O PRESENTE E O FUTURO DO CAPITALISMO
BRASILEIRO EM IGNACIO RANGEL
Elias Jabbour1
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos dez anos, notadamente após a publicação de suas “Obras Reunidas”
e por ocasião da passagem de seu centenário de nascimento, o nome de Ignacio Rangel
retornou ao centro do debate de ideias. Trata-se de um fato com certa alvíssara diante do
retorno de um nível mínimo de debate e da quase proscrição de seu pensamento durante
a década de 1990. Na verdade, existe uma restituição da verdade com relação à obra de
Ignacio Rangel após uma conspiração do silêncio, muito semelhante ao que ocorreu com
o marxismo durante décadas nos cursos de economia do Atlântico Norte; postura esta que
não resistiu ao ocaso teórico que atingiu em cheio o pensamento ortodoxo após a crise de
19292.
Por outro lado, o “pensamento único” e os descaminhos do país iniciados ainda
com Ignacio Rangel em vida não somente mostraram-se incapazes de dar um fim na
história – e, consequentemente, no debate de ideias. Não se obteve sucesso, o contrário é
verdadeiro, na elaboração de soluções perenes a profundos problemas nacionais
estartados pela combinação entre: 1) os choques do petróleo (1973 e 1979) e a moratória
mexicana (1982); 2) as contradições inerentes, no Brasil, entre o esgotamento da
capacidade de endividamento externo como forma de financiamento do crescimento do
produto nacional e o ensejo da transformação da crise de superprodução/superpopulação
agrária em crise de superpopulação urbana ainda na década de 1980, crise tal que se
expressa em explosivo óbice, também, urbano nos dias atuais e 3) enfeudamento da
1
Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FCE-UERJ). Email: eliasjabbour@terra.com.br
2
Ainda é muito difícil encontrar professores e pós-graduandos letrados e minimamente conhecedores dos
princípios básicos da ciência econômica produzida por Rangel, assim como é muito corrente visões
distorcidas sobre seu pensamento. A similaridade com a (não) aceitação da obra de Marx é sugestiva. Neste
sentido, é interessante esta descrição por Joan Robinson sobre a admissão do pensamento de Marx nos
círculos acadêmicos: “(...) desdenhoso silêncio, quebrado apenas, aqui e ali, por uma zombeteira nota de
rodapé” (tradução livre nossa). In, ROBINSON, J.: An Essay on Marxian Economics. Papermac160.
London, 1942. p. xxii.
1
superestrutura nacional por forças políticas estranhas aos objetivos estratégicos da Era
Vargas.
A economia brasileira nos últimos 25 passou por profundas, ainda que atenuadas
desde 2003, transformações regressivas. Transformações de tal monta que colocaram em
ampla questão a linha de continuidade de nosso duro processo de desenvolvimento
acelerado, sobretudo após a Revolução de 1930. Da mesma forma que o Consenso
Keynesiano foi substituído pela Contrarrevolução Monetarista (Villareal, 1984), no Brasil
a crise do modelo Nacional-Desenvolvimentista foi seguida pela vitória da agenda
“estabilizadora” com todas as consequências econômicas, sociais e, sobretudo, políticas
sentidas até os dias de hoje3.
O caráter periférico de nossa economia tem concretude na sensibilidade com que
ocorrências de ordem internacional interferem diretamente no processo de
desenvolvimento. As transformações regressivas ocorridas na economia brasileira e a
recente tentativa de retomada de alicerces a um projeto nacional têm causa profunda tanto
no fim da URSS e consequente reordenamento agressivo do imperialismo em escala
internacional (financeirização, elevação do seu poder de agressão militar) quanto na
transformação – na outra ponta – da República Popular da China em um poderoso polo
gravitacional capaz de refundar, na esteira da crise financeira internacional, princípios de
multipolaridade com a intensa participação do Brasil conforme a formação e o
desenvolvimento do chamado grupo do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul) tem atestado.
É neste ambiente de rápidas transformações, internas e externas, que o
pensamento de Ignacio Rangel é retomado, ganha força e se legitima como peça científica
com grande margem de validação teórica/empírica. Neste sentido o objetivo é mostrar a
atualidade da obra de Rangel à realização do passo adiante a ser seguido pela economia
brasileira cuja possibilidade assenta-se na possibilidade de manutenção da transição à
3
De forma estilizada as transformações regressivas podem ser sintetizadas nos resultados de alguns
processos simultâneos, e relacionados entre si, na desregulamentação financeira do início da década de
1990, processo de privatizações de empresas estatais, exposição à internacionalização produtiva pela via
da abertura comercial e o rentismo como a face da mesma moeda de grandes parcelas do empresariado
produtivo nacional.
2
Quarta Dualidade4 iniciada em 2003, demonstrando suas potencialidades. Além disso,
buscar-se-á elencar os limites intrínsecos e expostos com a presente crise (política e
econômica) que deve ser analisada no âmbito de uma dualidade institucional cuja
fronteira rompida com a experiência da “Nova Matriz Macroeconômica” demanda o
lançamento do debate de ideias a outro patamar.
O artigo, além desta introdução, está dividido em três seções. A seção dois analisa
as condições objetivas internas e externas que assentaram as transformações regressivas
sofridas pela economia nacional com o advento do consenso neoliberal e suas instituições
no Brasil, assim como a necessidade de retorno ao pensamento rangeliano e sua valia
como instrumento de penetração na realidade. A terceira seção é dedicada à uma análise
dos avanços verificados no Brasil após as eleições que elegeram Lula em 2002 e a relação
entre esses avanços e o início da transição à Quarta Dualidade, assim como os limites
institucionais constrangedoras à viabilização do capitalismo maduro – notadamente o
Plano Real e a implementação do Tripé Macroeconômico (1999). Neste aspecto, ao
recolocarmos as categorias rangelianas como funcionais à compreensão do atual, o
indicamos como o núcleo teórico da estratégia nacional brasileira. Na conclusão, é
procedida um chamado à atualidade de pensamento de Ignacio Rangel.
2. SOBRE O PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL E AS TRANSFORMAÇÕES
REGRESSIVAS DA ECONOMIA BRASILEIRA
A ciência produzida por Ignacio Rangel é uma adaptação peculiar e criativa do
materialismo histórico à realidade de uma formação social complexa, tendo como seu
principal atributo sua perifericidade, transformando a gravitação em torno do centro
dinâmico da economia internacional em lei objetiva do processo de desenvolvimento. Esta
gravitação/sensibilidade aos ciclos de longa duração gerados no seio do centro dinâmico
faz-se notar em movimentos de crescimentos “para fora” (exportações) e “para dentro”
4
A Quarta Dualidade pode ser definida como o novo pacto de poder substituinte ao pacto inaugurado com
a Revolução de 1930 e em obediência à importância adquirida pela burguesia industrial (que seria o sócio
maior do novo pacto) e mudanças qualitativas no polo externo. Sobre as Dualidades Básicas e suas leis de
funcionamento, ler: RANGEL, I.: A história da dualidade brasileira. In: RANGEL, I.: Obras Reunidas.
v. 2. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. P. 655-686. De forma específica acerca da Quarta Dualidade,
RANGEL, I.: “A quarta dualidade”. In, RANGEL, I.: Obras Reunidas. v. 2. Rio de Janeiro: Contraponto,
2005. P. 645-654.
3
(substituição de importações) com movimentos políticos, e transformações qualitativas
no âmbito da superestrutura, como resposta à lógica de crises de realização do sistema
capitalista. Transformações na base econômica são também reflexo de mudanças
institucionais requeridas por desequilíbrios estruturais latentes e expostas na lógica dos
ciclos decenais breves (juglarianos brasileiros)5.
