Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu

A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo

Revista Espaço Pedagógico

O presente estudo é uma reflexão sobre crianças-alunos de uma turma dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública de tempo integral da rede municipal de ensino do município de Santa Rosa/RS, e analisa as práticas que aferem a invisibilidade e/ou o protagonismo. O objetivo principal é compreender, que situações do espaço escolar, favorecem a construção da autonomia da criança. Os dados foram elaborados a partir da pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, mediante a observação participante, com registro em diário de campo que converge, posteriormente, para relatos das anotações e momentos vividos com o grupo de cinco sujeitos da pesquisa, os quais foram também entrevistados por intermédio de questões semidirigidas. A pesquisa se insere nas concepções da pedagogia crítica com referência em: Freire (1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015), entre outros. Concluiu-se, portanto, que, embora a escola tenha a função de ser espaço de promoção do desenvolvimento do...

A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo Children and school: from invisibility to protagonism El niño y la escuela: de la invisibilidad al protagonismo Hedi Maria Luft* Kátia Aparecida Dias Peroty ** Resumo O presente estudo é uma reflexão sobre crianças-alunos de uma turma dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública de tempo integral da rede municipal de ensino do município de Santa Rosa/RS, e analisa as práticas que aferem a invisibilidade e/ou o protagonismo. O objetivo principal é compreender, que situações do espaço escolar, favorecem a construção da autonomia da criança. Os dados foram elaborados a partir da pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico, mediante a observação participante, com registro em diário de campo que converge, posteriormente, para relatos das anotações e momentos vividos com o grupo de cinco sujeitos da pesquisa, os quais foram também entrevistados por intermédio de questões semidirigidas. A pesquisa se insere nas concepções da pedagogia crítica com referência em: Freire (1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015), entre outros. Concluiu-se, portanto, que, embora a escola tenha a função de ser espaço de promoção do desenvolvimento do protagonismo, a oferta de uma educação de qualidade, centrada no sujeito, demanda o comprometimento e a participação de todos para concretizar o seu papel. Palavras-chave: Autonomia. Infância. Invisibilidade. Protagonismo. Recebido em: 09/06/2020 – Aprovado em: 09/07/2022 http://dx.doi.org/10.5335/rep.000 ISSN on-line: 2238-0302 * ** 248 Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Professora do Departamento de Humanidades e Educação e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação nas Ciências da Unijuí. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9691-1268. E-mail: hedim@unijui.edu.br Graduada em Letras – Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas. Professora da Rede Municipal de Ensino de Santa Rosa (RS). Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0341-6194. E-mail: perotykatia@gmail.com. ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Este artigo está licenciado com a licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty Abstract The present study is a reflection on children-students of a group of the Early Years of Elementary Education of a public full-time school in the municipal education network of the municipality of Santa Rosa / RS, and analyzes the practices that measure invisibility and / or the protagonism. The main objective is to understand which situations in the school space favor the construction of the child's autonomy. The data were prepared based on qualitative research, of an ethnographic nature, through participant observation, recorded in a field diary that later converges to reports of notes and moments lived with the group of five research subjects, who were also interviewed through semidirected questions. The research is part of the concepts of critical pedagogy with reference to: Freire (1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015), among others. It was concluded, therefore, that although the school has the function of being a space to promote the development of protagonism, the offer of a quality education, centered on the subject, demands the commitment and participation of all to fulfill its role. Keywords: Autonomy. Childhood. Invisibility. Protagonism. Resumen El presente estudio es una reflexión sobre niños-estudiantes de una clase de los Años Iniciales (primarios) de la Enseñanza Fundamental de una escuela pública de tiempo completo de la red municipal de educación del municipio de Santa Rosa/RS, y analiza las prácticas que miden la invisibilidad y/ o el protagonismo. El objetivo principal es comprender qué situaciones en el espacio escolar favorecen la construcción de la autonomía del niño. Los datos fueron elaborados a partir de una investigación cualitativa, de carácter etnográfico, a través de la observación participante, con registro en un diario de campo que luego converge a relatos de apuntes y momentos vividos con el grupo de cinco sujetos de investigación, quienes también fueron entrevistados a través de preguntas semiestructuradas. La investigación se enmarca en las concepciones de la pedagogía crítica con referencia a: Freire (1996), Sirota (1994), Sarmento (2002, 2005, 2015), entre otros. Se concluyó, por tanto, que, si bien la escuela tiene la