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Livro - Caminho das Aguas: Fisiologia dos Três Aquecedores (intro)

2023, Caminho das Águas: Fisiologia dos Três Aquecedores

Fisiologia do Triplo Aquecedor (San Jiao)

CAMINHO DAS ÁGUA S F IsIOLOgIA dOs TRÊs AQUECEdOREs Wilson Roberto Emiliani Júnior São Caetano do Sul, 04 de janeiro de 2023 wre.jr@outlook.com wilsonemilianijr CAMINHO DAS ÁGUA S F IsIOLOgIA dOs TRÊs AQUECEdOREs Wilson Roberto Emiliani Júnior Copyright ©2023 https://www.cblservicos.org.br/registro/certificado/?hash=0xf196a27779a75e0c59c5ddc0c40734566d73dc1b4b8298255ffc2e5b36c342d5 FICHA CATA2ogRÁFICA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Emiliani Junior, Wilson Roberto Caminho das águas : fisiologia dos três aquecedores / Wilson Roberto Emiliani Junior. -- 1. ed. -- São Caetano do Sul, SP : Ed. do Autor, 2023. ISBN 978-65-00-60267-8 1. Acupuntura. 2. Medicina chinesa tradicional 3. Terapia alternativa I. Título. 23-141441 Índice para catálogo sistemático: 1. Acupuntura : Medicina tradicional chinesa 615.892 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB 1/3129 CDD-615.892 CDU-WB-369 SUMÁRIO ÍNDICE DE FIGURAS 7 PREFÁCIO 11 PREFÁCIO DO AUTOR 13 INTRODUÇÃO 19 ZÀNG-FǓ (臟腑) Coração (xīn 心) Pulmão (fèi 肺) Fígado (gān 肝) Baço (pí 脾) Rim (shèn 腎) Xīn Bāo (心包) Intestino Delgado (xiǎo cháng 小腸) Intestino Grosso (dà cháng 大腸) Vesícula Biliar (dǎn 膽) Estômago (wèi 胃) Bexiga (páng guāng 膀胱) SĀN JIĀO (三焦) 31 31 32 33 34 34 35 35 36 36 36 37 39 SÍMBOLOS A névoa (wù 霧) O borbulhar (ōu 漚) A drenagem (dú 瀆) O caldeirão (dǐng 鼎) 43 44 45 46 49 5 CONTEÚDOS Líquidos (jīn yè 津液) Sangue (xuè 血) Energia (qì 氣) Essência (jīng 精) SĀN JIĀO EM MOVIMENTO Aquecedor Inferior (xià jiāo 下焦) Aquecedor Médio (zhōng jiāo 中焦) Aquecedor Superior (shàng jiāo 上焦) Os três aquecedores SĀN JIĀO E XUÈ 51 51 52 53 56 59 59 61 64 65 73 MÌNG (命), XÍNG (形) E XÌNG (性) 75 ZŌNG OU YUÁN: ANCESTRAL? 81 SĀN JIĀO E AS EMOÇÕES 85 EIXO CALOR-FRIO 91 SĀN JIĀO E A MADEIRA 95 DESEQUILÍBRIOS E TERAPÊUTICAS Sān Jiāo e o pulso Sān Jiāo, sinais e sintomas gerais Sān Jiāo em yáng e yīn Excesso de yáng em Sān Jiāo Tratando excessos de yáng Insuficiência de yīn em Sān Jiāo Tratando insuficiências de yīn Insuficiência de yáng em Sān Jiāo Tratando insuficiências de yáng Excesso de yīn em Sān Jiāo Tratando excessos de yīn CONSIDERAÇÕES FINAIS 99 99 103 111 112 114 116 118 119 122 123 124 127 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6 ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1 – Tài jí, a ‘Suprema Unidade’, mostrando a alternância dinâmica entre os opostos complementares, o yīn e o yáng. Página 20 Figura 2 – Símbolo da Cruz em movimento gerando à Swastika. Página 21 Figura 3 – O pentagrama chinês, wǔ xíng (五行 ). Página 22 Figura 4 – Pentagrama chinês com os cinco movimentos (wǔ xíng 五行 ) e os zàng-fǔ associados a cada um. As setas dizem respeito às interações de Geração e Dominância. Página 24 Figura 5 – Acima à esquerda, pictograma para fogo. Acima ao centro e à direita, pictogramas para ave. Abaixo, pictograma para Jiāo. Página 26 Figura 6 – Xilogravura representativa dos zàng-fǔ (autor desconhecido, discípulo de Yin Zhenren, Xìngmìng guīzhǐ: sìjuǎn, 1622). Página 38 Figura 7 – Xilogravura da edição de 1817 de Bian Que Mai Shu Nan Jing, de Xiong Qinghu (Dinastia Qing) mostrando os aquecedores nas cavidades tóraco- abdominais, citando Líng Shū: “Aquecedor Superior como névoa, Aquecedor Médio como bolhas na água, Aquecedor Inferior como drenagem”. Página 41 Figura 8 – Hexagrama 50, o Caldeirão do Yì Jīng. “O santo sábio cozinha para realizar sacrifício ao Senhor Supremo do Céu, e para alimentar as pessoas santas e virtuosas”. Página 49 7 Figura 9 – Pictograma de xuè. Segundo Wieger (1965), “um vaso contendo algo. O caractere primitivamente significava o sangue da vítima em um sacrifício”. Página 52 Figura 10 – Pictograma de qì. Segundo Wieger (1965), vapor ascendendo de um grão de arroz cozido. Página 53 Figura 11 – Pictograma de yíng. Segundo Wieger (1965), “um assentamento antigo. Em formas mais antigas, há duas tendas ou cabanas (...) e dois