2.1. Esgotamento de um processo
O processo de desenvolvimento econômico no Brasil seguiu os parâmetros
cíclicos de seus congêneres do centro dinâmico, numa trajetória lógica de ganhos de
musculatura nas indústrias de tipo nascente, seguidas das cadeias supridoras de
equipamento e material de construção, implantação de cadeias em indústria mecânica
pesada e comunicação entre os setores de bens de produção e de consumo ocorrendo pelo
elo da indústria química; desembocando em grandes plantas industriais de bens de
consumo duráveis. Um processo de industrialização assentada no binômio Departamento
1 de tipo artesanal/Departamento 2 à implantação, no final da década de 1970 do
Departamento 1 Novo (indústria mecânica pesada). Entre 1930 e 1980, as taxas médias
de crescimento do PIB situaram-se acima dos 7% do PIB, sendo que, na última década
desse período, a mesma taxa se situou ao nível de 8,7 % anuais (ALMEIDA, 2007, p. 23).
Trata-se de um caso de dinamismo econômico somente verificado, no período, no Japão
e ex-URSS6.
Causa e consequência deste processo reside numa outra gama de análise. Entre
1930 e 1980, o Brasil transitou de uma lógica de acumulação de tipo hinterland litorânea
5
Esta dialética dos ciclos juglarianos brasileiros é bem desenvolvida em: MAMIGONIAN, A: Introdução
ao pensamento de Ignacio Rangel. GEOSUL. v. 2, n 3. 1987. p. 63-71
6
Dinamismo econômico pouco estudado, e de certa forma mal interpretado, sob as hostes de uma
combinação entre atraso x estagnação completamente estranha aos dados de uma realidade onde a dialética
entre atraso x dinamismo guarda muito mais concretude à análise. Eis uma diferença fundamental entre
Ignacio Rangel e seus contemporâneos estruturalistas. Neste sentido, é importante lembrar Maria da
Conceição Tavares (1977, p. 18), conforme segue: A esta altura, entre os chamados ‘economistas
heterodoxos’, primava ainda, a interpretação estagnacionista, derivada de uma análise da tendência,
projetada e entendida como o ‘limite’ do modelo de expansão anterior. Um dos poucos economistas
brasileiros do meu conhecimento que não participava dessa visão era Inácio Rangel, ao qual devo as mais
importantes intuições sobre a natureza central da acumulação naquele período de transição – a
necessidade de transferir excedentes dos setores atrasados ou poucos dinâmicos para os de maior potencial
de expansão.
4
à completa conexão de seus mercados internos regionais. Esse processo deu conteúdo a
uma complexa divisão social do trabalho que expressara de um lado um dinamismo
industrial centrado primeiramente na região sudeste e, de outro, desequilíbrios de corte
regional, e mesmo produtivo, nada desprezíveis7.
Abrindo necessário parêntese. Esta questão da natureza do desenvolvimento e seu
caráter “equilibrado” ou “desequilibrado” guarda fundamental importância na análise dos
rumos seguidos pelo país na década de 1990 e, também, no processo corrente. Sob nosso
ponto de vista, o processo de desenvolvimento não se desenvolve em linha reta, ao
contrário. Trata-se de um processo contraditório que emerge na busca de soluções para
determinado nível acumulado de desequilíbrio. E tem no desequilíbrio seu leitmotiv, sua
própria razão de ser e existir o que, inclusive, legitima o planejamento econômico como
o principal critério de validade teórica da Economia como ciência em sua essência
(Economia Política). Além disso, antes de retirar (o desenvolvimento) a sociedade de um
estado perene de desequilíbrio, o promove. Sob a forma de desequilíbrios de natureza
diversa às pretéritas. O equilíbrio, assim sendo, é algo completamente estranho ao
processo.
Retornando à dinâmica da economia brasileira, o “modelo” se esgotou sob os
auspícios da combinação entre hiperinflação e endividamento externo nos anos de 1980.
Se por um lado Rangel percebia, pioneiramente, o papel progressista da inflação como
irmã siamesa de nosso desenvolvimento, também observara, e previra, o esgotamento do
papel de imobilização do sistema pela inflação8. A crise de financiamento da economia
demandava mudanças no próprio papel do Estado e a tomada do leme do investimento
pela iniciativa privada. A tarefa de institucionalização de um aparelho de intermediação
financeiro nacional, as concessões de serviços públicos a empresas privadas nacionais e
regulação estatal do comércio exterior seria o passo adiante à consolidação do capitalismo
nacional brasileiro pela via da internalização do centro dinâmico da economia
7
O que implicou, também, na assimilação, da região sul ao centro dinâmico da economia nacional (sudeste),
assim como o atual processo de incorporação da região centro-oeste.
8
Evidente que a num contexto de juros reais negativos a inflação induzia o aumento da taxa de imobilização
do sistema, uma corrida ao investimento como forma de proteger ativos, criando novos ativos.
5
internacional (capital financeiro). Mudanças institucionais qualitativas urgiam por
implementação. Seria a inauguração da Quarta Dualidade.
2.2. O pensamento de Ignacio Rangel diante da “apostasia brasileira”9
É sabido que a década de 1990 marcou uma grande derrota de cunho estratégica
ao movimento comunista e, mesmo, a nascentes projetos nacionais – sobretudo na
América Latina (Brasil e México, por exemplo). O final da União Soviética teve
seqüência numa avassaladora ofensiva política, econômica, social, militar e ideológica
encadeada pelo imperialismo numa versão requentada de fascismo, ainda mais violento e
letal10. Violência alargada ao campo das ideias cuja marca da intolerância com a diferença
é digital de um “pensamento único”, filosoficamente caracterizado pelo irracionalismo
sob um véu “pós-moderno”. A objetividade histórica fora substituída pelo relativismo
metodológico na própria base da teoria do conhecimento. Ainda sob o ponto de vista do
método e da episteme, o concreto como expressão das múltiplas determinações fora
deslocado do escopo da análise social em prol de julgamentos baseados em ordenações
morais e retratos da realidade. O niilismo intenta proscrever a dialética, em prol do
irracionalismo abrindo rumo e caminho à mediocridade intelectual inerente à era do
capital monopolista e financeirado criando e reproduzindo uma intelectualidade cada vez
mais especializada, competitiva, inculta e, consequente, com valores humanos e
humanísticos cada vez mais raros.
O Consenso de Washington é a consequência lógica de uma apostasia em âmbito
internacional, o ponto culminante do acúmulo de forças do pensamento neoliberal e do
próprio imperialismo desde a primeira crise do Petróleo e as eleições de Reagan e
Thatcher. O fim da URSS é o toque de sapa. A grande questão é situar o Brasil neste
contexto e, mesmo, perceber o alcance do pensamento de Ignacio Rangel em contexto de
refluxo da corrente desenvolvimentista (possibilidade de fim da era substitutiva de
O termo “apostasia” é sinônimo de retrocesso. Remete-se ao imperador romano Flavius Claudius Julianus
(Juliano, o “apóstata”) reinante entre os anos 361 a 363. Momento marcado por uma tentativa de retrocesso
a valores helenísticos atrasados em relação ao cristianismo aceito e induzido desde Constantino.
9
10
Ignacio Rangel descreve este processo em: RANGEL, I.: Fogo, blindagem e conjuntura. GEOSUL. v.
5, n 10. 1990. p. 7-19.
6
importações) e a admissão subordinada de nosso país no processo de financeirização.
Seria atual o pensamento produzido por Rangel nestas condições?
