Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial

2011, Espaço Aberto

O artigo versa sobre os sentidos das políticas governamentais, das ações dos movimentos camponeses e das corporações neste momento de intensificação da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis. Os autores analisam as relações e suas contradições a partir das influências dos paradigmas sobre as políticas de governos e sobre as ações das organizações. Discutem como as políticas e as ações modificam os parâmetros dos paradigmas. A partir de trabalho de campo, estudam três experiências de movimentos camponeses, sendo dois deles vinculados à Via Campesina. Estudam também documentos da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) para comparar as posturas dos movimentos camponeses frente às políticas e relações com o agronegócio. Com essas análises, os autores refletem sobre a relação existente entre território material e imaterial, confrontando as realidades, teorias, conceitos e ideologias por meio do debate paradigmático.

Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial Biofuel Policies in Brazil: Paradigms and Territory Disputes Bernardo Mançano Fernandes1 Universidade Estadual Paulista Presidente Prudente, Brasil Clifford Andrew Welch2 Universidade Federal de São Paulo Guarulhos, Brasil Elienai Constantino Gonçalves3 Universidade Estadual Paulista Presidente Prudente, Brasil Resumo: O artigo versa sobre os sentidos das políticas governamentais, das ações dos movimentos camponeses e das corporações neste momento de intensificação da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis. Os autores analisam as relações e suas contradições a partir das influências dos paradigmas sobre as políticas de governos e sobre as ações das organizações. Discutem como as políticas e as ações modificam os parâmetros dos paradigmas. A partir de trabalho de campo, estudam três experiências de movimentos camponeses, sendo dois deles vinculados à Via Campesina. Estudam também documentos da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) para comparar as posturas dos movimentos camponeses frente às políticas e relações com o agronegócio. Com essas análises, os autores refletem sobre a relação existente entre território material e imaterial, confrontando as realidades, teorias, conceitos e ideologias por meio do debate paradigmático. Palavras-chave: agrocombustíveis, paradigmas. disputa territorial Abstract: This article examines the meaning of public policy and the action undertaken by farmers and corporate movements at a moment when an expressive increase in the area planted in biofuel is taking place in Brazil. The authors analyze the influence and consequent contradictions caused by different paradigms on public policy and action taken by the organizations involved as well as how specific policy and action provoke change in paradigms. Based on field research, the experience of three farmer movements is evaluated with regard to policy and their relationship to agribusiness: two linked to the Via Campesina and the third being the National Confederation of Agricultural Workers (CONTAG). Based on this analysis, the relationship between material and non-material territory is discussed, comparing realities, theories, concepts and ideologies through paradigmatic debate. Keywords: biofuel, farmer movements, paradigms, material and non-material territory. Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✷ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. Introdução O processo de mudança de matriz energética nos desafia a pensar políticas, paradigmas, usos de territórios e seus protagonistas. Por causa desse processo, aumentou a intensidade da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis. Este fenômeno constitui-se em novo componente dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário, exigindo uma releitura dos modelos teóricos e de desenvolvimento territorial. A expansão da produção de agrocombustíveis está reordenando o uso dos territórios rurais, abrindo espaço para se questionar as formas de participação dos modos de produção capitalista e familiar no Brasil. Analisamos efeitos de políticas de agrocombustíveis no Brasil e reações do agronegócio e de movimentos camponeses por meio das leituras dos paradigmas. Para refletir sobre essa nova realidade, estudamos embates e propostas de movimentos camponeses, e a disputa territorial com o agronegócio. Examinamos os projetos de produção de agrocombustíveis pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Federação das Associações de Assentados e Agricultores Familiares do Oeste Paulista (FAAFOP), bem como a expansão da cana-de-açúcar na região do Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo, Brasil. A produção de agrocombustíveis está mudando os processos de territorialização e desterritorialização do agronegócio e do campesinato. Procuramos compreender, por meio dos princípios dos parâmetros dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário, os sentidos das políticas governamentais, das ações dos movimentos camponeses e das corporações neste momento de intensificação da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis. Analisamos as relações e suas contradições das influências a partir dos paradigmas sobre as políticas de governos e sobre as ações das organizações. No modo inverso, discutirmos como as políticas e as ações modificam os parâmetros dos paradigmas. A partir de trabalho de campo, estudamos três experiências de movimentos camponeses, sendo dois deles vinculados à Via Campesina. Estudamos também documentos da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) para comparar as posturas dos movimentos camponeses frente às políticas e relações com o agronegócio. Com essas análises, discutimos a relação existente entre território material e imaterial, confrontando as realidades, teorias, conceitos e ideologias por meio do debate paradigmático. Adotando esse método, aprofundamos nossas reflexões sobre as disputas territoriais. Tema tão estudado na geografia, mas pouco debatido em outras áreas do conhecimento que utilizam o conceito de território apenas no sentido de área e extensão, desconhecendo as multidimensionalidades do território e as relações de poder que o determinam. Com essas referências, discutimos diferentes formas de disputas territoriais no campo agrário e no campo das ideias, afirmando que esses campos são inseparáveis, assim como são indissociáveis os territórios materiais e imateriais. Neste artigo, estudamos duas formas concretas de disputas territoriais: a territorialização-desterritorializaçãoreterritorialização (TDR) do campesinato e do agronegócio, e a territorialidade do agronegócio no território do campesinato. Como resultados de nossos estudos, apresentamos as novas conflitualidades e territorialidades construídas nesse processo, contribuindo com a atualização dos paradigmas. ✁✁ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial Paradigmas da Questão Agrária e do Capitalismo Agrário A questão agrária não pode ser tratada como uma crise agrária, porque ela não é um problema temporário. Ela é um tema permanente, uma questão estrutural do capitalismo, sendo compreendida pelo processo constante de produção de desigualdades, como por exemplo: concentração de terra, riqueza e poder, que promove contraditoriamente a destruição e recriação do campesinato (OLIVEIRA, 1991). Esse processo de desigualdades cria processos de resistências. Camponeses de todo o mundo são cotidianamente expropriados de seus territórios e lutam com persistência para continuar existindo (FERNANDES, 2000; DESMARAIS, 2007). As desigualdades e contradições geradas pela questão agrária no capitalismo têm sido discutidas e interpretadas de formas opostas. E no centro desse debate, está a existência do campesinato. Alguns autores compreendem esse processo desigual e contraditório como uma forma de destruição do trabalho familiar, que representaria o fim do campesinato (GOLDBERG, 1996; PEREIRA, 1997). Outros autores entendem o processo como gerador de resistências e recriação (BRYCESON et al., 2000; OTERO, 2004; PLOEG, 2008). A partir desta breve explanação, enfatizamos que na essência da questão agrária no capitalismo está o processo desigual e contraditório a destruir e recriar o campesinato. Oliveira (1991) tem afirmado persistentemente esse caráter contraditório do capital a criar, destruir e recriar o campesinato. Não há dúvidas que a destruição do campesinato, numa leitura geográfica, é resultado da territorialização do capitalismo no campo ou, para dizer de outro modo, da expansão das relações capitalistas no meio rural. Todavia, a sua recriação não é realizada somente como resultado da expansão da ordem capitalista, por meio da compra ou do arrendamento da terra. No Brasil, por exemplo, a luta pela terra por meio das ocupações é a principal forma de