fogos, para a cozinha ou afugentar bestas (...), medir, regular, esquematizar”. Página 54 Figura 12 – Pictograma de jīng. Segundo Wieger (1965) o grão de arroz ao lado da luz verde, a cor das plantas brotando. Página 56 Figura 13 – Esquema do Sān Jiāo considerando três caldeirões trípodes. Página 70 Figura 14 – Esquema do Sān Jiāo considerando um caldeirão trípode, com a drenagem, a espuma borbulhante e a névoa. Página 71 Figura 15 – Pictograma de zhì, a ”Vontade”. Segundo Wieger (1965) “objetivo 心 que é fixo e se desenvolve por si mesmo”. Como uma planta brotando do Coração (xīn). Página 76 Figura 16 – Pictograma de lè, a "Felicidade". Sinos ou timbres (么), no centro um tambor (白), montados numa base de madeira (木). Página 77 Figura 17 – À esquerda, pictograma para lìng. À direita, pictograma para mìng (adição de uma boca). Segundo Wieger (1965), mìng ( 命) é “uma ordem dada oralmente (...) significa o decreto que o Céu fala ao homem para viver e que determina seu destino”. Página 77 Figura 18 – Pictograma de yuán. Segundo Wieger (1965), o que está acima do homem. Princípio, origem. Página 82 8 Figura 19 – Pictograma de yuán. Segundo Wieger (1965), qualquer origem, uma fonte. “Nascentes jorrando em um penhasco”. Página 82 Figura 20 – Pictograma de zōng. Segundo Wieger (1965), “uma sala ancestral. Página 83 Figura 21 – Pictograma de yì, o “Propósito”. Segundo Wieger (1965) “a intenção 心 do homem que fala, manifestada pelos sons 音 que ele emite”. Página 87 Figura 22 – Pictograma de rèn, o “encarregar-se”. "Um homem levando uma carga formada de dois fardos equilibrados e suspensos às extremidadesde uma barra de madeira comprida e flexível colocada no ombro" (Vallée & Larré, 2007), uma vara de bambu para Wieger (1965). Página 88 Figura 23 – Xilogravura representativa da ligação do Rim (shèn) com o Cérebro (nǎo) através do Vaso Governador (autor desconhecido, discípulo de Yin Zhenren, Xìngmìng guīzhǐ: sìjuǎn, 1622). Página 94 Figura 24 – Representação dos movimentos dos zàng no Tài Jí Página 97 Figura 25 – Xilogravura da representação do pulso radial direito, mostrando Sān Jiāo e Mìng Mén. Edição do período do reinado Wanli da dinastia Míng (1573- 1620). Página 101 Figura 26 – Wài lào gōng à esquerda e nèi lào gōng (CS8) à direita, ambos no centro da mão. Xilogravura de 1817. Página 108 Figura 27 – Xilogravura de exercício de qì gōng chōu tiān huǒ. Xiuzhen miyao, texto de origem desconhecida, redescoberto e publicado com prefácio por Wang Zai em 1513. Página 110 Quadro 1- Resumo com as alterações possíveis nas diferentes disfunções em cada nível de Sān Jiāo. Página 125 PREFÁCIO Escrever o prefácio de um livro é uma atitude e uma tarefa que me causa uma alegria sem tamanho! Trata-se de conhecer uma obra em sua versão primeira, cheia de sonhos, antes de ser mostrada ao mundo. Escrever é entregar-se ao mundo, é deixar uma trilha de pistas sobre o que se ama, estuda e compreende. Escrever um livro exige um trabalho cuidadoso de escolha do conteúdo. Foi o que fez o meu prezado amigo, Dr Wilson, professor, acupunturista e estudioso dos conteúdos de medicina clássica chinesa. Esse não é um conteúdo fácil. O Sān Jiāo é um órgão especial, muitas vezes difícil de apreender, porque é desconhecido fora dos textos clássicos de medicina tradicional chinesa. E a visão chinesa é múltipla e complexa. Que melhor maneira de estudar as complexidades da teoria médica chinesa do que examinar a natureza de um órgão que só existe em sua funcionalidade? É bom apresentar ao leitor uma visão geral. Sān Jiāo é frequentemente traduzido como "triplo aquecedor", ou "triplo reaquecedor". Infelizmente, essas traduções lançam pouca luz sobre o que o Sān Jiāo é ou o que ele faz. Para facilitar essa compreensão, o autor faz uma breve apresentação dos zàng-fǔ para depois entregar-se a uma bela descrição dos movimentos que permeiam Sān Jiāo em três centros onde ocorrem transformações a todo instante. 