Revista de
Direito Econômico e
Socioambiental
ISSN 2179-8214
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
REVISTA DE DIREITO
ECONÔMICO E
SOCIOAMBIENTAL
vol. 8 | n. 2 | maio/agosto 2017 | ISSN 2179-8214
Periodicidade quadrimestral | www.pucpr.br/direitoeconomico
Curitiba | Programa de Pós-Graduação em Direito da PUCPR
Revista de
Direito Econômico e
Socioambiental
doi: 10.7213/rev.dir.econ.soc.v8i2.16076
ISSN 2179-8214
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica
na visão do Supremo Tribunal Federal: uma análise do
RE 548181/PR
Criminal liability of legal entities for environmental crimes in the
vision of the Brazilian Federal Supreme Court: an analysis of the
RE 548181/PR
Beatriz Costa *
Escola Superior Dom Helder Câmara (Brasil)
biaambiental@yahoo.com.br
Clarice Gomes Marotta* *
Escola Superior Dom Helder Câmara (Brasil)
clarmarotta@gmail.com
Recebido: 23/06/2016
Received: 06/23/2016
Aprovado: 01/09/2017
Approved: 09/01/2017
Como citar este artigo/How to cite this article: COSTA, Beatriz; MAROTTA, Clarice Gomes.
Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do Supremo Tribunal Federal: uma
análise do RE 548181/PR. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358377, maio/ago. 2017. doi: 10.7213/rev.dir.econ.soc.v8i2.16076
*
Professora do Mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola
Superior Dom Helder Câmara (Belo Horizonte – MG, Brasil). Mestre e Doutora em Direito
Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pró-reitora de pesquisa da Escola
Superior Dom Helder Câmara. E-mail: biaambiental@yahoo.com.br.
** Mestranda em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara (Belo Horizonte
– MG, Brasil). Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Especialista em Direito Público
pelo Instituto de Educação Continuada; e em Direito, impacto e recuperação ambiental, pela
Fundação Gorceix e Fundação Escola do Ministério Público de Minas Gerais. E-mail:
clarmarotta@gmail.com.
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Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do
Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR
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Resumo
A preocupação básica deste artigo é refletir sobre a aplicação da opção política criminal
brasileira de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica por crimes ambientais, através do
estudo das decisões emanadas pelos Tribunais Superiores em relação ao tema e,
especialmente, da decisão prolatada no Recurso Extraordinário n. 548181/ PR, adotada como
marco teórico. Para tanto, empregamos o método dedutivo, com utilização da técnica de
pesquisa documental – aos sítios dos tribunais – e bibliográfica, considerando-se as
contribuições de autores consagrados da doutrina nacional. Concluímos que o Judiciário vem
se adaptando para dar efetividade à decisão do legislador brasileiro, especialmente ao
superar a teoria da dupla imputação. Por outro lado, há divergências acerca da
compatibilidade ou não da responsabilização de empresas com a dogmática penal, em
especial no que se refere à conduta (dolo e culpa), à culpabilidade e à pena, que exigem
aprofundamento nos estudos sobre o tema, com a construção de uma teoria do crime voltada
especialmente às pessoas jurídicas.
Palavras-chave: responsabilidade penal da pessoa jurídica; crimes ambientais; Supremo
Tribunal Federal; teoria do crime; política criminal.
Abstract
The basic concern of this paper is to discuss the application of the Brazilian criminal political
option to criminally responsible legal entities for environmental crimes by studying the
decisions of the Superior Courts and especially the decision in RE 548181/ PR, adopted as a
theoretical framework. Therefore, it uses the deductive method, using documentary research
- to the sites of the courts - and literature, considering the contributions of renowned authors
of the national doctrine. We conclude that the Judiciary has adapted to ensure effectiveness
to the decision of the Brazilian legislator, especially in overcoming the theory of double
charging. On the other hand, there are disagreements about the compatibility or not of the
liability of legal entities with criminal dogmatic, especially with regard to the conduct (intent
and fault), the culpability and penalty, requiring profound studies on the subject, with the
construction of a crime theory especially thought to corporation.
Keywords: criminal liability of legal entities; environmental crimes; Brazilian Federal Supreme
Court; crime theory; criminal policy.
Sumário:
1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 2.1. Aspectos doutrinários. 2.2. A decisão no RE
548181/PR como ruptura com o sistema de dupla imputação. 3. Conclusão. 4. Referências.
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1. Introdução
A proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, alcançou status
constitucional, cabendo ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Além disso, a Magna Carta de 88 previu a responsabilidade civil, penal
e administrativa, de forma cumulativa, aos infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, em decorrência das condutas e atividades consideradas lesivas ao
meio ambiente.