Tem sido muito comum situar o Rangel no rol dos grandes pensadores brasileiros
do século XX. “Original”, “criativo” e outros justos adjetivos têm sido uma justiça feita
de forma constante11. Por outro lado, grande parte das análises esbarra justamente na
necessária aplicação da ciência rangeliana ao Brasil pós década de 1990 e na
impossibilidade – definitiva – de realização plena da Quarta Dualidade, a título de
exemplo:
(...). Para isso, construiu um modelo criativo e eficaz, mas
parece ter confiado demais em capacidade prospectiva.
Segundo ele, a crise que começou na segunda metade da
década de 1970 desembocaria nessa nova dualidade, com o
capitalismo agrário no polo interno e o capitalismo
financeiro, conduzido pelo Estado, no polo externo. (...).
Passados cerca de trinta anos, podemos constatar que a
teoria não previu corretamente o que estava por vir. (...).
(CASTRO; BIELSCHOWSKY; BENJAMIN, 2014, p.
541).
O pensamento de Ignacio Rangel é matéria histórica, expressão brasileira da boa
tradição da Crítica da Economia Política como a ciência da observação da ação das leis
econômicas sobre o processo de produção, circulação e distribuição numa economia de
mercado, regulada ou não pelo Estado. A relação entre economia de mercado, a política
e as leis de determinada formação social em contato com impulsos externos é algo cuja
sofisticação demanda profunda e séria visão de processo histórico e seus avanços,
retrocessos, tomadas e retomadas, anexas. Rangel, como marxista de escol, tratou de
detalhar um processo histórico de transições entre as diferentes etapas do capitalismo
11
Como por exemplo, em: BIELSHOWSKY, R. O Pensamento Econômico Brasileiro. O Ciclo
Ideológico do Desenvolvimentismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BRESSER-PEREIRA, L.
& REGO, José M. Um mestre da economia brasileira: Ignacio Rangel. Revista de Economia Política. v.
13, nº 2 (50). Abril-junho/1993. DIAS PEREIRA, J. M. O centenário de Ignacio Rangel. Revista de
Economia Política. v. 34, nº 4 (137). Outubro-dezembro/2014. CASTRO, M. H.; BIELSCHOWSKY, R.
BENJAMIN, C.: Notas sobre o pensamento de Ignacio Rangel no centenário de seu nascimento. Revista
de Economia Política. v. 34, nº 4 (137). Outubro-dezembro/2014.
7
(comercial, industrial, financeiro), nos apontando – inclusive – o próprio caminho
brasileiro de transição ao socialismo. E os imensos obstáculos próprios a um processo
de luta de classes em torno da apropriação do excedente econômico. É processo político
onde a tática e a estratégia não estão ligadas por uma linha reta, portanto sensível a
derrotas, recuos e retrocesso em larga escala. A capacidade prospectiva de um cientista,
cujas ideias propõem-se suporte à luta política e estratégica de uma classe social, não
pode ser colocada em questão diante da temporalidade e do movimento e sim se as
mesmas são capazes de alçar a visão humana além do horizonte e em plena obediência às
leis do desenvolvimento social e da própria ciência.
As ideias liberais não foram derrotadas com assunção de monarquias absolutistas
ao desenrolar das revoluções Puritana e Francesa. O capitalismo não deixou de ter
horizonte histórico com a proscrição das experiências de Genova e Veneza, sufocadas por
um feudalismo mais poderoso. O marxismo não perdeu sua validade com o fim das
primeiras experiências socialistas, algo que o curto espaço de tempo já demonstra o
contrário com a, atual, vitoriosa experiência socialista chinesa – pronta a assumir o papel
de polo externo à presente Dualidade Brasileira. Exemplo desta constituição progressiva
de um novo polo externo está na capacidade de influência da experiência chinesa a
experimentos progressistas e desenvolvimentistas na América Latina (incluindo, claro, o
Brasil) e África, demonstrando tanto a validade da lei do desenvolvimento desigual
(Lênin) quanto o fato comprovado para quem “as apostasias tendem a fracassar”
(MAMIGONIAN, 2014, p. 77). Neste contexto insere-se, evidentemente, a engenharia do
futuro encarnada pelo pensamento de Ignacio Rangel e no complicado processo, na
unidade de contrários, encarnado no atual movimento de transição à Quarta Dualidade
iniciado em 2003. Cujos desdobramentos atuais poderão dizer se esta transição andará
adiante ou, mesmo, se sofreremos uma nova rodada de retrocessos selados num
casamento perfeito entre neoliberalismo e fascismo; trama dostoievskiana de “crime”
contra a estabilidade monetária e de preços (consumo popular) e “castigo” (violência
policial contra o povo, abertura comercial, arrocho monetário, fiscal e salarial).
***
Temos de reconhecer que partindo de uma análise da estática, numa concessão
metodológica aos princípios da própria economia neoclássica, pode-se sim concluir que
o caminho brasileiro apontado por Rangel está completamente comprometido, chegando
8
ao ponto de reconhecer o autor como mais um entre aqueles que fizeram uma ótima
historiografia do processo de desenvolvimento brasileiro. Uma análise mediada pela
dinâmica pode dar ao pensamento outra perspectiva e oportunidade de adaptação ao
momentum.
Existem três variáveis basilares à compreensão do rumo estabelecido por Rangel
ao Brasil e os estertores da Quarta Dualidade: 1) A dialética da capacidade ociosa; 2) A
funcionalidade da formação de um sistema nacional de intermediação financeira; 3)
mudanças institucionais operativas à institucionalização da reserva nacional de mercado;
4) ativo papel do setor privado nacional e das próprias multinacionais instaladas no país
ao passo seguinte do processo de substituição de importações e 5) intervenção estatal nos
mecanismos de comércio exterior.
As transformações regressivas, alimentadas por um ambiente internacional de
defensiva estratégica do socialismo, encetaram uma recomposição da demanda incapaz
de abrir um novo ciclo de crescimento econômico vigoroso, ao contrário. A revisão do
papel do Estado na economia (racionalização e descentralização do gasto/privatizações
predatórias de empresas públicas) ocorreu no caminho oposto ao proposto por Rangel. A
desregulamentação financeira provocando quadra regressiva de aumento do
endividamento interno e externo; subordinação das cadeias produtivas nacionais à nova
lógica de acumulação financeirizada onde as fusões e aquisições de fora para dentro
incorreram em destruição de forças produtivas; integração comercial à la lei das
vantagens comparativas criando déficits comerciais insustentáveis e dependência de
fluxos externos de capitais de curto prazo e, consequentemente, adesão plena a perversa
lógica de internalização de crises financeiras, elevação de dependência externa e perda de
soberania nacional (FMI).
Alguns dados são interessantes. No que tange ao processo de fusões e aquisições
(F&As) transfronteiriças (que envolvem operações de capital estrangeiro no Brasil), as
mesmas saltaram de 36,21% em 1991 para 67,31% do total das operações em F & As em
1999, em grande parte concentradas nos setores financeiro, de metalurgia e energia 12. A
questão da intermediação financeira, calcanhar de Aquiles da era substitutiva de
12
KPMG Corporate Finance, Pesquisa de Fusões & Aquisições, 1998, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008,
2009 e 2010.
9
importações e de central importância na perspectiva rangeliana – a despeito do intenso de
informatização, sofisticação e de diversificação de portfólios – deixou de ter
funcionalidade ao processo de desenvolvimento; fora absorvida por um ambiente propício
tanto à preferência pela liquidez quanto à armadilha do crédito de curto prazo13.
Em verdade as transformações regressivas sofridas pelo país desde a década de
1990 não tem sinônimo possível com possíveis definições de “estabilidade monetária”
amplificadas aos quatro ventos, e até comemoradas anualmente (27/02)14, e sob nenhum
aspecto macroeconômico: precificação da moeda, câmbio, inflação e dívida pública. A
taxa SELIC somente caiu abaixo dos 40% em 1998. E abaixo de 30% ao ano em meados
de 1999. A inflação, no ano de 1995 foi de 22%, variando 9% ao ano, em média, até 2002.
