Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e
Disputa Territorial
Biofuel Policies in Brazil: Paradigms and Territory Disputes
Bernardo Mançano Fernandes1
Universidade Estadual Paulista
Presidente Prudente, Brasil
Clifford Andrew Welch2
Universidade Federal de São Paulo
Guarulhos, Brasil
Elienai Constantino Gonçalves3
Universidade Estadual Paulista
Presidente Prudente, Brasil
Resumo: O artigo versa sobre os sentidos das políticas governamentais, das ações dos
movimentos camponeses e das corporações neste momento de intensificação da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis. Os autores analisam as
relações e suas contradições a partir das influências dos paradigmas sobre as políticas de
governos e sobre as ações das organizações. Discutem como as políticas e as ações
modificam os parâmetros dos paradigmas. A partir de trabalho de campo, estudam três
experiências de movimentos camponeses, sendo dois deles vinculados à Via Campesina.
Estudam também documentos da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG) para comparar as posturas dos movimentos camponeses frente às políticas e
relações com o agronegócio. Com essas análises, os autores refletem sobre a relação
existente entre território material e imaterial, confrontando as realidades, teorias, conceitos e
ideologias por meio do debate paradigmático.
Palavras-chave: agrocombustíveis, paradigmas. disputa territorial
Abstract: This article examines the meaning of public policy and the action undertaken by
farmers and corporate movements at a moment when an expressive increase in the area
planted in biofuel is taking place in Brazil. The authors analyze the influence and consequent
contradictions caused by different paradigms on public policy and action taken by the
organizations involved as well as how specific policy and action provoke change in
paradigms. Based on field research, the experience of three farmer movements is evaluated
with regard to policy and their relationship to agribusiness: two linked to the Via Campesina
and the third being the National Confederation of Agricultural Workers (CONTAG). Based
on this analysis, the relationship between material and non-material territory is discussed,
comparing realities, theories, concepts and ideologies through paradigmatic debate.
Keywords: biofuel, farmer movements, paradigms, material and non-material territory.
Espaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011
ISSN 2237-3071
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Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C.
Introdução
O processo de mudança de matriz energética nos desafia a pensar políticas,
paradigmas, usos de territórios e seus protagonistas. Por causa desse processo, aumentou
a intensidade da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis.
Este fenômeno constitui-se em novo componente dos paradigmas da questão agrária e do
capitalismo agrário, exigindo uma releitura dos modelos teóricos e de desenvolvimento
territorial. A expansão da produção de agrocombustíveis está reordenando o uso dos
territórios rurais, abrindo espaço para se questionar as formas de participação dos modos
de produção capitalista e familiar no Brasil. Analisamos efeitos de políticas de
agrocombustíveis no Brasil e reações do agronegócio e de movimentos camponeses por
meio das leituras dos paradigmas. Para refletir sobre essa nova realidade, estudamos
embates e propostas de movimentos camponeses, e a disputa territorial com o agronegócio.
Examinamos os projetos de produção de agrocombustíveis pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e Federação das Associações de Assentados e Agricultores Familiares do Oeste Paulista (FAAFOP),
bem como a expansão da cana-de-açúcar na região do Pontal do Paranapanema, no
Estado de São Paulo, Brasil. A produção de agrocombustíveis está mudando os processos
de territorialização e desterritorialização do agronegócio e do campesinato.
Procuramos compreender, por meio dos princípios dos parâmetros dos paradigmas
da questão agrária e do capitalismo agrário, os sentidos das políticas governamentais, das
ações dos movimentos camponeses e das corporações neste momento de intensificação
da expansão das áreas de culturas para produção dos agrocombustíveis. Analisamos as
relações e suas contradições das influências a partir dos paradigmas sobre as políticas de
governos e sobre as ações das organizações. No modo inverso, discutirmos como as
políticas e as ações modificam os parâmetros dos paradigmas. A partir de trabalho de
campo, estudamos três experiências de movimentos camponeses, sendo dois deles vinculados à Via Campesina. Estudamos também documentos da Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) para comparar as posturas dos movimentos
camponeses frente às políticas e relações com o agronegócio. Com essas análises, discutimos a relação existente entre território material e imaterial, confrontando as realidades,
teorias, conceitos e ideologias por meio do debate paradigmático.
Adotando esse método, aprofundamos nossas reflexões sobre as disputas territoriais.
Tema tão estudado na geografia, mas pouco debatido em outras áreas do conhecimento
que utilizam o conceito de território apenas no sentido de área e extensão, desconhecendo as multidimensionalidades do território e as relações de poder que o determinam.
Com essas referências, discutimos diferentes formas de disputas territoriais no campo
agrário e no campo das ideias, afirmando que esses campos são inseparáveis, assim
como são indissociáveis os territórios materiais e imateriais. Neste artigo, estudamos duas
formas concretas de disputas territoriais: a territorialização-desterritorializaçãoreterritorialização (TDR) do campesinato e do agronegócio, e a territorialidade do
agronegócio no território do campesinato. Como resultados de nossos estudos, apresentamos
as novas conflitualidades e territorialidades construídas nesse processo, contribuindo
com a atualização dos paradigmas.
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Paradigmas da Questão Agrária e do Capitalismo Agrário
A questão agrária não pode ser tratada como uma crise agrária, porque ela não é um
problema temporário. Ela é um tema permanente, uma questão estrutural do capitalismo,
sendo compreendida pelo processo constante de produção de desigualdades, como por
exemplo: concentração de terra, riqueza e poder, que promove contraditoriamente a
destruição e recriação do campesinato (OLIVEIRA, 1991). Esse processo de desigualdades cria processos de resistências. Camponeses de todo o mundo são cotidianamente
expropriados de seus territórios e lutam com persistência para continuar existindo
(FERNANDES, 2000; DESMARAIS, 2007). As desigualdades e contradições geradas pela
questão agrária no capitalismo têm sido discutidas e interpretadas de formas opostas. E no
centro desse debate, está a existência do campesinato. Alguns autores compreendem
esse processo desigual e contraditório como uma forma de destruição do trabalho familiar, que representaria o fim do campesinato (GOLDBERG, 1996; PEREIRA, 1997). Outros
autores entendem o processo como gerador de resistências e recriação (BRYCESON et al.,
2000; OTERO, 2004; PLOEG, 2008).
A partir desta breve explanação, enfatizamos que na essência da questão agrária no
capitalismo está o processo desigual e contraditório a destruir e recriar o campesinato.
Oliveira (1991) tem afirmado persistentemente esse caráter contraditório do capital a criar,
destruir e recriar o campesinato. Não há dúvidas que a destruição do campesinato, numa
leitura geográfica, é resultado da territorialização do capitalismo no campo ou, para dizer
de outro modo, da expansão das relações capitalistas no meio rural. Todavia, a sua
recriação não é realizada somente como resultado da expansão da ordem capitalista, por
meio da compra ou do arrendamento da terra. No Brasil, por exemplo, a luta pela terra por
meio das ocupações é a principal forma de acesso à terra (FERNANDES, 2000). As ocupações de terra evidentemente não fazem parte da ordem capitalista, e por esse motivo são
criminalizadas pelos governos. Apesar da criação de diversas medidas políticas para
acabar com as ocupações, estas continuam sendo uma das mais importantes formas de
luta popular. As ocupações são apenas uma forma de luta pela terra, enquanto outra
forma importante são as lutas das comunidades camponesas e indígenas para continuarem na terra, resistindo à expropriação. Para combater essas insistentes formas luta pela
terra em várias partes do hemisfério sul, o Banco Mundial propôs a diversos países a
criação linhas de financiamento para compra de terras (BORRAS, 2006; RAMOS FILHO,
2008). Esta é uma forma de redirecionar a luta pela terra do campo da política pública
para o campo do capital, ou seja, da ordem capitalista para manter o controle social sobre
os conflitos fundiários, impedindo sua utilização para questionar a ordem capitalista.