función de ser un espacio para promover el desarrollo del protagonismo, la provisión de una educación de calidad, centrada en el sujeto, exige el compromiso y la participación de todos para cumplir su función. Palabras clave: Autonomía. Infancia. Invisibilidad. Protagonismo. Introdução Apresentamos, neste artigo, como a criança é percebida dentro da instituição escolar que oferta tempo integral, no espaço da escola pública. Destacamos formas que dizem respeito à sua presença e participação, e, especialmente, sua invisibilidade, a qual possivelmente é resultado do mundo contemporâneo. Reconhecemos, o protagonismo infantil como relevante para construção da autonomia e, na sequência, algumas reflexões oportunas para a mudança da escola e da sociedade. v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 249 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo A escola é espaço de construção de conhecimento tanto do aluno quanto do professor. Na escola se estabelecem relações significativas que afetam o processo de ensinoaprendizagem, assim como existem outros elementos que influenciam este processo e, nem sempre são adequados. Aqui, escolhemos para a investigação, como categorias de análise, a invisibilidade e o protagonismo infantil na escola. O lócus da investigação se refere à rede municipal de ensino de Santa Rosa (RS), a qual possui 13 escolas de Ensino Fundamental, quando observamos uma turma do 2º ano a partir de 2018 até meados do 3º ano, em 2019. Esta escola atende, majoritariamente, crianças em risco de vulnerabilidade social de diferentes bairros da cidade. Questiona-se: A criança deixa de ser criança para se tornar aluno? A criança1 aluno teria as suas necessidades atendidas na escola? Como se constrói a sua infância dos 6 aos 10 anos dentro de uma instituição de ensino? Será a criança vista e considerada dentro deste espaço ou invisível? A criança tem direito à participação ou é submissa às ordens dos adultos? Para nos aproximarmos de uma educação de qualidade é preciso voltarmos os ouvidos e os olhares, também, para as crianças, pois a voz destas é relevante neste processo, e é nesse sentido que se faz o presente estudo. Além disso, questionamos se a criança, ao ser compreendida como protagonista da escola, percebe esse tempo dentro deste estabelecimento como produtivo e interessante para si ou sente-se abandonada dentro de uma instituição na qual os adultos responsáveis somente cuidam, alimentam, vigiam e não permitem sua saída. Ao observarmos, previamente, as crianças neste espaço, não há clareza quanto ao que pensam, sentem ou esperam durante o tempo que passam na escola. É pela criança, por uma infância digna e saudável, portanto, que justificamos a importância deste estudo. A escola tende a transformar-se num espaço de empoderamento do indivíduo e, por isso, assume uma grande responsabilidade com a aprendizagem, que pode garantir, principalmente, a dignidade a todos os sujeitos. A razão de existir das escolas são as crianças-alunos.2 A escola é feita por causa delas e para elas. Uma escola considerada de qualidade carrega consigo, entre outras coisas, o ideal de desenvolver a autonomia dos sujeitos ali implicados. Isto posto, precisamos pensar na sociedade que queremos diante de toda a sua pluralidade e nos avanços que já tivemos e aqueles que ainda esperamos alcançar; percebendo os alunos como sujeitos e também atores capazes de transformar os espaços coletivos. 250 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty Percursos Metodológicos Para pensarmos a educação escolar é fundamental nos envolvermos com a pesquisa, pois ela está intimamente relacionada com o ensino e, segundo Freire (1996, p. 32) Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. Neste sentido, apresentamos o caminho percorrido durante a investigação, destacando que o método de pesquisa se vincula à experiência vivida nos espaços escolares e apoia-se na etnografia para definir como foi realizada, salientando o percurso de investigação. O estudo proposto, então, traz as crianças, e, nesta perspectiva, Bolle (1984, p. 11 apud Quinteiro, 2004, p. 19) afirma que a intenção ao investigarmos este público é “[...] compreender como a criança pensa e concebe o mundo e, particularmente, a escola, como ela representa seu próprio universo”. Desse modo, direcionando o olhar para a criança, ela torna-se o centro do estudo e passamos a enxergá-la por inteiro, com suas singularidades e encantos, ouvindo o que diz e o que deixa de ser dito. Da mesma forma, os próprios alunos, atores que são do processo educativo, revelam elementos fundamentais sobre si mesmos, desde que sejam considerados como tal por meio de uma escuta sensível, capaz de perceber nos detalhes suas angústias, medos, conflitos, potencialidades, desejos, vontades. É necessário, pois, diminuirmos as distâncias entre o adulto e a criança com real interesse por elas. Assim, como propõe Soares (2016, p. 772), O nosso posicionamento enquanto pesquisadores adultos deverá considerar que as crianças possuem informações importantes, que não será possível alcançar de outro modo que não seja por meio de sua voz e ações, sendo fundamental criar espaços e tempos para que tal possa ocorrer. Para esta investigação, portanto, a etnografia foi escolhida como o recurso metodológico mais apropriado. Neste sentido, Sarmento (2000, p. 247) citado por (Quinteiro, 2009, p. 29), sintetiza seis passos para esta orientação: v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 251 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo 1. Permanência prolongada do investigador no contexto estudado, de forma que possa pessoalmente recolher as suas informações, por intermédio da observação participante e da entrevista aos membros que lá residem, trabalham ou atuam. 