O presente artigo objetiva o estudo da posição do Supremo Tribunal
Federal - STF acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica em matéria
ambiental, expressa na decisão do Recurso Extraordinário n. 548181/ PR,
tendo em vista a opção de política criminal do legislador brasileiro e as
críticas levantadas pela doutrina, em especial por penalistas.
Nessa perspectiva, construímos a seguinte questão, que norteou este
trabalho: Qual o atual entendimento do STF em relação à responsabilidade
penal da pessoa jurídica pela pratica de crimes contra o meio ambiente?
A relevância do tema provém da opção do legislador brasileiro pela
referida responsabilização, de sua importância prática a fim de evitar
impunidade, assim como da enorme discussão que essa previsão gerou,
especialmente entre estudiosos do direito penal.
Fato é que doutrina e jurisprudência se debruçaram sobre o tema, seja
para rechaçar a sua aplicação, seja para buscar meios de compatibilizar a
punição criminal da pessoa jurídica com a dogmática penal e suas garantias.
A controvérsia, no entanto, encontra-se longe de apresentar uma
solução pacífica.
Nesse contexto, os objetivos específicos adotados passam, em
primeiro plano, pela investigação dos entraves dogmáticos e dos
argumentos favoráveis à responsabilização penal da pessoa jurídica. Em
seguida, buscamos o direcionamento seguido pelos tribunais superiores,
para chegar ao objetivo geral, através da análise da decisão ora adotada
como paradigma.
Para alcançar o objetivo proposto, utilizamos como recurso
metodológico da pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise
pormenorizada de materiais já publicados na literatura, artigos científicos
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divulgados no meio eletrônico e jurisprudências do Supremo Tribunal
Federal e Superior Tribunal de Justiça, através do método dedutivo.
2. Desenvolvimento
2.1 Aspectos doutrinários
A crise ambiental e a possibilidade de escassez de recursos naturais
alçaram a proteção ao meio ambiente a mandamento constitucional,
justificando o estabelecimento de diversas garantias, além de inovações em
alguns aspectos – como a previsão de responsabilização criminal da pessoa
jurídica -, na tentativa de se dar maior efetividade a este direito,
umbilicalmente ligado ao direito à vida (COSTA, 2013).
Édis Milaré exalta a proteção ambiental promovida pela Constituição
e conclama todos a se engajarem na importante tarefa de implementar a
legislação protetiva:
A Constituição de 1988 pode muito bem ser denominada “verde”, tal o
destaque (em boa hora) que dá à proteção do meio ambiente [...] Não basta,
entretanto, apenas legislar. É fundamental que todas as pessoas e autoridades
responsáveis se lancem ao trabalho de tirar essas regras do limbo da teoria para
a existência efetiva da vida real; na verdade, o maior dos problemas ambientais
brasileiros é o desrespeito generalizado, impunido ou impunível, à legislação
vigente. É preciso, numa palavra, ultrapassar a ineficaz retórica ecológica –
tão inócua quanto aborrecida – e chegar às ações concretas em favor do
ambiente e da vida. Do contrário, em breve, nova modalidade de poluição – a
“poluição regulamentar” – ocupará o centro de nossas preocupações [...]
(MILARÉ, 2014, p. 160-161 e 169-171).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 173, § 5º, previu a
responsabilidade penal da pessoa jurídica, por atos praticados contra a
ordem econômica e financeira e contra a economia popular, ao dispor que a
lei estabelecerá a responsabilidade das empresas, sujeitando-as às punições
compatíveis com sua natureza.
Adotou novamente dita responsabilidade no art. 225, §3º, dessa vez
no capítulo voltado à proteção ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, prevendo que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao
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meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a
sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de
reparar os danos causados” (BRASIL, 1988).
Em 12 de fevereiro de 1998, com a publicação da Lei n.º 9.605, a
responsabilidade penal das empresas foi regulamentada em seu art. 3º, com
o estabelecimento de algumas especificações: “as pessoas jurídicas serão
responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto
nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu
representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse
ou benefício da sua entidade”. Dispõe a lei, ainda, no parágrafo único, que
“a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas,
autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato” (BRASIL, 1998, grifo
nosso).
Diante do tratamento legislativo dado ao tema, a doutrina pátria se
dividiu e passou a questionar a possibilidade ou não da responsabilidade
penal da pessoa jurídica.