Analisar a questão agrária como um tema conjuntural do capitalismo é uma opção
ideológica que desconsidera a sua essência, ou seja, desconsidera a questão em si. Desse
modo, não há uma questão agrária para os cientistas que fazem essa opção ideológica,
pois eles compreendem que essa questão não seria um problema estrutural do capitalismo. A concentração de terra, riqueza e poder, bem como a destruição e recriação do
campesinato seriam problemas conjunturais do desenvolvimento agrário no capitalismo,
os quais deveriam ser resolvidos pela lógica do capitalismo agrário. É dentro desta lógica,
por exemplo, que se encontram as políticas de reforma agrária de mercado do Banco
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Mundial. Essas interpretações são de dois paradigmas4 que procuram explicar o processo.
Cada paradigma representa uma tendência ideológica contra ou a favor do capitalismo.
Por essa razão, cada paradigma escolhe os elementos da realidade que pretende enfocar
em suas análises. Os paradigmas não são territórios restritos, ao contrário, eles se sobrepõem, dialogam e possuem diferenças fundamentais. O paradigma da questão agrária
prioriza as lutas de classes para explicar as disputas territoriais, os modelos de desenvolvimento e suas conflitualidades5 . Sendo a questão agrária um problema estrutural, a luta
contra o capitalismo é a perspectiva de construção de outra sociedade. A produção de
desigualdades também é explicada como um problema conjuntural do capitalismo e que
poderia ser superado por meio de políticas promotoras da “integração6 ” do campesinato
ou “agricultor de base familiar” ao mercado capitalista. Essa “integração” seria necessária
porque o campesinato compõe uma estrutura incompleta e necessita do mercado capitalista para se desenvolver. Nessa lógica, campesinato e capital “interagem” e – enfatizamos
– a desigualdade dessa interação geradora de subordinação e expropriação é compreendida como um problema conjuntural. Esse processo é explicado pelo paradigma do
capitalismo agrário, que prioriza as políticas sociais para aproximar relações entre a
produção capitalista e a produção familiar (ABRAMOVAY, 1992; FERNANDES, 2008b).
Para o paradigma da questão agrária, o problema está na estrutura. Para o paradigma do
capitalismo agrário, o problema está no camponês.
Em meio às diferenças fundamentais desses paradigmas, estão as interpretações sobre os sentidos das relações existentes entre campesinato e capitalismo. Para o paradigma
da questão agrária, são sempre as relações de subordinação do campesinato ao capitalismo que levam uma fração do campesinato à insubordinação, gerando conflitualidades
permanentemente expressas pelas disputas territoriais. Os estudiosos do paradigma do
capitalismo agrário veem as relações existentes entre campesinato e capitalismo como
relações de integração, de modo que as conflitualidades raramente aparecem em suas
pesquisas. Diversos trabalhos produzidos desde os parâmetros desses dois paradigmas
atualmente discutem o movimento de diferenciação, destruição e recriação do
campesinato. Abramovay (1992) defende a tese da metamorfose do campesinato no
agricultor familiar, por meio da integração aos mercados capitalistas e aos parâmetros
tecnológicos do agronegócio (monocultura, agrotóxicos etc.). Fernandes (2000) analisa o
processo TDR, enfatizando a criação do campesinato por meio da ocupação de terra pelo
MST. Ploeg (2009) estuda o caráter resiliente do campesinato que, resistindo ao processo
de integração às corporações do agronegócio, retoma suas identidades e o modo camponês de praticar a agricultura. Carvalho (2009) faz uma leitura crítica da denominada
“integração do campesinato aos mercados capitalistas” e enfatiza as formas de resistência
camponesa como uma catarse em que o camponês recupera sua rebeldia. É importante
destacar que a consolidação desses paradigmas na interpretação da questão agrária ou
do capitalismo agrário neste início de século tornou obsoletas as teses de destruição do
campesinato. Não há – na última década – nesses dois paradigmas publicações que
defendam o fim do campesinato.
A participação do campesinato na produção de commodities tem sido uma forma de
integração ao capitalismo, como explica o paradigma do capitalismo agrário, ou uma
forma de subordinação tão criticada pelo paradigma da questão agrária. As commodities
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Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial
agrícolas são monoculturas produzidas em grande escala, predominantemente pelo
agronegócio e em parte pelo campesinato. O conceito de agronegócio é uma “panaceia”.
Definimos o agronegócio como o modelo de desenvolvimento da agricultura capitalista
criado pelas corporações transnacionais, que começou a ser formado nas décadas de
1940 e 1950, e se consolidou nas décadas de 1980 e 1990 7 . As corporações do
agronegócio estão organizadas em conjuntos de sistemas que controlam as commodities8 .
Algumas corporações controlam todos os sistemas ou a maior parte. O conjunto de
sistemas agrícola, industrial, mercantil, financeiro e tecnológico forma o complexo
agronegócio. Este é reforçado por um amplo sistema ideológico que procura insistentemente convencer a sociedade de suas “benesses”. Para o paradigma do capitalismo
agrário, esse complexo de sistemas é a totalidade, o modelo de desenvolvimento da
agricultura ao qual o campesinato deve ser parte por meio da integração. Assim como o
paradigma do capitalismo agrário não tem o monopólio sobre as interpretações da realidade agrária, o agronegócio não tem o monopólio sobre a produção agrícola. O
agronegócio não é a totalidade e, portanto, é apenas uma possibilidade de modelo de
desenvolvimento da agricultura. Um modo de o campesinato lutar contra a subordinação
ao capitalismo é por meio da elaboração de seu próprio modelo de desenvolvimento,
abrindo novas possibilidades de criação de novos territórios para resistir à subordinação.
A lógica da reprodução ampliada do capital é insustentável. Este é o sentido principal
da crítica do paradigma da questão agrária. A produção monocultora em grande escala
por meio da exploração do trabalho assalariado são relações de expropriação,
concentradora de territórios, riqueza e poder. O capitalismo é o modo hegemônico de
produção e sua relação com o campesinato é sempre de dominação. É por isso que uma
fração do campesinato resiste permanentemente ao desenvolver em seus territórios relações sociais baseadas na produção familiar diversificada em pequena escala, associativa
ou cooperativa, de forma sustentável e inclusiva. As diferenças entre campesinato e
agronegócio são expressas nas relações sociais e nos territórios que produzem. Os territórios são também condições de produção das relações sociais. Camponeses e capitalistas
organizam-se a partir de diferentes relações sociais que produzem territórios distintos
(FERNANDES, 2008a). As lutas de resistência dos camponeses são expressas nas conquistas
de seus territórios. Todavia, a conquista do território não significa autonomia, mas a
condição de construí-la. A busca pela autonomia é uma luta permanente pela soberania
do território. A subordinação do campesinato ao capital acontece de duas formas: 1) pela
sujeição da renda da terra ao capital, quando o campesinato vende sua produção para
corporações capitalistas, muitas vezes com a formação de cartéis, como ocorre, por exemplo, com os produtores de laranja; 2) pela territorialidade do agronegócio em território
camponês. Esse fato pode ser facilmente observado quando se visita uma unidade camponesa e se encontra o aparato tecnológico das corporações na produção vegetal ou animal.