acesso à terra (FERNANDES, 2000). As ocupações de terra evidentemente não fazem parte da ordem capitalista, e por esse motivo são criminalizadas pelos governos. Apesar da criação de diversas medidas políticas para acabar com as ocupações, estas continuam sendo uma das mais importantes formas de luta popular. As ocupações são apenas uma forma de luta pela terra, enquanto outra forma importante são as lutas das comunidades camponesas e indígenas para continuarem na terra, resistindo à expropriação. Para combater essas insistentes formas luta pela terra em várias partes do hemisfério sul, o Banco Mundial propôs a diversos países a criação linhas de financiamento para compra de terras (BORRAS, 2006; RAMOS FILHO, 2008). Esta é uma forma de redirecionar a luta pela terra do campo da política pública para o campo do capital, ou seja, da ordem capitalista para manter o controle social sobre os conflitos fundiários, impedindo sua utilização para questionar a ordem capitalista. Analisar a questão agrária como um tema conjuntural do capitalismo é uma opção ideológica que desconsidera a sua essência, ou seja, desconsidera a questão em si. Desse modo, não há uma questão agrária para os cientistas que fazem essa opção ideológica, pois eles compreendem que essa questão não seria um problema estrutural do capitalismo. A concentração de terra, riqueza e poder, bem como a destruição e recriação do campesinato seriam problemas conjunturais do desenvolvimento agrário no capitalismo, os quais deveriam ser resolvidos pela lógica do capitalismo agrário. É dentro desta lógica, por exemplo, que se encontram as políticas de reforma agrária de mercado do Banco Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✂✄ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. Mundial. Essas interpretações são de dois paradigmas4 que procuram explicar o processo. Cada paradigma representa uma tendência ideológica contra ou a favor do capitalismo. Por essa razão, cada paradigma escolhe os elementos da realidade que pretende enfocar em suas análises. Os paradigmas não são territórios restritos, ao contrário, eles se sobrepõem, dialogam e possuem diferenças fundamentais. O paradigma da questão agrária prioriza as lutas de classes para explicar as disputas territoriais, os modelos de desenvolvimento e suas conflitualidades5 . Sendo a questão agrária um problema estrutural, a luta contra o capitalismo é a perspectiva de construção de outra sociedade. A produção de desigualdades também é explicada como um problema conjuntural do capitalismo e que poderia ser superado por meio de políticas promotoras da “integração6 ” do campesinato ou “agricultor de base familiar” ao mercado capitalista. Essa “integração” seria necessária porque o campesinato compõe uma estrutura incompleta e necessita do mercado capitalista para se desenvolver. Nessa lógica, campesinato e capital “interagem” e – enfatizamos – a desigualdade dessa interação geradora de subordinação e expropriação é compreendida como um problema conjuntural. Esse processo é explicado pelo paradigma do capitalismo agrário, que prioriza as políticas sociais para aproximar relações entre a produção capitalista e a produção familiar (ABRAMOVAY, 1992; FERNANDES, 2008b). Para o paradigma da questão agrária, o problema está na estrutura. Para o paradigma do capitalismo agrário, o problema está no camponês. Em meio às diferenças fundamentais desses paradigmas, estão as interpretações sobre os sentidos das relações existentes entre campesinato e capitalismo. Para o paradigma da questão agrária, são sempre as relações de subordinação do campesinato ao capitalismo que levam uma fração do campesinato à insubordinação, gerando conflitualidades permanentemente expressas pelas disputas territoriais. Os estudiosos do paradigma do capitalismo agrário veem as relações existentes entre campesinato e capitalismo como relações de integração, de modo que as conflitualidades raramente aparecem em suas pesquisas. Diversos trabalhos produzidos desde os parâmetros desses dois paradigmas atualmente discutem o movimento de diferenciação, destruição e recriação do campesinato. Abramovay (1992) defende a tese da metamorfose do campesinato no agricultor familiar, por meio da integração aos mercados capitalistas e aos parâmetros tecnológicos do agronegócio (monocultura, agrotóxicos etc.). Fernandes (2000) analisa o processo TDR, enfatizando a criação do campesinato por meio da ocupação de terra pelo MST. Ploeg (2009) estuda o caráter resiliente do campesinato que, resistindo ao processo de integração às corporações do agronegócio, retoma suas identidades e o modo camponês de praticar a agricultura. Carvalho (2009) faz uma leitura crítica da denominada “integração do campesinato aos mercados capitalistas” e enfatiza as formas de resistência camponesa como uma catarse em que o camponês recupera sua rebeldia. É importante destacar que a consolidação desses paradigmas na interpretação da questão agrária ou do capitalismo agrário neste início de século tornou obsoletas as teses de destruição do campesinato. Não há – na última década – nesses dois paradigmas publicações que defendam o fim do campesinato. A participação do campesinato na produção de commodities tem sido uma forma de integração ao capitalismo, como explica o paradigma do capitalismo agrário, ou uma forma de subordinação tão criticada pelo paradigma da questão agrária. As commodities ☎✆ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial agrícolas são monoculturas produzidas em grande escala, predominantemente pelo agronegócio e em parte pelo campesinato. O conceito de agronegócio é uma “panaceia”. Definimos o agronegócio como o modelo de desenvolvimento da agricultura capitalista criado pelas corporações transnacionais, que começou a ser formado nas décadas de 1940 e 1950, e se consolidou nas décadas de 1980 e 1990 7 . As corporações do agronegócio estão organizadas em conjuntos de sistemas que controlam as commodities8 . Algumas corporações controlam todos os sistemas ou a maior parte. O conjunto de sistemas agrícola, industrial, mercantil, financeiro e tecnológico forma o complexo agronegócio. Este é reforçado por um amplo sistema ideológico que procura insistentemente convencer a sociedade de suas “benesses”. Para o paradigma do capitalismo agrário, esse complexo de sistemas é a totalidade, o modelo de desenvolvimento da agricultura ao qual o campesinato deve ser parte por meio da integração. Assim como o paradigma do capitalismo agrário não tem o monopólio sobre as interpretações da realidade agrária, o agronegócio não tem o monopólio sobre a produção agrícola. O agronegócio não é a totalidade e, portanto, é apenas uma possibilidade de modelo de desenvolvimento da agricultura. Um modo de o campesinato lutar contra a subordinação ao capitalismo é por meio da elaboração de seu próprio modelo de desenvolvimento, abrindo novas possibilidades de criação de novos territórios para resistir à subordinação. A lógica da reprodução ampliada do capital é insustentável. Este é o sentido principal da crítica do paradigma da questão agrária. A produção monocultora em grande escala por meio da exploração do trabalho assalariado são relações de expropriação, concentradora de territórios, riqueza e poder. O capitalismo é o modo hegemônico de produção e sua relação com o campesinato é sempre de dominação. É por isso que uma fração do campesinato resiste permanentemente ao desenvolver em seus territórios relações sociais baseadas na produção familiar diversificada em pequena escala, associativa ou cooperativa, de forma sustentável e inclusiva. As diferenças entre campesinato e agronegócio são expressas nas relações sociais e nos territórios que produzem. Os territórios são também condições de produção das relações sociais. Camponeses e capitalistas organizam-se a partir de diferentes relações sociais que produzem territórios distintos (FERNANDES, 2008a). As lutas de resistência dos camponeses são expressas nas conquistas de seus territórios. Todavia, a conquista do território não significa autonomia, mas a condição de construí-la. A busca pela autonomia é uma luta permanente pela soberania do território. A subordinação do campesinato ao capital acontece de duas formas: 1) pela sujeição da renda da terra ao capital, quando o campesinato vende sua produção para corporações capitalistas, muitas vezes com a formação de cartéis, como ocorre, por exemplo, com os produtores de laranja; 2) pela territorialidade do agronegócio em território camponês. Esse fato pode ser facilmente observado quando se visita uma unidade camponesa e se encontra o aparato tecnológico das corporações na produção vegetal ou animal. Agrocombustíveis, Paradigmas, Políticas Governamentais e Movimentos Camponeses O processo de substituição do combustível fóssil pelo agrocombustível tem impactado os territórios, com a expansão das áreas de produção, e o debate