A dívida pública líquida saiu de apenas 37% do PIB, em 1994, para mais 60% em 2002.
Entre 1995 e 2002, a taxa de crescimento do PIB, consumo das famílias e taxa de
investimentos tiveram aumento médio de 2,32%, 2,65% e 1,15%, respectivamente. A
quebra do tecido social brasileiro foi vertiginosa, sentida até os dias atuais: o desemprego
sai de 6,1% em 1994 para 11,5% em 200015 numa demonstração sobre em quais ombros
e de qual classe social deveria recair o preço da entrada do Brasil na era da
“modernidade”, via “choque de competitividade” e troca da industrialização e da
soberania nacional pela dependência aprofundada e a barbárie social.
3. A GRANDE POLÍTICA E O PENSAMENTO DE IGNACIO RANGEL COMO
O NÚCLEO TEÓRICO DA ESTRATÉGIA NACIONAL BRASILEIRA
O estado de apostasia estartado na década de 1990 não pode ser visto como algo
dado e definitivo. Tudo está em movimento, mesmo que o projeto seja postergado pela
própria mudança na correlação de forças entre as classes sociais em disputa, e em todos
os níveis. A Quarta Dualidade rangeliana sob a hodierna definição de formação de um
núcleo político heterogêneo interessado na realização plena de uma estratégia nacional
13
Sobre este processo, ler: PAULA, L. F.; HERMANN, J.: Economic Development and Functionality of
the Financial System in Brazil: a Keynesian approach. In, BRESSER-PEREIRA, L. C.; KREGEL, J.;
BURLAMAQUI, L (ed.) Financial Stability and Growth: Perspectives on financial regulation and the
new developmentism. Abindon: Routledge, 2014. P. 261-281
14
Data do anúncio do Plano Real.
15
Dados disponíveis em IBGE, IPEADATA, FIBGE e PNAD’S.
10
brasileira é parte de um conjunto de fatores cujos fulcros fazem sentir desde 2003, cuja
comprovação inequívoca reside numa radicalização de posições no seio da sociedade
brasileira desde 2013. O sentido histórico e estratégico desta disputa ainda é expressão da
velha contenda entre industrialistas e agraristas, sendo os últimos de roupagem
monetarista com estreitos vínculos ideológicos e intelectuais com os interesses do
imperialismo em nosso país.
O que assistimos no último decênio é uma transição ainda inconclusa cuja análise
deve remontar direta, e primeiramente, ao nível atual de realizações e a fronteira
alcançada. Para em seguida expor o nível atual da luta política e as imensas dificuldades
que nos cerca. Eis o passo, dentre outros, ao restabelecimento do pensamento de Ignacio
Rangel como núcleo teórico da estratégia nacional brasileira.
3.1. Sinais da transição
A elevação das incertezas, a instabilidade como estabilidade são elementos que
compõe ciclos de curta duração no âmbito da economia internacional de forma mais
aguda que o estado normal do próprio ciclo econômico clássico. No Brasil a
internalização desta lógica pode ser sentida em crises cambiais frequentes entre a segunda
metade da última década do século passado e o início da atual. O próprio comportamento
da inflação aparentemente de “preços livres”, porém produto da ação perversa de
monopsônios/oligoposônios, já percebidos e indicados por Rangel na década de 1960, é
extensão da incerteza que contamina um já viciado sistema de formação de preços. Não
é de se espantar que um país como o Brasil ainda conviva com inflação de bens primários
no mesmo instante em que a produtividade do trabalho na agricultura quebra recordes
anuais. Eis um ponto interessante. Incerteza e inercialidade tornam-se um binômio típico
da era da “estabilização” como deus ex machina da ordem estabelecida.
Costuma-se colocar o bônus (redução da inflação, neutralização da inercial
inflacionária) e o ônus (aumento da vulnerabilidade externa, taxas baixas e crescimento
do produto) do Plano Real e a “grande engenharia”, ulterior ao Plano, do alinhamento dos
preços (URV). Porém poucos se atentam ao essencial que reside num acordo tácito entre
as classes dominantes de troca de base material obtida outrora nos ganhos com a
hiperinflação ao crescimento geométrico anexo à dívida pública, alienação de patrimônio
11
público pelas privatizações, imposição política e ideológica por parte do imperialismo de
um tripé macroeconômico (metas de inflação, superávits fiscais e câmbio flutuante). A
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) transformada em bandeira de agitação e
propaganda, sedimenta o poder da negação do direito inalienável ao desenvolvimento e o
planejamento como essencialidades em uma estratégia nacional de longo prazo16. Se no
mundo a grande finança passa a ser o núcleo do poder político transnacional, no Brasil
espelha-se o mesmo movimento com o deslocamento da burguesia industrial do pacto de
poder dual surgido em 1930. Altas taxas de juros como receita à captação de uma
poupança prévia ao investimento inexistente no país, logo externa; incorrendo na
captação de poupança de fora, subsidiada por déficits comerciais. Logo, a abertura
financeira com desregulamentação sobre o fluxo externo de capitais levou a perda de
soberania do país sobre um preço básico e estratégico da economia, referimo-nos à taxa
de câmbio17.
Cumprindo rigor teórico e metodológico, amparado pela visão marxista de mundo
(dinâmica das classes sociais em todo e qualquer movimento de produção, acúmulo e
apreensão do excedente em uma formação social complexa), ficam poucas margens para
dúvidas: o Plano Real foi um bem sucedido golpe político, semelhante ao que se observa
atualmente com a estatização das dívidas privadas bancárias na Europa e EUA, que muito
antes de atentar ao combate à inflação em si, foi instrumento de concentração política de
poder de uma classe (grande finança) sobre outra (industriais); classe última que cada vez
mais se movimenta no rumo da imagem e semelhança à classe dominante sobre si mesma
(industriais aderentes ao rentismo)18. A dupla face do atual capital industrial brasileiro é
16
Miguel Bruno delineia este processo de acoplamento do Estado pelo poder da finança. In, BRUNO, M.
Ortodoxia e Pseudodesenvolvimentismo: nunca dantes uma receita foi tão infeliz. Insight Inteligência.
Abril, Maio, Junho/2015. p. 94-105.
17
Sobre este processo, ler: BRESSER-PEREIRA, L. C.: Proposta de Desenvolvimento para o Brasil. In,
SICSU, J; PAULA. L. F. de; MICHEL, R. (org.): Novo-Desenvolvimentismo. Konrad Adenauer Stiftung.
Manole. São Paulo, SP. P. 133-144. Sobre a visão rangeliana do papel da taxa de câmbio, ler: A “verdade
cambial”. In: RANGEL, I.: Obras Reunidas. v. 2. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p. 243-245.
18
Não apreciamos a difusão de falsas polêmicas, nem tampouco evitamos polêmicas. E algumas devem ser
postas à luz a bem da ciência ao serviço da transformação qualitativa da realidade, não restrita à simples
observação abstrata. Assim sendo, evidente que caracterizar algo de aceitação total pela sociedade como
um “golpe” demanda certa firmeza de assumir a possibilidade de isolamento em um ambiente de debate
completamente contaminado e absorvido, mais em determinados lugares do que em outros, por noções e
posições cujo interesse passam muito mais pela aceitação individual no “mercado de ideias” que se
transformou os balcões de agências de fomento do que à pauta do soerguimento da nação e da colocação
dos trabalhadores em seu real lugar político demandado pela história. Ser rangeliano, neste tocante (como
12
outra unidade de análise de grande valia à observação do todo concreto: o capitalista
industrial descrito por Ricardo, transmutado em rentier, ao lado dos ainda presentes
rentiers da terra sob as hostes da preferência pela liquidez como religião oficial da classe
dominante encetando um limite subjetivo nada desprezível. Voltaremos a isso.