Sobre os referidos dispositivos ensina Zaffaroni1:
[...] Es más o menos claro que la introducción de la responsabilidad penal de
las personas jurídicas en el texto del art. 3.º de la ley 9.605 tiene una
predominante influencia francesa, es decir, del vigente código penal francés
(Especialmente el art. 121-2, cfr. “Code Pénal – Noveau Code Pénal/ Ancien
Code Pénal”, París, Dalloz, 1995-1996, p. 7), que la consagra dejando de lado
la máxima societas delinquere non potest, que había sido dominante en el
derecho penal continental europeo. De este modo, opta por la solución
aceptada largamente en el derecho anglosajón, que consagraba la
responsabilidad penal de las personas jurídicas sin mayores obstáculos. Puede
afirmarse, por tanto, que el debate alrededor de este tema (responsabilidad o
no responsabilidad) reproduce en buena parte en el derecho penal la vieja
“É mais ou menos claro que a introdução da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no
texto do art. 3.º da lei 9.605 tem uma predominante influência francesa, a saber, do vigente
código penal francês (especialmente o artigo 121-2, cf. "Código Penal - Novo Código Penal /
Antigo Código Penal", Paris, Dalloz, 1995 -1996, p. 7), que a consagra, deixando de lado a
máxima societas delinquere non potest, que tinha sido dominante no direito penal continental
europeu. Assim, opta pela solução amplamente aceita no direito anglosaxão, que consagrava
a responsabilidade penal das pessoas jurídicas sem grandes obstáculos. Pode-se afirmar,
portanto, que o debate em torno deste tema (responsabilidade ou não responsabilidade)
reproduz em boa parte no direito penal a velha discussão do direito privado acerca da teoria
da realidade (GIERKE) ou da ficção (SAVIGNY) acerca das pessoas jurídicas” (tradução nossa).
1
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discusión del derecho privado acerca de la teoría de la realidad (GIERKE) o
de la ficción (SAVIGNY) respecto dellas personas jurídicas [...]
(ZAFFARONI,2010, p.49).
É possível pinçar do trecho citado importantes pontos de partida para
a análise da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil.
Primeiramente, é interessante contextualizar a previsão brasileira em
relação ao que vem sendo adotado em outras ordens jurídicas.
Vladimir Passos de Freitas anota que os países que adotam o sistema
da Common Law, como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e
Austrália, promovem a responsabilização criminal das corporações de forma
tranquila.
O autor cita o primeiro precedente, datado de 23 de fevereiro de
1909, da Suprema Corte dos EUA, no caso New York Central & Hudson River
Railroad versus Estados Unidos, onde se entendeu que, se a lei prevê que a
pessoa pode cometer crime, sem distinguir entre pessoas físicas ou jurídicas,
não caberia ao intérprete fazê-lo (FREITAS, 2001).
Luiz Luisi (2010, p. 30-36) anota que, em grande parte do território
norte-americano, existe a previsão de responsabilidade da pessoa jurídica,
tendo como fundamento a Strict Liability2, que seria um sistema baseado na
responsabilidade objetiva.
Prossegue no campo do direito comparado ao lembrar que “no mundo
latino a responsabilidade penal da pessoa jurídica aparece, por primeira vez,
no Código de Defesa Social de Cuba, cuja entrada em vigor ocorreu em
09.10.1958” (LUISI, 2010, p. 31). Essa legislação foi revogada com a
instituição do regime socialista.
O próximo país a ser lembrado por Luiz Luisi (2010, p. 30-36) é
justamente a França que, de acordo com o entendimento de Zaffaroni, acima
citado, teria sido a verdadeira inspiração do nosso legislador. Tal posição nos
parece verdadeira, já que este vem a ser o sistema que mais se assemelha
ao nosso, por conta da vedação à responsabilização penal objetiva.
Luiz Regis Prado também busca estudar o sistema adotado pelo
legislador francês, no qual se estabeleceram normas processuais para o
julgamento das infrações cometidas por pessoas jurídicas, sendo os crimes e
as penas expressamente previstos. Enfatizou o autor que o Direito francês
2
Responsabilidade estrita (tradução nossa).
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diverge do anglo-saxão ao trazer uma responsabilidade penal subjetiva,
utilizando-se da chamada responsabilidade por ricochete, de empréstimo,
subsequente ou por procuração, na qual a vontade da pessoa física é
comunicada à pessoa jurídica, mediante mecanismo conhecido como
emprunt de criminalité3 (PRADO, 2011, p. 144-151).
Luisi finaliza afirmando que “outros países - como, por exemplo, a
Holanda e a Dinamarca – incluem nas suas legislações penais a
responsabilidade penal da pessoa jurídica” e que essa responsabilização
“tem ganhado espaço, tendo sido recomendada em encontros
internacionais” (LUISI, 2010, p. 35), sem se descuidar, no entanto, de
considerável resistência a essa corrente, que resultou em sua rejeição na
legislação da Alemanha, Espanha, Bolívia, Colômbia, Peru, Nicarágua e Costa
Rica.
Essa digressão é importante para que se entenda que a opção
legislativa brasileira de responsabilização penal da pessoa jurídica, ainda que
possa sofrer duras críticas, encontra ressonância em um movimento
internacional.
A despeito disso, alguns autores afirmam que sequer se poderia falar
em opção legislativa pela dita responsabilização, posto que a Constituição
Federal de 1988 teria previsto a responsabilidade penal para a pessoa física
e a administrativa para a pessoa jurídica.