paradigmático, com a Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✝✞ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. elaboração de estudos sobre as mudanças e os problemas causados. Contudo, o impacto territorial é mais intenso que o impacto paradigmático. Não há mudanças substanciais nos modos como os paradigmas têm tratado esses impactos. O paradigma da questão agrária aprofunda suas críticas à territorialização dos agrocombustíveis, estudando principalmente os impactos políticos, sociais, econômicos e ambientais. O paradigma do capitalismo agrário discute esses problemas como resultantes de um processo conjuntural, analisando as perspectivas e os novos mercados. As análises paradigmáticas possuem certa semelhança quando se referem aos impactos ambientais, e são distintas ao se referirem aos impactos econômicos e sociais. Essas duas referências paradigmáticas são importantes para estudar recentes experiências de produção de agrocombustíveis pelos camponeses em suas relações com as corporações e mercados capitalistas. A mudança de matriz energética desafia os paradigmas para estudar as políticas governamentais, do agronegócio e do campesinato, para a produção de agrocombustíveis. Essa mudança está promovendo intensos processos de reordenamento do uso dos territórios rurais, através de disputas territoriais entre o agronegócio e o campesinato pelo uso dos territórios para produção de alimentos e agrocombustíveis. Pesquisas recentes sobre o tema apresentam duas tendências que nos possibilitam acompanhar os impactos da expansão dos agrocombustíveis e as leituras dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário. De um lado, há a tendência à intensificação da expansão das monoculturas do agronegócio em territórios de florestas, aumentando o desmatamento (MENDONÇA, 2009) e em muitas áreas associada ao trabalho escravo (GIRARDI, 2008), principalmente com a territorialização da cana-de-açúcar, como registrado anualmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2009) e também recentemente divulgado pelo Department of Labor dos Estados Unidos. E ainda disputando os usos dos territórios entre a produção de alimentos e a de agrocombustíveis (HURTADO, 2009; OLIVEIRA, 2008). De outro lado, há a tendência à inclusão do campesinato ao processo de produção de agrocombustíveis e aos mercados capitalistas. (ABRAMOVAY e MAGALHÃES, 2007; VERMEULEN et al., 2008; BERDEGUE et al., 2008). Nesses trabalhos, estão explícitas as diferenças fundamentais entre os paradigmas: a) as críticas do paradigma da questão agrária aos impactos socioterritoriais, por exemplo desmatamento, intensificação da exploração do trabalho, casos de uso de trabalho escravo, subordinação e expropriação de camponeses como resultado da expansão da produção dos agrocombustíveis pelas corporações transnacionais; e b) as ênfases do paradigma do capitalismo agrário aos processos de “integração” aos mercados capitalistas, analisando tendências, logísticas, redes, preços etc. Não há, nesses paradigmas, estudos sobre as conflitualidades presentes nos mercados e as perspectivas de superação. Esta é uma lacuna dos estudos sobre os tipos de mercados e as perspectivas de minimização da subordinação do campesinato. O debate entre os pesquisadores desses dois paradigmas ajuda a refletir sobre a atualidade da questão agrária e do capitalismo agrário através de dois modos de ver, interpretar e construir políticas de desenvolvimento para mudar as realidades agrárias. Os trabalhos produzidos desde os parâmetros desses paradigmas influenciam os governos na elaboração de políticas de desenvolvimento agrário que fornecem referências para ✟✠ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial mudar tais parâmetros. As ações dos movimentos camponeses também orientam os parâmetros e modificam os paradigmas que exercem influências sobre suas ações. Nessa situação, analisamos as posturas dos paradigmas referentes à relação existente entre campesinato e capitalismo, como elementos da atualidade da questão agrária, a partir da expansão dos agrocombustíveis por meio das políticas governamentais. O papel do campesinato nesse processo está no centro dos debates entre as organizações camponesas, que já desenvolvem diversas experiências iniciais. Igualmente, a partir desses dois paradigmas, há posições contrárias e favoráveis à participação dos movimentos camponeses na produção de agrocombustíveis. Um exemplo de influência dos paradigmas sobre as políticas governamentais de desenvolvimento agrário é o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB). Pela primeira vez, a agricultura camponesa foi incluída em um programa de produção através de uma política nacional. Este é o item do PNPB denominado “competitividade e inclusão social”, com a criação do “Selo Combustível Social”, que isenta do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), concedido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Essa política foi elaborada a partir da lógica da “integração” – um dos princípios dos parâmetros do paradigma do capitalismo agrário. O subsídio que o governo oferece ao sistema industrial do agronegócio, na compra de uma quantidade definida pelo MDA, contribui para a manutenção da subordinação da produção camponesa ao agronegócio. O controle do processo de produção e comercialização é do agronegócio, que vem realizando investimentos em pesquisas e tecnologia para a produção em grande escala de culturas destinadas ao agrocombustível. Um exemplo de influência dos paradigmas sobre as políticas dos movimentos camponeses está no dilema que enfrentam sobre as probabilidades e condições de produzir agrocombustíveis. Esse dilema reside – exatamente – nas diferenças dos princípios dos parâmetros dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário: questão estrutural/ problema conjuntural; subordinação/integração. A compreensão da relação existente entre o campesinato e o capitalismo no contexto estrutural tem como referências a conflitualidade e a luta contra o capital na resistência contra a subordinação e expropriação. E nesse sentido, as decisões sobre as condições impostas pelas políticas agrárias são de enfrentamento. A compreensão da relação existente entre o campesinato e o capitalismo no contexto conjuntural tem como referências a convivência e a luta com o capital na elaboração de políticas de desenvolvimento do capitalismo agrário. E nesse sentido, não há necessariamente a imposição, mas a aceitação das condições das políticas agrárias. A relação existente entre os movimentos camponeses e os princípios dos paradigmas não é linear. Há conjuntos de fatores que criam contradições e até mesmo paradoxos nas relações com as políticas de desenvolvimento agrário e com o capitalismo. Entretanto, a seguir, faremos aproximações sobre situações efetivas nas práticas dos movimentos camponeses. A Via Campesina-Brasil tem uma postura crítica em relação ao agrocombustível como alternativa energética e aos problemas resultantes dos impactos na produção de alimentos. Contudo, alguns movimentos vinculados à Via Campesina desenvolvem experiências com a produção de agrocombustíveis. Esta não é uma simples questão. No ano de 2008, o MPA sofreu uma cisão por causa dessa questão. Uma parte da Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✡☛ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. organização, por rejeitar as experiências com a produção de agrocombustíveis, tornou-se uma dissidência e formou o Movimento Camponês Popular. A crítica e a produção estão no contexto do debate em diferentes escalas. Compreendendo que a subordinação e a expropriação são problemas estruturais, a Via Campesina constrói o discurso do enfrentamento contra a lógica da política do Selo Combustível Social. Nesse sentido, as experiências de produção de agrocombustíveis são tanto contradição quanto proposição, bem como perspectivas de criação de novos espaços, de novos territórios. Tais experiências nascem nas bases das organizações camponesas, sem referências de políticas de produção e comercialização que partam de espaços ou de decisões das instâncias de direção em escala nacional. Numa postura oposta, a CONTAG tem uma articulação em escalas nacional, estadual e municipal para acompanhar os processos de negociação entre agricultores e empresas, e também o processo de qualificação profissional dos produtores. Com o objetivo de investir na pesquisa sobre os sistemas de agroenergia, propôs a ampliação da política com a criação de um Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Política de Biodiesel. A CONTAG não tem manifestado uma postura crítica ao agrocombustível em seus documentos, ao contrário, apresenta proposições para o avanço do modelo em desenvolvimento. As posturas da CONTAG e da Via Campesina possibilitam uma aproximação das tendências dessas organizações camponesas e respectivas posturas, com