***
Existe uma base objetiva para definir o último decênio como parte de uma possível
transição brasileira à Quarta Dualidade como expressão da superação do neoliberalismo
em nosso país e a retomada de uma estratégia nacional renovada. A barbárie neoliberal
que atingiu em cheio a América Latina aliada com mudanças qualitativas no polo externo
(efeito demanda chinesa) foram duplamente responsáveis pela ascensão de governos de
cunho nacional e popular, com diferentes níveis de radicalização, em nosso continente.
E no Brasil, não foi diferente com as quatro vitórias eleitorais seguidas das forças
progressistas. É evidente que o critério primário da análise antes de ser econômico, é
político/institucional.
A economia brasileira, por outro lado, atendeu aos estímulos contraditórios de
uma nova ordem política e eleitoral com o acento de institucionalidades enraizadas desde
a década de 1990, cuja proscrição demanda força política acumulada. Em poucas
palavras, a hegemonia eleitoral não pode ser confundida com hegemonia construída numa
sociedade ainda exposta ao assalto subjetivo pelas ideias e instituições neoliberais.
Esgarça-se uma unidade de contrários no seio da superestrutura nacional com
repercussões claras sobre a economia do país19. Seu paradoxo encontra-se no ápice de
uma economia de quase pleno emprego, porém sob forte pressão desindustrializante.
o marxismo), é uma posição política, antes de mais nada. O exemplo dele de combate ao senso comum
cristalizado é seu maior legado que tentamos seguir.
19
Essa dualidade é cada vez mais exposta no desnível observado na natureza de determinadas instituições
típicas de uma formação social complexa onde podemos compreender, partindo de uma formação
hegemonicamente capitalista, como o Brasil, a convivência entre resquícios de remotos modos de produção
com formações e instituições avançadas, e mesmo “parassocialistas” (primórdios de planificação do
comércio exterior sob os governos de Ernesto Geisel e Lula). Daí termos claros resquícios feudais em
instituições como o Supremo Tribunal Federal e o próprio Banco Central (enfeudado pelo capital
financeiro) e corporações “parassocialistas” do nível da Petrobrás e a Embrapa. Combinação coerente com
um país que em pequenas distancias territoriais convivem, em unidade e luta, desde o capital financeiro
paulista até a agricultura mais primitiva possível.
13
Numa função renda do trabalho x PIB que têm subido muito acima da produtividade do
trabalho. Trata-se de uma óbvia expressão da dualidade básica. Nada sutil.
A base de análise do atual estágio do processo de acumulação é o comportamento
do setor privado e seu papel estratégico sob o ponto de vista de Ignacio Rangel. Base
também para traçar uma linha de transmissão entre o citado comportamento e as
institucionalidades que bloqueiam a realização da estratégia rangeliana ao país.
Importante cotejar alguns dados. Por exemplo, a relação crédito/PIB salta de 26% em
2002 para 58% em 2014. Em valores nominais, no mesmo período, teve sinônimo para
cima de R$ 227 bilhões em R$ 1,6 trilhão. Avançou, também, na chamada intermediação
financeira de longo prazo com a retomada do papel original do BNDES como
emprestador em primeira instância: de R$ 37,4 bilhões em 2002 a um pico de R$ 190,4
bilhões em 201320.
O ciclo político aberto de transição teve impactos em transformações de fundo nas
relações exteriores. Na contramão da política externa anterior alinhada aos interesses do
imperialismo, intentamos positivamente na inviabilização do Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA) numa triangulação política-estratégica capitaneada por Lula, Chávez
e Néstor Kirchner; ação seguida de uma atitude ativa do Brasil capitaneando a retomada
do MERCOSUL, a formação da UNASUL e CELAC, ampliando presença na África, na
OMC e relegando o lugar de emprestador para credor líquido do FMI e atual membro
ativo do BRICS. A aludida, por Rangel, planificação do comércio exterior (direcionada
ao socialismo e à periferia) avançou, por exemplo, com a transformação da República
Popular da China (socialismo) em nosso principal parceiro comercial21. O fluxo de
comércio entre os dois países saiu do patamar de US$ 4,1 bilhões em 2002 para US$ 77,9
bilhões em 2012. Em 2005, a relação exportações totais x exportações à China foi de
5,77% e alcançando 18,77% em 201422. Saldos positivos recorrentes em nossa balança
comercial teve grande funcionalidade à queda de nossa vulnerabilidade externa e
20
Dados extraídos do Banco Central do Brasil – Microdados.
21
O que não implica no não reconhecimento de nossa parte sobre o efeito estrutura sofrido por nossa
economia por decorrência da forte concorrência chinesa sobre nossa manufatura.
22
Não somente isso, em 2004 as relações entre os dois países avançaram ao patamar de parceria
estratégica.
14
consequente elevação de reservas cambiais que saíram de US$ 37,8 bilhões em 2002 para
US$ 379,8 bilhões em março de 201423.
O crescimento médio do PIB, entre 1995 e 2002, de 2,3% (diante da média
mundial de 3,4%) alcançou 4,1% entre 2003 e 2010, acima da média mundial no mesmo
período (3,8%). Programas de transferência de renda e grandes investimentos localizados
em infraestruturas incorreram em uma dinâmica regional perceptível com crescimento do
produto, por exemplo, na região Nordeste de 58% entre 2003 e 2014, acima da acumulado
nacional de 47% e seguida de aumento na participação das regiões norte e nordeste no
PIB nacional de 4,2% e 12% em 1995 para 5.3% e 13,5% em 2012, respectivamente24.
Cerca de 34 milhões de brasileiros foram retirados da linha da pobreza25. Mudanças na
base de cálculo de aumento do salário mínimo são enunciados numa relação salários x
PIB que chega a 38,6% em 2011, saindo de 30,8% em 200426. Além do papel de
investimentos, da nova dinâmica regional interna e da forte inclusão de pessoas no
mercado consumidor, estes números indicam o aproveitamento de uma vaga mundial
marcada pelo aumento da demanda chinesa por commodities seguida por picos de preço
internacional deste tipo de pauta, indicando uma fase ascendente do juglariano brasileiro
puxado hacia afuera.
Na contramão dos próceres da década de 1990, avançou no segundo mandato do
presidente Lula na introdução de mecanismos de socialização do investimento (Keynes)
e retomada mínima do papel do planejamento estatal atendendo a objetivos de ampliação
de investimentos em infraestrutura (Programa de Aceleração do Crescimento [PAC]).
Assim como de manutenção de demanda efetiva em meio à crise financeira como o
programa Minha Casa, Minha Vida. Entre 2007 e final de 2013, cerca de, no âmbito do
23
MDIC
24
SUDENE. Entre os citados investimentos em infraestruturas cabe assinalar investimentos de porte como
o programa “Luz Para Todos”, a ferrovia Transnordestina e as grandes usinas hidrelétricas de Jirau e Belo
Monte.
25
IBGE
26
Idém.
15
PAC, R$ 1,4 trilhão fora investido, sendo que R$ 470 bilhões foram direcionados à
financiamento de casa própria beneficiando 1,39 milhão de famílias27.
***
Voltando um pouco à abstração. A questão da reorganização de atividades entre
o Estado e a iniciativa privada e o instituto da reserva de mercado são de importância no
rumo da composição do capitalismo maduro brasileiro28. A análise da transição iniciada
em 2003 é também a análise da história do de tentativa de implementação de tais. Abrindo
parêntese, nota-se que se outrora a proposta de concessão de serviços públicos à iniciativa
privada nacional, por Ignacio Rangel, fora motivo de perplexidade dentro do pensamento
heterodoxo, atualmente é praticamente um consenso dentro da própria heterodoxia29.
