a pessoa jurídica. Não se pretende neste trabalho rebater cada uma dessas críticas, o que demandaria um estudo próprio. Porém, a par de todas elas, parece-nos inegável que a previsão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas em crimes ambientais foi pensada para tentar solucionar problemas surgidos em nossa sociedade contemporânea. Destacamos que os crimes ambientais de maior relevo são praticados não por pessoas físicas, mas por empresas, na busca de aumentarem suas margens de lucro (COSTA, 2012), por meio de decisões tomadas em prol da 5 Segundo Rogério Greco, a prevenção geral pode ser analisada sob dois prismas: o negativo, que leva em consideração que “a pena aplicada ao autor da infração penal tende a refletir junto à sociedade, evitando-se, assim, que as demais pessoas, que se encontram com os olhos voltados na condenação de um de seus pares, reflitam antes de praticar qualquer infração penal”; e o positivo, pelo qual o propósito da pena seria “infundir na consciência geral, a necessidade de respeito a determinados valores, exercitando a fidelidade ao direito; promovendo, em última análise, a integração social” (GRECO, 2006, p. 525). 6 Referido autor esclarece que a prevenção especial também pode sofrer a divisão exposta, de forma que, pela negativa, “existe uma neutralização daquele que praticou a infração penal”, pois “a retirada momentânea do agente do convívio social o impede de praticar novas infrações penais”, ao passo que, pela positiva, reforça o caráter ressocializador da pena, “fazendo com que o agente medite sobre o crime, sopesando suas conseqüências, inibindo-o ao cometimento de outros” (GRECO, 2006, p. 526). 7 De acordo com o princípio da subsidiariedade, “a proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a ultima ratio da política social e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos” (Roxin (1997, p. 65 apud GRECO, 2006, p. 54). Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 366 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. corporação, como por exemplo, com a redução das medidas preventivas ou a contratação de mão de obra menos especializada e mais barata. Sobre o assunto, explica Édis Milaré: [...] O intento do legislador, como se vê, foi punir o criminoso certo e não apenas o humilde – ou o “pé de chinelo” do jargão popular. Sim, porque, via de regra, o verdadeiro delinqüente ecológico não é a pessoa física – o quitandeiro da esquina, por exemplo -, mas a pessoa jurídica que quase sempre busca o lucro como finalidade precípua, e para a qual pouco interessam os prejuízos a curto e longo prazos causados à coletividade, assim como a quem pouco importa se a saúde da população venha a sofrer com a poluição. É o que ocorre geralmente com os grandes grupos econômicos, os imponentes conglomerados industriais, e por vezes – por que não dizer: - com o próprio Estado, tido este como um dos grandes poluidores por decorrência de serviços e obras públicas sem controle [...] (MILARÉ, 2014, p. 473). Fernando Galvão (ROCHA, 2003, p. 523) defende que os doutrinadores do Direito não podem limitar a opção legislativa, fruto do jogo democrático, e professa a necessidade de se criar uma teoria do crime especialmente voltada para a pessoa jurídica e suas particularidades. Sobre a culpabilidade, por exemplo, o doutrinador sugere que seria “necessário criar outro princípio político-criminal que ponha limites à intervenção estatal e proteja o ente moral dos excessos porventura praticados pelo Poder Público”. (ROCHA, 2003, p.466). Não se pode negar que a tutela penal possui maior eficácia social, por seu caráter estigmatizante. O efeito de uma condenação penal sobre uma empresa tem o condão de repercutir negativamente em sua imagem perante a sociedade e especificamente, perante os consumidores (COSTA, 2012). Nessa linha, “a sanção penal é um instrumento muito mais eficiente do que as sanções civis e administrativas, uma vez que tal responsabilização dificulta a expansão dos negócios da pessoa jurídica, que fica taxada como transgressora” (QUEIROZ et al, 2013, p. 307). Outro ponto que se extrai do ensinamento de Zaffaroni, já citado, é o ressurgimento das teorias acerca da natureza dos entes morais, defendidas por Frederich