referências aos parâmetros dos paradigmas. Os espaços ocupados no debate sobre a produção e uso dos agrocombustíveis revelam posturas diferenciadas dessas organizações. Essas posturas constroem territórios distintos e são referências importantes para a compreensão das disputas territoriais. As Disputas Territoriais: Leituras e Conceitos Prevalece nas definições de território a compreensão da área, superfície e espaço geográfico. Predominam as análises espaciais separadas da ação ou as análises sociais separadas do espaço. Os espaços e os territórios são criados pelas ações das diferentes relações sociais. A relação social capitalista cria espaços e territórios capitalistas e, contraditoriamente, cria relações sociais não capitalistas que também criam seus respectivos espaços e territórios. As relações sociais familiares, camponesas e outras formas de relações não capitalistas criam espaços e territórios capitalistas. Essas distintas relações sociais criam diferentes espaços e territórios, que se confrontam e se sobrepõem formando diversas territorialidades. Em Fernandes (2009), analisamos uma tipologia de territórios em que o primeiro território é formado pelo espaço geográfico do Estado. O primeiro território é o espaço de governança organizado em diversas escalas geográficas: país, estados, municípios, por exemplo. No primeiro território, as relações sociais formam o segundo território na criação dos diferentes tipos de propriedades privadas, individuais, coletivas, capitalistas ou não capitalistas. Compreender uma relação social como totalidade implica em reconhecer o seu território. Conceber o capitalismo como totalidade significa que as outras relações sociais são partes deste sistema, como explica o paradigma do capitalismo agrário. Nesse sentido, a disputa territorial é por frações do território capitalista. A conquista ☞✌ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial desses territórios pelo campesinato é condição para seguir sendo parte desta totalidade. Conceber o campesinato como uma relação social não capitalista, que cria seus próprios territórios, implica em reconhecer o modo de produção capitalista como uma das relações sociais no primeiro território. Este é composto pelas diferentes formas de organização do segundo território, em propriedade privada capitalista e propriedades camponesas. Nesse sentido, a disputa territorial é por frações dos territórios capitalistas e camponeses., O processo TDR, nesta leitura, representa o movimento territorial da conflitualidade. Os paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário produzem ideias, teorias, métodos, metodologias, conceitos, ideologias, políticas, ações e territórios. Os territórios são também são construídos pelas relações de poder, por meio da elaboração do conhecimento. São materiais e imateriais. A disputa territorial não é somente por terra, mas por todas as dimensões do território. Para a elaboração de políticas agrárias e seu desenvolvimento é preciso construir territórios que viabilizem sua aplicação nos territórios que se pretende viabilizar. A elaboração de um modelo de desenvolvimento camponês requer um ministério camponês, assim como o agronegócio tem seu próprio ministério para defender o seu modelo de desenvolvimento. A construção de conhecimentos e tecnologias também acontece em espaços específicos ou territórios criados para tal fim. A produção em grande escala com trabalho escravo, desde as plantations até a monocultura intensamente mecanizada do agronegócio, sempre produziu territórios de dominação e geradores de desigualdade. A produção em pequena escala, diversificada e mecanizada sempre produziu territórios comunitários e desenvolvimento inclusivo. Todavia, esses dois tipos de territórios sempre conviveram em conflitualidades. Os conceitos também são territórios e os estudiosos delimitam as suas significações. O uso dos conceitos de integração e de subordinação pelos paradigmas do capitalismo agrário e da questão agrária para se referirem às relações de produção de commodities por camponeses ou agricultores familiares para o agronegócio é um bom exemplo do poder para dar sentido ao significado. Afirmar que um camponês ou agricultor familiar que cria frango para uma corporação é um integrado e discutir as técnicas de produção e comercialização é uma opção de método, metodologia e ideológica. Afirmar que um agricultor familiar ou camponês que cria frango para uma corporação é um subordinado e discutir as relação de poder, dominação, exploração e expropriação também é uma opção de método, metodologia e ideológica. A determinação dessas opções é definida pela vinculação dos estudiosos aos paradigmas. Acontece o mesmo quando escrevemos “camponês” ou “agricultor familiar”. A escolha das significações para demarcar os conteúdos desses conceitos é uma opção teórica, política e ideológica. E o poder dessas definições se materializa em organizações sociais e em políticas públicas que constroem territórios. Este é o sentido das disputas nos territórios imateriais, ou disputas territoriais no uso dos conceitos. Outro exemplo foi a decisão da Via Campesina em Mali, quando definiu pelo uso do termo “agrocombustível” para se referir à produção em grande escala. HoltGiménez e Kenfield (2009), Gordon et al. (2009) e Hurtado e Laura (2009) demarcam suas posições ao optarem pelo uso do termo “agrocombustíveis” em seus estudos. Essa intenção Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✍✎ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. criou-se numa questão conceitual que dá uma identidade paradigmática aos estudiosos que utilizam a palavra “agrocombustíveis” e aos estudiosos que utilizarem a palavra “biocombustíveis”, como é o caso de Abramovay e Magalhães (2008). O uso das expressões “agrocombustíveis” e “biocombustíveis” pode se referir aos mesmos processos, mas com leituras distintas. Além dos estudiosos, as organizações camponesas também usam essas expressões de forma diferenciada. A CONTAG, em seus documentos, usa sempre a palavra “biocombustíveis”. Da mesma forma, as organizações de pesquisas ou Think Tanks, como por exemplo, Food First, Clacso ou Rimisp, que têm grupos de pesquisadores estudando os processos de expansão dos agrocombustíveis, empregam os conceitos de formas distintas expressando disputas territoriais pela interpretação dos fatos. As disputas territoriais desde os territórios materiais e imateriais são fatos. Elas colocam que o maior desafio não é produzir ou não produzir, mas como manter controle territorial sobre esse processo. Para os países produtores, será necessário elaborar ordenamento territorial para controlar a conflitualidade entre camponeses e agronegócio, e entre os territórios a serem utilizados para a produção de alimentos e de agrocombustíveis. Também será preciso planejar o zoneamento agroecológico para proteger áreas de florestas e até mesmo limitar a venda de terras para estrangeiros. Tais condições são necessárias para garantir a soberania dos diversos territórios. O MST, o MPA e a FAAFOP estão realizando diferentes experiências que são algumas referências para esta reflexão. Experiências do MST e do MPA Ao contrário da CONTAG, que possui uma rede nacional para relação entre camponeses e empresas compradoras de agrocombustíveis, o MST possui experiências localizadas com base na produção para autoconsumo. No assentamento Fazenda Pirituba, localizado no município de Itapeva, Estado de São Paulo, o MST começou uma experiência de produção de óleo vegetal a partir do girassol. Para tanto, utiliza uma extratora com capacidade de processamento de 150 quilos/hora. Com a produção, os assentados abastecem o trator da associação e também produzem torta de girassol para alimentação animal. Ainda, a cultura do girassol está possibilitando qualificar o trabalho de 150 famílias do assentamento que praticam a apicultura, com a construção de um entreposto de mel cuja capacidade de processamento é de uma tonelada por dia. Na área agrícola do assentamento, além do girassol, os camponeses produzem feijão, café, arroz e alho. A associação entre a produção de culturas alimentares e culturas para produção de energia é um dos princípios dos movimentos camponeses no uso de seus territórios. A não vinculação com empresas capitalistas dificulta a expansão das experiências e abre espaços para elaborar uma proposta de política de produção de agrocombustíveis associados à produção de alimentos (MST, 2008). A produção de alimentos e culturas para produção de agrocombustíveis de forma agroecológica também é uma experiência em desenvolvimento pelo MPA. Todavia, esta é uma proposição mais ampla que a experiência do MST e está organizada em escala microrregional. A experiência organiza os sistemas agrícola e industrial, contudo ainda ✸✏ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial destinado somente para o autoconsumo da