Neste tocante, pode-se dizer que houve avanços dentro do âmbito do próprio PAC,
quanto do extenso programa de concessões lançado com vistas às obras de infraestruturas
urbanas à realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016 e no recente
relançamento de outro pacote de concessões (Programa de Investimento em Logística)
com previsões de investimentos até 2018 de R$ 198,4 bilhões, sendo que R$ 99,8 bilhões
voltados a concessões no setor ferroviário30. Nota-se uma tipologia de concessões muito
27
Ministério do Planejamento
28
Sobre esta reorganização de atividades em Rangel, indicamos a leitura do posfácio à quinta edição (1978)
de A Inflação Brasileira, posfácio este nas palavras de Bresser Pereira (2005) classificado como
antológico, conforme se lê: Em 1978, com sua concordância, propus a meu amigo e editor, Caio Graco
Prado, da Editora Brasiliense, que publicasse uma nova edição de A Inflação Brasileira. Dessa forma
queria fazer lembrar o grande economista, que ainda não se recuperara de seu afastamento do BNDES e
da vida pública brasileira. A nova edição esgotou-se rapidamente, não apenas porque o livro original que
foi publicado sem alterações, era extraordinário, mas porque Rangel incluiu nele um “Pósfacio”
antológico (grifo nosso). Nele, ao invés de voltar às suas ideias dos anos 60, avançou, mostrando de forma
pioneira que a economia brasileira estava caminhando na direção de uma grande crise de financiamento,
na medida que o Estado brasileiro estava perdendo capacidade para realizar a tarefa fundamental que lhe
coubera desde os tempos de Vargas: financiar os investimentos – especialmente dos investimentos na infraestrutura e nos serviços públicos. Estava ali a previsão da grande crise dos anos 80, e um esboço da teoria
da crise fiscal do Estado, que, durante os anos 80, eu procuraria desenvolver em vários trabalhos. Estava
ali também a proposta de como resolver a questão, através de um novo tipo de financiamento, baseado na
hipoteca das receitas dos serviços públicos.
29
Neste aspecto (papel das concessões), interessante esta entrevista do professor Belluzzo no portal da
CUT,
Belluzzo:
motor
quebrou
e
Levy
quer
consertar
a
lataria.
Em:
http://www.cut.org.br/noticias/belluzzo-motor-do-pais-quebrou-e-levy-quer-arrumar-lataria-48ee/
30
Logística Brasil, http://www.logisticabrasil.gov.br/
16
próximas das ideias rangelianas, de tipo Project Finance e primeiros experimentos de
lançamento no mercado de capitais de debentures voltados a investimentos em
infraestruturas31.
Esta reorganização de atividades avança gradativamente a um patamar mais
elevado no lançamento de bases à própria institucionalização da reserva de mercado
conhecida genericamente como política de conteúdo nacional “conteúdo nacional
mínimo” nos contratos de fornecimento para o governo e empresas estatais como a
Petrobrás e condicionalidade a empréstimos de firmas bancárias como o BNDES. São
elementos indispensáveis ao raciocínio tanto em relação ao estágio alcançado da
transição quanto da forte reação política do imperialismo levando à quase cisão atual da
sociedade brasileira entre dois projetos antagônicos com impactos profundamente
negativos sobre a economia com uma espécie de Sabotage, no sentido dado por Thorstein
Veblen a processos de ameaças de interesses e suas expressadas, por exemplo, em altas
taxas de inflação32. A descoberta de imensas jazidas de petróleo na camada do Pré-Sal
criou condição ao relançamento do papel da Petrobrás em outro patamar, juntamente com
o estabelecimento de um sistema de partilha sob comando operacional único e exclusivo
de nossa grande estatal. Política em contraste aberto relação a proposta de privatização
da companhia em meados da década de 1990 (Petrobrax), seguida pela
institucionalização do regime de concessão de poços de petróleo, obviamente contra os
interesses nacionais33. Outro marco histórico – dado o papel da intermediação financeira
à moldura rangeliana - está na inauguração, pela Petrobrás, do processo de captação de
R$ 126 bilhões no mercado local de capitais em 2010.
31
Sobre esta modalidade de parceria público-privada, seus potenciais e limites, ler: SÁ E FARIA, V.;
BORGES, L. F.: Project Finance: Considerações Sobre a Aplicação em Infra-Estrutura no Brasil. Revista
do BNDES. v. 9, n. 18, P. 241-280. Rio de Janeiro. Dez. 2002.
32
O processo de Sabotage alcunhado por Veblen em The Engineers and The Price System (1921) é muito
semelhante à reação dos oligopsônios e monopsônios no sistema de formação de preços no Brasil, indicados
por Ignacio Rangel em A Inflação Brasileira.
33
No regime de partilha, a propriedade do petróleo extraído é do Estado. A vencedora do leilão assume o
custo e o risco de explorar e extrair o produto, em troca de parte do que for produzido. Já na concessão,
vigente nos antigos contratos de exploração, o vencedor do leilão paga um valor ao Estado em troca da
propriedade do petróleo extraído em um certo bloco, por um certo que pode variar de 20 a 30 anos. Os
leilões de partilha foram vencidos pela própria Petrobrás juntamente com a Shell, Total e as gigantes
chinesas CNPC e CNOOC.
17
3.2. Choque de institucionalidades, a “Nova Matriz Macroeconômica” e a
necessária e presente mudança institucional
Todo problema econômico deve ser compreendido como um problema
institucional, e político. O problema institucional é aquele cuja presença impede o
destrave das forças produtivas. A mudança institucional transforma-se em problema
político na esteira dos interesses de classe envolvidos na mudança ou manutenção de uma
ordem de coisas. Em ambos os casos, o crescimento econômico é função destes dois
níveis de batalha e possibilidade de radicalização de posições como assistimos hoje no
Brasil. A dita “Nova Matriz Macroeconômica” (2012) e seus pressupostos de maior
presença do Estado na condução da política monetária e institucionalização da reserva
de mercado foi o estopim do choque e do limite do tolerável entre a política econômica
(política de governo) e a política monetária (política de Estado), sendo esta última
variável estratégica legitimada no âmbito das transformações regressivas assistidas na
década de 199034.
É tanto verdade que o Brasil avançou no rumo da transição à Quarta Dualidade
quanto é verdade, também, que o limite estrutural (indústria e o processo de
desindustrialização) amplificou-se no último decênio. Os dados são claros para afirmar
isto: a relação investimentos x PIB, e seus respectivos picos nos terceiros trimestres de
cada ano, desde 2002, nunca foi maior do que 20%. Sendo a maior média anual do período
registrada em 2010 (19,46%)35. O paradoxo deste processo está na queda acentuada da
indústria em sua participação total no PIB, que em 2012 atingiu seu piso histórico desde
1955: 13,3%36. Mais, em dez anos, a balança comercial da indústria de transformação
saiu de superávit de US$ 24,06 bilhões em 2004, para deficitária em US$ 63,5 bilhões em
201437. Os dados expostos sobre os avanços do último decênio expressados na
34
Um quadro contendo os componentes institucionais do modelo econômico regressivo implementado na
década de 1990 pode ser encontrado em: BRUNO, M. Ortodoxia e Pseudodesenvolvimentismo: nunca
dantes uma receita foi tão infeliz. Insight Inteligência. Abril, Maio, Junho/2015. p. 94-105.