11 Caminho das águas Apresenta a forma poética como o texto clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo mostra como os líquidos dentro do nosso corpo são transformados e impulsionados, gerando a ideia de movimento equilibrado e incessante entre água e fogo, líquidos e calor. Esse movimento ora dissipa os líquidos como uma névoa, ora forma uma espuma, borbulhante, macerando e absorvendo o que vai nutrir o corpo todo, e por fim, escoa o que precisa ir embora do nosso organismo. Há uma dinâmica fisiológica energética dos zàng-fǔ para que todas as águas encontrem o seu caminho perfeito. Pode parecer redundante afirmar que nosso corpo é constituído por 80% de líquidos. E que eles precisam fluir livremente em nosso organismo. Mas se acaso não fluir, teremos problemas. As situações patológicas e seus respectivos sintomas são abordados pelo autor de forma concisa, de fácil leitura e aplicação prática imediata. Convido você, aluno e profissional, para desfrutar da leitura desse assunto, escrito para facilitar o entendimento desse complexo, mas atual tema. Essa leitura ajudará o profissional a melhor atender seus pacientes ou a ensinar Sān Jiāo aos seus alunos. Ajudará, sobretudo, o estudante, para que consiga vencer a resistência a leitura de textos clássicos e ir mais longe na descoberta dos segredos da medicina chinesa. Assim, sem mais delongas, deixo que o leitor adentre essas interessantíssimas páginas, para aprender. Parabéns ao autor pela qualidade do trabalho! Boa leitura a todos! Profª Drª Cristiane Garcia Sanchez São Paulo, 31 de março de 2023. 12 PREFÁCIO DO AUTOR A Medicina Tradicional Chinesa (MTC), especialmente a modalidade da acupuntura, tem se tornado mais popular a cada dia no ocidente, não só dentro do universo das anteriormente ditas “medicinas alternativas”, mas também na rotina dos serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, tornando estas práticas mais distantes do esoterismo e mais próximas da alopatia e do jaleco branco. A própria denominação de “alternativa” tem sido desaconselhada por conta disso, já que ao invés de alternar de modalidade de tratamento, busca-se que os serviços, os profissionais e o indivíduo integrem as práticas das medicinas ocidental e oriental, da moderna e da antiga. O nome elegido então é o de “Práticas Integrativas”: integrar os procedimentos, as racionalidades, a atenção. Pelo aumento de popularidade e por essa maior proximidade com os serviços de saúde, há uma óbvia e esperada perda de conteúdo e profundidade na prática da grande massa de profissionais. A preocupação não deve ser se isso vai acontecer, porque sempre acontece, é característico da evolução humana. Caberia mais atenção à criação e, principalmente, à manutenção das ricas fontes de conhecimentos em medicina tradicional. E, claro, ao seu devido reconhecimento. As obras clássicas chinesas, as que foram preservadas até hoje, dificilmente irão se perder. Além da conservação física em museus e bibliotecas, quase todas já foram digitalizadas e disseminadas em inúmeros servidores digitais espalhados pelo mundo. 13 Caminho das águas A manutenção das fontes diz respeito ao seu reconhecimento como válidas e não apenas mantê-las para fins históricos e de “curiosidade”. Devem ser respeitadas tais quais grandes mestres o seriam, e não como material literário para se verificar o “como se pensava antigamente”. É comum hoje em dia validar qualquer tipo de saber atrelando-o ao método científico. Indubitavelmente isso é oportuno, mas é importante reconhecer que a sabedoria antiga, gerada ao longo de milênios e desenvolvida pela longa e paciente observação do ser humano junto aos processos naturais (tão distantes atualmente), também pode ser fonte legítima de conhecimento. Confrontar as duas é um erro que não leva a nada. Negar um dos lados, o cientifico ou o tradicional, também. O caminho é a integração, sem desmerecer ou diminuir quaisquer partes de ambas. Durante a leitura das obras milenares, se forem devidamente respeitadas, é fácil verificar o quão sintético e ao mesmo tempo profundo é o que os autores antigos procuravam transmitir. E o quão se pode extrair de cada leitura, mesmo ela tendo sido repetida várias vezes. Entretanto a sua consulta, mesmo sendo o acesso aos clássicos relativamente fácil, nem sempre é