Agrocombustíveis, Paradigmas, Políticas Governamentais e Movimentos
Camponeses
O processo de substituição do combustível fóssil pelo agrocombustível tem impactado
os territórios, com a expansão das áreas de produção, e o debate paradigmático, com a
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elaboração de estudos sobre as mudanças e os problemas causados. Contudo, o
impacto territorial é mais intenso que o impacto paradigmático. Não há mudanças
substanciais nos modos como os paradigmas têm tratado esses impactos. O paradigma
da questão agrária aprofunda suas críticas à territorialização dos agrocombustíveis,
estudando principalmente os impactos políticos, sociais, econômicos e ambientais.
O paradigma do capitalismo agrário discute esses problemas como resultantes de um
processo conjuntural, analisando as perspectivas e os novos mercados. As análises
paradigmáticas possuem certa semelhança quando se referem aos impactos ambientais,
e são distintas ao se referirem aos impactos econômicos e sociais. Essas duas referências paradigmáticas são importantes para estudar recentes experiências de produção
de agrocombustíveis pelos camponeses em suas relações com as corporações e mercados capitalistas.
A mudança de matriz energética desafia os paradigmas para estudar as políticas
governamentais, do agronegócio e do campesinato, para a produção de agrocombustíveis.
Essa mudança está promovendo intensos processos de reordenamento do uso dos territórios rurais, através de disputas territoriais entre o agronegócio e o campesinato pelo uso
dos territórios para produção de alimentos e agrocombustíveis. Pesquisas recentes sobre
o tema apresentam duas tendências que nos possibilitam acompanhar os impactos da
expansão dos agrocombustíveis e as leituras dos paradigmas da questão agrária e do
capitalismo agrário. De um lado, há a tendência à intensificação da expansão das
monoculturas do agronegócio em territórios de florestas, aumentando o desmatamento
(MENDONÇA, 2009) e em muitas áreas associada ao trabalho escravo (GIRARDI, 2008),
principalmente com a territorialização da cana-de-açúcar, como registrado anualmente
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2009) e também recentemente divulgado pelo
Department of Labor dos Estados Unidos. E ainda disputando os usos dos territórios entre
a produção de alimentos e a de agrocombustíveis (HURTADO, 2009; OLIVEIRA, 2008).
De outro lado, há a tendência à inclusão do campesinato ao processo de produção de
agrocombustíveis e aos mercados capitalistas. (ABRAMOVAY e MAGALHÃES, 2007;
VERMEULEN et al., 2008; BERDEGUE et al., 2008). Nesses trabalhos, estão explícitas
as diferenças fundamentais entre os paradigmas: a) as críticas do paradigma da questão agrária aos impactos socioterritoriais, por exemplo desmatamento, intensificação
da exploração do trabalho, casos de uso de trabalho escravo, subordinação e expropriação de camponeses como resultado da expansão da produção dos
agrocombustíveis pelas corporações transnacionais; e b) as ênfases do paradigma do
capitalismo agrário aos processos de “integração” aos mercados capitalistas, analisando tendências, logísticas, redes, preços etc. Não há, nesses paradigmas, estudos
sobre as conflitualidades presentes nos mercados e as perspectivas de superação.
Esta é uma lacuna dos estudos sobre os tipos de mercados e as perspectivas de
minimização da subordinação do campesinato.
O debate entre os pesquisadores desses dois paradigmas ajuda a refletir sobre a
atualidade da questão agrária e do capitalismo agrário através de dois modos de ver,
interpretar e construir políticas de desenvolvimento para mudar as realidades agrárias. Os
trabalhos produzidos desde os parâmetros desses paradigmas influenciam os governos
na elaboração de políticas de desenvolvimento agrário que fornecem referências para
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mudar tais parâmetros. As ações dos movimentos camponeses também orientam os
parâmetros e modificam os paradigmas que exercem influências sobre suas ações. Nessa
situação, analisamos as posturas dos paradigmas referentes à relação existente entre
campesinato e capitalismo, como elementos da atualidade da questão agrária, a partir da
expansão dos agrocombustíveis por meio das políticas governamentais. O papel do
campesinato nesse processo está no centro dos debates entre as organizações camponesas, que já desenvolvem diversas experiências iniciais. Igualmente, a partir desses dois
paradigmas, há posições contrárias e favoráveis à participação dos movimentos camponeses na produção de agrocombustíveis.
Um exemplo de influência dos paradigmas sobre as políticas governamentais de
desenvolvimento agrário é o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB).
Pela primeira vez, a agricultura camponesa foi incluída em um programa de produção
através de uma política nacional. Este é o item do PNPB denominado “competitividade e
inclusão social”, com a criação do “Selo Combustível Social”, que isenta do Imposto
sobre Produtos Industrializados (IPI), concedido pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA). Essa política foi elaborada a partir da lógica da “integração” – um dos
princípios dos parâmetros do paradigma do capitalismo agrário. O subsídio que o governo oferece ao sistema industrial do agronegócio, na compra de uma quantidade definida
pelo MDA, contribui para a manutenção da subordinação da produção camponesa ao
agronegócio. O controle do processo de produção e comercialização é do agronegócio,
que vem realizando investimentos em pesquisas e tecnologia para a produção em grande
escala de culturas destinadas ao agrocombustível.
Um exemplo de influência dos paradigmas sobre as políticas dos movimentos
camponeses está no dilema que enfrentam sobre as probabilidades e condições de
produzir agrocombustíveis. Esse dilema reside – exatamente – nas diferenças dos princípios dos parâmetros dos paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário:
questão estrutural/ problema conjuntural; subordinação/integração. A compreensão da
relação existente entre o campesinato e o capitalismo no contexto estrutural tem como
referências a conflitualidade e a luta contra o capital na resistência contra a subordinação e expropriação. E nesse sentido, as decisões sobre as condições impostas pelas
políticas agrárias são de enfrentamento. A compreensão da relação existente entre o
campesinato e o capitalismo no contexto conjuntural tem como referências a convivência e a luta com o capital na elaboração de políticas de desenvolvimento do capitalismo
agrário. E nesse sentido, não há necessariamente a imposição, mas a aceitação das
condições das políticas agrárias. A relação existente entre os movimentos camponeses
e os princípios dos paradigmas não é linear. Há conjuntos de fatores que criam contradições
e até mesmo paradoxos nas relações com as políticas de desenvolvimento agrário e
com o capitalismo. Entretanto, a seguir, faremos aproximações sobre situações efetivas
nas práticas dos movimentos camponeses.
A Via Campesina-Brasil tem uma postura crítica em relação ao agrocombustível
como alternativa energética e aos problemas resultantes dos impactos na produção de
alimentos. Contudo, alguns movimentos vinculados à Via Campesina desenvolvem
experiências com a produção de agrocombustíveis. Esta não é uma simples questão.
No ano de 2008, o MPA sofreu uma cisão por causa dessa questão. Uma parte da
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organização, por rejeitar as experiências com a produção de agrocombustíveis, tornou-se
uma dissidência e formou o Movimento Camponês Popular. A crítica e a produção estão
no contexto do debate em diferentes escalas. Compreendendo que a subordinação e a
expropriação são problemas estruturais, a Via Campesina constrói o discurso do
enfrentamento contra a lógica da política do Selo Combustível Social. Nesse sentido, as
experiências de produção de agrocombustíveis são tanto contradição quanto proposição, bem como perspectivas de criação de novos espaços, de novos territórios.