comunidade. O sistema industrial está organizado para processar alimentos e energia com base na produção de cana-de-açúcar, batata, mandioca e sorgo. Esse sistema produz açúcar mascavo, melado, rapadura, cachaça, ração animal, adubo orgânico e álcool. São famílias camponesas de 10 municípios que fornecem matéria-prima para o setor industrial que está situado no município de Frederico Westphalen, no Estado do Rio Grande do Sul. Não se conhece, por parte do MST ou do MPA, uma proposição de projeto de produção de agrocombustíveis e alimentos nos assentamentos de reforma agrária ou para outras unidades camponesas. Tampouco uma proposta de investimento direto, por meio de uma política de agrocombustíveis a partir da agricultura camponesa, que compreenda os sistemas agrícola, industrial e mercantil. Estas experiências acontecem em escala local e microrregional, e estão sendo gestadas a partir do princípio da autonomia. São duas sementes que poderão ser referências futuras, caso a Via Campesina assuma uma postura mais bem definida para uma política de produção de agrocombustíveis. A Experiência da FAAFOP A criação da FAAFOP aconteceu com a dissidência de José Rainha e outras lideranças do MST. A federação reúne diversos movimentos camponeses, sindicatos e 80 associações filiadas que representam cerca de 30 assentamentos da região do Pontal do Paranapanema. Suas estratégias visam a diversificação e agroindustrialização, com objetivo de aumentar a renda dos assentados através de um sistema cooperativista de produção. A federação controla a Cooperativa de Produção de Biodiesel do Oeste Paulista (Cooperbioeste). A cooperativa mantém uma política de produção diversificada e está projetando a construção de um laticínio para industrialização do leite. Outro projeto da cooperativa é a produção consorciada de culturas alimentares e de produção de energia, como o pinhão manso e a mamona destinados à produção de biodiesel. O plantio de culturas para a produção de biodiesel é discutido pelos assentados na região do Pontal, desde 1994. Todavia, os projetos não tiveram êxito durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. No governo Luis Inácio Lula da Silva, a direção da FAAFOP vem mantendo e discutindo a possibilidade de construção de usinas na região do Pontal. A produção de mamona está sendo realizada por 760 produtores que plantaram um hectare cada. A produção de 2009 rendeu 800 toneladas de mamona, que foram negociadas com a empresa Bertin, com sede em Lins, SP. Segundo Rainha, um acordo foi feito com a empresa, no qual o grupo compra a produção de 2009 e 50% da produção de 2010, que esta prevista para 1.600 toneladas. A negociação com a empresa foi realizada pelo interesse no Selo Combustível Social. A empresa oferece máquina, adubo e calcário. A expectativa da federação é atender mais de 1.200 produtores para a produção de mamona e amendoim. A política de produção da federação não é ser somente fornecedor de matéria-prima, mas também processar a produção de mamona. O projeto da FAAFOP consiste na criação de uma unidade industrial para processamento de 50% da produção de 2010, além do reaproveitamento da torta como adubo verde. Segundo Rainha, a expectativa para o projeto da construção de uma unidade de processamento está paraliEspaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✑✒ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. sada por causa da política do MDA e da Petrobrás, que é de favorecimento dos grandes produtores em detrimento dos pequenos. Os princípios da FAAFOP também associam a produção de alimentos às culturas para produção de energia. No Pontal do Paranapanema, a produção de óleo de mamona est autorizada e a federação aguarda a liberação do governo para expandir as áreas de produção de do pinhão manso. A proposta da federação é produzir agrocombustível para abastecer o mercado local. Essas experiências enfrentam diversos obstáculos: desde os movimentos camponeses aprofundarem os debates sobre as formas de participação na produção de agrocombustíveis, até a necessidade de convencer o governo da importância de investimentos diretos na construção de uma política de desenvolvimento com a criação de um conjunto de sistemas cooperativos e associativos para produção, industrialização e comercialização de alimentos e agrocombustíveis. Enquanto as experiências dos movimentos camponeses desenvolvem-se em escalas microrregionais, as experiências do agronegócio se desenvolvem em escala nacional e internacional Disputa Territorial: Campesinato e Agronegócio Na perspectiva de aumento do uso dos agrocombustíveis, algumas empresas estão investindo na compra de usinas de álcool ou criando novas usinas. O Grupo Odebrecht, uma corporação brasileira transnacional do setor de construção, comprou em 2007 a Destilaria Alcídia, localizada no município de Teodoro Sampaio, na região do Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo. Estão previstas a construção de mais duas usinas de álcool do grupo nessa região, por intermédio da empresa ETH Bioenergia S/A (Figura 1). A região administrativa de Presidente Prudente, na safra 2003/2004, contabilizava 116.681 hectares e, na safra 2008/2009, aumentou para 327.087 – um aumento de 210.406 hectares ou 180%. A região do Pontal do Paranapanema, constituída por parte dos municípios da região administrativa de Presidente Prudente, aumentou quase 200% (de 71.095 para 208.953 hectares) (Tabela 1). Foto: Bernardo Mançano Fernandes. Figura 1 – Usina de álcool em instalação em Mirante do Paranapanema – SP. ✓✔ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial Tabela 1 – São Paulo: área plantada (ha) por região administrativa e por safra 2003/ 2004 a 2008/2009 ❘✖✗✘✙✚ Administrativa Araçatuba 2003-2004 2004-2005 2005-2006 2006-2007 2007-2008 2008-2009 224.483 246.895 262.278 294.830 397.915 512.603 Barretos 219.826 236.329 261.661 295.766 333.037 385.591 Bauru 299.799 314.488 329.911 353.225 422.091 474.151 Campinas 393.862 408.429 436.434 453.052 489.618 511.023 Central 320.410 329.345 341.649 366.443 394.313 432.312 Franca 355.024 376.335 390.467 417.093 449.431 489.061 Marília 241.325 253.262 266.290 289.144 360.020 405.879 116.681 133.281 151.382 179.796 235.155 327.087 416.882 422.110 433.387 447.351 457.315 471.440 280.693 303.658 331.878 396.945 502.555 632.039 133.691 141.255 159.367 167.510 208.472 232.754 3.002.676 3.165.387 3.364.704 3.661.155 4.249.922 4.873.940 Presidente Prudente Ribeirão Preto São José do Rio Preto Sorocaba TOTAL ❋✛✜✢✣✤ ✥✜✦✧✛ ★✩ ✪✜★✫✬✢✭✦✩ ★✣ ✮✩✜✩✯★✣✯✩✰✫✱✩✭ ✲ ✥✳✪✮✴✵ ✶✹✹✺✻ O Pontal do Paranapanema possui o maior potencial para a expansão do plantio de cana-de-açúcar do Estado de São Paulo. A região é formada por terras griladas e o conflito fundiário se arrasta por mais de um século. Por essa razão, a região – então dominada por latifúndios com pastos degradados – está sendo incorporada pelo agronegócio, que os substitui pela cana-de-açúcar. Essas terras onde há conflitos entre grileiros e sem-terra passam a ser disputadas pelos movimentos camponeses e o agronegócio sucroalcooleiro. Esta nova realidade está colocando em questão as políticas de desenvolvimento territorial para a região, que estavam baseadas na pecuária de corte em latifúndios grilados e na produção agrícola/pecuária leiteira nos assentamentos de reforma agrária e nas unidades camponesas convencionais. Segundo o relatório DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, de 2008, a região possui 109 assentamentos rurais, onde estão assentadas 5.746 famílias em uma área de 140.237 hectares. A territorialização da cana-de-açúcar e dos assentamentos começou nas décadas de 1970 e 1980. Em 2003, a área dos assentamentos era de 127.438 hectares e a da área de cultivo da cana-de-açúcar era de 71.095 hectares. Em 2008, a área dos assentamentos era de 140.237 hectares e a da área de cultivo da cana-de-açúcar, 208.953 hectares. Nesse período, a área dos assentamentos aumentou 9%, enquanto a expansão da área de cultivo da cana-de-açúcar foi 200%. Estes dados revelam o refluxo da política de reforma agrária e a dinamização da política de produção de cana-de-açúcar. O desafio dos movimentos camponeses é o desenvolvimento e autonomia desses territórios, que foram conquistados no processo de luta pela terra e pela reforma agrária, ocorrido inclusive sobre o território da cana. O avanço da cana-de-açúcar tem ocorrido sobre o território dos latifúndios, todavia há alguns assentamentos produzindo cana-deaçúcar, expressando a territorialidade do agronegócio em território camponês. Com essas Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✕✕ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. mudanças, formam-se novos cenários da questão agrária do Pontal: o território do latifúndio está sendo convertido em território do agronegócio, que avança na disputa desse território com os movimentos camponeses. Essa questão pode