estimulante e atrativa. Costumo comparar a leitura do Nèijīng, o Livro do Imperador Amarelo, por exemplo, com a conversa hipotética com um antigo sábio chinês: se faz penetrante, enigmático e, às vezes sarrista e sarcástico, e que não tem a intenção de “passar o conhecimento” e sim estimular a geração dele dentro de quem ouve, dependendo sempre da vontade e de uma certa disponibilidade espiritual. Daí vem a importância dos autores modernos. Um meio do caminho entre os clássicos antigos e o praticante comum, que não quer muito saber diferenciar “Shén” (神) de “Guǐ” ( 鬼), quer saber apenas quais pontos deve usar em determinadas patologias. O que se buscou aqui é a produção de um conteúdo profundo que reverencie os sábios antigos, de uma forma convidativa e mais acessível. E sobre um tema que, mesmo com muito material produzido, raramente é tratado como principal, ou lhe é dado a atenção merecida. Nada fora criado, apenas compilado, organizado de uma forma um pouco diferente, baseado no que dizem os mestres antigos e nos símbolos que eles deixaram. A utilidade prática disto é que o Triplo Aquecedor reflete e reverbera quase todas as condições de desequilíbrio do ser humano, físicas e emocionais. "Práticas Integrativas" também diz respeito ao 14 Fisiologia dos Três Aquecedores olhar integral do ser humano, em seus aspectos físicos, mentais, sociais e espirituais. E o Triplo Aquecedor é o grande integrador do organismo. Ou seja, estuda-lo ajuda na compreensão de toda a fisiologia e patologia energética, de todos os órgãos e vísceras e seus anexos, e, principalmente, na forma como interagem e se integram. Funciona assim também como um instrumento mnemônico de estudo, à imagem dos antigos emblemas: sintético e integrador, que, se lhe investido tempo e reflexão, revela os mecanismos da natureza dentro do ser humano. Refletir sobre o Triplo Aquecedor patrocina a integralidade das práticas. Usufruindo-se da popularização da MTC, que o interesse aprofundado no pensamento que a abarca também aumente, e que este material, de linguagem mais ocidental e didática, seja útil. Aproveitemo-nos dos símbolos que os próprios chineses da antiguidade nos presentearam. 15 "O que se sabe, saber que se sabe O que não se sabe, saber que não se sabe"1 孔夫子 Kǒng Fūzǐ "Saber não saber engrandece Não saber saber aliena"2 老子 Lǎozǐ "Vejam, a Suprema Música ela responde primeiro às atividades do homem ela segue a razão Celeste"3 莊子 Zhuāngzǐ 1 知之為知之不知為不知 Zhī zhī wéi zhī zhī Bù zhī wéi bù zhī 2 知不知上不知知病 Zhī bù zhī shàng Bù zhī zhī bìng 3 夫至樂者先應之以人事順之以天理 Fū zhì yuè zhě Xiān yīng zhī yǐ rén shì Shùn zhī yǐ tiānlǐ CAMINHO dAS ÁGUAS FISIOLOGIA dOS TRÊS AQUECEdORES INTRODUÇÃO Triplo Aquecedor, ou Sān Jiāo, é uma estrutura funcional invisível que, embora não tenha um representante material, está classificado como uma das vísceras ordinárias do corpo humano, segundo a Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Está descrito desde o Clássico Interno do Imperador Amarelo (Huángdì Nèijīng 黃帝內經) – um dos mais antigos livros canônicos de r efe rência em MTC – em seus dois volumes, o Sù Wèn (素問) e o Líng Shū ( 靈 樞)4. Desde então, aparece em quase todos os clássicos de MTC quando se trata de órgãos e vísceras. A víscera Sān Jiāo é associada ao movimento “Fogo” (huǒ 火) do pentagrama chinês, símbolo comumente utilizado não só na MTC, mas em várias áreas do pensamento antigo. Em MTC os órgãos e vísceras do corpo humano, e seus anexos, costumam ser dispostos neste símbolo pentagramático, a estrela de cinco pontas. Essa distribuição esquemática facilita a compreensão das características de cada estrutura e das relações de um com o outro. O pentagrama chinês é um símbolo derivado do tài 太極 jí ( ), a ‘Suprema Unidade’, famoso por ilustrar para os chineses a interação entre as duas forças opostas e complementares da natureza, o yīn (陰 ) e o yáng (陽). 