Tal posicionamento encontra contraponto imediato na existência de
vasta gama de sanções administrativas aplicáveis às pessoas naturais.
No entanto, diversos doutrinadores concordam que a
responsabilidade penal da pessoa jurídica fere o sistema de garantias do
Direito Penal, sendo incompatível com a ordem jurídica brasileira, na qual
vigoraria o brocardo societas delinquere non potest4.
Nesse sentido, um dos argumentos seria a ofensa ao princípio
constitucional da pessoalidade da pena, que estabelece que esta não passará
da pessoa do condenado (art. 5º, inciso XLV, da CF/88). Ou seja, a sanção
penal deve recair exclusivamente sobre os autores materiais dos delitos e
não sobre todos os membros de uma pessoa jurídica (LUISI, 2011, p. 39).
Também se pontua que as pessoas jurídicas não possuem capacidade
de ação (comportamento humano, voluntário, consciente e voltado para
determinado fim), de conduta (dolo ou culpa) ou de culpabilidade
3
4
Empréstimo de criminalidade (tradução nossa).
Sociedades não podem delinquir (tradução nossa).
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(imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta
diversa). Por outro lado, seria inútil a aplicação da pena, pois não seriam
alcançados os objetivos de prevenção geral 5 e especial 6 , reafirmação do
ordenamento jurídico e ressocialização (DOTTI, 2011).
Outra forte crítica à disciplina da responsabilidade penal da pessoa
jurídica trazida na Lei n.º 9.605/98 é a ausência de previsão expressa de quais
seriam os crimes passíveis de serem cometidos pelos entes morais e a
regulamentação desse tipo de responsabilidade, como feito no Direito
francês (ZAFFARONI, 2011, p. 62-63).
Como se não bastasse, haveria a afronta ao princípio da
subsidiariedade do direito penal 7 , vez que o direito administrativo seria
suficiente para punir a pessoa jurídica.
Não se pretende neste trabalho rebater cada uma dessas críticas, o
que demandaria um estudo próprio. Porém, a par de todas elas, parece-nos
inegável que a previsão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas em
crimes ambientais foi pensada para tentar solucionar problemas surgidos em
nossa sociedade contemporânea.
Destacamos que os crimes ambientais de maior relevo são praticados
não por pessoas físicas, mas por empresas, na busca de aumentarem suas
margens de lucro (COSTA, 2012), por meio de decisões tomadas em prol da
5
Segundo Rogério Greco, a prevenção geral pode ser analisada sob dois prismas: o negativo,
que leva em consideração que “a pena aplicada ao autor da infração penal tende a refletir
junto à sociedade, evitando-se, assim, que as demais pessoas, que se encontram com os olhos
voltados na condenação de um de seus pares, reflitam antes de praticar qualquer infração
penal”; e o positivo, pelo qual o propósito da pena seria “infundir na consciência geral, a
necessidade de respeito a determinados valores, exercitando a fidelidade ao direito;
promovendo, em última análise, a integração social” (GRECO, 2006, p. 525).
6 Referido autor esclarece que a prevenção especial também pode sofrer a divisão exposta,
de forma que, pela negativa, “existe uma neutralização daquele que praticou a infração
penal”, pois “a retirada momentânea do agente do convívio social o impede de praticar novas
infrações penais”, ao passo que, pela positiva, reforça o caráter ressocializador da pena,
“fazendo com que o agente medite sobre o crime, sopesando suas conseqüências, inibindo-o
ao cometimento de outros” (GRECO, 2006, p. 526).
7 De acordo com o princípio da subsidiariedade, “a proteção de bens jurídicos não se realiza
só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do
ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas
protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando
falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, os regulamentos de
polícia, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a ultima ratio da política
social e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos” (Roxin (1997, p. 65
apud GRECO, 2006, p. 54).
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corporação, como por exemplo, com a redução das medidas preventivas ou
a contratação de mão de obra menos especializada e mais barata.
Sobre o assunto, explica Édis Milaré:
[...] O intento do legislador, como se vê, foi punir o criminoso certo e não
apenas o humilde – ou o “pé de chinelo” do jargão popular. Sim, porque, via
de regra, o verdadeiro delinqüente ecológico não é a pessoa física – o
quitandeiro da esquina, por exemplo -, mas a pessoa jurídica que quase sempre
busca o lucro como finalidade precípua, e para a qual pouco interessam os
prejuízos a curto e longo prazos causados à coletividade, assim como a quem
pouco importa se a saúde da população venha a sofrer com a poluição. É o que
ocorre geralmente com os grandes grupos econômicos, os imponentes
conglomerados industriais, e por vezes – por que não dizer: - com o próprio
Estado, tido este como um dos grandes poluidores por decorrência de serviços
e obras públicas sem controle [...] (MILARÉ, 2014, p. 473).