Tais experiências nascem nas bases das organizações camponesas, sem referências
de políticas de produção e comercialização que partam de espaços ou de decisões das
instâncias de direção em escala nacional.
Numa postura oposta, a CONTAG tem uma articulação em escalas nacional, estadual
e municipal para acompanhar os processos de negociação entre agricultores e empresas,
e também o processo de qualificação profissional dos produtores. Com o objetivo de
investir na pesquisa sobre os sistemas de agroenergia, propôs a ampliação da política
com a criação de um Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Política de Biodiesel.
A CONTAG não tem manifestado uma postura crítica ao agrocombustível em seus documentos, ao contrário, apresenta proposições para o avanço do modelo em desenvolvimento. As posturas da CONTAG e da Via Campesina possibilitam uma aproximação das
tendências dessas organizações camponesas e respectivas posturas, com referências aos
parâmetros dos paradigmas. Os espaços ocupados no debate sobre a produção e uso
dos agrocombustíveis revelam posturas diferenciadas dessas organizações. Essas posturas constroem territórios distintos e são referências importantes para a compreensão
das disputas territoriais.
As Disputas Territoriais: Leituras e Conceitos
Prevalece nas definições de território a compreensão da área, superfície e espaço
geográfico. Predominam as análises espaciais separadas da ação ou as análises sociais
separadas do espaço. Os espaços e os territórios são criados pelas ações das diferentes
relações sociais. A relação social capitalista cria espaços e territórios capitalistas e, contraditoriamente, cria relações sociais não capitalistas que também criam seus respectivos
espaços e territórios. As relações sociais familiares, camponesas e outras formas de relações
não capitalistas criam espaços e territórios capitalistas. Essas distintas relações sociais
criam diferentes espaços e territórios, que se confrontam e se sobrepõem formando diversas territorialidades. Em Fernandes (2009), analisamos uma tipologia de territórios em que
o primeiro território é formado pelo espaço geográfico do Estado. O primeiro território é o
espaço de governança organizado em diversas escalas geográficas: país, estados, municípios,
por exemplo. No primeiro território, as relações sociais formam o segundo território na
criação dos diferentes tipos de propriedades privadas, individuais, coletivas, capitalistas
ou não capitalistas.
Compreender uma relação social como totalidade implica em reconhecer o seu
território. Conceber o capitalismo como totalidade significa que as outras relações
sociais são partes deste sistema, como explica o paradigma do capitalismo agrário.
Nesse sentido, a disputa territorial é por frações do território capitalista. A conquista
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desses territórios pelo campesinato é condição para seguir sendo parte desta totalidade. Conceber o campesinato como uma relação social não capitalista, que cria seus
próprios territórios, implica em reconhecer o modo de produção capitalista como
uma das relações sociais no primeiro território. Este é composto pelas diferentes formas de organização do segundo território, em propriedade privada capitalista e propriedades camponesas. Nesse sentido, a disputa territorial é por frações dos territórios
capitalistas e camponeses., O processo TDR, nesta leitura, representa o movimento
territorial da conflitualidade.
Os paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário produzem ideias,
teorias, métodos, metodologias, conceitos, ideologias, políticas, ações e territórios.
Os territórios são também são construídos pelas relações de poder, por meio da
elaboração do conhecimento. São materiais e imateriais. A disputa territorial não é
somente por terra, mas por todas as dimensões do território. Para a elaboração de
políticas agrárias e seu desenvolvimento é preciso construir territórios que viabilizem
sua aplicação nos territórios que se pretende viabilizar. A elaboração de um modelo
de desenvolvimento camponês requer um ministério camponês, assim como o
agronegócio tem seu próprio ministério para defender o seu modelo de desenvolvimento. A construção de conhecimentos e tecnologias também acontece em espaços
específicos ou territórios criados para tal fim. A produção em grande escala com
trabalho escravo, desde as plantations até a monocultura intensamente mecanizada
do agronegócio, sempre produziu territórios de dominação e geradores de desigualdade. A produção em pequena escala, diversificada e mecanizada sempre produziu
territórios comunitários e desenvolvimento inclusivo. Todavia, esses dois tipos de
territórios sempre conviveram em conflitualidades.
Os conceitos também são territórios e os estudiosos delimitam as suas significações.
O uso dos conceitos de integração e de subordinação pelos paradigmas do capitalismo
agrário e da questão agrária para se referirem às relações de produção de commodities
por camponeses ou agricultores familiares para o agronegócio é um bom exemplo do
poder para dar sentido ao significado. Afirmar que um camponês ou agricultor familiar
que cria frango para uma corporação é um integrado e discutir as técnicas de produção e
comercialização é uma opção de método, metodologia e ideológica. Afirmar que um
agricultor familiar ou camponês que cria frango para uma corporação é um subordinado
e discutir as relação de poder, dominação, exploração e expropriação também é uma
opção de método, metodologia e ideológica. A determinação dessas opções é definida
pela vinculação dos estudiosos aos paradigmas. Acontece o mesmo quando escrevemos
“camponês” ou “agricultor familiar”. A escolha das significações para demarcar os
conteúdos desses conceitos é uma opção teórica, política e ideológica. E o poder
dessas definições se materializa em organizações sociais e em políticas públicas que
constroem territórios.
Este é o sentido das disputas nos territórios imateriais, ou disputas territoriais no uso
dos conceitos. Outro exemplo foi a decisão da Via Campesina em Mali, quando definiu
pelo uso do termo “agrocombustível” para se referir à produção em grande escala. HoltGiménez e Kenfield (2009), Gordon et al. (2009) e Hurtado e Laura (2009) demarcam suas
posições ao optarem pelo uso do termo “agrocombustíveis” em seus estudos. Essa intenção
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Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C.
criou-se numa questão conceitual que dá uma identidade paradigmática aos estudiosos
que utilizam a palavra “agrocombustíveis” e aos estudiosos que utilizarem a palavra
“biocombustíveis”, como é o caso de Abramovay e Magalhães (2008). O uso das
expressões “agrocombustíveis” e “biocombustíveis” pode se referir aos mesmos processos, mas com leituras distintas. Além dos estudiosos, as organizações camponesas
também usam essas expressões de forma diferenciada. A CONTAG, em seus documentos, usa sempre a palavra “biocombustíveis”. Da mesma forma, as organizações
de pesquisas ou Think Tanks, como por exemplo, Food First, Clacso ou Rimisp, que
têm grupos de pesquisadores estudando os processos de expansão dos
agrocombustíveis, empregam os conceitos de formas distintas expressando disputas
territoriais pela interpretação dos fatos.
As disputas territoriais desde os territórios materiais e imateriais são fatos. Elas
colocam que o maior desafio não é produzir ou não produzir, mas como manter
controle territorial sobre esse processo. Para os países produtores, será necessário
elaborar ordenamento territorial para controlar a conflitualidade entre camponeses e
agronegócio, e entre os territórios a serem utilizados para a produção de alimentos e
de agrocombustíveis. Também será preciso planejar o zoneamento agroecológico
para proteger áreas de florestas e até mesmo limitar a venda de terras para estrangeiros. Tais condições são necessárias para garantir a soberania dos diversos territórios.
O MST, o MPA e a FAAFOP estão realizando diferentes experiências que são algumas
referências para esta reflexão.