4 Embora tenha sido compilado e editado em 762 d.C. por Wáng Bīng na dinastia Táng, sua autoria remonta há milênios atrás, considerando o estilo de escrita e as citações feitas a ele em obras anteriores a dinastia Táng. Por exemplo, Wáng Shūhé, autor de Màijīng, foi um grande comentarista do Nèijīng, tendo vivido de 180 a 270 d.C. 19 Caminho das águas Figura 1 – Tài jí, a ‘Suprema Unidade’, mostrando a alternância dinâmica entre os opostos complementares, o yīn e o yáng. O yīn e o yáng no pensamento chinês representam a dualidade, a polaridade, os opostos complementares e interdependentes. Não existe um sem o outro, mesmo sendo contrários. São mais qualidades das coisas do que coisas em si, embora para os chineses da antiguidade, tudo passa a existir, ainda que não de forma concreta, quando ganha um nome e uma função. Abordaremos o assunto novamente. Como adjetivos, são aplicáveis a quaisquer qualificações do universo, trate-se de coisas físicas ou abstratas, estáticas ou móveis. Luz e sombra, calor e frio, atividade e repouso, ascendência e descendência são exemplos. Não existe sombra, se não há luz e a luz é imperceptível se não houver sombra para contrastá-la. Estes dois princípios não são estáticos e se alternam num ciclo: quando há excesso de um, naturalmente, o outro surge de seu interior, desenrolar este que compreende todas as modificações dos Seres. Trata-se de uma predominância alternante: a evolução e a involução, o desenrolar e o enrolamento, a catálise e análise, a marcha ascendente e a marcha descendente. São a expressão da lei que rege todo o conjunto da manifestação universal (Guenón, 1993). Outro símbolo para este princípio é a cruz da tradição chinesa. Nela há a noção de um centro equilibrado e orientado para os polos cardinais formados pelos dois eixos, um vertical e um horizontal. A extremidade esquerda do eixo horizontal (de quem observa) simboliza o surgimento do yáng até sua plenitude no polo celeste (extremidade superior do eixo vertical). A extremidade direita do eixo horizontal designa o surgimento do yīn 20 Fisiologia dos Três Aquecedores até sua plenitude no pólo terrestre (extremidade inferior do eixo vertical) (Dulcetti Junior & Sichero, 2004). Nesta cruz, a plenitude do yáng possui a noção de Fogo (quente e sutil, sobe) e a plenitude do yīn possui a noção de Água (espessa e fria, pesada em relação ao fogo, desce). Nas outras duas extremidades, ou no eixo horizontal, à esquerda (de quem observa) a Madeira, com a noção de início do crescimento vegetal que se desprende do solo e cresce em sentido do Céu, o início do yáng. À direita, o Metal, possuindo a noção de pesado, inerte, voltando à Terra, o início do yīn. O centro é ocupado pelo observador, correspondendo à terra, equilibrador dos outros quatro elementos ou movimentos (Dulcetti Junior & Sichero, 2004). Desta forma, não se trata mais de um símbolo da dualidade e sim do princípio quádruplo. O exemplo mais óbvio de aplicação deste princípio é a regularidade das quatro estações do ano. Figura 2 – Símbolo da Cruz em movimento gerando à Swasti ka. Se flechas ou linhas perpendiculares forem adicionadas à cruz saindo de cada eixo para lhe dar movimento, surge o símbolo da swasti ka, 21 Caminho das águas símbolo da Tradição Primordial (Guenón, 1993), também próximo ao Tài Jí, embora tenha sido usado para outros fins durante a Segunda Grande Guerra. Em algum "momento" da história do pensamento chinês, a terra (tǔ) é alocada após o Fogo (huǒ), transformando a cruz, simbolismo do princípio quádruplo, num pentagrama, símbolo referente ao número cinco. Mesmo com essa aparente mudança de posição, a terra (tǔ) se mantém no meio, entre o yáng e o yīn. As insígnias “Madeira” (mù 木), “Fogo” (huǒ 火), “Terra” (tǔ 土), “Metal” (jīn 金) e “Água” (shuǐ 水) devem sempre ser tidas como metáforas relacionadas ao ciclo ‘Principial’, se manifestando de forma quíntupla, evidenciado pelos fenômenos naturais. Não se fala aqui de madeira, fogo ou água propriamente ditos, por exemplo. Figura 3 – O pentagrama chinês, wǔ xíng (五行). O Fogo (huǒ), simbolicamente, também é dividido em dois, sendo um aspecto mais brando e fraco, e outro mais intenso, forte e ascendente. 