se acirrar com a possibilidade do agronegócio da cana ampliar sua territorialidade ou desterritorializar os assentamentos do Pontal. Na correlação de forças entre esses modelos de desenvolvimento, a reforma agrária poderá ser ampliada e talvez ocorra a expansão dos territórios dos assentamentos com políticas de desenvolvimento para a agricultura camponesa. A disputa territorial (Figura 2) entre a expansão da cana-de-açúcar e os camponeses sem-terra tem gerado diferentes formas de conflitualidades (FERRANTE, 2008). Foto: Douglas Mansur. Figura 2 – Disputa territorial entre camponeses e agronegócio: assentamento Mário Lago em Ribeirão Predo, SP e área de cultivo da cana-açúcar da usina de álcool. Territórios em Disputa: A Territorialidade do Agronegócio no Território Camponês A disputa territorial entre o movimento camponês e o agronegócio sucroalcooleiro acontece justamente quando se intenta controlar as formas de uso ou acesso aos territórios, ou pelo processo de desterritorialização (FERNANDES, 2009). Essa disputa acontece de duas formas: pelo processo TDR ou pela territorialidade do agronegócio no território camponês. Esta é uma forma de controle do território pela subordinação que, no caso da cana, é chamada de “parceria”. A “parceria” entre camponeses assentados e o agronegócio sucroalcooleiro é um exemplo da territorialidade do agronegócio em território camponês, ✼✽ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial ou seja, a determinação da forma de uso de parte do lote ou do território que, no caso, acontece pelo plantio de cana-de-açúcar destinado à produção de açúcar e álcool pela Destilaria Alcídia. Os camponeses não têm controle sobre o financiamento para a produção da cana-de-açúcar, embora o financiamento esteja em seus nomes; não controlam e têm pouco conhecimento sobre a tecnologia utilizada; e tampouco têm controle ou conhecimento sobre a produção de cana em seu território. Trata-se de uma completa relação de subordinação. A primeira tentativa de produzir cana-de-açúcar em lotes de assentamentos rurais da região do Pontal teve início em 1993, quando a Destilaria Alcídia apresentou ao Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) – órgão estatal responsável pelo assentamento – um projeto para o plantio de cana em 11 dos 121 lotes do assentamento Água Sumida, localizado no município de Teodoro Sampaio. O projeto definia que o Banco do Estado de São Paulo financiaria esta experiência, emprestando para as 11 famílias os recursos necessários à produção. Todavia, as famílias não veriam a cor do dinheiro. Deveriam assinar os documentos do empréstimo e repassar o dinheiro à Destilaria Alcídia S/A, que administraria os recursos. Passados 2 anos, a Destilaria Alcídia elaborou uma avaliação da “parceria”. Em setembro de 1995, avaliou que os resultados obtidos estavam dentro do previsto no projeto. A empresa destacou que os objetivos norteadores da “parceria” eram: mostrar que é possível o plantio de cana em pequenas propriedades de forma rentável, proporcionar uma renda mensal durante toda a vida produtiva do canavial (48 meses) e fixar efetivamente o assentado no lote, de forma que a força familiar não seja obrigada a procurar sustento em outras atividades fora do lote. A Destilaria Alcídia informava ainda que, por motivos diversos,– aumento dos juros, mudanças de regras do financiamento agrícola e da política de preços desfavoráveis – o resultado econômico da “parceria” não foi o esperado pelo projeto. No entanto, o financiamento junto ao banco foi pago integralmente com a colheita. Em ofício com data de 21 de dezembro de 1995, o departamento de assentamento fundiário do ITESP solicitou ao departamento de geografia da UNESP/Presidente Prudente um parecer sobre a viabilidade ou não da introdução da cana-de-açúcar nos assentamentos, tendo como base o projeto-piloto envolvendo a Destilaria Alcídia e o assentamento Água Sumida. Segundo o ITESP, a “parceria” teria “provocado muita polêmica em torno do interesse para o desenvolvimento socioeconômico destes assentamentos”, como por exemplo, a “pressão por parte da usina e de políticos da região, para expandir o plantio de cana para os demais assentados da Água Sumida e de outros assentamentos, principalmente a Gleba XV de novembro”, daí a importância do parecer técnico. Um grupo de geógrafos realizou pesquisa de campo junto aos assentados e a empresa, para elaborar o parecer técnico-científico sobre a viabilidade ou não do cultivo da cana-de-açúcar nos projetos de assentamentos do Pontal do Paranapanema, SP. No parecer, relataram a contradição representada pelo cultivo da cana-de-açúcar em assentamentos rurais. Esse cultivo exige grandes investimentos e racionalidade na produção, e os assentamentos não possuem infraestrutura nem tecnologia adequadas a essa cultura. Observaram ainda que estava diminuindo o número de fornecedores de cana, dada a baixa de rentabilidade da produção dessa cultura. O parecer fez a avaliação dos interesses Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ✾✿ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. dos envolvidos na “parceria”, tanto da Destilaria Alcídia S/A quanto dos assentados do assentamento Água Sumida. Em relação ao interesse da usina, o parecer destacou quatro questões a serem analisadas: y y y y A falta de rentabilidade da cana não atrai os grandes proprietários da região para a cultura da cana. A Destilaria Alcídia viabiliza a exploração de pequenas áreas, utilizando-se de terras dos camponeses da reforma agrária para não ter de pagar a renda pelo uso da terra. O assentamento Água Sumida é próximo à Destilaria Alcídia, tornando a relação economicamente viável. Que o financiamento ao assentado sai em condições favoráveis para e empresa, uma vez que o financiamento sai em nome do produtor assentado, no entanto é repassado diretamente para a usina, que gerencia a utilização durante a produção. E em relação aos interesses dos assentados: y y y y Confere a eles certa tranquilidade econômica. Uma vez que recebem mensalmente um adiantamento em dinheiro. A assistência técnica da destilaria. A venda da sua produção é garantida desde o momento inicial do processo produtivo. A cana-de-açúcar é uma cultura que não exige uma jornada de trabalho familiar extensa como as outras culturas. A parceria é entendida pelos pareceristas como uma alternativa para os assentados, uma vez que não se efetiva políticas públicas para a geração de renda e desenvolvimento desses assentamentos. No entanto os pareceristas de forma conclusiva destacam: Ao mesmo tempo em que a cana-de-açúcar oferece uma saída única para a viabilidade econômica aos produtores assentados, também os condena a dependência, a não participação, a perda da autonomia, a alienação e a sujeição aos critérios impostos pela Destilaria. Esta é, mais uma vez, a face perversa do processo de modernização da agricultura brasileira, que agora se reflete nas propostas de implantação da cultura de cana-deaçúcar nos projetos de assentamentos de reforma agrária (ANTONIO et al., 1995, p.6). Após esse projeto envolvendo a Destilaria Alcídia e o assentamento Água Sumida, não foram realizadas novas “parcerias”. No entanto, em 2002, o ITESP apresentou nova proposta de “integração entre camponeses e o agronegócio, como forma de garantir a participação dos assentados na economia dos municípios e “suprir as indústrias de matériaprima de fonte agrícola, além de aumentar, paralelamente a área plantada com gêneros essenciais à alimentação, consolidar os sistemas de produção existentes e até implantar unidades artesanais para o processamento dos produtos” (Portaria Itesp nº 75, de 24 de outubro de 2002). O ITESP passou a permitir que até 30% do lote seja utilizado para a plantação de cana-de-açúcar. Aprofundando essa relação de subordinação, o ITESP também passou a permitir a locação de serviços dos assentados às agroindústrias. Foi nesse contexto que, após ❀❁ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial alguns anos sem contratos firmados, a Destilaria Alcídia voltou a firmá-los em 2002. Dessa vez, 119 famílias assentadas assinaram a suposta “parceria” pelo prazo de 5 anos. Após a subida abusiva do preço do petróleo e uma série de medidas do governo para estimular a produção de álcool nos anos de 2002 e 2003, o ITESP, no dia 27 de julho de 2004, relançou e revisou na portaria nº 77 as medidas antes estabelecidas pela portaria nº 75/2002. Nela, o instituto considera, dentre várias questões, a “necessidade de harmonizar as políticas públicas de incentivo à agroindústria e à produção agrícola”, a permissão para que os projetos de assentamento, implantados nos termos da legislação estadual, realizem o plantio de culturas para as agroindústrias. Determinou que, a requerimento do interessado via projeto técnico, poderão ser implantadas em até 50% das áreas dos lotes com menos de 15 hectares e em até 30% das