Fernando Galvão (ROCHA, 2003, p. 523) defende que os doutrinadores
do Direito não podem limitar a opção legislativa, fruto do jogo democrático,
e professa a necessidade de se criar uma teoria do crime especialmente
voltada para a pessoa jurídica e suas particularidades.
Sobre a culpabilidade, por exemplo, o doutrinador sugere que seria
“necessário criar outro princípio político-criminal que ponha limites à
intervenção estatal e proteja o ente moral dos excessos porventura
praticados pelo Poder Público”. (ROCHA, 2003, p.466).
Não se pode negar que a tutela penal possui maior eficácia social, por
seu caráter estigmatizante. O efeito de uma condenação penal sobre uma
empresa tem o condão de repercutir negativamente em sua imagem perante
a sociedade e especificamente, perante os consumidores (COSTA, 2012).
Nessa linha, “a sanção penal é um instrumento muito mais eficiente
do que as sanções civis e administrativas, uma vez que tal responsabilização
dificulta a expansão dos negócios da pessoa jurídica, que fica taxada como
transgressora” (QUEIROZ et al, 2013, p. 307).
Outro ponto que se extrai do ensinamento de Zaffaroni, já citado, é o
ressurgimento das teorias acerca da natureza dos entes morais, defendidas
por Frederich Karl Von Savigny, para quem as pessoas jurídicas seriam
criação da lei, daí a nomenclatura de teoria da ficção, e por Otto Gierke, que,
em sua teoria da realidade, defende que as pessoas jurídicas seriam
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“verdadeiros organismos sociais, assemelhados às pessoas naturais,
inclusive com vontade própria” (LUISI, 2010, p. 29).
Tais teorias vão fundamentar outra divisão na doutrina brasileira,
dessa vez entre aqueles que admitem a responsabilidade penal da pessoa
jurídica. Nessa esteira, há os que entendem que os entes morais, por não
possuírem existência real, somente poderiam ser responsabilizados “por
ricochete”, como no Direito francês, e os que defendem que a
responsabilidade da empresa pode ser própria e independente daquela da
pessoa física.
Para Edis Milaré, com base no art. 3º da Lei de Crimes Ambientais,
deve haver imputação simultânea da pessoa jurídica e da pessoa física que
atua em seu nome ou em seu benefício.
Essa corrente foi adotada pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ, no
Recurso Especial n. 564.960/ PR, no qual notamos a preocupação em
responder às críticas doutrinárias, entendendo-se ser possível a
responsabilização da pessoa jurídica, como opção política do legislador
brasileiro, desde que em conjunto com a pessoa física, instituindo um
sistema de dupla imputação.
O referido tribunal reconheceu as dificuldades dogmáticas para a
responsabilização, mas sustentou que “se a pessoa jurídica tem existência
própria no ordenamento jurídico e pratica atos no meio social através da
atuação de seus administradores, poderá vir a praticar condutas típicas e,
portanto, ser passível de responsabilização penal” (BRASIL, 2014).
Diante do consignado, podemos aplicar com atualidade a histórica
frase de Franz von Liszt, no sentido de que quem pode firmar contratos,
pode também firmá-los fraudulentamente, o que justificaria a imposição de
sanção (VON LITSZT, 1899, p. 190-191).
No acórdão em análise, os Ministros sustentam que existem, no
ordenamento jurídico, penas adaptadas aos entes morais, que não há lesão
ao princípio da pessoalidade e que a empresa tem legitimidade para figurar
no pólo passivo processual.
O STJ foi mais além, já delineando o que poderia vir a ser a moldura
para a construção de uma nova teoria da culpabilidade caso prevalecesse a
tese da necessidade da dupla imputação, ao dispor que “a culpabilidade no
conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa
jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em
seu nome e proveito”.
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Assim, o referido tribunal transfere a culpabilidade da pessoa jurídica
para a pessoa física (representante legal ou contratual, ou integrantes de
órgão colegiado, a depender de quem emanou a decisão questionada) que
atua em seu nome e benefício, como no sistema francês.
Tal decisão serve como ponto de partida para o julgado do STF, no que
diz respeito à superação da controvérsia citada, admitindo a
responsabilização penal da pessoa jurídica no Direito brasileiro.
No entanto, funciona também como antítese, na parte em que
condiciona o prosseguimento da ação penal em face do ente moral à
existência concomitante de denúncia contra as pessoas físicas que atuaram
em seu nome e benefício.
Partindo do pressuposto da previsão legal da responsabilização penal
da pessoa jurídica e de sua constitucionalidade, bem como discordando do
posicionamento que exige a dupla imputação, em 06 de agosto de 2013, a
1ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou recurso extraordinário (RE
548181/ PR), adotado como marco teórico no presente estudo.