22 Fisiologia dos Três Aquecedores São chamados então de Fogo Ministerial e Fogo Imperial, respectivamente. Sān Jiāo está no movimento “Fogo” (huǒ), na posição inferior, o “Fogo Ministerial” (xiāng huǒ 相火), comparado ao Coração (xīn 心) e ao Int estino Delgado (xiǎo cháng 小腸) que ficam no “Fogo Imperial” (jūn huǒ 君 火). Em cada uma das fases/movimentos/elementos também há a alternância entre yīn e yáng. Dentro do movimento Fogo Ministerial, Sān Jiāo faz par com Xīn Bāo (心包 )5 sendo este yīn em relação ao Sān Jiāo, yáng. Sān Jiāo, portanto, é uma víscera yáng do movimento fogo, na posição ministerial. Apresentará características yáng, entre elas, o calor, mas de forma branda. Os principais órgãos e vísceras do corpo humano, incluindo Sān Jiāo, possuem canais de circulação sob a pele onde está contida a maioria dos pontos utilizados em acupuntura. O canal ou meridiano principal6 de Sān Jiāo se inicia no quarto dedo da mão e segue pelo membro superior até próximo à orelha, tendo ao todo 23 pontos. Seu horário de máxima atividade é às 22 horas, e o de mínima é às 10 horas. Sempre está incluído nos livros modernos quando se discute fisiologia em MTC. No entanto, não é sempre que se apresenta uma descrição de Sān Jiāo mostrando seu trânsito de forma sistêmica e a influência e a regulação que impõe sobre os outros órgãos e vísceras. Costuma estar limitado a apenas ‘contê-los’ dentro das cavidades tóraco-abdominais. 5 Os nomes ocidentais para Xīn Bāo variam de “Coração Mestre”, “Protetor do Coração”, “Pericárdio”, “Circulação-Sexualidade” e "Invólucro do Coração". Ambos não têm órgãos/ vísceras materiais. 6 Meridianos principais, ou zhèng jīng (正經), são em número de 12 e se relacionam com os 12 zàng- fǔ (órgãos e vísceras). Em MTC são descritos mais diversos outros meridianos no corpo, relacionados ou não a zàng-fǔ. 23 Caminho das águas Figura 4 – Pentagrama chinês com os cinco movimentos (wǔ xíng 五行 ) e os zàng-fǔ associados a cada um. As setas dizem respeito às interações de Geração e Dominância. Talvez a pouca descrição seja reflexo da dificuldade de vislumbrarmos uma víscera ‘virtual’, a qual os chineses da antiguidade atribuíram características, funções, pontos... mas não a localizaram em nenhuma estrutura material. 24 Fisiologia dos Três Aquecedores A descrição detalhada de Sān Jiāo三焦 ( ) e de seus possíveis sinais patológicos facilita a compreensão da fisiologia de todo o sistema zàng-fǔ (臟腑 ) de forma integrada e as maneiras de como um influencia o outro. Sān Jiāo, é um dos doze zàng-fǔ, mais precisamente, um dos fǔ. A tradução mais comum para zàng-fǔ é "órgãos e vísceras". Zàng (臟 ) são as estruturas plenas, de aspecto yīn, mais conhecidos como órgãos plenos ou cheios. De fato, materialmente não possuem espaços ocos visíveis, exceto o Coração, mas o qual está sempre pleno de sangue. Têm importância maior em relação aos fǔ, ocos, pois sua função principal enquanto conjunto é entesourar o jīng (精 ), nossas “essências”. São zàng o Coração (Xīn 心), o Pulmão (Fèi 肺), o Fígado (Gān 肝), o Baço (Pí 脾), o Rim (Shèn 腎) e Xīn Bāo (心包). Os fǔ (腑 ) são as estruturas ocas, conhecidos como vísceras ocas, que oram se enchem ora se esvaziam. Quando cheias separam seus conteúdos, segundo os chineses, em “claros” (qīng 清 ) e “turvos” (zhuó 濁 ). “Claros” (qīng), no contexto da assimilação, é tudo o que pode ser absorvido e se tornar jīng, as “essências”, para ser utilizada na nutrição, defesa e forma, entesourado nos zàng. “Turvos” (zhuó) diz respeito a porção yīn que não pode ser aproveitada e segue em via descendente, até ser excretada7. Esse movimento dinâmico de se encher e de se esvaziar é o que os caracteriza como yáng. São fǔ o Intestino Delgado (Xiǎo Cháng 小腸), o Intestino Grosso (Dà Cháng 大腸), a Vesícula Biliar (Dǎn 膽), o Estômago (Wèi 胃), a Bexiga (Páng Guāng 膀胱) e Sān Jiāo. Desta classificação, a única que não separa claro (qīng) de turvo (zhuó) é a Vesícula Biliar (dǎn), a qual se enche sempre de jīng (essência) claro, razão pela qual é categorizada também como uma das vísceras extraordinárias (qí héng zhī fǔ 奇恆之腑). Os outros desta categoria são Cérebro (nǎo 腦), Medula (suǐ 髓), Útero (bāo 胞), Mài (rede circulatória 脈) e Ossos (gǔ 骨). Os caracteres chineses são derivados de formas mais arcaicas e antigas chamadas de “pictogramas”. Os caracteres de Sān Jiāo são三焦 , e os pictogramas que compõem Jiāo podem ser vistos na figura 5. 