2. O interesse por todos os traços e pormenores que fazem o quotidiano, tanto quanto pelos acontecimentos importantes que ocorrem nos contextos investigados. 3. O interesse dirigido tanto para os comportamentos e atitudes dos atores sociais, quanto para as interpretações que eles fazem desses comportamentos e para os processos e conteúdos de simbolizações do real. 4. O esforço para produzir um relato bem enraizado nos aspectos significativos da vida dos contextos estudados, de maneira que se recrie de forma vivida os fenômenos estudados. 5. O esforço para ir progressivamente estruturando o conhecimento obtido, de tal modo que o processo hermenêutico resulte da construção dialógica [...]. 6. Uma apresentação final que seja capaz de casar criativamente a narração/descrição dos contextos com a conceptualização teórica. Assim, constatamos que o processo etnográfico merece um olhar atento pelo pesquisador e pode ser feito mediante três procedimentos: a observação participante, as entrevistas e a análise documental. A presente investigação estabeleceu-se, principalmente, pela observação participante, a qual possibilita o contato pessoal entre o pesquisador e o sujeito pesquisado, em que, ao mesmo tempo, se tem o envolvimento e o necessário distanciamento de um trabalho científico, sem que se perca a espontaneidade dos fatos dentro da sala de aula. As observações implicam um diário de campo que converge, posteriormente, para relatos das anotações e momentos vividos com o grupo de sujeitos pesquisados. A interação com os sujeitos de pesquisa, no caso, aqui, as crianças, dentro de um período, é que torna possível desvendarmos a constituição das suas rotinas, caracterizando, assim, uma pesquisa etnográfica, conforme a descrição de etnografia por Sirota (1994, p. 33): “tomar como ponto de partida interacções face-a-face que as crianças desenvolvem umas com as outras durante um ano letivo [...] descrever as suas vidas tal como são vividas nos mais diferentes espaços, atividades, situações e relações”. Nesta dimensão, o pesquisador pode e deve voltar a sua atenção à criança, observando-a como um ser integral, sendo capaz de enxergá-la na sua plenitude, reconhecendo a importância do que ela traz consigo e que sua voz traz o seu mundo. Sarti (2010, p. 31) compara o olhar/ouvir com o pensar/escrever na pesquisa: “se o olhar e o ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesquisa empírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pensamento, uma vez que o ato de escrever é simultâneo ao ato de pensar”. Isso nos mostra o quanto estes elementos estão intrínsecos na pesquisa. 252 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty Diante do que foi percebido por meio dos sentidos, relatamos situações observadas dentro da escola de tempo integral, aproximando, assim, teoria e prática, desvelando os fatos pela aproximação com as crianças e com a realidade de seu cotidiano. Nem tudo foi possível ver, ouvir, sentir ou descrever. Trazemos na pesquisa, porém, um recorte do olhar pesquisador que está também se constituindo durante o caminho percorrido. Pretendemos, aqui, desvelar, modestamente, o que observamos ao longo desta trajetória, com o intuito de revelarmos parte do universo infantil diante do complexo processo de efetivação do tempo integral na escola. A fim de mantermos o anonimato das crianças na pesquisa, elas são representadas por personagens das histórias de Monteiro Lobato: Narizinho, Pedrinho, Quindim, Emília e Cuca. A pesquisa participante, portanto, é de cunho qualitativo, posto que analisou os relatos das crianças bem como fotos e falas transcritas. Inicialmente, o ponto de partida foi formalizarmos o acesso junto a direção da escola e respectiva Secretaria Municipal de Educação, pois, na concepção de Viégas (2007, p. 111), “sem dúvida, a entrada em campo requer do pesquisador delicadeza no trato com a escola”. Em seguida, foi a vez do contato mais formal com os alunos e suas famílias. Viégas (2007, p. 110-111) aponta essa necessidade: [...] se a pesquisa envolve a participação de alunos, é fundamental apresentá-la a eles e às suas famílias, partindo do princípio ético de que é imprescindível fazer-se claro para todos os envolvidos no estudo. No caso de crianças, a apresentação formal da pesquisa (muitas vezes em frente à sala de aula) deve ser temperada com ludicidade. Para suas famílias, a apresentação da pesquisa pode ser tanto presencial quanto por escrito. A pesquisa referiu-se à inserção da criança dentro da escola de tempo integral, sua perspectiva quanto à organização do tempo escolar, e, em especial, ao contraturno e ao que é feito com ela neste período. Por isso, a partir da observação dos alunos iniciamos um estudo etnográfico.3 Como forma de registro, utilizamos um diário de campo, com registros de cenas cotidianas e gravações de falas das crianças. Quanto ao objeto e o olhar do pesquisador, Sarti (2010, p. 19) destaca: Talvez a primeira experiência do pesquisador de campo – ou no campo – esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. É condição fundamental na etnografia estar presente e observar, em tempo real, o que acontece na sala de aula sem intervir sobre a realidade, apenas tentando captá-la tal qual ela é, conforme concebe Sirota (1994, p. 39): “observar já é estruturar nossa v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 253 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo percepção em função de critérios mais ou menos estabelecidos. Observar práticas na situação concreta da sala de aula é observar sem intermediações, ao vivo, é codificar no próprio local uma situação dinâmica [...]”