Karl Von Savigny, para quem as pessoas jurídicas seriam criação da lei, daí a nomenclatura de teoria da ficção, e por Otto Gierke, que, em sua teoria da realidade, defende que as pessoas jurídicas seriam Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 367 “verdadeiros organismos sociais, assemelhados às pessoas naturais, inclusive com vontade própria” (LUISI, 2010, p. 29). Tais teorias vão fundamentar outra divisão na doutrina brasileira, dessa vez entre aqueles que admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Nessa esteira, há os que entendem que os entes morais, por não possuírem existência real, somente poderiam ser responsabilizados “por ricochete”, como no Direito francês, e os que defendem que a responsabilidade da empresa pode ser própria e independente daquela da pessoa física. Para Edis Milaré, com base no art. 3º da Lei de Crimes Ambientais, deve haver imputação simultânea da pessoa jurídica e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício. Essa corrente foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ, no Recurso Especial n. 564.960/ PR, no qual notamos a preocupação em responder às críticas doutrinárias, entendendo-se ser possível a responsabilização da pessoa jurídica, como opção política do legislador brasileiro, desde que em conjunto com a pessoa física, instituindo um sistema de dupla imputação. O referido tribunal reconheceu as dificuldades dogmáticas para a responsabilização, mas sustentou que “se a pessoa jurídica tem existência própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal” (BRASIL, 2014). Diante do consignado, podemos aplicar com atualidade a histórica frase de Franz von Liszt, no sentido de que quem pode firmar contratos, pode também firmá-los fraudulentamente, o que justificaria a imposição de sanção (VON LITSZT, 1899, p. 190-191). No acórdão em análise, os Ministros sustentam que existem, no ordenamento jurídico, penas adaptadas aos entes morais, que não há lesão ao princípio da pessoalidade e que a empresa tem legitimidade para figurar no pólo passivo processual. O STJ foi mais além, já delineando o que poderia vir a ser a moldura para a construção de uma nova teoria da culpabilidade caso prevalecesse a tese da necessidade da dupla imputação, ao dispor que “a culpabilidade no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito”. Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 368 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. Assim, o referido tribunal transfere a culpabilidade da pessoa jurídica para a pessoa física (representante legal ou contratual, ou integrantes de órgão colegiado, a depender de quem emanou a decisão questionada) que atua em seu nome e benefício, como no sistema francês. Tal decisão serve como ponto de partida para o julgado do STF, no que diz respeito à superação da controvérsia citada, admitindo a responsabilização penal da pessoa jurídica no Direito brasileiro. No entanto, funciona também como antítese, na parte em que condiciona o prosseguimento da ação penal em face do ente moral à existência concomitante de denúncia contra as pessoas físicas que atuaram em seu nome e benefício. Partindo do pressuposto da previsão legal da responsabilização penal da pessoa jurídica e de sua constitucionalidade, bem como discordando do posicionamento que exige a dupla imputação, em 06 de agosto de 2013, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou recurso extraordinário (RE 548181/ PR), adotado como marco teórico no presente estudo. 2.2 A decisão no RE 548181/PR como ruptura com o sistema de dupla imputação Primeiramente, faz-se necessário um breve resumo dos fatos que deram ensejo à decisão ora analisada. A exordial acusatória oferecida pelo Ministério Público Federal do Paraná narra que, em 16 de julho de 2000, o rompimento de um duto na refinaria da Petrobrás, localizada no município de Araucária ocasionou o derramamento de quatro milhões de litros de óleo cru, causando poluição nos rios Barigui, Iguaçu e entorno. A ação penal busca a condenação criminal do presidente da empresa e do superintendente da refinaria ao tempo do crime, além da responsabilização da própria Petrobrás. Por meio de decisão proferida em 2005, em sede de Habeas Corpus, pela 2ª Turma do STF, a ação penal foi trancada em relação ao presidente da Petrobrás, por ausência de nexo de causalidade entre a sua conduta e o vazamento. Ato contínuo, de ofício, a 6ª Turma do STJ concedeu ordem semelhante em relação ao superintendente, trancando, por consequência, a ação em relação à Petrobrás, sob a tese de que o processo não poderia prosseguir exclusivamente contra a empresa. Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 369 Objetivando atacar a referida decisão, o Ministério Público Federal MPF interpôs o Recurso Extraordinário n. 548181, julgado em 06 de agosto de 2013 pelo STF, na relatoria da Ministra Rosa Weber, que passaremos a examinar. Como exposto anteriormente, não se questiona no julgado aqui utilizado como paradigma a possibilidade de responsabilidade penal da pessoa jurídica. Com efeito, a ministra Rosa Weber, em seu voto, pontua que: [...] As pessoas jurídicas tornara-se destinatárias da lei penal desde 1988, há 25 anos portanto, em decorrência da imposição expressa da norma constitucional acima transcrita. A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, conferiu a possibilidade de concreção da Constituição, ao estipular os pressupostos e as penas aplicáveis às pessoas jurídicas. Não cabe retomar, portanto, a discussão sobre a legitimidade jurídica substancial da atribuição da responsabilidade penal aos entes morais [...] (BRASIL, 2014). De fato, a insurgência em relação à adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica não é recente e, ainda que bem fundamentada e defendida por nomes de peso da doutrina nacional e internacional, mostrase meramente acadêmica (seara onde mantém sua importância). Anota Leonardo Augusto Marinho Marques que “não se pode mais, então, fechar os olhos para a realidade e insistir na impossibilidade de responsabilizar a pessoa coletiva, na esfera penal, levando-se em consideração somente a própria convicção. A Lei n.º 9.605/1998, apesar de falha, foi expressa. Compete-nos enfrentar a questão” (MARQUES, 2004, p. 141). A controvérsia reside, portanto, na possibilidade ou não de a pessoa jurídica ser processada sem a concomitante ação penal endereçada às pessoas físicas que atuaram em nome e benefício do ente moral. Já na ementa do acórdão podemos perceber claramente que o STF posicionou-se no sentido de que a Constituição não condiciona a responsabilidade penal da pessoa jurídica à identificação das pessoas físicas envolvidas com o fato criminoso, não podendo o legislador ordinário ou o intérprete fazê-lo: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 370 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5. Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido (BRASIL, 2014). O voto da Relatora foi seguido pelos Ministros Roberto Barroso e Dias Toffoli, em decisão não unânime, ficando vencidos os Ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. Não há dúvida de que a superação da teoria da dupla imputação contribuirá para o aprimoramento da proteção ambiental, permitindo a responsabilização da empresa ainda que não seja possível identificar as pessoas físicas que tomaram a decisão. Por óbvio, não se prescinde da Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 371 atuação da pessoa natural, mas a individualização dessa passa a não ser essencial para se obter a condenação da corporação. Como apontado por Costa, “a teoria da dupla imputação tem sido invocada na jurisprudência como se fosse uma garantia fundamental e indeclinável das pessoas jurídicas, o que nos afigura contraditório diante da relevância da temática ambiental”. E continua o autor: [...] se a teoria penal restou flexibilizada para se permitir a responsabilização da pessoa jurídica, mesmo sendo inegável que seus atos sempre decorrem da vontade e deliberação humana, não vemos razões efetivas para que essa flexibilização não alcance o ponto de se permitir a responsabilidade exclusiva da pessoa jurídica naqueles casos em que não seja possível a efetiva vinculação de uma pessoa física à atuação da pessoa jurídica danosa ao meio ambiente [...] (COSTA, 2012). Vladimir Passos de Freitas observa que “os caminhos que dividem tarefas e funções nas corporações são impenetráveis” (2002, p. 213). Assim, pode-se dizer