7 A oposição complementar entre Claro (qīng) e Turvo (zhuó) é similar à do yīn e yáng, especialmente no seu aspecto interdependente e relacional. Ou seja, nada é absolutamente Claro ou Turvo, assim como nada é absolutamente yīn ou yáng. 25 Caminho das águas Sān (三 ) quer dizer “três”, mas não apenas o número três. Assim como diversas tradições antigas, os chineses aproveitavam a simbologia dos números como emblemas. Sempre que nomeavam algo e o “numeravam”, o faziam para adjetivá-lo e não apenas contabilizá-lo. Todos os números têm um significado mais profundo o qual as culturas antigas o concebiam através da observação da natureza. Por serem três aquecedores, eles apresentarão características de princípios naturais associados ao Princípio chinês da tríade “Céu-Homem-Terra”. A tríade transmite a ideia da integração das dualidades opostas complementares, sua interação e sua inter-relação. Yáng no alto, yīn no baixo e no meio algo que os interliga, os une e possui características de ambos. Figura 5 – Acima à esquerda, pictograma para fogo. Acima ao centro e à direita, pictogramas para ave. Abaixo, pictograma para Jiāo. O Meio ou Centro (zhōng中) possui um caractere simbolizando um alvo quadrado atravessado por uma flecha no centro. Significa, segundo Schatz et al. (1979), a justa medida necessária para a eficácia e para o resultado. Ou seja, o equilíbrio perfeito entre o yīn e o yáng, o terceiro nível entre ambos. O "três chinês" sempre vai apresentar yīn, yáng e zhōng. 26 Fisiologia dos Três Aquecedores Jiāo (焦 ) é, segundo Wieger (1965), uma ave assada ou uma grelha onde se assa uma ave, para comer. Algo usado para aquecer, mas não a fonte de calor propriamente dita. Unindo ambos, Sān Jiāo, temos uma estrutura onde há aquecimento e cozimento em três níveis, havendo diferenças entre as consistências e as intensidades de cada local, dependendo de suas características mais yīn ou mais yáng. Usa-se a palavra “cozimento” porque algo entra, é aquecido e misturado a outros elementos, e sai como outra coisa, característica de todo fǔ. As traduções mais comuns para Sān Jiāo são "três fogareiros", "triplo aquecedor", ou, segundo George Soulié de Morant (1990), "triplo reaquecedor", tradução imprecisa em português de "triple réchauffeur". Dada a complexidade de interpretação dos caracteres chineses, todos os termos de MTC sofrem com as inúmeras variações de tradução para os idiomas ocidentais. Talvez tentar compreender o termo em chinês e não traduzir tudo seja mesmo a melhor opção, já que muito do significado pode e vai se perder. Por isso, aqui se mantém a presença dos nomes em chinês e seus caracteres, sempre que possível. Junto a xīn bāo, o consenso é de que Sān Jiāo não possui correspondente anatômico na medicina ocidental. O Nán Jīng難經 ( ), o “Clássico das Dificuldades” da dinastia Hàn (206 a.C. a 220 d.C.), os descreve assim: “Xīn Bāo e Sān Jiāo são exterior e interior. Ambos têm nome, mas não tem forma” (Nán Jīng, 25º Dificuldade). Um detalhe importante a ser discutido antes é que, mesmo que os outros zàng-fǔ possuam correspondente anatômico, não podem ser considerados como exatamente a mesma coisa. Por exemplo, quando lidamos com "fígado" na medicina ocidental, estamos falando da glândula hepática localizada no hipocôndrio direito. Mas na medicina chinesa, o Fígado "Gān", simbolicamente, segundo o capítulo 8 do Sù Wèn, é o "general das forças armadas". Trata-se de uma estrutura funcional abrangente, que engloba a regulação do aporte 27 Caminho das águas sanguíneo e sua drenagem, a regência dos músculos esqueléticos, a visão, o planejamento, a raiva e a reatividade... e também a função hepática. Desta forma "gān" é bem maior que o "fígado", que por sinal, está contido em gān. Ambos não podem ser tratados como a mesma coisa. São próximos, mas não sinônimos. O mesmo vale para todos os outros órgãos e vísceras do corpo humano. Talvez as traduções não tenham sido eficazes, assim como muitos outros termos do idioma chinês que não podem ser traduzidos