35
IPEADATA
36
Dado disponível em estudo encomendado pela FIESP (Por que Reindustrializar o Brasil?), em
http://www.fiesp.com.br/indices-pesquisas-e-publicacoes/por-que-reindustrializar-o-brasil/
37
Déficit na indústria atinge US$ 63,5 bilhões em 2014. Valor Econômico. 24/02/2015.
18
contradição com a queda da participação da indústria na composição do PIB, acrescidos
com baixos níveis de desemprego dão formato ao crescimento pautado pelo consumo de
um lado com o efeito estrutura resultante da baixa capacidade de resistência brasileira às
exportações de manufaturados asiáticos, sobretudo chineses. O primeiro plano distante
da superfície da análise do processo está na permanente combinação entre altas taxas de
juros e valorização cambial, variável última que desceu à casa do US$ 1 = R$ 1,50 no
crepúsculo do segundo mandato do presidente Lula e com a variável 1 (juros)
prenunciando o início e o fim da era do crescimento pelo consumo (alta acentuada do
endividamento das famílias). A taxa SELIC ajustada não somente à precificação da
moeda, mas também como referência geral de preços torna-se o principal elemento de
inércia da economia. Oportuno dizer que o período fora caracterizado por grandes
incentivos ao fator trabalho (salário, consumo e expansão de direito) e pouco ao fator
capital (políticas monetárias convidativas ao investimento), transformando a dialética da
capacidade ociosa em problema de realização com linha final na problemática que
envolve o teto da taxa de investimentos.
Abrindo novo parêntese, a síntese na relação/contradição entre forças produtivas
x relações de produção tornaram-se evidentes, explosivas. O relaxamento de relações de
produção (aumento da participação dos salários no PIB, valorização do salário mínimo,
geração de 18,5 milhões de empregos entre 2003 e 201438, profundidade dos programas
de transferência de renda e elevação sem paralelo nas vagas em universidades etc) não
teve espelho no desenvolvimento das forças produtivas (baixa relação entre taxas de
investimento x PIB, baixa produtividade do trabalho na indústria, falta de imensas obras
de infraestruturas urbanas, não-melhora na qualidade de serviços públicos etc). As
manifestações de 2013 irrompidas nas principais cidades do país foi a revolta das relações
de produção contra as forças produtivas instaladas prenunciando, num retorno ao
argumento, o fim do limite tolerável de convivência entre os dois níveis institucionais
supracitados39. A crise de superprodução/superpopulação agrária e seu trânsito como
38
IBGE, dados anualizados.
39
Sobre isto, ler: JABBOUR, E.: As manifestações: neoliberalismo x mais desenvolvimento. Portal da
Fundação
Maurício
Grabois.
03/08/2013.
Disponível
em:
http://grabois.org.br/portal/noticia.php?id_sessao=8&id_noticia=11560
19
problema urbano, anunciado por Rangel em seu tempo, confirma-se. E com soluções
nada longe do que as colocadas pelo gênio maranhense.
***
A “Nova Matriz Macroeconômica” chega com o objetivo de enfrentar o problema
da participação privada no total dos investimentos, acelerar a mudança de eixo de
crescimento do consumo ao investimento e do “externo” ao “interno”. Objetivos corretos
e em consonância, mesmo dentro da ortodoxia, sobre a necessidade relacionada entre
participação privada maior e elevação da taxa de investimentos. A ofensiva
desenvolvimentista ocorreu com a denúncia, em rede nacional, por parte da presidenta
Dilma tanto dos juros quanto dos spreads praticados pela grande finança privada
nacional, seguida pela forte redução da taxa de juros ao seu menor patamar histórico e o
posicionamento dos bancos públicos no mercado de crédito. Desonerações fiscais,
aumento de intervenção estatal sobre preços administrados como a energia elétrica, além
da citada tentativa de institucionalização da reserva de mercado. O arsenal completa-se
com a continuidade de repasse de recursos do tesouro ao BNDES e outras formas de
subsídios amparados pelo Tesouro Nacional. Porém, o crescimento econômico não veio.
Quais os motivos, além da aludida insegurança jurídica e suas consequências no
desempenho do produto?
Devemos remontar ao pacto de poder reposto com a eleição de Lula. Reposto,
pois burguesia industrial apeada, desde as eleições de Collor em 1989, do pacto que
sustentou a Terceira Dualidade – em um processo que culmina no golpe dado pela grande
finança (1994/1999) –, retorna ao núcleo de poder com Lula. A Carta aos Brasileiros
afiança este pacto e os compromissos que sustentariam politicamente o governo por oito
anos consecutivos. Inicia-se assim a transição à Quarta Dualidade condicionada
positivamente, no polo interno, pelo acúmulo de forças por parte dos movimentos
populares em meio à barbárie da década de 1990 e pelo polo externo pelos primeiros
abalos da ordem financeirizada e a ascensão chinesa40. Porém, não se pode menosprezar
40
Bom explicar que essa mudança de polo externo ocorre de maneira diversa às anteriores, pois o poder do
imperialismo ainda é intangível numa ordem tal onde é claro seu poder e capacidade de exercer violência
virulenta e amplo poder de veto sobre governos e nações. Como percebe-se no recrudescimento neoliberal
20
o alcance representado pelo golpe representado pelo Plano Real (1994) e a do Tripé
Macroeconômico (1999) sobre o subjetivo determinante do processo político. Houve um
assalto completo ao aparelho de Estado e, principalmente, sobre os mecanismos de
emissão e precificação monetária (poder político, de fato): corrompimento aberto dos
meios indutores de conhecimento (academia) e de assalto à subjetividade popular (mídia)
ainda não revertido, ao contrário, recrudescido. Além do acantonamento ultraliberal em
órgãos vitais do próprio Estado (Banco Central, Polícia Federal, Ministério Público, STF
etc).
A Economia Política dos limites expostos da “Nova Matriz Macroeconômica” é
a história da brusca e voluntarista tentativa de rompimento com um pacto político (2002)
numa tentativa de deslocamento da grande finança do pacto lembrando o fracasso
retumbante de um “choque heterodoxo” (Plano Cruzado), cujas críticas agudas de Rangel,
além da economia, recorria à máxima marxista para quem a vitória de uma força somente
se torna real quando esta mesma ideia se transforma em força material. Parece ter
explodido a panela de pressão do esgotamento do modelo de crescimento pautado pelo
consumo e no esgarçamento da contradição entre forças produtivas x relações de
produção materializadas nas manifestações de 2013, devidamente capturadas pelo campo
conservador e a extrema-direita. A quarta vitória eleitoral das forças progressistas ocorre
nos marcos de uma correlação de forças completamente adversa41.
***
Em um ambiente onde as expectativas bem racionais de inflação podem ser
gerenciadas em conjunto entre a mídia conservadora, os oligopólios/ monopólios e os
oligopsônios/monopsônios (Sabotage) e anabolizada por incertezas da conjuntura
econômica internacional, seria previsível que a queda brusca da taxa de juros seria
indicador do não cumprimento da meta anual de inflação e do superávit primário em sua
sobre a periferia europeia e na força de chantagem, desestabilização e indução de movimentos golpistas pro
parte das chamadas “agências de risco” (leia-se, imperialismo).
41
Uma grande operação policial (Lava Jato) arrasta-se com alvos definidos claros, de interesse da grande
finança interna e ao próprio imperialismo: o governo Dilma, o ex-presidente Lula e o capital nacional
(Petrobrás e engenharia brasileira como um todo).
21
totalidade (dois pilares institucionais do Real). O crescimento não veio, como se sabe.