Experiências do MST e do MPA
Ao contrário da CONTAG, que possui uma rede nacional para relação entre camponeses
e empresas compradoras de agrocombustíveis, o MST possui experiências localizadas
com base na produção para autoconsumo. No assentamento Fazenda Pirituba, localizado no município de Itapeva, Estado de São Paulo, o MST começou uma experiência de
produção de óleo vegetal a partir do girassol. Para tanto, utiliza uma extratora com capacidade
de processamento de 150 quilos/hora. Com a produção, os assentados abastecem o
trator da associação e também produzem torta de girassol para alimentação animal.
Ainda, a cultura do girassol está possibilitando qualificar o trabalho de 150 famílias do
assentamento que praticam a apicultura, com a construção de um entreposto de mel cuja
capacidade de processamento é de uma tonelada por dia. Na área agrícola do assentamento, além do girassol, os camponeses produzem feijão, café, arroz e alho. A associação
entre a produção de culturas alimentares e culturas para produção de energia é um dos
princípios dos movimentos camponeses no uso de seus territórios. A não vinculação com
empresas capitalistas dificulta a expansão das experiências e abre espaços para elaborar
uma proposta de política de produção de agrocombustíveis associados à produção de
alimentos (MST, 2008).
A produção de alimentos e culturas para produção de agrocombustíveis de forma
agroecológica também é uma experiência em desenvolvimento pelo MPA. Todavia, esta é
uma proposição mais ampla que a experiência do MST e está organizada em escala
microrregional. A experiência organiza os sistemas agrícola e industrial, contudo ainda
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Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial
destinado somente para o autoconsumo da comunidade. O sistema industrial está organizado para processar alimentos e energia com base na produção de cana-de-açúcar,
batata, mandioca e sorgo. Esse sistema produz açúcar mascavo, melado, rapadura,
cachaça, ração animal, adubo orgânico e álcool. São famílias camponesas de 10 municípios que fornecem matéria-prima para o setor industrial que está situado no município de
Frederico Westphalen, no Estado do Rio Grande do Sul. Não se conhece, por parte do
MST ou do MPA, uma proposição de projeto de produção de agrocombustíveis e alimentos nos assentamentos de reforma agrária ou para outras unidades camponesas.
Tampouco uma proposta de investimento direto, por meio de uma política de
agrocombustíveis a partir da agricultura camponesa, que compreenda os sistemas agrícola, industrial e mercantil.
Estas experiências acontecem em escala local e microrregional, e estão sendo gestadas
a partir do princípio da autonomia. São duas sementes que poderão ser referências futuras, caso a Via Campesina assuma uma postura mais bem definida para uma política de
produção de agrocombustíveis.
A Experiência da FAAFOP
A criação da FAAFOP aconteceu com a dissidência de José Rainha e outras lideranças
do MST. A federação reúne diversos movimentos camponeses, sindicatos e 80 associações filiadas que representam cerca de 30 assentamentos da região do Pontal do
Paranapanema. Suas estratégias visam a diversificação e agroindustrialização, com objetivo
de aumentar a renda dos assentados através de um sistema cooperativista de produção. A
federação controla a Cooperativa de Produção de Biodiesel do Oeste Paulista
(Cooperbioeste). A cooperativa mantém uma política de produção diversificada e está
projetando a construção de um laticínio para industrialização do leite. Outro projeto da
cooperativa é a produção consorciada de culturas alimentares e de produção de energia,
como o pinhão manso e a mamona destinados à produção de biodiesel. O plantio de
culturas para a produção de biodiesel é discutido pelos assentados na região do Pontal,
desde 1994. Todavia, os projetos não tiveram êxito durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso. No governo Luis Inácio Lula da Silva, a direção da FAAFOP vem
mantendo e discutindo a possibilidade de construção de usinas na região do Pontal.
A produção de mamona está sendo realizada por 760 produtores que plantaram um
hectare cada. A produção de 2009 rendeu 800 toneladas de mamona, que foram negociadas com a empresa Bertin, com sede em Lins, SP. Segundo Rainha, um acordo foi feito
com a empresa, no qual o grupo compra a produção de 2009 e 50% da produção de
2010, que esta prevista para 1.600 toneladas. A negociação com a empresa foi realizada
pelo interesse no Selo Combustível Social. A empresa oferece máquina, adubo e calcário.
A expectativa da federação é atender mais de 1.200 produtores para a produção de
mamona e amendoim. A política de produção da federação não é ser somente fornecedor
de matéria-prima, mas também processar a produção de mamona. O projeto da FAAFOP
consiste na criação de uma unidade industrial para processamento de 50% da produção
de 2010, além do reaproveitamento da torta como adubo verde. Segundo Rainha, a
expectativa para o projeto da construção de uma unidade de processamento está paraliEspaço Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.1, p. 21-43, 2011
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sada por causa da política do MDA e da Petrobrás, que é de favorecimento dos grandes
produtores em detrimento dos pequenos.
Os princípios da FAAFOP também associam a produção de alimentos às culturas
para produção de energia. No Pontal do Paranapanema, a produção de óleo de
mamona est autorizada e a federação aguarda a liberação do governo para expandir
as áreas de produção de do pinhão manso. A proposta da federação é produzir
agrocombustível para abastecer o mercado local. Essas experiências enfrentam diversos obstáculos: desde os movimentos camponeses aprofundarem os debates sobre as
formas de participação na produção de agrocombustíveis, até a necessidade de convencer o governo da importância de investimentos diretos na construção de uma
política de desenvolvimento com a criação de um conjunto de sistemas cooperativos
e associativos para produção, industrialização e comercialização de alimentos e
agrocombustíveis. Enquanto as experiências dos movimentos camponeses desenvolvem-se em escalas microrregionais, as experiências do agronegócio se desenvolvem
em escala nacional e internacional
Disputa Territorial: Campesinato e Agronegócio
Na perspectiva de aumento do uso dos agrocombustíveis, algumas empresas estão
investindo na compra de usinas de álcool ou criando novas usinas. O Grupo Odebrecht,
uma corporação brasileira transnacional do setor de construção, comprou em 2007 a
Destilaria Alcídia, localizada no município de Teodoro Sampaio, na região do Pontal do
Paranapanema, no Estado de São Paulo. Estão previstas a construção de mais duas usinas de
álcool do grupo nessa região, por intermédio da empresa ETH Bioenergia S/A (Figura 1).
A região administrativa de Presidente Prudente, na safra 2003/2004, contabilizava 116.681
hectares e, na safra 2008/2009, aumentou para 327.087 – um aumento de 210.406
hectares ou 180%. A região do Pontal do Paranapanema, constituída por parte dos municípios da região administrativa de Presidente Prudente, aumentou quase 200% (de 71.095
para 208.953 hectares) (Tabela 1).
Foto: Bernardo Mançano Fernandes.
Figura 1 – Usina de álcool em instalação em Mirante do Paranapanema – SP.