2.2 A decisão no RE 548181/PR como ruptura com o sistema de dupla
imputação
Primeiramente, faz-se necessário um breve resumo dos fatos que
deram ensejo à decisão ora analisada.
A exordial acusatória oferecida pelo Ministério Público Federal do
Paraná narra que, em 16 de julho de 2000, o rompimento de um duto na
refinaria da Petrobrás, localizada no município de Araucária ocasionou o
derramamento de quatro milhões de litros de óleo cru, causando poluição
nos rios Barigui, Iguaçu e entorno.
A ação penal busca a condenação criminal do presidente da empresa
e do superintendente da refinaria ao tempo do crime, além da
responsabilização da própria Petrobrás.
Por meio de decisão proferida em 2005, em sede de Habeas Corpus,
pela 2ª Turma do STF, a ação penal foi trancada em relação ao presidente da
Petrobrás, por ausência de nexo de causalidade entre a sua conduta e o
vazamento. Ato contínuo, de ofício, a 6ª Turma do STJ concedeu ordem
semelhante em relação ao superintendente, trancando, por consequência, a
ação em relação à Petrobrás, sob a tese de que o processo não poderia
prosseguir exclusivamente contra a empresa.
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Objetivando atacar a referida decisão, o Ministério Público Federal MPF interpôs o Recurso Extraordinário n. 548181, julgado em 06 de agosto
de 2013 pelo STF, na relatoria da Ministra Rosa Weber, que passaremos a
examinar.
Como exposto anteriormente, não se questiona no julgado aqui
utilizado como paradigma a possibilidade de responsabilidade penal da
pessoa jurídica. Com efeito, a ministra Rosa Weber, em seu voto, pontua
que:
[...] As pessoas jurídicas tornara-se destinatárias da lei penal desde 1988, há
25 anos portanto, em decorrência da imposição expressa da norma
constitucional acima transcrita. A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998,
conferiu a possibilidade de concreção da Constituição, ao estipular os
pressupostos e as penas aplicáveis às pessoas jurídicas. Não cabe retomar,
portanto, a discussão sobre a legitimidade jurídica substancial da atribuição da
responsabilidade penal aos entes morais [...] (BRASIL, 2014).
De fato, a insurgência em relação à adoção da responsabilidade penal
da pessoa jurídica não é recente e, ainda que bem fundamentada e
defendida por nomes de peso da doutrina nacional e internacional, mostrase meramente acadêmica (seara onde mantém sua importância). Anota
Leonardo Augusto Marinho Marques que “não se pode mais, então, fechar
os olhos para a realidade e insistir na impossibilidade de responsabilizar a
pessoa coletiva, na esfera penal, levando-se em consideração somente a
própria convicção. A Lei n.º 9.605/1998, apesar de falha, foi expressa.
Compete-nos enfrentar a questão” (MARQUES, 2004, p. 141).
A controvérsia reside, portanto, na possibilidade ou não de a pessoa
jurídica ser processada sem a concomitante ação penal endereçada às
pessoas físicas que atuaram em nome e benefício do ente moral.
Já na ementa do acórdão podemos perceber claramente que o STF
posicionou-se no sentido de que a Constituição não condiciona a
responsabilidade penal da pessoa jurídica à identificação das pessoas físicas
envolvidas com o fato criminoso, não podendo o legislador ordinário ou o
intérprete fazê-lo:
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO.
DIREITO
PENAL.
CRIME
AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA.
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017
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COSTA, B.; MAROTTA, C. G.
CONDICIONAMENTO DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À
PERSECUÇÃO CONCOMITANTE DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO
ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. O art.
225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a responsabilização penal
da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da
pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma
constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações
corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e
distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta
realidade, as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3.
Condicionar a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta
imputação também a pessoa física implica indevida restrição da norma
constitucional, expressa a intenção do constituinte originário não apenas de
ampliar o alcance das sanções penais, mas também de evitar a impunidade
pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos
responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem
jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da
empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser
buscada no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou
órgãos atuaram ou deliberaram no exercício regular de suas atribuições
internas à sociedade, e ainda para verificar se a atuação se deu no interesse ou
em benefício da entidade coletiva. Tal esclarecimento, relevante para fins de
imputar determinado delito à pessoa jurídica, não se confunde, todavia, com
subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à responsabilização conjunta
e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras oportunidades, as
responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas de tal
modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. 5.
Recurso Extraordinário parcialmente conhecido e, na parte conhecida, provido
(BRASIL, 2014).
O voto da Relatora foi seguido pelos Ministros Roberto Barroso e Dias
Toffoli, em decisão não unânime, ficando vencidos os Ministros Marco
Aurélio e Luiz Fux.