Causa e consequência de uma classe empresarial que acompanha a grande finança,
literalmente “pulando do barco”. O ajuste fiscal em curso é a ordem natural das coisas
quando os dois preços básicos da economia (juros e câmbio) não estão sob controle do
Estado, recaindo sobre o Tesouro o ônus da manutenção de demanda efetiva mínima. A
conta simplesmente chegou. Questões devem ser feitas: são os juros a grande “jabuticaba”
da economia brasileira? O alvo preferencial seria este preço da economia ou a
institucionalidade que a conduz?
Não é incomum assertivas para quem uma série de ações deveriam ocorrer em
meio ao boom das commodities, evitando nova vaga desindustrializante e nos preparando
ao momento em que a crise chegaria, enfim, à periferia do sistema. É inegável que a
“Nova Matriz Macroeconômica” veio a responder aos limites do modelo, conforme já
expomos. Porém, a verdade reside no profundo. Acompanhando a muito atual linha de
raciocínio de Ignacio Rangel, o fechamento relativo de mercados externos – incorrendo
na necessidade de dar estopim ao crescimento para dentro, a exemplo da correção
monetária instituída no final da década de 1960, capaz em seu tempo de manter o impulso
do investimento em um momento em que a relação entre os juros praticados e a taxa de
inflação favorecia, em tempos de alta inflacionária, uma corrida pela imobilização.
A mudança institucional capaz de prover condições a saltos na relação taxa de
investimentos x PIB – e colocar, de uma vez por todas, o setor privado no leme do
processo – está na revisão da temporalidade ao cumprimento das metas de inflação42.
Não se trata de proscreve-las totalmente. O que demanda, evidente à moda de Ignacio
Rangel, de deixar de lado o debate do problema pela “porta de saída”, como fenômeno,
logo, tomando a “Nuvem por Juno”. E sim, percebendo o epifenômeno por detrás de
processos políticos, institucionais e econômicos complexos, nos desvencilhando de
visões eivadas de vícios neoclássicos (ausência de política, comportamento das classes
sociais no processo etc). Afora a não percepção da linha tênue da convivência entre duas
42
Justiça deve ser feita a alguns nomes de uma brilhante geração de economistas pós-keynesianos em nosso
país pelo serviço que têm prestado ao apontamento dos reais problemas de fundo de nossa economia. Este
problema do atual regime de metas de inflação, distante ainda de sua necessária colocação no centro do
debate, já é abordada – por exemplo – em: PAULA, L. F.; SARAIVA, P. J.: Regime de Metas de Inflação:
Lições a partir da revisão do "Novo Consenso". Revista Política Social e Desenvolvimento. Ano 3, junho
de 2015.
22
institucionalidades iniciada em 2003, o começo e o fim da experiência da “Nova Matriz
Macroeconômica”, tendo como ponto de partida o pensamento de Ignacio Rangel, foi não
dar aparato institucional a medidas de grande sensibilidade política e capazes de romper
o pacto de governabilidade.
A questão é a retirada do elemento de inércia anexa à taxa de juros e o exagero
em sua utilização como amortecedor de disfunções sazonais de preços, que por sua vez –
como há tempos – são “ajustados” por elementos estranhos à lei da oferta e procura. Na
ponta do processo, este papel equivocado da variável juros rebate diretamente no câmbio,
o valorizando ao invés de o transformar (taxa de câmbio) em funcionalidade virtuosa
numa economia internacional integrada como fonte de formação de reservas protetoras,
e se convertendo em óbvio instrumento de planificação do comércio externo de um
modelo, que deverá ser de export-led. Resumindo: uma economia aberta e pautada pela
necessidade de busca de centros de metas inflacionárias anualizadas é incompatível, no
atual estágio de nosso desenvolvimento com o enfrentamento aos desafios que nos
atormentam de enfrentar pesados desequilíbrios estruturais (indústria), sociais (ainda
gritante desigualdade social) e internacionais (agressividade imperialista, transição de
centro dinâmico da economia internacional e maior protagonismo do quinto maior país e
sétima economia mundial). Eis as expressões das reais jabuticabas da economia brasileira
hoje.
Por fim, é evidente que o futuro do capitalismo brasileiro, no rumo indicado por
Ignacio Rangel, demanda – atualmente – recomposição do debate sobre os nossos reais
problemas, que muito antes de se localizar na já citada “porta de saída” (juros e câmbio
tão e somente) deve se situar na raiz do processo histórico das institucionalidades surgidas
no âmbito do Plano Real (1994) e os estertores do Tripé Macroeconômico (1999). É criar
condições políticas à superação de uma ordem institucional legitimadora de um poder de
classe estranho aos objetivos da Revolução de 1930, na estratégia de amadurecimento de
nosso capitalismo intrínseca à Quarta Dualidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A OBRA VIVA DO MAIOR PENSADOR
BRASILEIRO DO SÉCULO XX
O pensamento econômico brasileiro moderno é marcado por uma série de
colaborações que até hoje servem de base ao pensamento nacional de caráter
23
desenvolvimentista. Exemplos são muitos, entre eles Celso Furtado e sua obra magna,
Formação Econômica do Brasil, a quem – independente das críticas a posteriori –,
devemos a importante elaboração da constituição de um centro dinâmico interno à
economia brasileira pós-crise de 1929. Na mesma linha de raciocínio de nosso
desenvolvimentismo clássico – exposto desde nosso “Patriarca da Independência” (José
Bonifácio), passando por Octávio Brandão e Caio Prado Jr até Celso Furtado – podemos
aferir, numa visão particular, no Pensamento Independente de Ignacio Rangel o ápice do
desenvolvimentismo expresso num alto grau de sofisticação teórica e conceitual, servindo
como luz estratégica de condução diante da lógica espiral dos desequilíbrios sobre
desequilíbrios e assim sucessivamente.
Intentamos aqui demonstrar a atualidade de seu pensamento que como toda
matéria histórica deve ser confrontada com a realidade, de forma constante e como
condição de seu aperfeiçoamento contínuo e como principal critério de validação teórica.
Tem sido uma ótima constante o ressurgimento de debates em torno da obra rangeliana,
sobretudo em função de seu aniversário 100 de nascimento. Porém, o desafio deve ir além
da homenagem em si centrada – sobretudo – em sua recolocação entre os grandes nomes
da historiografia econômica brasileira ao ponto de percepção da vitalidade de suas ideias
neste difícil momento que passa nosso país. Foi este o rumo deste artigo na tentativa de
colocá-lo como um pensador marxista genial de nosso processo histórico de acumulação.
Além disso, na esteira de Marx e Lênin, conseguindo apontar rumos estratégicos, de
identificação de nós institucionais em concordância com o nível da grande batalha política
entre as diferentes classes em disputa pelo excedente econômico.
É neste tocante, diferenciação de Rangel em comparação com seus interlocutores,
é que o classificamos como o maior pensador brasileiro do século XX, cujo pensamento
é núcleo necessário da elaboração de uma grande estratégia nacional brasileira diante dos
desafios que a realidade nacional e internacional tem nos confrontado.
A análise rangeliana do processo em marcha, reconhece os avanços ocorridos nos
anos, seu papel de estarte de transição à Quarta Dualidade, porém coloca acento na
necessidade de superação dos marcos institucionais concebidos e implementados nos
marcos, e no rumo aberto no início da década de 1990 de liberalização financeira, do
lançamento do Plano Real e da implementação do Tripé Macroeconômico – verdadeira
jabuticaba da economia brasileira.
24
Que tenhamos a consequência política de perceber, enxergar além da parede. De
produzirmos e reproduzirmos uma teoria que ainda se encontra em seu estágio de
infância, demandando desenvolvimento. Como o marxismo adaptado à realidade
brasileira, corpo científico de transformação da realidade. De uma realidade complexa,
fértil de campo de estudo e principalmente de ação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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