. Por outro lado, foi necessário permitir-nos também nos surpreender pelo que a criança traz por meio do desenho, num misto de expectativa e encantamento, e deixar-nos levar pela beleza da infância com toda a sua leveza e delicadeza próprias do infante. Tornar-nos receptivos ao que a criança tem a nos mostrar e dizer requer desprendimento do adultocentrismo4 que rege nossas vidas. Na visão de Martins Filho e Prado (2011, p. 54): Ouvir a voz das crianças através do desenho é convite para esse acto sinestésico de apreensão de uma realidade que tanto nos encanta como por vezes nos deixa perplexos, ante o modo frequentemente inesperado com que o real surge transfigurado pelos traços inscritos no papel. A pesquisa, portanto, foi realizada com os 25 alunos das turmas do 2º (2018) e do 3º anos (2019), sendo a amostra aleatória, realizada mediante o sorteio de 5 alunos. A pesquisa almejou desvelar a realidade por trás das vozes das crianças da escola de tempo integral, a fim de captar elementos constitutivos da infância que podem também contribuir para que a criança tenha uma infância mais saudável, sendo respeitada como um ser pleno de direitos e não como um adulto em miniatura, num vir a ser. A criança “invisível” e a criança protagonista no ambiente escolar A invisibilidade da criança é uma herança do período colonial e, mesmo depois de 500 anos, ainda há necessidade de provar sua capacidade e competência diante da sociedade. A partir da década de 90 do século 20, com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/1990 –, há um reconhecimento que vem se ampliando na direção da participação maior da criança na sociedade. A distância entre a legislação e a realidade, no entanto, ainda persiste: [...] havendo um hiato acentuado entre a teoria e a prática no que concerne aos direitos de participação das crianças, explicado pela herança sócio-cultural da invisibilidade e “afonia” das crianças, que é muitas vezes perpetuada em função dos próprios interesses dos adultos (SOARES; TOMÁS, 2004, p. 151-152). A criança, geralmente, ainda é considerada pelas condições biológicas como frágil e dependente da proteção do adulto. Ao procurarmos no dicionário uma definição, criança é “a pessoa sem experiência, quem é ingênuo, inocente”; alguém vulnerável, 254 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty suscetível aos outros. Assim, Soares e Tomás (2004, p. 149) dispõem sobre a vulnerabilidade infantil: [...] dois tipos de vulnerabilidade: a vulnerabilidade inerente e a vulnerabilidade estrutural. A vulnerabilidade inerente tem que ver com a debilidade física, a imaturidade, a falta de conhecimento e experiência das crianças que as torna dependentes da protecção do adulto – este aspecto permanece como inquestionável e tão mais visível quanto mais pequena for a criança. A vulnerabilidade estrutural das crianças relaciona-se com a sua falta de poder político e econômico e de direitos civis. A vulnerabilidade estrutural é uma construção social e política, que deriva de atitudes históricas e das presunções acerca da natureza da infância e da própria sociedade. De fato, a criança necessita da proteção adulta durante a infância, pois ainda não consegue nem se prover tampouco discernir sozinha entre o que é certo e errado. É com o passar dos anos, convivendo com os outros, principalmente com pares mais experientes, que ela aprende como a sociedade funciona e vai adquirindo conhecimentos para a vida, até se tornar um sujeito capaz de cuidar de si mesmo e tomar suas próprias decisões. Por outro lado, numa vivência autoritária com os adultos que a cercam, ela não pode reconhecer e compreender a sua própria importância de estar no mundo de maneira única e responsável. O que percebemos é uma tentativa de manter uma visão conservadora em que a criança não pode nada, enquanto o adulto pode tudo, e este conceito também se estende às demais minorias, numa imposição de reforçar o poder do homem, adulto, branco, heterossexual, bem-sucedido, ainda na sociedade contemporânea. Desse modo, as relações de poder acentuam-se do adulto em relação à criança, e, mesmo na escola, do professor sobre o aluno, numa concepção que exalta de um lado o professor como o único detentor de todo o conhecimento e da razão absoluta, enquanto a criançaaluno não sabe nada e chega à escola para ser domesticada pelos seres superiores – os adultos –, na tentativa de algum dia vir a ser alguém. Alves (1999, p. 257) lamenta esta concepção de criança como um vir a ser, e um vir a ser não apenas quando crescer, mas depois de passar pela escola, “– O que é que você vai ser quando crescer? No fundo, a mesma coisa. Agora, você nada é. Será, depois de passar pela escola”. Assim sendo, a criança é vista como se não tivesse nada a oferecer, tampouco a contribuir com o mundo adulto. A ideia de que a criança tornar-se-á por meio da escola, portanto, é questionável, uma vez que ela traz consigo conhecimentos importantes e não pode ser considerada uma mera folha em branco. Por muitos séculos a criança viveu na marginalidade, como alguém sem importância, que servia apenas para mão de obra barata, que não possuía direitos, à mercê das intempéries, das vontades alheias (PRIORE, 2009). Por outro lado, um campo v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 255 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo recente que estuda a infância como uma etapa de vida relevante é a Sociologia