áreas dos lotes com dimensão superior a 15 hectares (ITESP, 2004). Segundo o ITESP, no Estado de São Paulo 500 lotes estão em parceria, respaldados pela portaria 77 de 27 de julho de 2004, sendo 8 com soja e 492 com cana-de-açúcar. Ver Quadro 1. Quadro 1 – Assentamentos com contratos para produção de cana-de-açúcar em 2009. ▼❄❅❆❇❈❉❆❊ ●❍❊■❏❑❊▲ ◆❏ ❖▲▲❏❅❑❖P❏❅❑❊ ◗❙ ◆❏ ❚❊❑❏▲ ❯❄❚❑❄❍❖ Araraquara Bueno de Andrada 16 Cana-de-açúcar Araraquara Monte Alegre III 26 Cana-de-açúcar Araraquara Monte Alegre VI 35 Cana-de-açúcar Bebedouro Reage Brasil 46 Cana-de-açúcar Birigui São José I 4 Soja Brejo Alegre Salvador 4 Soja Matão Silvânia 77 Cana-de-açúcar Motuca Monte Alegre I 43 Cana-de-açúcar Motuca Monte Alegre II 36 Cana-de-açúcar Motuca Monte Alegre IV 27 Cana-de-açúcar Motuca Monte Alegre V 21 Cana-de-açúcar Pitangueiras Ibitiúva 37 Cana-de-açúcar Pradópolis Guarani 1 Cana-de-açúcar Rosana/Euclides da Cunha Gleba XV de Novembro 39 Cana-de-açúcar Teodoro Sampaio Alcídia da Gata 14 Cana-de-açúcar Teodoro Sampaio Laudenor de Souza 7 Cana-de-açúcar Teodoro Sampaio Santa Cruz da Alcídia 7 Cana-de-açúcar Teodoro Sampaio Santa Terezinha da Alcídia 24 Cana-de-açúcar Teodoro Sampaio Santa Zélia 34 Cana-de-açúcar Teodoro Sampaio Vô Tonico 2 Cana-de-açúcar Total 500 ❱❲❳❨❩❬ ❭❪❫❴❵❛ ❜❝❝❞❡ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ❂❃ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. Em todo o Estado de São Paulo, esses 500 lotes com contratos de “parceria” firmados com as agroindústrias equivalem a 3,8% do total de 13.035 lotes. Detalhando os dados, percebemos que na região do Pontal do Paranapanema existem 127 lotes em “parceria”, o que equivale a somente 2,2% do total de 5.564 lotes. Os municípios do Pontal do Paranapanema que têm assentamentos com contrato de “parceria” são Euclides da Cunha/ Rosana e Teodoro Sampaio. A seguir, foram detalhados esses dados por assentamento (Quadro 2). Os assentamentos que mais possuem lotes em parceria são PE Alcídia da Gata e PE Santa Terezinha da Alcídia, com 77,7% e 92,3% dos lotes, respectivamente, em “parceria” produzindo cana-de-açúcar para a Destilaria Alcídia. Quadro 2 – Assentamentos com contratos para produção de agrocombustíveis no Pontal do Paranapanema em 2009. ❤✐❥❦❧♠❥ ♥❥♠♦♣ q❧ r♦st♣✉♦✈ ✇① q❧ ♣❥♠❧✈ ② PE Gleba VX de Novembro 570 39 6,84 PE Alcídia da Gata 18 14 77,78 PE Laudenor de Souza 60 7 11,67 PE Santa Cruz da Alcídia 26 7 26,92 PE Santa Terezinha da Alcídia 26 24 92,31 PE Santa Zélia 103 34 33,01 PE Vô Tonico 19 2 10,53 Total 822 127 ③④⑤⑥⑦⑧ ⑨⑩❶❷❸❹ ❺❻❻❼❽ Os contratos de “parceria” entre assentados e a Destilaria Alcídia terminaram no ano de 2008. Em pesquisa de campo, entrevistamos diversos camponeses que demonstraram descontentamento com a experiência da “parceria”. Segundo os assentados, por falta de alternativa para a geração de renda, dificultada pela falta de projetos e financiamentos, aceitaram em 2002 o contrato de “parceria” proposto pela usina durante duas safras – 2002 a 2009, período em que ficariam arrendados 30% do lote, em média 6 hectares. No contrato, constava a concessão para a usina contrair o empréstimo junto ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) em nome do assentado. Foram adquiridos em média R$ 18.000,00 por família. Os recursos – como todo o processo – foram gestados pela usina sem qualquer transparência nem conhecimento dos assentados, no entanto o empréstimo foi quitado e apresentado aos assentados o comprovante do Banco do Brasil. O último corte se realizaria no ano de 2009, entretanto em 2008 a usina parou de cortar, abandonando a cana plantada. A justificativa para deixar de fazer o corte foi que a qualidade da cana nesses lotes já não era mais satisfatória e que não pagaria o trabalho do corte. No contrato de parceria está exposto que a usina se encarregaria de fazer o tratamento do solo antes do plantio visando obter maior produção e, posteriormente, deixar parte do lote do assentado corrigido. Todavia, não foi esta a situação que encontramos nos lotes visitados. Constatamos a existência de uma terra degradada, que precisará passar por um intenso processo de recuperação do solo para voltar a produzir. A justificativa da baixa ❢❣ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial qualidade da cana foi utilizada para explicar o baixo rendimento e o não pagamento para os assentados pela cana dos últimos cortes. Segundo os assentados, só foram pagos pela usina os primeiros cortes. No final da “parceria”, com a justificativa da baixa qualidade da cana, nada mais foi pago aos assentados. Lembramos que os assentados nunca tiveram acesso às informações sobre quantidade e qualidade produzida, nem sobre os gastos com o cultivo. O discurso de integrar e gerar renda veio abaixo com essas experiências. A intenção da Destilaria Alcídia era utilizar os territórios dos assentados em uma conjuntura de falta de terra para expandir a produção. Ficara evidente que o objetivo não era o de geração de renda para os camponeses e sim aproveitar o empréstimo em nome deles para conseguir condições especiais de crédito e terra quase de graça para produzir cana-de-açúcar. Essa afirmação pode ser comprovada pelo fato de a usina ter deixado de realizar os últimos cortes, abandonando a cana plantada e deixando os prejuízos para os camponeses. Conclusão Neste artigo, procuramos contribuir para o estudo dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário, debatendo os processos relacionados à expansão das culturas para produção de agrocombustíveis. Destacamos a importância do território para o estudo desse tema e nossas diferentes abordagens do conceito, ampliando as possibilidades da leitura geográfica. As políticas de agrocombustíveis implantada pelo governo Lula são orientadas pelo paradigma do capitalismo agrário e atrelam o campesinato a uma situação de subordinação ao agronegócio. Da mesma forma, as políticas do ITESP serviram para intensificar a subordinação dos assentados ao agronegócio sucroalcooleiro. Falta hoje, no Brasil, uma política de produção de agrocombustível elaborada a partir da lógica da produção consorciada com alimentos e num conjunto de sistemas sob controle das organizações camponesas. O controle do processo de produção é somente das corporações. Também falta nas instituições governamentais espaços políticos para construção de políticas de desenvolvimento territorial com que se possa garantir a soberania dos territórios camponeses. As políticas de subordinação dos camponeses ao agronegócio são hegemônicas. As ideias do paradigma do capitalismo agrário predominam nas instituições governamentais e direcionam suas políticas. Os movimentos camponeses estão divididos e trabalham tanto com as condições que levam a subordinação quanto com as condições de autonomia. Todavia, as experiências de autonomia são incipientes. E faltam projetos nessa direção propostos pelos movimentos camponeses. Contudo, as experiências em curso são sementes para a criação de novos espaços políticos e poderão se transformar em novos territórios, tanto no campo das ideias quanto no campo agrário. A conjuntura para a produção de agrocombustíveis no Brasil ainda não está definida, mas a tendência é de controle do agronegócio, o que não elimina as possibilidades dos movimentos camponeses continuarem a disputar os territórios. Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ❾❿ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. Referências Bibliográficas ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do Capitalismo Agrário em questão. Campinas: Hucitec/ Anpocs/Editora da Unicamp, 1992. ABRAMOVAY, Ricardo. MAGALHÃES, Reginaldo. 2007. The access of family farmers to biodiesel markets: partnerships between big companies and social movements. Disponível em: www.regoverningmarkets.org/en/global/innovative_practice.html ANTONIO, Armando Pereira, FERNANDES, Bernardo Mançano. SILVEIRA Fátima Rotundo. Parecer Técnico-Científico sobre a viabilidade da cana de açúcar nos projetos de assentamentos do Pontal do Paranapanema – SP. Presidente Prudente, 1995. BERDEGUÉ, Julio A. BIÉNABE, estelle. PEPPELENBOS, Lucian. 2008. Keys to inclusion of small-scale producers in dynamic markets: Innovative practice in connecting small-scale producers with dynamic markets. Disponível em: www.regoverningmarkets.org/en/global/innovative_practice.html BORRAS, SATURNINO M. É possível implementar a reforma agrária redistributiva através de esquemas de transferência voluntária de terra com base no mercado? Evidências e lições das Filipinas. In: SAUER, Sérgio e PEREIRA, João Márcio. (orgs.) Capturando a terra: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado. 1 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 133 – 169. BORRAS, SATURNINO M. Agrarian change and peasant studies: changes, continuities and challenges – an introduction. The Journal of Peasant Studies, 36(1), 5–31. 