✓✔
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Tabela 1 – São Paulo: área plantada (ha) por região administrativa e por safra 2003/
2004 a 2008/2009
❘✖✗✘✙✚
Administrativa
Araçatuba
2003-2004 2004-2005 2005-2006 2006-2007 2007-2008 2008-2009
224.483
246.895
262.278
294.830
397.915
512.603
Barretos
219.826
236.329
261.661
295.766
333.037
385.591
Bauru
299.799
314.488
329.911
353.225
422.091
474.151
Campinas
393.862
408.429
436.434
453.052
489.618
511.023
Central
320.410
329.345
341.649
366.443
394.313
432.312
Franca
355.024
376.335
390.467
417.093
449.431
489.061
Marília
241.325
253.262
266.290
289.144
360.020
405.879
116.681
133.281
151.382
179.796
235.155
327.087
416.882
422.110
433.387
447.351
457.315
471.440
280.693
303.658
331.878
396.945
502.555
632.039
133.691
141.255
159.367
167.510
208.472
232.754
3.002.676
3.165.387
3.364.704
3.661.155
4.249.922
4.873.940
Presidente
Prudente
Ribeirão Preto
São José do Rio
Preto
Sorocaba
TOTAL
❋✛✜✢✣✤ ✥✜✦✧✛ ★✩ ✪✜★✫✬✢✭✦✩ ★✣ ✮✩✜✩✯★✣✯✩✰✫✱✩✭ ✲ ✥✳✪✮✴✵ ✶✹✹✺✻
O Pontal do Paranapanema possui o maior potencial para a expansão do plantio de
cana-de-açúcar do Estado de São Paulo. A região é formada por terras griladas e o conflito
fundiário se arrasta por mais de um século. Por essa razão, a região – então dominada por
latifúndios com pastos degradados – está sendo incorporada pelo agronegócio, que os
substitui pela cana-de-açúcar. Essas terras onde há conflitos entre grileiros e sem-terra
passam a ser disputadas pelos movimentos camponeses e o agronegócio sucroalcooleiro.
Esta nova realidade está colocando em questão as políticas de desenvolvimento territorial
para a região, que estavam baseadas na pecuária de corte em latifúndios grilados e na
produção agrícola/pecuária leiteira nos assentamentos de reforma agrária e nas unidades
camponesas convencionais. Segundo o relatório DATALUTA – Banco de Dados da Luta
pela Terra, de 2008, a região possui 109 assentamentos rurais, onde estão assentadas
5.746 famílias em uma área de 140.237 hectares. A territorialização da cana-de-açúcar e
dos assentamentos começou nas décadas de 1970 e 1980. Em 2003, a área dos assentamentos era de 127.438 hectares e a da área de cultivo da cana-de-açúcar era de 71.095
hectares. Em 2008, a área dos assentamentos era de 140.237 hectares e a da área de
cultivo da cana-de-açúcar, 208.953 hectares. Nesse período, a área dos assentamentos
aumentou 9%, enquanto a expansão da área de cultivo da cana-de-açúcar foi 200%.
Estes dados revelam o refluxo da política de reforma agrária e a dinamização da política de
produção de cana-de-açúcar.
O desafio dos movimentos camponeses é o desenvolvimento e autonomia desses
territórios, que foram conquistados no processo de luta pela terra e pela reforma agrária,
ocorrido inclusive sobre o território da cana. O avanço da cana-de-açúcar tem ocorrido
sobre o território dos latifúndios, todavia há alguns assentamentos produzindo cana-deaçúcar, expressando a territorialidade do agronegócio em território camponês. Com essas
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mudanças, formam-se novos cenários da questão agrária do Pontal: o território do latifúndio está sendo convertido em território do agronegócio, que avança na disputa desse
território com os movimentos camponeses. Essa questão pode se acirrar com a
possibilidade do agronegócio da cana ampliar sua territorialidade ou desterritorializar os
assentamentos do Pontal. Na correlação de forças entre esses modelos de desenvolvimento, a reforma agrária poderá ser ampliada e talvez ocorra a expansão dos territórios
dos assentamentos com políticas de desenvolvimento para a agricultura camponesa. A
disputa territorial (Figura 2) entre a expansão da cana-de-açúcar e os camponeses
sem-terra tem gerado diferentes formas de conflitualidades (FERRANTE, 2008).
Foto: Douglas Mansur.
Figura 2 – Disputa territorial entre camponeses e agronegócio: assentamento Mário Lago
em Ribeirão Predo, SP e área de cultivo da cana-açúcar da usina de álcool.
Territórios em Disputa: A Territorialidade do Agronegócio no Território
Camponês
A disputa territorial entre o movimento camponês e o agronegócio sucroalcooleiro
acontece justamente quando se intenta controlar as formas de uso ou acesso aos territórios, ou pelo processo de desterritorialização (FERNANDES, 2009). Essa disputa acontece
de duas formas: pelo processo TDR ou pela territorialidade do agronegócio no território
camponês. Esta é uma forma de controle do território pela subordinação que, no caso da
cana, é chamada de “parceria”. A “parceria” entre camponeses assentados e o agronegócio
sucroalcooleiro é um exemplo da territorialidade do agronegócio em território camponês,
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Políticas de Agrocombustíveis no Brasil: Paradigmas e Disputa Territorial
ou seja, a determinação da forma de uso de parte do lote ou do território que, no caso,
acontece pelo plantio de cana-de-açúcar destinado à produção de açúcar e álcool pela
Destilaria Alcídia. Os camponeses não têm controle sobre o financiamento para a produção da cana-de-açúcar, embora o financiamento esteja em seus nomes; não controlam e
têm pouco conhecimento sobre a tecnologia utilizada; e tampouco têm controle ou
conhecimento sobre a produção de cana em seu território. Trata-se de uma completa
relação de subordinação.
A primeira tentativa de produzir cana-de-açúcar em lotes de assentamentos rurais da
região do Pontal teve início em 1993, quando a Destilaria Alcídia apresentou ao Instituto
de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) – órgão estatal responsável pelo assentamento –
um projeto para o plantio de cana em 11 dos 121 lotes do assentamento Água Sumida,
localizado no município de Teodoro Sampaio. O projeto definia que o Banco do Estado
de São Paulo financiaria esta experiência, emprestando para as 11 famílias os recursos
necessários à produção. Todavia, as famílias não veriam a cor do dinheiro. Deveriam
assinar os documentos do empréstimo e repassar o dinheiro à Destilaria Alcídia S/A, que
administraria os recursos.
Passados 2 anos, a Destilaria Alcídia elaborou uma avaliação da “parceria”. Em
setembro de 1995, avaliou que os resultados obtidos estavam dentro do previsto no
projeto. A empresa destacou que os objetivos norteadores da “parceria” eram: mostrar
que é possível o plantio de cana em pequenas propriedades de forma rentável, proporcionar uma renda mensal durante toda a vida produtiva do canavial (48 meses) e fixar
efetivamente o assentado no lote, de forma que a força familiar não seja obrigada a
procurar sustento em outras atividades fora do lote. A Destilaria Alcídia informava ainda
que, por motivos diversos,– aumento dos juros, mudanças de regras do financiamento
agrícola e da política de preços desfavoráveis – o resultado econômico da “parceria” não
foi o esperado pelo projeto. No entanto, o financiamento junto ao banco foi pago integralmente com a colheita.
Em ofício com data de 21 de dezembro de 1995, o departamento de assentamento
fundiário do ITESP solicitou ao departamento de geografia da UNESP/Presidente Prudente
um parecer sobre a viabilidade ou não da introdução da cana-de-açúcar nos assentamentos, tendo como base o projeto-piloto envolvendo a Destilaria Alcídia e o assentamento
Água Sumida. Segundo o ITESP, a “parceria” teria “provocado muita polêmica em torno
do interesse para o desenvolvimento socioeconômico destes assentamentos”, como por
exemplo, a “pressão por parte da usina e de políticos da região, para expandir o plantio de
cana para os demais assentados da Água Sumida e de outros assentamentos, principalmente a Gleba XV de novembro”, daí a importância do parecer técnico.