da Infância: Para a sociologia da infância, as crianças são atores sociais ativos; por isso, torna-se prudente dar visibilidade aos processos de socialização com base no que as crianças fazem e como fazem. Em outros termos, alertam para a importância de os pesquisadores captarem situações relacionais das crianças quando estão entre elas, no intuito de desvelar os jeitos de ser criança (MARTINS FILHO; PRADO, 2011, p. 88-89). A Sociologia da Infância apresenta o conceito de protagonismo infantil, o que nos remete a três aspectos básicos para efetivar esse protagonismo: os direitos, a autoria e a participação. Para se tornar protagonista a criança precisa ter seus direitos reconhecidos diante do grupo ao qual faz parte, assim como sua capacidade de ser autora do seu desenvolvimento, por meio de uma participação real e efetiva em todos os momentos e lugares onde esteja inserida e que seja permitida a sua intervenção nestes mesmos lugares, no seu cotidiano. Assim, protagonismo infantil é o processo social mediante o qual se pretende que crianças e adolescentes desempenhem um papel principal no seu desenvolvimento e no de sua comunidade para alcançar a realização plena dos seus direitos atendendo ao seu interesse superior. É tornar real a visão da criança como sujeito de direitos e, portanto, deve dar-se uma redefinição de papéis nos diferentes sectores da sociedade; infância e juventude, autoridades, família, sectores não organizados, sociedade civil, entidades, etc (SOARES; TOMÁS, 2004, p. 153). Como importante contribuição neste sentido, destaca-se a Pedagogia da Infância do século 20, com uma nova percepção de criança: [...] observar a criança, ouvir sua voz, sondar suas intenções, para incorporá-la no processo educativo, é o caminho que a Pedagogia da Infância do século XX deixou como herança para os tempos atuais. [...] concepção de criança que vive e tece a própria história, tem competência e é sensível aos diferentes contextos educativos, que necessita de cuidados especiais dos adultos, mas está em franco processo de conquista de sua autonomia (PINAZZA; KISHIMOTO, 2008, p. 78). Neste caminho urge, então, uma mudança de olhar para a infância e seus direitos dentro da escola; não somente pelos adultos responsáveis por elas, mas também por elas próprias. A escola é, portanto, um dos lugares que pode debater essas questões com o corpo docente e também com o corpo discente. Os professores podem promover um espaço de maior autoria para as crianças, enquanto estas tomariam consciência de sua capacidade de ação e participação dentro e fora da escola. Logo: 256 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty Será necessário incluir na sua formação a questão da infância e dos seus direitos, promovendo nas escolas a informação e o debate sobre os direitos das crianças e a forma de os traduzir na prática, no quotidiano das crianças, dos pais, da escola e da comunidade. Será igualmente necessário e importante incluir no debate da globalização as questões associadas à infância, porque, no contexto actual, enquanto cidadãos do mundo, deparamo-nos com um dos maiores desafios a serem enfrentados pelas nossas sociedades, a garantia de uma dupla conscientização; das crianças enquanto sujeitos de direitos activos e participativos; e dos adultos, enquanto promotores da necessidade de incentivar e construir espaços onde as crianças se desenvolvam nessa perspectiva (SOARES; TOMÁS, 2004 apud MARTINS FILHO; PRADO, 2011, p. 145). Além disso, desde o final do século 19 e início do 20, alguns pedagogos apresentaram a ideia de competência já na infância, que não foi bem-aceita na época por todos. Atualmente vem sendo construída essa concepção de criança competente com direito à participação (CRUZ, 2008, p. 77). É, contudo, a perspectiva do adulto em relação à criança e ao seu trabalho que é capaz de efetivar a escuta das vozes das crianças e redefinir o seu papel em qualquer ambiente do qual faça parte. Ou seja, vale sublinhar, portanto, que a efetivação da escuta das crianças acontece em contextos pedagógicos concretos, com suas características peculiares. As motivações para aprender seus pontos de vista e os usos que disso se possa fazer dependem das reais perspectivas dos adultos que aí trabalham acerca da criança e do seu papel como educadores e, em última instância, do projeto educativo que é aí desenvolvido. E, como já foi assinalado, assumir, de fato, as crianças enquanto possuidoras de vozes próprias que devem ser consideradas nas decisões a serem tomadas não é a prática mais comum (CRUZ, 2008, p. 78). A forma como o professor desenvolve o seu trabalho mostra muito como ele enxerga a criança-aluno. Um professor mais autoritário, que não permite que a criança fale, exponha suas ideias, principalmente as que forem diferentes das dele, limita a participação desta em qualquer situação. Quando o adulto tem uma posição somente de imposição, ele revela o medo de perder o controle sobre a criança e sobre toda a turma para a qual ministra aulas. As relações de poder acentuam-se. Há um equívoco entre despertar a autonomia e promover a anarquia. Os professores cobram uns dos outros o tal “domínio de turma”. Ter domínio de turma equivale mais a conseguir manter a turma em silêncio durante toda a aula do que a ter uma boa didática em sala de aula, que contemple as necessidades dos alunos e efetive o processo de ensino-aprendizagem com sucesso e de maneira gratificante a eles. v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 257 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo Nesse caso, invisibilidade ou protagonismo? Considerando