que condicionar a responsabilidade da pessoa jurídica à identificação da pessoa física relacionada acaba por inviabilizar a punição nos casos de grandes corporações, nacionais ou multinacionais, nas quais não se encontra o responsável pelo ato criminoso, em razão das complexas estruturas de poder envolvidas. Destacamos trecho do voto da Relatora, Min. Rosa Weber: "a responsabilização penal da pessoa jurídica decorre exatamente da percepção da insuficiência e da dificuldade da responsabilização penal da pessoa física para prevenir a prática de crimes, ambientais ou de outra natureza" (BRASIL, 2014). Sobre a dificuldade em se identificar a pessoa física responsável, afirma a Ministra ser "no mínimo inusual seja sua prática submetida a votação do conselho de diretores ou objeto de registro documental" (BRASIL, 2014). Assim, a limitação da responsabilidade da pessoa jurídica à identificação das pessoas físicas responsáveis viola a CF/88, que não previu essa condicionante. Com efeito, o escopo da lei é justamente possibilitar a ampla responsabilização de qualquer pessoa, física ou jurídica, que concorreu para a prática criminosa, em atendimento à lógica de proteção integral ao meio ambiente. Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 372 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. Vale a pena recorrer novamente ao voto da Ministra Relatora: [...] A decisão atacada, ao entender que o ente moral não pode figurar isoladamente no polo passivo da ação penal, por ausência de capacidade de ação - indispensável seria a descrição de uma conduta humana -, está, visivelmente, pretendendo traspor a dogmática penal clássica do Direito Penal individual, elaborada a partir da ação humana consciente e dirigida a um fim, para a responsabilização da pessoa jurídica. Mais que isso, a bem da verdade, conforme sustenta-se nas razões recursais, está condicionando a interpretação e aplicação da norma constitucional do §3º do art. 225 da Carta Política a uma completa identificação e imputação também da pessoa física, restringindo sobremaneira sua eficácia e contrariando a intenção expressa do constituinte originário, não apenas a de ampliar o alcance das sanções penais, mas sim de evitar a impunidade - ante as enormes dificuldades de individualização dos responsáveis internamente na corporação -, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, com a devida venia, leva a que a persecução penal dos entes morais, consagrada de forma explícita na Constituição Federal, somente se realize se houver, concomitantemente, a descrição e imputação de uma ação humana individual, enquadrável, por óbvio, na descrição típica da legislação penal, sem o que não seria admissível a responsabilização da pessoa jurídica [...] (BRASIL, 2014). Sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica anota Celso Antônio Pacheco Fiorillo: [...] Claro está que a finalidade maior da Constituição Federal é trazer efetividade e utilidade para o direito criminal ambiental, bem como para o direito penal ambiental, estabelecendo sanções penais concretas para aqueles que, na ordem jurídica do capitalismo, lesam ou mesmo ameaçam a vida em todas as suas formas [...] (2010, p. 637). Ao analisarmos a Lei de Crimes Ambientais, percebemos que ela prevê condutas típicas que podem ser praticadas por uma ou mais pessoas. Por certo que, no caso de delitos imputados aos entes morais, haverá também Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 373 pessoas físicas responsáveis no plano material, o que não conduz, no entanto, à obrigatoriedade processual de litisconsórcio passivo necessário (MORAES, 2010). De igual forma, em um crime de roubo praticado por dois agentes ou mesmo de formação de quadrilha, para o qual concorrem mais de três autores, não se faz necessário identificar cada um deles para intentar a ação penal. No mesmo sentido, é o entendimento esposado por Vladimir e Gilberto Passos de Freitas, para quem “a denúncia poderá ser dirigida apenas contra a pessoa jurídica, caso não se descubra a autoria ou participação das pessoas naturais, e poderá também ser direcionada contra todos” ( 2001, p. 67). De fato, parece-nos que aos doutrinadores cabe olvidar esforços para alcançar a máxima efetividade