2009. BRYCESON, Deborah; KAY, Cristobál; MOOIJ, Jos. Disappearing Peasantries: rural labour in Africa, Asia and Latin America. London. Ed. It Publications, 2000. CARVALHO, Horácio Martins. De produtor rural familiar a camponês: a catarse necessária. Curitiba, 2009. Disponível em http://www4.fct.unesp.br/nera/artigodomes/3artigodomes_2009.pdf CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Jornal da CONTAG Nº 43. Brasília: janeiro de 2008. CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Jornal da CONTAG Nº 54. Brasília: janeiro de 2009. CPT – Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo Brasil 2008. CPT: Goiânia, 2009. DATALUTA – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2008. Disponível em www.fct.unesp.br/nera ➀➁ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial DESMARAIS, Annette Aurélie. La Vía Campesina: Globalization and the Power of Peasants. Halifax: Fernwood Publishing, 2007. DEPARTMENT OF LABOR’S BUREAU OF INTERNATIONAL LABOR AFFAIRS. List of Goods Produced by Child Labor or Forced Labor - Trafficking Victims Protection Reauthorization Acts (TVPRA) of 2005 and 2008. Washington, 2009. FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000. FERNANDES, Bernardo Mançano. Entrando nos Territórios do Território. In: PAULINO, Eliane T. e FABRINI, João E. (Orgs.) Campesinato e territórios em disputas.São Paulo: Expressão Popular, 2008a, p. 273-301. FERNANDES, Bernardo Mançano. Conflitualidade e desenvolvimento territorial In: BUAINAIN, Antonio M. (Org.) Luta pela Terra, Reforma Agrária e Gestão de Conflitos no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008b, p. 173-224. FERNANDES, Bernardo Mançano. Sobre a Tipologia de Territórios. In SAQUET, Marco Aurélio e SPOSITO, Eliseu Sáverio (orgs). Territórios e Territorialidades. Teoria, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 197-215. FERRANTE, Vera Lúcia Silveira Botta. Assentamentos rurais no território da cana: controvérsias em cena. Revista Nera. Presidente Prudente, ano 10, nº. 11, jan.-jun./2008. GIRARDI, Eduardo Paulon. Proposição teórico-metodológica de uma cartografia geográfica crítica e sua aplicação no desenvolvimento do atlas da questão agrária brasileira. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós – Graduação em Geografia, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente, 2008 GOLDBERG, Jake. The Disappearing American Farm. New York, 1996. GORDON, Gretchen. AGUIRRE, Jessica. The Free Market in Agrofuels: Regulation and Trade in the Americas. . In Jonasse, Richard. Agrofuels in the Americas. Food First Books, Oakland, 2009, p. 40-51. GOVERNO FEDERAL. Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel. Brasília, 2004. HOLT-GIMÉNEZ, Eric. KENFIELD, Isabella. When Renewable Isn’t Sustainable: Agrofuels and the Inconvenient Truths Behind the 2007 U.S. Energy Independence and Security Act. In Jonasse, Richard. Agrofuels in the Americas. Food First Books, Oakland, 2009, p. 29-40. HURTADO, Laura. Agrofuels. Plantations and the Loss of Land for Food Production in Guatemala. In Jonasse, Richard. Agrofuels in the Americas. Food First Books, Oakland, 2009, p. 77-87. Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ➂➃ Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C. ITESP. Fundação Instituto de Terras e São Paulo “José Gomes da Silva”. Portaria ITESP – 75, de 27-10-2002. Plantio de Culturas. ITESP. Fundação Instituto de Terras e São Paulo “José Gomes da Silva”. Portaria Itesp – 77, de 27-7-2004. Plantio de Culturas. ITESP. Memorando sobre plantio de cana de cana-de-açúcar. São Paulo: ITESP, 2009 MENDONÇA, Maria Luisa. The Environmental and Social Consequences of “Green Capitalism” in Brazil. In Jonasse, Richard. Agrofuels in the Americas. Food First Books, Oakland, 2009, p. 65-76. MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Soberania alimentar e energética: um caminho em construção. Assentamento Fazenda Pirituba, 2008. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A agricultura camponesa no Brasil. São Paulo: Contexto, 1991. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Agrocombustíveis e produção de alimentos. In Folha de S. Paulo, 17 de abril de 2008, p. A3. OTERO, Gerardo. ¿Adiós al Campesinado?: democracia y formación política de las clases en el México rural. México. Ed. Miguel Angel Porrua, 2004. PEREIRA, Anthony W. The End of the Peasantry: The Rural Labor Movement in Northeast Brazil, 1961-1988. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1997. PLOEG, Jan. Douwe. Van. Der. Camponeses e Impérios Alimentares Lutas por Autonomia e Sustentabilidade na Era da Globalização. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2008. RAMOS FILHO, Eraldo da Silva. Questão agrária atual: Sergipe como referência para um estudo confrontativo das políticas de reforma agrária e reforma agrária de mercado (20032006). Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Presidente Prudente, 2008. REPÓRTER BRASIL. O Brasil dos Agrocombustíveis: Impactos das Lavouras sobre a Terra, o Meio e a Sociedade - Soja e Mamona. São Paulo: REPÓRTER BRASIL, 2008. RICHARD, Jonasse (Editor). Agrofuels in the Americas. Food First Books, Oakland, 2009. RICCI, Rudá. Terra de Ninguém: representação sindical rural no Brasil. Campinas: Editora Unicamp, 1999. SILVA, Valter Israel da Silva. Caminhos da afirmação camponesa: elementos para um plano camponês. MPA: Laranjeiras do Sul, 2009. ➄➅ Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial UNICA – União da Indústria de Cana-de-acúcar – área de cana-de-acúcar no Centro-Sul brasileiro. Disponível em: http://150.163.3.3/canasat/tabelas.php [Acessado em 31 de maio 2009]. VERMEULEN, S., WOODHILL, J., PROCTOR, F.J. and DELNOYE, R. Chain-wide learning for inclusive agrifood market development: a guide to multi-stakeholder processes for linking small-scale producers with modern markets. International Institute for Environment and Development, London, UK, and Wageningen University and Research Centre, Wageningen, 2008. VIA CAMPESINA – BRASIL. Soberania alimentar, os agrocombustíveis e a soberania energética: subsídios para estudo. Brasília, 2007. WELCH, Clifford Andrew. FERNANDES, Bernardo Mançano. Agricultura e mercado: campesinato e agronegócio da laranja nos EUA e Brasil. In: PAULINO, Eliane T. e FABRINI, João E. (Orgs.) Campesinato e territórios em disputas.São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 161-190. Recebido em 31/11/2009 Aceito em 30/10/2010 _____________________________________________________ 1 - Professor do departamento de geografia e do programa de pós-graduação em geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. 2 - Professor do curso de história da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus de Guarulhos; e do programa de pós-graduação em geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. 3 - Mestrando do programa de pós-graduação em geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente. 4 Em Fernandes, 2008b, apresento uma análise dos autores seminais e contemporâneos dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário. 5 Conflitualidade é compreendida como: 1) a complexidade das relações sociais construídas de formas diversas e contraditórias, produzindo espaços e territórios heterogêneos; 2) a historicidade e a espacialidade dos processos e conflitos sociais, dinamizadoras e não determinadas; 3) a construção política de uma perspectiva relacional das classes sociais em trajetórias divergentes e diferentes estratégias de reprodução social; 4) o reconhecimento da polarização regra/conflito como contradição em oposição à ordem e ao “consenso”; 5) posicionar-se ante aos efeitos da globalização da sociedade, da economia e dos espaços e territórios, marcados pela exclusão das políticas neoliberais, produtora de desigualdades e ameaçando a consolidação da democracia. (FERNANDES, 2008b, p. 177). 6 A “integração” é interpretada pelos estudiosos do paradigma da questão agrária como subordinação, porque estes têm a conflitualidade como referência de um processo desigual e contraditório, ou seja, a relação é compreendida desde uma perspectiva dialética. Mas, este não é o sentido dado pelos estudiosos do paradigma do capitalismo agrário. Para eles, a integração do campesinato à economia capitalista promove o desenvolvimento de ambos e os problemas gerados por essa relação podem ser resolvidos por meio de políticas agrícolas. Neste sentido, a conflitualidade não é uma referência, como também não é o processo desigual e contraditório, de modo que a relação é compreendida desde uma perspectiva positivista. 7 Em Welch e Fernandes (2008), p. 163-167 encontra-se uma reflexão mais detalhada sobre o conceito de agronegócio. 8 Ploeg (2008) denominou essas corporações de “impérios alimentares”. Essas palavras expressam bem o poder das corporações transnacionais. Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011 ISSN 2237-3071 ➆➇ ➈➈