a escola lócus da pesquisa, nesse momento, percebemos que prevalecem as marcas da invisibilidade dentro da sala de aula em algumas situações pontuais; por exemplo, quando numa atividade subjetiva, de interpretação de texto, apenas uma resposta é considerada correta e não se aceitam ideias ou respostas diferentes. Nesta situação, constatamos que a rejeição ao que não corresponde às expectativas provoca um movimento de invisibilidade, porque acentua que o correto, adequado, “normal”, é pensar de acordo com o pensamento do professor, e divergir é feio, errado, “anormal”. Essa conduta do professor impondo verdades absolutas, reforçará ainda mais o silêncio das crianças-alunos, as quais aprendem desde cedo a calar o que pensam e sentem e a imitar incondicionalmente o que os outros fazem e valorizam. As crianças querem ser aceitas, reconhecidas como importantes, agradar aos professores, pertencer ao grupo e, por isso, são capazes de anularem-se dentro da sala de aula se os seus pensamentos e opiniões não forem considerados positivamente. Da mesma forma, quando permitimos que colegas zombem de um indivíduo e, assim, o bullying é visto e ignorado porque o normal é seguir modelos “normais” de comportamento, contribuímos para a manutenção da invisibilidade. Por exemplo: Pedrinho apresenta, ainda muito jovem, traços bem femininos, o que provoca, em alguns momentos, deboches de alguns colegas e preconceito, inclusive por ser mais gordinho e fora dos padrões aceitos socialmente. Em seu relato assim se expressou: “não quero mais vir na escola. Vou falar com minha mãe. Ficam rindo de mim”. Sente-se desconfortável com o comportamento dos colegas e pensa que seria aceito se fosse diferente, ou seja, se, como menino, se comportasse com os padrões aceitos e normatizados pela sociedade para este gênero. Tal comportamento dos colegas, quando negligenciado pela professora, talvez por não saber exatamente como agir nesta situação e, até mesmo, por não saber lidar com seu próprio preconceito, pode interferir na conduta da criança. Esta, então, pode acabar se isolando e não querer mais participar das brincadeiras com os colegas por se sentir diferente dos demais, e, desde cedo, aprende a usar máscaras e a se automutilar para conviver em sociedade. Além disso, quando exigimos de todos os alunos o mesmo desempenho, estamos tentando forçar a homogeneização da turma, o que não é real. Mediante as “testagens” realizadas pela equipe diretiva mede-se o grau de aprendizagem da turma, para definir em que nível está a alfabetização dos alunos e quem está ou não acompanhando as 258 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty expectativas da professora e do currículo escolar. Mesmo que a avaliação seja importante e faça parte do processo, peca quando é a mesma para todos, e verificamos quem apresenta os resultados esperados para esta série/ano e quem não alcança a meta para determinado período do ano letivo. Percebemos aqui a invisibilidade quando a avaliação é a mesma para todos, sem levar em conta a individualidade de cada um. Este tipo de teste é realizado em todas as turmas do 1º ao 3º ano das escolas da Rede Municipal de Ensino de Santa Rosa, desde a criação do Pacto Nacional de Alfabetização na idade certa em 2013. Cada professor, juntamente com a equipe diretiva de sua escola, define como será realizado o teste para cada ano/série, o que demonstra a expectativa de homogeneização dos resultados para todos os alunos em cada período, e quem não alcança o resultado esperado é considerado com “problemas de aprendizagem”. Cada criança, mesmo tendo a mesma idade, professora e espaço, pode ter um tempo de aprendizagem diferente dos demais e, muitas vezes, bem diferente do tempo pedagógico estipulado pela professora como dentro da normalidade. Termos este olhar e buscarmos estratégias dentro do tempo integral, portanto, pode ser crucial tanto para o sucesso quanto para o fracasso escolar. Não estamos aqui nos opondo aos testes, uma vez que valorizamos a sua existência como um valoroso diagnóstico. A implicação se dá quanto a usar a mesma estratégia para seres diferentes e ainda rotulá-los, quantificando o seu valor como pessoa. Reconhecemos a importância de saber onde se está para planejar aonde se quer chegar, conforme ensinam Weisz e Sanchez (2003, p. 42): Se o professor não sabe nada sobre o que o aluno pensa a respeito do conteúdo que quer que ele aprenda, o ensino que oferece, não tem “com o que dialogar”. Restará a ele atuar como numa brincadeira de cabra-cega, tateando e fazendo sua parte, na esperança de que o outro faça a dele: aprenda. Do mesmo modo, outra situação recorrente, talvez pela grande quantidade de alunos por sala, é ignorarmos o lado emocional e o que acontece fora da escola, sem reconhecer que isso afeta o comportamento e a aprendizagem neste espaço, invisibilizando, assim, os alunos, ignorando importantes fatores externos que são decisivos para alcançar o seu sucesso escolar. Quando tratamos uma atitude agressiva reincidente no recreio apenas como malcriação e não investigamos a causa deste comportamento, ignoramos que a criança é um ser que tem uma vida fora da escola e é afetada também no espaço escolar. Por exemplo, “Emília”, novamente, brigou na hora do recreio com um colega e, por isso, perdeu a aula de Educação Física. Depois, quando perdeu o recreio e foi encaminhada para a Orientação, como punição, verificou-se que a criança v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 259 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo presenciou uma briga dos pais em casa e, por essa razão, estava muito nervosa