Um grupo de geógrafos realizou pesquisa de campo junto aos assentados e a empresa, para elaborar o parecer técnico-científico sobre a viabilidade ou não do cultivo da
cana-de-açúcar nos projetos de assentamentos do Pontal do Paranapanema, SP. No parecer,
relataram a contradição representada pelo cultivo da cana-de-açúcar em assentamentos
rurais. Esse cultivo exige grandes investimentos e racionalidade na produção, e os
assentamentos não possuem infraestrutura nem tecnologia adequadas a essa cultura.
Observaram ainda que estava diminuindo o número de fornecedores de cana, dada a
baixa de rentabilidade da produção dessa cultura. O parecer fez a avaliação dos interesses
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dos envolvidos na “parceria”, tanto da Destilaria Alcídia S/A quanto dos assentados do
assentamento Água Sumida. Em relação ao interesse da usina, o parecer destacou quatro
questões a serem analisadas:
y
y
y
y
A falta de rentabilidade da cana não atrai os grandes proprietários da região para a
cultura da cana.
A Destilaria Alcídia viabiliza a exploração de pequenas áreas, utilizando-se de terras
dos camponeses da reforma agrária para não ter de pagar a renda pelo uso da terra.
O assentamento Água Sumida é próximo à Destilaria Alcídia, tornando a relação
economicamente viável.
Que o financiamento ao assentado sai em condições favoráveis para e empresa, uma
vez que o financiamento sai em nome do produtor assentado, no entanto é repassado diretamente para a usina, que gerencia a utilização durante a produção.
E em relação aos interesses dos assentados:
y
y
y
y
Confere a eles certa tranquilidade econômica. Uma vez que recebem mensalmente
um adiantamento em dinheiro.
A assistência técnica da destilaria.
A venda da sua produção é garantida desde o momento inicial do processo produtivo.
A cana-de-açúcar é uma cultura que não exige uma jornada de trabalho familiar
extensa como as outras culturas.
A parceria é entendida pelos pareceristas como uma alternativa para os assentados,
uma vez que não se efetiva políticas públicas para a geração de renda e desenvolvimento
desses assentamentos. No entanto os pareceristas de forma conclusiva destacam:
Ao mesmo tempo em que a cana-de-açúcar oferece uma saída única para a viabilidade econômica aos produtores assentados, também os condena a dependência, a
não participação, a perda da autonomia, a alienação e a sujeição aos critérios impostos
pela Destilaria.
Esta é, mais uma vez, a face perversa do processo de modernização da agricultura
brasileira, que agora se reflete nas propostas de implantação da cultura de cana-deaçúcar nos projetos de assentamentos de reforma agrária (ANTONIO et al., 1995, p.6).
Após esse projeto envolvendo a Destilaria Alcídia e o assentamento Água Sumida,
não foram realizadas novas “parcerias”. No entanto, em 2002, o ITESP apresentou nova
proposta de “integração entre camponeses e o agronegócio, como forma de garantir a
participação dos assentados na economia dos municípios e “suprir as indústrias de matériaprima de fonte agrícola, além de aumentar, paralelamente a área plantada com gêneros
essenciais à alimentação, consolidar os sistemas de produção existentes e até implantar
unidades artesanais para o processamento dos produtos” (Portaria Itesp nº 75, de 24 de
outubro de 2002). O ITESP passou a permitir que até 30% do lote seja utilizado para a
plantação de cana-de-açúcar.
Aprofundando essa relação de subordinação, o ITESP também passou a permitir a
locação de serviços dos assentados às agroindústrias. Foi nesse contexto que, após
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alguns anos sem contratos firmados, a Destilaria Alcídia voltou a firmá-los em 2002.
Dessa vez, 119 famílias assentadas assinaram a suposta “parceria” pelo prazo de 5 anos.
Após a subida abusiva do preço do petróleo e uma série de medidas do governo para
estimular a produção de álcool nos anos de 2002 e 2003, o ITESP, no dia 27 de julho de
2004, relançou e revisou na portaria nº 77 as medidas antes estabelecidas pela portaria nº
75/2002. Nela, o instituto considera, dentre várias questões, a “necessidade de harmonizar as políticas públicas de incentivo à agroindústria e à produção agrícola”, a permissão
para que os projetos de assentamento, implantados nos termos da legislação estadual,
realizem o plantio de culturas para as agroindústrias. Determinou que, a requerimento do
interessado via projeto técnico, poderão ser implantadas em até 50% das áreas dos lotes
com menos de 15 hectares e em até 30% das áreas dos lotes com dimensão superior a 15
hectares (ITESP, 2004).
Segundo o ITESP, no Estado de São Paulo 500 lotes estão em parceria, respaldados
pela portaria 77 de 27 de julho de 2004, sendo 8 com soja e 492 com cana-de-açúcar. Ver
Quadro 1.
Quadro 1 – Assentamentos com contratos para produção de cana-de-açúcar em 2009.
▼❄❅❆❇❈❉❆❊
●❍❊■❏❑❊▲ ◆❏ ❖▲▲❏❅❑❖P❏❅❑❊
◗❙ ◆❏ ❚❊❑❏▲
❯❄❚❑❄❍❖
Araraquara
Bueno de Andrada
16
Cana-de-açúcar
Araraquara
Monte Alegre III
26
Cana-de-açúcar
Araraquara
Monte Alegre VI
35
Cana-de-açúcar
Bebedouro
Reage Brasil
46
Cana-de-açúcar
Birigui
São José I
4
Soja
Brejo Alegre
Salvador
4
Soja
Matão
Silvânia
77
Cana-de-açúcar
Motuca
Monte Alegre I
43
Cana-de-açúcar
Motuca
Monte Alegre II
36
Cana-de-açúcar
Motuca
Monte Alegre IV
27
Cana-de-açúcar
Motuca
Monte Alegre V
21
Cana-de-açúcar
Pitangueiras
Ibitiúva
37
Cana-de-açúcar
Pradópolis
Guarani
1
Cana-de-açúcar
Rosana/Euclides da Cunha
Gleba XV de Novembro
39
Cana-de-açúcar
Teodoro Sampaio
Alcídia da Gata
14
Cana-de-açúcar
Teodoro Sampaio
Laudenor de Souza
7
Cana-de-açúcar
Teodoro Sampaio
Santa Cruz da Alcídia
7
Cana-de-açúcar
Teodoro Sampaio
Santa Terezinha da Alcídia
24
Cana-de-açúcar
Teodoro Sampaio
Santa Zélia
34
Cana-de-açúcar
Teodoro Sampaio
Vô Tonico
2
Cana-de-açúcar
Total
500
❱❲❳❨❩❬ ❭❪❫❴❵❛ ❜❝❝❞❡
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Em todo o Estado de São Paulo, esses 500 lotes com contratos de “parceria” firmados
com as agroindústrias equivalem a 3,8% do total de 13.035 lotes. Detalhando os dados,
percebemos que na região do Pontal do Paranapanema existem 127 lotes em “parceria”,
o que equivale a somente 2,2% do total de 5.564 lotes. Os municípios do Pontal do
Paranapanema que têm assentamentos com contrato de “parceria” são Euclides da Cunha/
Rosana e Teodoro Sampaio. A seguir, foram detalhados esses dados por assentamento
(Quadro 2). Os assentamentos que mais possuem lotes em parceria são PE Alcídia da Gata
e PE Santa Terezinha da Alcídia, com 77,7% e 92,3% dos lotes, respectivamente, em
“parceria” produzindo cana-de-açúcar para a Destilaria Alcídia.
Quadro 2 – Assentamentos com contratos para produção de agrocombustíveis no
Pontal do Paranapanema em 2009.