Não há dúvida de que a superação da teoria da dupla imputação
contribuirá para o aprimoramento da proteção ambiental, permitindo a
responsabilização da empresa ainda que não seja possível identificar as
pessoas físicas que tomaram a decisão. Por óbvio, não se prescinde da
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Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do
Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR
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atuação da pessoa natural, mas a individualização dessa passa a não ser
essencial para se obter a condenação da corporação.
Como apontado por Costa, “a teoria da dupla imputação tem sido
invocada na jurisprudência como se fosse uma garantia fundamental e
indeclinável das pessoas jurídicas, o que nos afigura contraditório diante da
relevância da temática ambiental”. E continua o autor:
[...] se a teoria penal restou flexibilizada para se permitir a responsabilização
da pessoa jurídica, mesmo sendo inegável que seus atos sempre decorrem da
vontade e deliberação humana, não vemos razões efetivas para que essa
flexibilização não alcance o ponto de se permitir a responsabilidade exclusiva
da pessoa jurídica naqueles casos em que não seja possível a efetiva vinculação
de uma pessoa física à atuação da pessoa jurídica danosa ao meio ambiente
[...] (COSTA, 2012).
Vladimir Passos de Freitas observa que “os caminhos que dividem
tarefas e funções nas corporações são impenetráveis” (2002, p. 213). Assim,
pode-se dizer que condicionar a responsabilidade da pessoa jurídica à
identificação da pessoa física relacionada acaba por inviabilizar a punição nos
casos de grandes corporações, nacionais ou multinacionais, nas quais não se
encontra o responsável pelo ato criminoso, em razão das complexas
estruturas de poder envolvidas.
Destacamos trecho do voto da Relatora, Min. Rosa Weber: "a
responsabilização penal da pessoa jurídica decorre exatamente da
percepção da insuficiência e da dificuldade da responsabilização penal da
pessoa física para prevenir a prática de crimes, ambientais ou de outra
natureza" (BRASIL, 2014).
Sobre a dificuldade em se identificar a pessoa física responsável,
afirma a Ministra ser "no mínimo inusual seja sua prática submetida a
votação do conselho de diretores ou objeto de registro documental" (BRASIL,
2014).
Assim, a limitação da responsabilidade da pessoa jurídica à
identificação das pessoas físicas responsáveis viola a CF/88, que não previu
essa condicionante. Com efeito, o escopo da lei é justamente possibilitar a
ampla responsabilização de qualquer pessoa, física ou jurídica, que
concorreu para a prática criminosa, em atendimento à lógica de proteção
integral ao meio ambiente.
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017
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COSTA, B.; MAROTTA, C. G.
Vale a pena recorrer novamente ao voto da Ministra Relatora:
[...] A decisão atacada, ao entender que o ente moral não pode figurar
isoladamente no polo passivo da ação penal, por ausência de capacidade de
ação - indispensável seria a descrição de uma conduta humana -, está,
visivelmente, pretendendo traspor a dogmática penal clássica do Direito Penal
individual, elaborada a partir da ação humana consciente e dirigida a um fim,
para a responsabilização da pessoa jurídica.
Mais que isso, a bem da verdade, conforme sustenta-se nas razões
recursais, está condicionando a interpretação e aplicação da norma
constitucional do §3º do art. 225 da Carta Política a uma completa
identificação e imputação também da pessoa física, restringindo
sobremaneira sua eficácia e contrariando a intenção expressa do
constituinte originário, não apenas a de ampliar o alcance das sanções
penais, mas sim de evitar a impunidade - ante as enormes dificuldades de
individualização dos responsáveis internamente na corporação -, além de
reforçar a tutela do bem jurídico ambiental.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça, com a devida venia,
leva a que a persecução penal dos entes morais, consagrada de forma
explícita na Constituição Federal, somente se realize se houver,
concomitantemente, a descrição e imputação de uma ação humana
individual, enquadrável, por óbvio, na descrição típica da legislação penal,
sem o que não seria admissível a responsabilização da pessoa jurídica [...]
(BRASIL, 2014).
Sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica anota Celso Antônio
Pacheco Fiorillo:
[...] Claro está que a finalidade maior da Constituição Federal é trazer
efetividade e utilidade para o direito criminal ambiental, bem como para o
direito penal ambiental, estabelecendo sanções penais concretas para aqueles
que, na ordem jurídica do capitalismo, lesam ou mesmo ameaçam a vida em
todas as suas formas [...] (2010, p. 637).
Ao analisarmos a Lei de Crimes Ambientais, percebemos que ela prevê
condutas típicas que podem ser praticadas por uma ou mais pessoas. Por
certo que, no caso de delitos imputados aos entes morais, haverá também
Rev. Direito Econ. Socioambiental, Curitiba, v. 8, n. 2, p. 358-377, maio/ago. 2017
Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do
Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR
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pessoas físicas responsáveis no plano material, o que não conduz, no
entanto, à obrigatoriedade processual de litisconsórcio passivo necessário
(MORAES, 2010).