e preocupada, imaginando a possível separação dos pais. Neste caso, a punição não resolveu o problema, mas a deixou mais revoltada. Crianças têm dificuldade em expressar suas emoções e gerenciar seus conflitos e, assim, precisam da mediação dos adultos a partir de um olhar fraterno sobre suas vulnerabilidades. Precisamos ouvi-las, mas sem punilas, desconsiderando o contexto. Ao analisarmos a escola, lócus da pesquisa, a partir da observação participante, que é um dos procedimentos da etnografia, reconhecemos os direitos das crianças validados dentro da escola quanto ao que compete a este espaço. Dentro da sala de aula todos têm o seu lugar, são ouvidos e respeitados. Aqueles que precisam de atendimento educacional especializado têm um tempo e espaço próprios para atividades que permitam a sua inclusão no ambiente escolar de forma adequada. Quanto aos direitos de participação, os alunos não podem decidir sobre o currículo, o funcionamento da escola e de várias atividades, porque estas são questões pertinentes aos adultos. Por exemplo, o que vai ser servido de merenda é definido pela nutricionista da Secretaria Municipal de Educação, mas as crianças podem optar por comer ou não e não obrigadas; os horários estão definidos para cada atividade sem interferência de escolha dos alunos, mas, no tempo livre no pátio, cada um pode descansar ou brincar a sua maneira, desde que seja de forma saudável; há atividades que devem ser realizadas por todos e ninguém pode recusar-se sob pena de ser punido. Algumas vezes, no entanto, há mais de uma opção de atividade ao ar livre; na hora do descanso, conhecido como “soninho”, há a opção de assistir um filme escolhido por vezes pela professora e outras pelos alunos ou dormir, mas não se pode sair do espaço estipulado; quanto aos projetos que a escola desenvolve, algumas vezes aos alunos é permitida a sugestão do tema e/ou das atividades desenvolvidas, tentando sempre levar em conta as suas necessidades para cada momento. Durante as aulas de Orientação Educacional os alunos são ouvidos quanto à impressão/avaliação da escola e dos professores, mas orientados conforme a visão dos adultos. Caso haja reclamações dirigidas a colegas ou professores, é feita uma acareação, pois todos têm direito de expressar suas opiniões, mas poderíamos afirmar que é uma participação limitada e controlada; ela existe, mas não pode fugir do controle do professor/ adulto presente naquele momento. Todos os direitos citados integram a Lei nº 8.069/90 e verificamos que estão assegurados dentro da escola pela direção, professores e funcionários. Dessa forma, observamos uma preocupação com a infância e seus direitos no que se refere ao ambiente escolar e ao tempo despendido neste espaço, considerando-se que, muitas vezes, este 260 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty seja a referência de ambiente mais saudável para muitas das crianças que nele estão inseridas. Além disso, a criança pode vir a ser protagonista quando sua cultura for relevante dentro da escola e não substituída pela cultura dominante, como forma de opressão e de dominação. Por isso a importância de ouvir a criança, reconhecer e valorizar o que ela sabe, o que diz. Muito se faz porque sempre se fez do mesmo jeito, seguindo os modelos dos séculos passados. Muito se decide em razão do que é melhor para os adultos, os pais, os professores e os gestores, como sempre se fez. O mundo, assim como a infância, mudou, as crianças mudaram e os professores insistem em continuar sendo os mesmos. A criança, porém, carrega consigo elementos que podem agregar qualidade ao trabalho educativo. Devemos, pois, priorizá-la. A voz da criança está pedindo para ser ouvida. O universo infantil pode explorar outros caminhos, diferentes de uma vida adulta em miniatura, conformada com a realidade que a cerca. A criança é um ser questionador por natureza, e deve ser instigada para isso e a pensar, a refletir sobre o que acontece e a escolher por si própria. Um único caminho é limitante. A escola é mais do que seguir rotinas impostas e limitadas. A escola é um espaço de descobertas, de escolhas, desde que haja “permissão” para isso. Uma permissão corajosa, de adultos corajosos e sensíveis, seres que desejam uma infância melhor e mais saudável, que prezam por uma sociedade mais humanizada. Considerações Finais O que percebemos na escola, lócus da pesquisa, é que, progressivamente, tem se dado mais oportunidades de participação às crianças, permitindo-se um protagonismo maior dentro da instituição. São iniciativas tímidas, no entanto, diante de todo o cenário educativo. A invisibilidade ainda persiste, por ser mais cômodo manter tudo da mesma maneira como sempre foi. Fazer diferente, mudar, é moroso, quiçá doloroso. Ainda o “estar no controle” é mais seguro, enquanto “dar a voz ao outro” é um processo desconhecido, temeroso. Ninguém quer ser controlado, mas ensinamos nossas crianças a serem obedientes. Parece-nos que os professores da escola temem as consequências das mudanças e preferem caminhar por trilhos já conhecidos, temendo, inclusive, ter de arcar com ainda mais responsabilidades, pois já há muitas exigências de todos os lados: da mantenedora, da gestão da escola, das famílias e da comunidade em geral. Para ser protagonista, então, a criança precisa ser vista como um sujeito de direitos e ter espaço dentro da escola para uma efetiva participação. Os adultos implicados v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 261 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo no processo, ao autorizarem essa participação, serão capazes de construir com