para a linguagem ocidental com apenas uma palavra. Ou seja, “fígado” é uma tradução no mínimo incompleta para o termo “Gān”. Por isso é que não se está contrapondo as fisiologias moderna e antiga. Elas versam sobre “coisas” diferentes, ainda que com mesmos nomes. Nada do que se descreve aqui está contradizendo o que a ciência moderna já descobriu e continua descobrindo sobre o funcionamento do corpo humano. A diferença é que as medicinas antigas, pelas características de sua época, consideravam mais essas macroestruturas funcionais. Sān Jiāo é uma dessas estruturas funcionais, mas, mais complexo que “fígado”, não possui nenhuma estrutura material específica, visível, a qual a mente ocidental poderia se apoiar para tentar compreendê-lo. Se procurarmos no dicionário, "Coração" em chinês é "Xīn". Ainda que já tenhamos compreendido que não são exatamente a mesma coisa, que "Xīn" é maior que o coração/bomba cardíaca, a primeira imagem que nos vem à mente, quase sempre, é a da bomba cardíaca. A partir dela, nossa mente se apóia e expande o significado de "Xīn", ou coração da MTC, quando lhe inserimos as funções de xīn que não são próprias do coração ocidental, tal como a distribuição de calor, o intelecto e a razão, a manifestação da alegria. Precisamos desse apoio. Então, quando falamos Coração (xīn) não estamos mesmo falando da bomba cardíaca e sim de uma estrutura funcional, inicialmente idealizada por pura observação dos fenômenos humanos comparados a elementos naturais numa época em que cadáveres não eram dissecados, tampouco sujeitos a experimentos suportados com o atual aparato tecnológico8. Aos poucos, conhecendo melhor a estrutura material, os chineses da antiguidade foram verificando que haviam sim órgãos físicos que centralizavam esses conjuntos de funções, mas que mantinham uma liga8 Neste texto, sempre que quisermos retratar as vísceras chinesas, elas estarão em maiúscula e com o nome chinês em Pīnyīn ao lado. 28 Fisiologia dos Três Aquecedores ção, ainda que invisível ou imensurável, com seus anexos e funções invisíveis próprias que vão além, neste caso, da bomba cardíaca. Conclusão por milênios de observação do ser humano. Daí a perpetuação da descrição destas estruturas funcionais. Sān Jiāo não possui nada equiparado, nada que centralize suas funções, nada material que possamos nos ancorar para mentalmente expandir sua função. E a MTC está repleta de estruturas assim, tais quais os Vasos Extraordinários (qí jīng bā mai 奇經八脈), o “Circulação-Sexualidade” (xīn bāo), a Porta do Destino (mìng mén 命門), os Quatro Mares (sì hǎi 四海), o Centro do Peito (dān zhōng 膻中). Daí a dificuldade de compreensão por nós, habituados ao raciocínio positivista, que considera a existência apenas do que se pode ver, sentir ou medir. Poderíamos apenas concluir que estas estruturas invisíveis são apenas modelos teóricos que os antigos vislumbraram para compreender a fisiologia humana, tais quais, por exemplo, o “Id”, o “Ego” e o “Superego” criados por Sigmund Freud para explicar a psique. São invisíveis, não podem ser localizados no cérebro, mas sua descrição teórica possibilita com que os fenômenos manifestos sejam explicados e previstos. Talvez as teorias de Freud ainda consigam ser aceitas e respeitadas porque não se pôde explicar, materialmente, de outra forma. Na MTC isso já acontece quando se tenta substituir a fisiologia do Coração (xīn) pela do coração, mais físico, mas mais empobrecido. Para os chineses da antiguidade, mesmo as coisas mais abstratas existem de fato, mesmo que não se possa tocá-las. Se os fenômenos perceptíveis levam à conclusão de que há um "orquestrador" num pano de fundo, então este orquestrador ganha um nome e um lugar na existência, ainda que não neste plano. Sān Jiāo é assim. Algo que não se pode ver, nem tocar. Não se pode medir, mas por observação e analogias com a Natureza, os chineses concluíram sua existência. Criaram “modelos teóricos” considerando uma função que, posteriormente, não se verificou estar centralizada em nenhum órgão ou víscera. Mas sua ação em organizar e reger todos os zàng-fǔ promoveu Sān Jiāo a “ser”. 29