❤✐❥❦❧♠❥
♥❥♠♦♣ q❧ r♦st♣✉♦✈
✇① q❧ ♣❥♠❧✈
②
PE Gleba VX de Novembro
570
39
6,84
PE Alcídia da Gata
18
14
77,78
PE Laudenor de Souza
60
7
11,67
PE Santa Cruz da Alcídia
26
7
26,92
PE Santa Terezinha da Alcídia
26
24
92,31
PE Santa Zélia
103
34
33,01
PE Vô Tonico
19
2
10,53
Total
822
127
③④⑤⑥⑦⑧ ⑨⑩❶❷❸❹ ❺❻❻❼❽
Os contratos de “parceria” entre assentados e a Destilaria Alcídia terminaram no ano
de 2008. Em pesquisa de campo, entrevistamos diversos camponeses que demonstraram
descontentamento com a experiência da “parceria”. Segundo os assentados, por falta de
alternativa para a geração de renda, dificultada pela falta de projetos e financiamentos,
aceitaram em 2002 o contrato de “parceria” proposto pela usina durante duas safras –
2002 a 2009, período em que ficariam arrendados 30% do lote, em média 6 hectares. No
contrato, constava a concessão para a usina contrair o empréstimo junto ao Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) em nome do assentado.
Foram adquiridos em média R$ 18.000,00 por família. Os recursos – como todo o processo
– foram gestados pela usina sem qualquer transparência nem conhecimento dos assentados, no entanto o empréstimo foi quitado e apresentado aos assentados o comprovante
do Banco do Brasil. O último corte se realizaria no ano de 2009, entretanto em 2008 a
usina parou de cortar, abandonando a cana plantada. A justificativa para deixar de fazer
o corte foi que a qualidade da cana nesses lotes já não era mais satisfatória e que não
pagaria o trabalho do corte.
No contrato de parceria está exposto que a usina se encarregaria de fazer o tratamento do solo antes do plantio visando obter maior produção e, posteriormente, deixar parte
do lote do assentado corrigido. Todavia, não foi esta a situação que encontramos nos lotes
visitados. Constatamos a existência de uma terra degradada, que precisará passar por um
intenso processo de recuperação do solo para voltar a produzir. A justificativa da baixa
❢❣
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qualidade da cana foi utilizada para explicar o baixo rendimento e o não pagamento para
os assentados pela cana dos últimos cortes. Segundo os assentados, só foram pagos pela
usina os primeiros cortes. No final da “parceria”, com a justificativa da baixa qualidade da
cana, nada mais foi pago aos assentados. Lembramos que os assentados nunca tiveram
acesso às informações sobre quantidade e qualidade produzida, nem sobre os gastos
com o cultivo.
O discurso de integrar e gerar renda veio abaixo com essas experiências. A intenção da Destilaria Alcídia era utilizar os territórios dos assentados em uma conjuntura de
falta de terra para expandir a produção. Ficara evidente que o objetivo não era o de
geração de renda para os camponeses e sim aproveitar o empréstimo em nome deles
para conseguir condições especiais de crédito e terra quase de graça para produzir
cana-de-açúcar. Essa afirmação pode ser comprovada pelo fato de a usina ter deixado
de realizar os últimos cortes, abandonando a cana plantada e deixando os prejuízos
para os camponeses.
Conclusão
Neste artigo, procuramos contribuir para o estudo dos paradigmas da questão agrária
e do capitalismo agrário, debatendo os processos relacionados à expansão das culturas
para produção de agrocombustíveis. Destacamos a importância do território para o estudo desse tema e nossas diferentes abordagens do conceito, ampliando as possibilidades
da leitura geográfica.
As políticas de agrocombustíveis implantada pelo governo Lula são orientadas
pelo paradigma do capitalismo agrário e atrelam o campesinato a uma situação de
subordinação ao agronegócio. Da mesma forma, as políticas do ITESP serviram para
intensificar a subordinação dos assentados ao agronegócio sucroalcooleiro. Falta hoje,
no Brasil, uma política de produção de agrocombustível elaborada a partir da lógica da
produção consorciada com alimentos e num conjunto de sistemas sob controle das
organizações camponesas. O controle do processo de produção é somente das
corporações. Também falta nas instituições governamentais espaços políticos para construção de políticas de desenvolvimento territorial com que se possa garantir a soberania
dos territórios camponeses. As políticas de subordinação dos camponeses ao
agronegócio são hegemônicas.
As ideias do paradigma do capitalismo agrário predominam nas instituições governamentais e direcionam suas políticas. Os movimentos camponeses estão divididos e
trabalham tanto com as condições que levam a subordinação quanto com as condições de autonomia. Todavia, as experiências de autonomia são incipientes. E faltam
projetos nessa direção propostos pelos movimentos camponeses. Contudo, as experiências em curso são sementes para a criação de novos espaços políticos e poderão se
transformar em novos territórios, tanto no campo das ideias quanto no campo agrário.
A conjuntura para a produção de agrocombustíveis no Brasil ainda não está definida,
mas a tendência é de controle do agronegócio, o que não elimina as possibilidades dos
movimentos camponeses continuarem a disputar os territórios.
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Fernandes, B. M., Welch, C. A., Gonçalves, E. C.
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p. 161-190.
Recebido em 31/11/2009
Aceito em 30/10/2010
_____________________________________________________
1
- Professor do departamento de geografia e do programa de pós-graduação em geografia da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente.
2
- Professor do curso de história da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus de
Guarulhos; e do programa de pós-graduação em geografia da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), campus de Presidente Prudente.
3
- Mestrando do programa de pós-graduação em geografia da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), campus de Presidente Prudente.
4
Em Fernandes, 2008b, apresento uma análise dos autores seminais e contemporâneos dos
paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário.
5
Conflitualidade é compreendida como: 1) a complexidade das relações sociais construídas de
formas diversas e contraditórias, produzindo espaços e territórios heterogêneos; 2) a historicidade
e a espacialidade dos processos e conflitos sociais, dinamizadoras e não determinadas; 3) a
construção política de uma perspectiva relacional das classes sociais em trajetórias divergentes
e diferentes estratégias de reprodução social; 4) o reconhecimento da polarização regra/conflito como contradição em oposição à ordem e ao “consenso”; 5) posicionar-se ante aos efeitos da
globalização da sociedade, da economia e dos espaços e territórios, marcados pela exclusão
das políticas neoliberais, produtora de desigualdades e ameaçando a consolidação da democracia. (FERNANDES, 2008b, p. 177).
6
A “integração” é interpretada pelos estudiosos do paradigma da questão agrária como
subordinação, porque estes têm a conflitualidade como referência de um processo desigual e
contraditório, ou seja, a relação é compreendida desde uma perspectiva dialética. Mas, este
não é o sentido dado pelos estudiosos do paradigma do capitalismo agrário. Para eles, a integração
do campesinato à economia capitalista promove o desenvolvimento de ambos e os problemas
gerados por essa relação podem ser resolvidos por meio de políticas agrícolas. Neste sentido, a
conflitualidade não é uma referência, como também não é o processo desigual e contraditório,
de modo que a relação é compreendida desde uma perspectiva positivista.
7
Em Welch e Fernandes (2008), p. 163-167 encontra-se uma reflexão mais detalhada sobre o
conceito de agronegócio.
8
Ploeg (2008) denominou essas corporações de “impérios alimentares”. Essas palavras expressam bem o poder das corporações transnacionais.
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