as crianças, colaborativamente, um espaço de reciprocidade, de vínculos, de afeto, de humanização dos sujeitos. Da mesma forma, ao olharem para as crianças e as enxergarem como crianças, promoverão um espaço mais acolhedor, mais suscetível às suas necessidades, o que vai muito além da aprendizagem. Por isso, instigamos, inicialmente, a mudança de postura do professor ante o processo educativo, bem como seu olhar sobre a criança, a fim de transformar a escola em um lugar de desenvolvimento pleno da autonomia, do protagonismo, da luta por direitos e, consequentemente, da igualdade entre todos. Da mesma forma, o contrário também pode acontecer, se nada mudar e a invisibilidade permanecer. A reflexão sobre a prática, portanto, deve ser uma constante dentro da instituição, a fim de que possamos reconhecer e comemorarmos os avanços e também rever algumas ações/distorções e posturas educacionais. Não poucas vezes, no contexto da escola, o protagonismo resume-se a contemplar a organização da vida profissional do docente e dos funcionários da escola. Elementos que no contexto do mundo do trabalho são relevantes, porém, não poderiam estar acima das necessidades de atendimento e formação da vida infantil, pois no universo da infância há necessidades que, se bem-atendidas, contribuem para a formação de sujeitos capazes de protagonizar novas realidades sociais, mais justas e humanas. Notas 1 Dados retirados do site da Secretaria de Desenvolvimento Educacional do município lócus da pesquisa (2019). 2 Criança-aluno: para Narodowski (1999), se a infância, para a pedagogia, é um fato dado ou um pressuposto indiscutível a partir do qual se constrói, teórica e praticamente, o aluno, as escolas são instituições especializadas em produzir adultos. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=37417089009 3 Após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética foi realizada uma pesquisa bibliográfica articulada ao campo empírico e de cunho etnográfico. 4 Adultocentrismo: é uma prática social que estabelece poder aos adultos deixando os jovens e crianças com menos liberdade em razão de alguma carência de formação. Referências ALVES, Rubem. A escola: fragmento do futuro. In: GADOTTI, Moacir. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: Ática, 1999. p. 256-260. 262 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep Hedi Maria Luft, Kátia Aparecida Dias Peroty CRUZ, Silvia H. V. A qualidade da Educação Infantil, na perspectiva das crianças. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, Julia (org.). A escola vista pelas crianças. Portugal: Porto Editora, 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. MARTINS FILHO, Altino J.; PRADO, Patricia D. (orgs.). Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. NARODOWSKI, Mariano. Adeus à Infância (e à escola que a educava). In: SILVA, Luiz. H. A Escola Cidadã no Contexto da Globalização. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 172-177. PINAZZA, Monica A.; KISHIMOTO, Tizuko M. Prefácio. In: OLIVEIRAFORMOSINHO, Julia (org.). A escola vista pelas crianças. Portugal: Porto Editora, 2008. p. 7-8. PRADO, Patrícia D. Educação e cultura infantil em creche: um estudo sobre as brincadeiras de crianças pequenininhas em um Cemei de Campinas/SP. 1998. 188f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. 1988. PRIORE, Mary Del (org.). A história das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. QUINTEIRO, Jucirema. O direito à infância na escola: por uma educação contra a barbárie. In: SARMENTO, Manuel J.; CERISARA, Ana B. Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Asa, 2004. p. 163-179. QUINTEIRO, J. Infância e Educação no Brasil: um campo de estudos em construção. In: FARIA, Ana. L. G. de; DEMARTINI, Zeila. de B. F.; PRADO, Patrícia. D. (orgs.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. 3ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. p. 23-56. SARMENTO, Manuel J. Infância, exclusão social e educação como uma utopia realizável. Educação & Sociedade, ano XXIII, n. 78, p. 265-283, abr. 2002. SARMENTO, Manuel J. Gerações e alteridade: interrogações a partir da Sociologia da Infância. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 26, n.91, p. 361-378, maio/ago. 2005. SARMENTO, Manuel J. Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo sem Fronteiras, Universidade do Minho, Braga, Portugal, v. 15, n. 1, p. 31-49, jan./abr. 2015. SARTI, Cynthia. Famílias enredadas. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria Amalia Faller (org). Família: redes, laços e políticas públicas. 5.ed. São Paulo: Cortez/ Instituto de Estudos Especiais/ PUC-SP, 2010, p.16-28. SIROTA, RÉGINE. A escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep ESPAÇO PEDAGÓGICO 263 A criança e a escola: da invisibilidade ao protagonismo SOARES, Natália F.; TOMÁS, C. Da emergência da participação à necessidade de consolidação da cidadania da infância. In: SARMENTO, Manuel J.; CERISARA, Ana B. Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto, Portugal: Asa Editores, 2004, p.135-162. SOARES, Natália F. Ética na pesquisa com crianças: ausências e desafios. Revista Brasileira de Educação, Universidade do Minho, Braga, Portugal, v. 21, n. 66, p.34- 43, jul./set. 2016. VIÉGAS, Lygia de S. Reflexões sobre a pesquisa etnográfica em Psicologia e Educação. Revista Diálogos Possíveis, Salvador, v. 6, n. 1, p. 103-123, jan-jun., 2007. WEISZ, Telma. SANCHEZ, Ana. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2003 264 ESPAÇO PEDAGÓGICO v. 29, n. 1, Passo Fundo, p. 248-264, jan./abr. 2022 | Disponível em www.upf.br/seer/index.php/rep