do preceito constitucional, em busca da proteção integral do meio ambiente. Essa relevante tarefa implica em uma construção teórica voltada para a pessoa jurídica, nos moldes do que foi feito em relação às pessoas naturais, em sintonia com a lógica do direito penal (garantia frente ao arbítrio estatal), mas mantendo o foco, sempre, na evolução da proteção do bem jurídico tutelado. Nesse sentido, o STJ, em momento anterior, trazendo importantes contribuições a esse trabalho de formulação teórica e, posteriormente, o STF, avançando na proteção ambiental superar a exigência de dupla imputação, funcionaram como faróis, a iluminar o caminho já traçado pela Constituição e pelo legislador ordinário. 3. Conclusão Diante do exposto, notamos que a possibilidade ou não da responsabilidade penal da pessoa jurídica não é pacífica e gera divergência doutrinária e jurisprudencial. Há fortes críticas por parte da doutrina, notadamente de penalistas, no sentido de que dita responsabilização ofenderia garantias básicas do direito penal, como os princípios da pessoalidade e da subsidiariedade, assim como que o ente moral não teria capacidade de ação, conduta ou Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 374 COSTA, B.; MAROTTA, C. G. culpabilidade, tampouco sendo possível o atingimento das finalidades da pena. Outra parte da doutrina, no entanto, defende a necessidade de implementação da opção política criminal trazida pela Constituição, ainda que se faça necessário reconstruir a dogmática para adequar às novas situações trazidas pela complexidade das corporações modernas. A dogmática não poderia, nesse sentido, engessar a sociedade e extrair do Direito o seu dinamismo, mas, pelo contrário, deveria buscar se adaptar às inovações trazidas pelo legislador. Notadamente porque referida opção não se mostra descabida, não só por estar em sintonia com movimento internacional, como também por estar justificada na necessidade de rigorosa proteção do bem jurídico ambiental. Com efeito, para grande parte dos doutrinadores do direito ambiental, o meio ambiente deve mesmo ser tutelado pelo direito penal, dotado de reconhecido caráter estigmatizante. Observamos que, no posicionamento de ambos os tribunais superiores, ficaram vencidas as teses de não responsabilização da pessoa jurídica, restringindo-se o debate aos seus parâmetros e limitações. O STF avançou no sentido de uma maior proteção do bem ambiental ao consagrar a responsabilidade independente da empresa, de forma a possibilitar a condenação do ente moral ainda que não sejam identificadas as pessoas físicas responsáveis pela prática do delito, em nome e em benefício da corporação, deixando de adotar, portanto, a teoria da dupla imputação, até então aplicada pelo STJ. Essa limitação acabava por inviabilizar a responsabilização em casos em que a complexa teia burocrática empresarial não permitia a individualização do prolator da decisão que, não raras vezes, justamente por instrumentalizar ilícito penal, era fruto de reunião mediante escrutínio secreto ou sequer era reduzida a termo. Não se ignora que a responsabilidade penal da pessoa jurídica se trata de uma opção política criminal de caráter pragmático. No entanto, não vem necessariamente acompanhada de um desprezo aos limites de legitimidade do direito penal, que não foram dados pela natureza, mas sim construídos pelo trabalho humano ao longo do tempo, voltados especificamente à pessoa natural, exigindo-se apenas que trabalho semelhante seja desenvolvido em relação às pessoas jurídicas. O Direito é ciência social e, Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017 Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR 375 como tal, deve evoluir em sintonia com as transformações operadas na sociedade. Nessa esteira, o posicionamento dos Tribunais Superiores, notadamente do Superior Tribunal Federal, na decisão adotada como marco teórico no presente artigo, tem sido a de, cada vez mais, aplicar a Constituição, bem como de construir uma nova dogmática para atender à expressa vontade do legislador. 4. Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 12 fev. 1998. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 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