De igual forma, em um crime de roubo praticado por dois agentes ou
mesmo de formação de quadrilha, para o qual concorrem mais de três
autores, não se faz necessário identificar cada um deles para intentar a ação
penal.
No mesmo sentido, é o entendimento esposado por Vladimir e
Gilberto Passos de Freitas, para quem “a denúncia poderá ser dirigida apenas
contra a pessoa jurídica, caso não se descubra a autoria ou participação das
pessoas naturais, e poderá também ser direcionada contra todos” ( 2001, p.
67).
De fato, parece-nos que aos doutrinadores cabe olvidar esforços para
alcançar a máxima efetividade do preceito constitucional, em busca da
proteção integral do meio ambiente.
Essa relevante tarefa implica em uma construção teórica voltada para
a pessoa jurídica, nos moldes do que foi feito em relação às pessoas naturais,
em sintonia com a lógica do direito penal (garantia frente ao arbítrio estatal),
mas mantendo o foco, sempre, na evolução da proteção do bem jurídico
tutelado.
Nesse sentido, o STJ, em momento anterior, trazendo importantes
contribuições a esse trabalho de formulação teórica e, posteriormente, o
STF, avançando na proteção ambiental superar a exigência de dupla
imputação, funcionaram como faróis, a iluminar o caminho já traçado pela
Constituição e pelo legislador ordinário.
3. Conclusão
Diante do exposto, notamos que a possibilidade ou não da
responsabilidade penal da pessoa jurídica não é pacífica e gera divergência
doutrinária e jurisprudencial.
Há fortes críticas por parte da doutrina, notadamente de penalistas,
no sentido de que dita responsabilização ofenderia garantias básicas do
direito penal, como os princípios da pessoalidade e da subsidiariedade, assim
como que o ente moral não teria capacidade de ação, conduta ou
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374
COSTA, B.; MAROTTA, C. G.
culpabilidade, tampouco sendo possível o atingimento das finalidades da
pena.
Outra parte da doutrina, no entanto, defende a necessidade de
implementação da opção política criminal trazida pela Constituição, ainda
que se faça necessário reconstruir a dogmática para adequar às novas
situações trazidas pela complexidade das corporações modernas.
A dogmática não poderia, nesse sentido, engessar a sociedade e
extrair do Direito o seu dinamismo, mas, pelo contrário, deveria buscar se
adaptar às inovações trazidas pelo legislador. Notadamente porque referida
opção não se mostra descabida, não só por estar em sintonia com
movimento internacional, como também por estar justificada na
necessidade de rigorosa proteção do bem jurídico ambiental. Com efeito,
para grande parte dos doutrinadores do direito ambiental, o meio ambiente
deve mesmo ser tutelado pelo direito penal, dotado de reconhecido caráter
estigmatizante.
Observamos que, no posicionamento de ambos os tribunais
superiores, ficaram vencidas as teses de não responsabilização da pessoa
jurídica, restringindo-se o debate aos seus parâmetros e limitações.
O STF avançou no sentido de uma maior proteção do bem ambiental
ao consagrar a responsabilidade independente da empresa, de forma a
possibilitar a condenação do ente moral ainda que não sejam identificadas
as pessoas físicas responsáveis pela prática do delito, em nome e em
benefício da corporação, deixando de adotar, portanto, a teoria da dupla
imputação, até então aplicada pelo STJ.
Essa limitação acabava por inviabilizar a responsabilização em casos
em que a complexa teia burocrática empresarial não permitia a
individualização do prolator da decisão que, não raras vezes, justamente por
instrumentalizar ilícito penal, era fruto de reunião mediante escrutínio
secreto ou sequer era reduzida a termo.
Não se ignora que a responsabilidade penal da pessoa jurídica se trata
de uma opção política criminal de caráter pragmático. No entanto, não vem
necessariamente acompanhada de um desprezo aos limites de legitimidade
do direito penal, que não foram dados pela natureza, mas sim construídos
pelo trabalho humano ao longo do tempo, voltados especificamente à
pessoa natural, exigindo-se apenas que trabalho semelhante seja
desenvolvido em relação às pessoas jurídicas. O Direito é ciência social e,
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Responsabilidade penal ambiental da pessoa jurídica na visão do
Supremo Tribunal Federal: uma análise do RE 548181/PR
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como tal, deve evoluir em sintonia com as transformações operadas na
sociedade.
Nessa esteira, o posicionamento dos Tribunais Superiores,
notadamente do Superior Tribunal Federal, na decisão adotada como marco
teórico no presente artigo, tem sido a de, cada vez mais, aplicar a
Constituição, bem como de construir uma nova dogmática para atender à
expressa vontade do legislador.
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